Os Movimentos Do Maracatu Estrela Brilhante de Recife
description
Transcript of Os Movimentos Do Maracatu Estrela Brilhante de Recife
-
1
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
Os movimentos do
Maracatu Estrela Brilhante de Recife:
Os trabalhos de uma nao diferente
Las Salgueiro Garcez
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Antropologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito
parcial para obteno do Grau de Mestre.
Vnculos temticos: Maracatu de baque virado, movimento, corporeidade, afro dispora.
Linha de Pesquisa do orientador: Performance, Corporeidade e Cognio.
Niteri
2013
-
2
Banca Examinadora
__________________________________
Prof. Orientador Dr. Julio Cesar de Souza Tavares
Universidade Federal Fluminense
__________________________________
Prof. Dr. Daniel Bitter
Universidade Federal Fluminense
__________________________________
Prof. Dra. Renata Gonalves
Universidade Federal Fluminense
__________________________________
Prof. Dra. Eneida Leal Cunha
Pontifcia Universidade Catlica - RJ
__________________________________
Prof. Dr. Nilton Santos (suplente)
Universidade Federal Fluminense
__________________________________
Prof. Dr. Renato Noguer (suplente)
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
-
3
RESUMO
O objetivo deste trabalho entender como os movimentos corporificados tanto de
indivduos quanto de coletivos engendram categorias explicativas da vida. Em se tratando de
movimentos, lidaremos, portanto, com configuraes que lidam com o limiar entre a fixidez de
um imaginrio histrico e seu presente contingencial. A partir disso surgem dilemas, novas
formas de relacionamentos e afirmaes de autenticidade.
Discutiremos, ento, como as questes e tenses vividas por quem faz Maracatu de baque
virado nos dias de hoje so reveladas tanto em seus micro-movimentos corporais quanto nos
movimentos de toda uma nao. Para essa discusso partiremos do paradigma da corporeidade
de modo a compreender como categorias verbais e no verbais expressam a autenticidade do
Maracatu Nao Estrela Brilhante de Recife. A partir disso veremos como essa nao lida com
sua atual conjuntura, um momento de expanso que se configura como uma afro dispora do
Maracatu.
Para a compreenso das categorias que emergiram no campo apresentarei uma anlise
sobre os modos como esta nao se relaciona com indivduos que vem de fora do Recife e que
vo para sua localidade viver o Maracatu, como ela constri o seu carnaval e sua performance;
alm da discusso de sua dana a partir da interao entre cantos, toques e religio.
Palavras-chave: Maracatu Nao Estrela Brilhante de Recife, movimento, corporeidade e afro
dispora.
-
4
ABSTRACT
The purpose of this study is to understand how the embodied movement, both of
individuals and collectives, engender life explanatory categories. When it comes to movement,
we will work with configurations that deal with the threshold between the stiffness of a historical
imagination and its contingent present. From this arise dilemmas, new relationship forms, and
statements of "authenticity".
We will discuss how the issues and tensions experienced by those who, these days play
Maracatu de Baque Virado are uncovered in both its micro-body movements and how the entire
"nation" flows. To understand how verbal and nonverbal categories express the "authenticity" of
Maracatu Nacao Estrela Brilhante of Recife, we must understand the paradigma of embodiment.
Understanding this, we can comprehend how this "nation" deals with their current situation, a
moment of expansion and growth which is configured as an african diaspora to the Maracatu.
To understand the categories that emerged in the field, I will present an analysis of the
ways in which this "nation" interacts to individuals outside of Recife and visit the "nation" to live
the Maracatu lifestyle, how they work during Carnaval and its performance; also discussing their
dance from the interaction between chants, music and religion.
Keywords: Maracatu Nao Estrela Brilhante de Recife, movement, embodiment and african
diaspora.
-
5
AGRADECIMENTOS
A elaborao de uma dissertao me fez crescer ramos e flores que nunca imaginei. Foi o
incio de uma guinada ao conhecimento que nunca fiz e nem farei sozinha.
Agradeo primeiramente ao Maracatu que transformou a mim e minhas perspectivas
permitindo que eu desfrutasse de suas belezas e de suas tenses, assim como a vida. Mas mais
que isso me ensinou que quando se faz alguma coisa em coletivo e com amor ela estar sempre
movendo nossos passos. O Maracatu sim me move hoje e sei que por muito tempo.
Nos agradecimentos especiais esto meus dois grandes mestres. O meu sbio orientador
Julio Tavares, que com toda sua sutileza e intuio me abraou e me jogou nesse vasto mundo
que no se encerra na antropologia e nem na academia. E meu mestre Maurcio Soares que com
todo seu humor e mistrio me mostrou que a dana como a vida e como tal muitas vezes no h
descrio perfeita para ela, basta danarmos, basta vivermos.
Agradeo minha eterna famlia Maracutaia por onde vo e vem pessoas que marcaram
pra sempre minha histria e que sem dvidas me levaram a aprender mais sobre o Maracatu,
sobre sua vida fora de Recife e permitiram que ento eu pudesse ter muitas alegrias e levantar
muitos questionamentos nesse trabalho.
minha famlia da Mangabeira no Recife com Maurcio e todos seus parentes: Marcela,
Mauricia, Creyde, Darllyane, Darhlly, Drielle e Pepeu. Tambm s queridas Isa e Keli.
Agradeo a todos por me mostrarem pedaos especiais dessa cidade cheia de histrias.
A todos do Maracatu Nao Estrela Brilhante em especial Dona Marivalda, Geny,
Belinha, Sabrinha, Nathlia, Pitoco e Ulisses. E aos amigos do Maracatu de todo o mundo Aline
Freire, Aline Ruzzante, Bel e Tas que alegraram meus dias pelo Recife e por onde a nao for.
Ao Grupo Rio Maracatu com Isabela, Chicote, Lo Araripe, Alfredo Alvez e Adriano
Sampaio e a todos os amigos que fazem parte desse grupo e permitem que o Maracatu continue
se movendo pelos quatro cantos do mundo.
Agradeo tambm Clarisse Kubrusly que de professora tornou-se amiga de campo e de
vida, e por quem tenho grande respeito e carinho.
-
6
Aline Valentim, mestre e iniciadora de muitas pessoas no mundo do Maracatu, cheio
de festa e amigos, mas tambm cheio de lutas e aprendizados de diferentes modos de se viver.
Luna Leal e toda essa famlia black e nossa dana que me fizeram crescer permitindo que eu
refletisse sobre o meu lugar no mundo e em especial no nosso pas.
Anna Enne, Geny, Cissa, Gilza, Vera Loyola ou Primaveroca, Maria preta e a
Leleu. Mulheres que de seus diferentes modos me impulsionaram nesse caminho de descoberta
do mundo, do corpo, da vida e da antropologia. E que precisam saber que fizeram a diferena.
Aos amigos especiais que sempre me apoiaram de algum jeito nessa empreitada,
Andressa Lacerda, Aline Ribeiro, Felipe Magaldi, Thais Corra, Lina Miguel, Tyaro Maia,
Michele Melo, Thiago Dideus e Juliana Athayde.
Karen Tribuzy que acompanhou meus primeiros movimentos para a realizao do
mestrado. E tambm a toda sua famlia que sempre me acolheu com os carinhos necessrios
durante a maior parte desse perodo.
Ao Fabio Maciel que com muito companherismo produziu o vdeo que complementa esse
trabalho. E aogrande percussionista eamigo Alexandre Garniz que est sempre abrindo nossos
caminhos.
Aos meus novos amigos da Escola de Dana Angel Vianna: Juliana Sotero, Rafael
Garrido, Danilo Alexandre e todos que me permitem experimentar novos rumos para a
antropologia do corpo e da dana.
Aos meus parentes, agradeo ao meu pai Gilner e tia Ktia, s visitas de minha me, s
diferenas com meu irmo Augusto, aos balagands de minha av Gilda e aos empurrezinhos
de minha tia Odete e a vida ao lado do meuprimo Luciano Salgueiro. Agradeo tambm minha
av Julia que durante a realizao da dissertao me ensinou a fora que a vida tem com suas
surpresas eseu amor.
Com carinho especial agradeo aos meus avs que continuam vivos em meu corao.
Meu av Elio que deixou uma sabedoria e fora de lutar que seguiu comigo por todas as etapas
desse mestrado. E ao meu av Gesner, Nezinho, sempre surpreendendo com sua vontade de
viver. Por eles completei esse caminho, tentando fazer como queriam e como pude.
-
7
Por fim agradeo aos professores que participaram da na minha formao:Nilton Santos,
Daniel Bitter, Eneida Leal, Liv Sovik, Carlos Sandroni, Renato Nogueira, Maria Acselrad e
Renata Gonalves.Aos meus companheiros de trabalho do LEECCC que contriburam nas
minhas atividades do mestrado. Andrew Csar, Anna Carolina, Nestor Gmes, Marianna e Rose,
que juntos aprendemos a ser um grupo de trabalho fazendo a diferena com foco, disciplina e
determinao.
Agradeo tambm a Marcelino Conti e ao Marcelo do PPGA que sempre colaboraram
para resolver minhas questes burocrticas, e ao Programa REUNI que financiou metade do meu
mestrado.
-
8
Aos meus avs Elio e Julia Salgueiro, bases para todos os meus movimentos.
-
9
No comeo era movimento.
No havia repouso porque no havia paragem do movimento. Crescia-se para repousar,
misturavam-se os mapas, reunia-se o espao, unificava-se o tempo num presente que parecia
estar em toda a parte, para sempre, ao mesmo tempo. Suspirava-se de alivio, pensava-se ter
alcanado a imobilidade... Ento a linguagem nascia num relmpago, os sons combinavam-se,
as palavras encadeavam-se, os sentidos incendiavam-se, a marcha desencadeava os passos na
alegria, e hesitava na angustia de cair.
A vida transbordava. (GIL,2004)
-
10
SUMRIO
INTRODUO 13
CAPITULO UM MARACATU DE BAQUE VIRADO EM DEBATE: ORIGENS,
AMBIGUIDADES, POLTICAS E CRENAS 23
CAPTULO DOIS CORPO E MOVIMENTO NA ANTROPOLOGIA 31
Movimento 32
Corporeidade 34
Dispora 35
CAPTULO TRS A NAO MARACATU ESTRELA BRILHANTE DO ALTO JOS
DO PINHO PARA O MUNDO1
39
3.A Conjuntura afro diasprica 39
3.B Naes e grupos: uma relao de respeito aos trabalhos 44
3.C O quarto perodo da nao 50
Os perodos da nao 52
3.D A famlia Estrela Brilhante 62
3.E Pertencimento e tradio 70
1 Dado etnogrfico retirado da monografia de Virgnia Barbosa (2001).
-
11
CAPTULO 4 NEM MELHOR, NEM PIOR. SIMPLESMENTE UMA NAO
DIFERENTE O COTIDIANO DO MARACATU NAO ESTRELA BRILHANTE DE
RECIFE 72
4.A Preparativos do carnaval: ritual e cotidiano no Alto Jos do Pinho 74
Ensaios da percusso 77
Confeco e experimentao de Figurinos 85
Trabalhos Espirituais 93
4.B O dia do desfile da nao na Av. Dantas Barreto 100
4.C A performance do carnaval 104
CAPTULO 5 O ESTRELA EM MOVIMENTO 108
5.A A corporeidade nas teorias antropolgicas e na dispora africana 108
A corporeidade afro diasprica do Maracatu 111
5.B Dana e Movimento 113
Dana e religio afro diasprica 118
5.C Dana: um dos rgos do Maracatu 121
Mestre Maurcio Soares 122
Vivncia e aprendizado do Maracatu via Mestre Maurcio 124
Oficinas de dana do Maracatu: formas e estruturas 127
5.D Dispora e corporeidade: linguagem em trnsito 133
CONSIDERAES FINAIS 137
-
12
ANEXO I 141
ANEXO II 143
A Alto Jos do Pinho 143
B Instrumentos 143
C Figurinos 147
BIBLIOGRAFIA 152
-
13
INTRODUO
Para a realizao dessa dissertao parti da preocupao com a discusso do corpo na
Antropologia. A proposta era trabalhar com a inter-relao entre cultura e indivduo, corpo e
mente para a compreenso da corporeidade de um grupo social. Assim posto, pode-se considerar
a corporeidade como um paradigma antropolgico que reposiciona as propostas analticas da
disciplina e promove a preocupao com a integrao das vrias dimenses constituidoras da
vida desde o nvel dos movimentos individuais e coletivos at suas esferas culturais e polticas.
Com este aparato terico minha curiosidade inicial era saber como se dava a disperso do
Maracatu de Baque Virado2 pelo mundo, o que motivava as pessoas a manterem grupos de
Maracatu fora de Recife, como seriam as relaes entre naes e grupos3 e como os corpos
produtores desse saber cultural se diferenciavam, se aproximavam e dialogavam. A questo do
trabalho comeou a surgir antes do mergulho no campo em Recife, mas a partir das minhas
experincias com o Maracatu no Rio de Janeiro, o que j permitia a minha insero na rede de
relaes que envolve esta manifestao cultural.
Com essas motivaes fui Recife em janeiro de 2012. Entrei em contato direto com Mestre
Maurcio Soares do Maracatu Nao Estrela Brilhante de Recife a partir de Clarisse Kubrusly4.
Durante a produo da etnografia que a questo do campo emergiu e se formulou melhor, isto
, como manter a autenticidade5 de uma nao diante da dispora do maracatu?
E como fiz para compreender a questo e suas possveis respostas? Como entender o modo
como ela era vivida pelos integrantes desta nao? Como categorias verbais e no verbais
2 No processo de distino (Bourdieu), como bem explica Esteves (2008), as naes e os grupos de Maracatu
fazem Maracatu de baque virado. No entanto nao e grupo tem suas especificidades e, logo, so categorizados a partir de nomenclaturas distintas. 3 Esses grupos sero abordados ao longo do trabalho, tratam-se grupos percussivos, culturais ou folclricos
como queiram se auto denominarem. 4 Tive como uma das intermedirias para o trabalho de campo Clarisse Kubrusly que tambm faz parte da rede de
relaes do Maracatu por conta da sua pesquisa de mestrado e o trabalho que fazia com danas no Grupo Rio Maracatu. Esse caso demonstra que a partir da prpria disperso e da rede do Maracatu pelo pas, que faz parte do meu objeto de pesquisa, que tive a minha entrada no campo e me aproximei da nao, estreitando os laos com mestre Maurcio, quem eu j havia conhecido em 2011 no Rio de Janeiro. 5Uso o termo autntico e autenticidade numa referncia aos modos como os prprios Maracatuzeiros das
naes se auto referenciam.
-
14
expressavam sua autenticidade? Para isso eu passei por duas etapas: primeiro a coleta dos
dados etnogrficos e depois sua organizao, o que culminaria na produo do texto desta
dissertao.
Para essa coleta, ou seja, a realizao da etnografia, primeiramente eu passei dois carnavais
morando na Mangabeira, na casa de Mestre Maurcio.
Essa vivncia me apresentou algumas categorias cotidianas que marcam o discurso verbal
e no verbal dos indivduos da nao e definem seu lugar como autntico. Como por
exemplo a compreenso de ser diferente, uma palavra que identifica a nao e que
expressa em suas atividades e na forma de organizao e construo do seu carnaval, que para
seus integrantes diferente. Isso se expressa tambm nos seus corpos na forma de tocar, nos
elementos usados nas fantasias e nos rituais religiosos. So formas de construir a corporeidade
da nao que est sempre em transformao e em dilogo com outras naes e outros grupos
de maracatu.
O carnaval tambm me apresentou os trabalhos do Maracatu Nao Estrela Brilhante
de Recife (abreviarei o nome dessa nao sob a sigla MNEBR) que, no entanto ocorrem o ano
todo. A categoria trabalho se refere s atividades dos maracatuzeiros6 que geram
compromissos entre o indivduo e a nao, se refere s suas crenas culturais, ao seu amor e
dedicao. Alm disso, reveladora dos esforos de seus agentes na demanda de respeito e na
busca de legitimidade para a autenticidade de uma nao. Por fim, diante da disperso do
MNEBR, o respeito aos seus trabalhos redefine fronteiras culturais e polticas para a
construo de formas de pertencimento nao.
A estadia na cidade recifense tambm me gerou alguns dados de campo sobre a relao da
nao com os eventos da prefeitura de Recife e a organizao do seu Carnaval Multicultural,
porm, por uma escolha analtica a discusso vinda dessa relao teve que ficar de fora do texto.
No entanto, reconheo-a como uma dimenso importante para a construo do carnaval da
nao nos dias de hoje e de onde tambm surgem algumas controvrsias.
6 Maracatuzeiros a categoria utilizada por Lima (2007) para classificar os indivduos que fazem e vivem o
Maracatu. Apesar disso no recorrente a palavra por entre os integrantes do Maracatu Nao Estrela Brilhante de Recife.
-
15
Em segundo lugar, alm do acompanhamento na construo do carnaval, outro material de
campo tambm me apresentou a questo formulada. Foi o Encontros Maracatu Sem Fronteiras
que aconteceu em So Paulo em novembro de 2012.
Esse evento permitiu a compreenso da dimenso planetria dos movimentos Maracatu, do
modo como ele agrega pessoas de diferentes lugares e permite a construo de novas relaes
entre os integrantes das naes ou, no caso do Estrela Brilhante, de quem da famlia azul e
branco. Famlia aparece como uma categoria que tambm expressa respeito, compromisso e
formas de organizao da hierarquia da nao, ou seja, do lugar de cada um nas suas relaes,
como o lugar do mestre, da rainha, de quem de Recife ou no.
Alm disso, o Encontros permitiu a sustentao da discusso do Maracatu em dispora, em
trnsito. E, como diante dessa disperso, os mestres e integrantes da nao se colocam como
detentores de uma cultura.7
Por fim, outro material de campo que rendeu frutos foi a participao em oficinas de dana
do Mestre Maurcio, tanto em Recife quanto no Rio de Janeiro.
Essa vivncia me apresentou a dana como um lugar de definio dos movimentos
autnticos e tradicionais8 da nao. Nas oficinas vi as maneiras do mestre repassar e
expressar seus saberes corporificados9. Alm disso, pude compreender que o que danado e
entendido por ele como gingado, belezura da dana e passo bsico constitui sua
corporeidade em relao sua nao.
A participao nas oficinas ao lado do trabalho de campo em Recife me revelou tambm
como a dana est atrelada s crenas e experincias dos seus participantes no universo das
religies afro diaspricas e devoo s calungas Dona Joventina e Dona Erundina.
7 No evento Encontros Maracatu de Baque Virado era comum o discurso de grupos que iam se apresentar
pedirem licena as naes de Maracatu presentes, visto que elas so as detentoras dessa cultura e tradio 8 O termo tradio amplamente discutido na Antropologia entendido aqui a partir da relao entre o passado
contado e vivido a partir de um imaginrio histrico e o presente contingencial. Renata Gonalves (2010) fala da tradio como a relao entre continuidade e mudana cultural. A tradio est relacionada ao modo como a performance vivida e reinventada (Carlson, 2009). V tambm Serres, 2008 e Scott, 1999. 9Tavares define saber corporal como a possibilidade de constituio de uma enunciao em prtica discursiva,
que se serve dos movimentos e aes corporais para a estruturao de seu repertrio. Este repertrio a resultante das articulaes dos signos que so elaborados das vivncias cotidianas ou nelas intercambiadas. (Tavares, 1984). Seguindo a mesma definio proponho falar em saber corporificado, pois, no meu ponto de vista, o termo enfatiza o carter encarnado (corporificado = embodied = habitus + pr-objetivo) dos saberes apreendidos cotidianamente.
-
16
Ao todo trabalhei para a produo do texto desta dissertao e do vdeo complementar
apresentado na defesa (http://www.youtube.com/watch?v=1rVKipmAtys) com mais de cinco
horas de imagens e udios gravados e trs meses de trabalho de campo que renderam muitas
anotaes e mais de mil fotos.
Com todo esse material de campo, para partir para a segunda etapa da pesquisa a de sua
organizao para a produo do texto da dissertao produzi uma indexalizao tanto das
anotaes, udios e imagens quanto das ferramentas tericas que possua. Esta foi uma etapa
metodolgica da produo do trabalho que ajudou na compreenso da questo do campo, na
organizao dos dados, no seu dilogo com as teorias propostas e no levantamento de possveis
concluses.
Para a realizao dessa indexalizao eu parti de cinco grandes chaves que foram sendo
destacadas a partir das primeiras impresses mais relevantes que eu tinha do material e do que eu
havia vivido:
1 contextos em que aparecia a palavra maracatu;
2 religio;
3 nao e o que se referia s suas atividades;
4 relao entre nao e grupos de Maracatu;
5 relao com Mestre Maurcio.
Durante esse processo descobri como essas chaves se cruzavam e revelavam em cada
uma delas os modos como aparecia a questo de campo. Por exemplo, como a autenticidade
aparecia no discurso verbal e no verbal de Maurcio, na relao com a religio, nas atividades
cotidianas da nao ou no que se refere a definio do que uma nao diferente de um
grupo de Maracatu. Alm disso, essas cinco grandes chaves foram cruzadas com as questes
tericas que me norteavam, por exemplo, onde se destacavam falas e anotaes que remetiam a
gestos e emoes ou seja no que se configuraria como corporeidade e em quais momentos
apareciam as tenses consequentes da dispora do Maracatu.
-
17
Alm disso, a indexalizao dos dados de campo me ajudou a visualizar as categorias
nativas, como e onde elas apareciam e quais eram as mais relevantes, como foi no meu entender:
trabalho, luxo, diferente, belezura, passo bsico, gingado e vivncia.
Inclusive ajudou na produo do vdeo de modo a tentar destaca-las nas imagens e udios
selecionados. Essa etapa metodolgica tambm permitiu que eu organizasse os pontos que me
interessavam no que se referia a dana do Maracatu e principalmente na sua relao com as
prticas religiosas afro diaspricas. Trouxe dados que configuravam a dispora dessa nao.
E, o mais importante, me fez perceber onde eu devia aprofundar nos auxlios tericos para
compreender o que o campo estava me mostrando. Pois, ao fim e ao cabo, a indexalizao
permitiu a visualizao do campo vivido.
Durante essa etapa metodolgica encontrei o fio condutor do trabalho. Comecei a
compreender que eu produzia um debate sobre corpos em movimento e que, portanto, meu objeto
de discusso era os modos como atravs dos movimentos coletivos e individuais atuais do
Maracatu pode-se compreender sua corporeidade, aprender sobre as categorias corporificadas
que o explica e analisar sua atuao, hoje, tanto na cidade de Recife quanto fora dela o que
remete questo de como manter a autenticidade da nao diante da dispora do Maracatu.
Para a produo da narrativa do texto da dissertao essa indexalizao tambm
contribuiu para a conduo dos debates nos captulos de modo a selecionar os dados relevantes e
a atravessa-los com a preocupao com a corporeidade e com as novas discusses que foram
aparecendo ao longo do trabalho como a da dispora e do movimento.
Vejamos: no primeiro captulo apresento alguns debates sobre o Maracatu de Baque
Virado enfatizando meus dilogos com algumas pesquisas produzidas ao longo do sculo XX e
XXI.
No segundo captulo apresento a proposta de uma antropologia do corpo e do movimento,
explicando como o caso do MNEBR pode contribuir para essa perspectiva terica. Apresentarei
como lido com os conceitos de movimento, corporeidade e dispora enfatizando os modos como
so constitudas categorias corporificadas reveladoras das organizaes sociais, culturais e
polticas corporificadas no ato de viver, de se mover.
-
18
Esse debate terico permitir que eu lance mo de um artifcio conceitual para lidar com
os movimentos tanto na esfera individual quanto coletiva. Desse modo conceituei o movimento
como uma linguagem em trnsito. Parto da compreenso da linguagem como uma combinao
de unidades significativas e no significativas (monemas e fonemas) finitas, que articuladas
formulam um numero infinito de sentidos (semnticas). Numa cultura ou numa dana so
infinitos os movimentos possveis para a busca desses sentidos. Desse modo, qualquer linguagem
definida a priori pode se transformar mediante algum movimento da vida.
A compreenso destes movimentos como gerador de experincias e constituidor de
corporeidades contribui para a analtica da expresso atual do Maracatu de baque virado. Alm
disso, explica quando falo de suas esferas culturais, polticas e sociais como dimenses
corporificadas nos movimentos.
Essas trs ideias (movimento, dispora e corporeidade) sero trabalhadas ao longo desse
texto de modo a demonstrar como elas se atravessam e reafirmam o no dualismo da vida, onde
um indivduo se dilui num coletivo no apenas porque o representa, mas porque um corpo no
corpo a no ser na sua presena no mundo diante de outros corpos. Alm disso, encontrei, na
concepo de movimento o denominador comum para as discusses de corporeidade e dispora.
No terceiro captulo apresento como se configura a atual conjuntura afro diasprica do
Maracatu. Ou seja, como o MNEBR sai do seu bairro Alto Jos do Pinho Zona Norte de Recife
para o mundo. Nessa sada revelam-se as questes que so singulares ao Maracatu e suas
estratgias para respond-las a partir da construo de discursos sobre autenticidade, da
reconfigurao das relaes de poder entre nao e grupos de Maracatu e da constituio de
uma famlia Estrela Brilhante.
Todas essas estratgias lidam com a relao entre o tradicional e suas possveis
mudanas, o que traz para cena a relao entre o finito e o infinito, ou seja, a relao por
excelncia do movimento. Nisso gera-se uma tenso em que aquilo que modelamos e
acreditamos controlar sai pelo mundo para tentar a sorte e passa a ter vida prpria (SERRES,
2008, p.116). Veremos como essa a questo que permeia hoje a vida dos Maracatuzeiros do
MNEBR e que, portanto, fez-se necessria uma leitura crtica de sua atual conjuntura afro
diasprica.
-
19
No quarto captulo apresentarei os movimentos cotidianos no MNEBR para a construo
de seu carnaval. Entenderemos como se constri o discurso que diz que esta nao no nem
melhor, nem pior, mas diferente.
A etnografia demonstra como a partir das experincias corporais cotidianas emergem e
so incorporadas as categorias de luxo e o status de ser diferente da nao estudada.
Veremos que essas categorias esto atreladas a outra forma de classificao de suas atividades
cotidianas, trata-se da idia de trabalhos citada anteriormente.
Apresentarei uma anlise etnogrfica do carnaval desta nao como um ritual na vida
dos seus integrantes de modo a produzir experincias culturais profundas que permitem que os
Maracatuzeiros encontrem respostas para os seus dilemas. Alm disso, veremos como o carter
experimental e criativo desse ritual d vazo uma multiplicidade de sentidos do mundo, que, no
entanto, encontram-se encarnados a partir de concepes coletivas compartilhadas (as categorias
citadas anteriormente) num momento especfico que refora a coeso do grupo diante das
contingencias da vida.
Ao apresentar como se realizam ensaios, figurinos e ritos religiosos entenderemos que o
tempo do carnaval repleto de atos rituais que configuram um sistema de transformaes
(SCHECHNER, 2012). Essas transformaes giram em torno de seus trabalhos de modo que
seu luxo e seu status de diferente compe a corporeidade (corpo coletivo + corpo
individual) do MNEBR
No quinto e ltimo captulo trataremos da dana do Maracatu, compreendendo que os
movimentos dos corpos se do a partir de inter relaes coletivas e improvisadas entre os
performers que cantam, danam e tocam. Categorias como gingado, passo bsico e
belezura surgem como formas de reconhecer a dana do MNEBR.
Por fim, tratarei da anlise das danas quer dizer de um conjunto de movimentos
como a possibilidade de compreender em quais processos de objetivao cultural est
mergulhada a corporeidade de um grupo. Isso dialoga com a anlise sobre a relao entre a
dana do Maracatu e religies afro diaspricas, e entre vivncia e oficinas de Maracatu a
partir de mestre Maurcio Soares do MNEBR.
-
20
Desse modo, todo o meu esforo foi o de recriar as imagens que constituram as minhas
experincias ao lado do MNEBR tentando transpassar a sensao de sua grandiosidade, dos
caminhos que percorre nessa afro dispora, que no comeou e nem termina agora. Para isso
aqui sero tratadas trabalho, luxo, diferente, belezura, passo bsico, gingado e
vivncia como categorias primordialmente corporificas nas experincias cotidianas da vida
dos Maracatuzeiros no MNEBR. De acordo com Sheets-Johnstone (1999) a incorporao do
movimento e dos gestos a partir do dia a dia vivido, que tem sentidos culturais reconhecidos,
sempre possvel. A passagem revela, portanto, que os sistemas conceituais que sero
apresentados esto ligados s experincias corporais de modo a encarnar sentidos nos gestos e
nos movimentos a partir de uma realidade vivida.
Por fim, o trabalho etnogrfico e as etapas vividas para realiz-lo revelou-me que falar
em uma linguagem em trnsito pode ser ilustrativo dos movimentos que vive hoje o Maracatu de
baque virado, atentando-se por um lado aos seus discursos verbais e no verbais que se
pretendem autnticos e por outro s prprias contingncias da vida que impulsionam
transformaes e revises da linguagem j estabelecida.
As propostas tericas sobre movimento, corporeidade e dispora me permitem ento
propor a compreenso do Maracatu como uma linguagem em trnsito. Como disse, a linguagem
refere-se a gestuais que constituem a corporeidade, isto so reconhecidas e compartilhadas no
mundo todo as dimenses estruturais e perceptivas, que configura a linguagem do Maracatu de
baque virado. Enquanto o trnsito refere-se conjuntura disporica que possibilita os encontros,
trocas e negociaes que configuram as transformaes possveis dessa linguagem em constante
movimento.
A dimenso do trnsito pode ser bem ilustrada pela concepo de Hannerz (1997, p.15)
sobre fluxos globais. Para ele a metfora da cultura como um fluxo no uma
simples transposio, simples transmisso de formas tangveis carregadas de
significados intrnsecos. Ela deve ser vista como originando uma srie infinita
de deslocamentos no tempo, s vezes alternando tambm o espao, entre formas
externas acessveis aos sentidos, interpretaes, e ento, formas externas
novamente: uma sequencia ininterrupta carregada de incertezas, que d margem
a erros de compreenso e perdas, tanto quanto a inovaes.
-
21
O autor explicita, porm que a leitura da cultura em termos processuais ou de fluxos no
exime a anlise terica de problematizar suas ambiguidades e assimetrias. Utilizo, portanto, o
termo linguagem em trnsito na tentativa de expressar essas possveis tenses configuradas pelos
movimentos individuais e coletivos que vivem hoje o Maracatu. Veremos que todo esse trabalho
transita por ambiguidades que revelam as relaes entre o finito e o infinito da vida, a tradio e
suas contingncias. Logo, a nfase na importncia do movimento revela como pode ser
constituda uma linguagem no verbal, que lida com um repertrio conhecido de gestos
analisados como categorias corporificadas. No entanto, essa linguagem se constitui a partir das
experincias individuais diante de um determinado contexto e, portanto em constante
transformao e sempre diante de muitas possibilidades.
Enfim, como definir o Maracatu hoje a no ser por essa sua grande rede de trocas entre
naes e grupos? Ao fim e ao cabo isso suscita a multiplicao das formas de viv-lo ento
dana-lo que podem ser ainda melhor observadas na sua relao com o que veremos como as
estruturas das performances afro diaspricas.
Apesar dessas mltiplas formas veremos os modos de configurao da autenticidade
de uma nao. Ao longo de todo o texto o autntico aparecer no terceiro captulo como
resposta aos movimentos atuais de disperso do Maracatu, no quarto na construo cotidiana de
um carnaval que trs tona processos criativos especficos desta nao e no ultimo na
organizao de formas e significados da dana do Maracatu que a define como original.
Desse modo as categorias estudadas ao lado da compreenso do universo religioso dos
terreiros de Xang10
ou Jurema11
como constituidor do habitus da nao tornam-se critrios de
legitimao do carnaval e da tradio desta nao. Trata-se de uma perspectiva que concebe
10
Os cultos de Xang uma forma religiosa afro brasileira que tem paralelos com o candombl da Bahia. Sua linha predominante em Recife a nao nag. Seu sistema de crena est baseado nos rituais para os orixs (divindades da natureza), no or (princpio vital individual) e nos eguns (ancestrais). Para maiores esclarecimentos v: Carvalho (1991) e Carvalho e Segato (1999). 11
A Jurema um dos cultos, ao lado dos terreiros de Xang, que esto mais presentes em Pernambuco, e tem seus paralelos com a Umbanda. Teoricamente as duas seitas seguem rituais e preceitos diferentes, mas como veremos possvel seu intercruzamento: o caso do Estrela Brilhante de Recife atualmente. A Jurema , portanto uma linhagem das religies afro descendentes onde esto presentes entidades espirituais como caboclos, ndios e mestres. Na minha experincia em campo o termo jurema foi aos poucos sendo vivenciado a partir da minha relao com o mestre Maurcio, desde a ingesto da bebida chamada jurema at a presena num terreiro de jurema e numa festa de jurema.
-
22
uma nao autntica vinculando suas prticas aos terrenos de suas vidas e que
simbolicamente referenciada como a raz como uma inveno poltica.
Portanto, este um trabalho sobre categorias corporificadas que emergiram no campo.
Seu estudo fundamental para a pesquisa antropolgica, pois nos permite acessar vrias
dimenses da vida, onde a linguagem no verbal revela os movimentos de um imaginrio
histrico que se relaciona com determinado cotidiano atual. Essa relao especfica engendra
formas polticas que pretendem constituir uma autenticidade, ou seja, a afirmao de um
terreno cultural e corporal que configura razes simblicas. No se trata de uma origem
esttica, mas de uma estratgia poltica de sobrevivncia.
No caso do MNEBR parece que por esse caminho que os Maracatuzeiros buscaram
responder aos seus dilemas, trazendo para suas formas de estar no mundo estratgias de vida que
lidam com as simetrias e assimetrias de uma conjuntura atual. Vejamos como isso acontece..
-
23
CAPITULO UM MARACATU DE BAQUE VIRADO EM DEBATE: ORIGENS,
AMBIGUIDADES, POLTICAS E CRENAS
Em termos de movimentos pouco tem se falado do Maracatu, no entanto, esta expresso
cultural objeto de estudos de pesquisadores como folcloristas e antroplogos desde meados do
sculo XIX.
Na primeira metade do sculo XX muito foi discutido sobre a origem dos Maracatus
pelos clssicos Arthur Ramos, Guerra Peixe e Katharina Real de modo que ainda hoje ela
localizada nas festas de Coroao dos reis e rainhas do Congo. No Recife essas coroaes
estavam associadas s Irmandades Catlicas de Nossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos,
com o passar dos anos as coroaes deixaram de acontecer e a relao com as Igrejas Catlicas
tambm perderam sua fora, desse modo em meados dos anos 1930 o Maracatu relacionado
aos cultos religiosos afro descendentes e duramente perseguidos.
Mario de Andrade ainda trouxe outros elementos para essa suposta origem, vendo
tambm a presena da cultura indgena no Maracatu, dando vazo a sua ideologia do Brasil
mestio. Alm disso, localizou o Maracatu na sua categoria de dana dramtica compondo o
cenrio de uma cultura popular brasileira que deveria ser resguardada.
Lima (2007) em seu trabalho Maracatus e Maracatuzeiros: descontruindo certezas,
batendo Afayas e fazendo histrias. Recife, 1930-1950 pretende desconstruir a origem mtica do
Maracatu na Coroao dos reis e rainhas do Congo. Ele inaugura a discusso sobre a pluralidade
de atividades culturais com as quais o Maracatu se relacionava como, aruendas, pretinhas do
congo e cambindas. Com isso ele enfatiza que havia diferenas entre os Maracatus tendo em
vista suas histrias e influncias. Alm disso, ao lado de Guillen (2008) discute sobre o modo
como os Maracatus Nao se sobressaram dentre essas outras manifestaes culturais para
tornar-se um cone da identidade pernambucana.
Na dcada de 1940 os Maracatus, que tambm eram perseguidos, passam por um
processo de carnavalizao, intensificando negociaes entre eles e a Federao Carnavalesca de
Pernambuco que passa a incentivar a sada dos Maracatus para a rua, com festas no Ptio de So
Pedro. Nesse mesmo perodo surgem algumas distines entre agremiaes carnavalescas e
-
24
naes de Maracatu (LIMA, 2007). Mas foi no fim dessa dcada que o pesquisador Guerra
Peixe estuda o Maracatu Nao Elefante de Dona Santa a maior referncia para os
Maracatuzeiros da poca e cataloga critrios para a identificao do que seja o Maracatu.
Ainda Lima desenvolveu uma crtica pertinente a este clssico trabalho de Guerra Peixe,
Maracatus de Recife. Ele demonstra como a categoria Maracatu nao foi cunhada por este
intelectual que pretendia definir os Maracatus que existiam na poca. Ele diferenciou a
organizao e a origem dos Maracatus de baque virado e dos Maracatus de baque solto que, de
acordo com Lima (2007), mantinham um dilogo constante. No seu maior exerccio de
categorizao Guerra Peixe determina a distino entre o Maracatu nao (ou de baque virado) e
o Maracatu rural (ou de baque solto) a partir dos diferentes elementos rtmicos e componentes da
corte real de cada um. Apesar dessa distino entre os Maracatus ter sido apresentada por um
intelectual que observou os grupos da poca, como criticou Lima (2007), o que importa que ao
longo dos anos ela passou a fazer parte do universo dos Maracatuzeiros e est presente nas
suas dinmicas cotidianas, sendo hoje, na maioria dos casos, distantes as relaes entre os
Maracatus nao e os Maracatus rural.
Aqui o debate sobre a origem do Maracatu ser tangenciada na medida em que
demonstrarei as formas atuais de se construir discursos verbais e no verbais que legitimam sua
autenticidade. Trata-se de estratgias polticas corporificadas que lidam com a ambiguidade
entre as afirmaes estanques sobre tradies e as prprias contingncias da vida. Ou seja, diante
das transformaes e expanses atuais do Maracatu tenta-se tornar legtimo os discursos de
autenticidade da nao em busca de reconhecimento histrico dos que no tem acesso a
outros bens materiais ou simblicos. Esse reconhecimento aparece, por exemplo, sob o discurso
da exigncia de respeito aos detentores dessa cultura.
Sobre o contexto atual do Maracatu de Baque Virado alguns pesquisadores j se detm
em debat-lo. Seus movimentos de disperso esto imbricados, a meu ver, a variados fatores e
podem ser compreendidos como aes que geram encontros de diversos nveis culturais
possveis. No caso do Maracatu Nao Estrela Brilhante de Recife hoje seus movimentos
convergem para o Recife revisitando seu aparato simblico e poltico, mas ao mesmo tempo
percorrem o mundo inteiro, encontrando novas semnticas para com elas se combinarem. Isso
ocorre devido a existncia atual de mais de vinte naes de Maracatu no Recife que guardam
-
25
suas especificidades rtmicas e corporais alm do registro realizado pelo Maracatu.org de mais
de 50 grupos de Maracatu localizados pelos estados do sul do Brasil, Europa, EUA e Canad.
Preocupado com essa atual conjuntura social e econmica, Lima (2010) discute ainda a
espetacularizao do Maracatu contribuindo para os debates recentes sobre os modos de
apropriao das culturas populares. Nessa discusso, Carvalho (2004) uma referncia que
enfatiza a explorao dos patrimnios culturais imateriais do Brasil. O autor, a partir de uma
anlise de classe e raa, sustenta que a indstria cultural atualmente tem como objetivo o
entretenimento da elite e, nesta medida, produz uma mascarada que revela os descompassos
econmicos entre as relaes de performers e pesquisadores com os agentes das comunidades
tradicionais. Ele explica que
O que estou chamando de mascarada refere-se basicamente a uma encenao,
feita por artistas de classe mdia branca (muitos deles pesquisadores de cultura
popular) para um pblico igualmente de classe mdia branca, utilizando uma
roupagem semiolgica que se renova por meio de um trplice deslocamento no
plano da identificao ideolgica: uma tradio performtica de origem
africana, preservada e praticada por negros de classe pobre, criada
historicamente para fortalecer uma alteridade enfraquecida (ao mesmo tempo
que construda) pela violncia da escravido, torna-se veculo de comunicao
para uma classe branca, mais rica e identificada primariamente com a cultura
ocidental.
A meu ver a preocupao com o modo como o Maracatu lida com a indstria cultural
legtima na medida em que questionvel a relao entre o sucesso e as apropriaes miditicas
de uma manifestao cultural e a grave condio econmica e social de seus agentes tradicionais.
Cunha (2007) explica que no processo social e poltico dos negros em Salvador apesar da
negritude e africanidade serem afirmadas como identidade da cidade, a cidadania continua
interditada aos negros e mestios que constituem a majoritria populao de baixa renda da
cidade. Um processo parecido se d com o Maracatu que precisa dialogar com um estado que
produz o o carnaval mais multicultural do pas, o que, ao fim e ao cabo, soa como uma
nostalgia freyriana (CARVALHO, 2004) que no transforma o lugar econmico desses
Maracatuzeiros.
-
26
No entanto, ao se falar em mascarada no se percebe o modo como, no caso do
Maracatu, seus agentes produzem aes polticas e formas de identificaes e diferenciaes que
passam a dialogar com os grupos de Maracatu, na maioria de classe mdia. Veremos isso no
primeiro captulo em que a expanso do Maracatu abre um novo mercado para a sua atuao
onde so redefinidas relaes de poder e revisados discursos verbais e no verbais de tradio.
Nesta posio, me aproximo da concepo de Canclini (2009) sobre a interculturalidade. Para
o autor, no atual mundo globalizado a interculturalidade refere-se aos modos como indivduos
e coletivos se constituem em meio a intensas negociaes e encontros. Esta noo, portanto,
chama ateno para as diferenas e semelhanas que ordenam as disperses e revisam as
fronteiras culturais. Tal configurao atual exige que visualizemos as transformaes culturais a
partir do seu contato com novas relaes sociais e simblicas. Por fim, conjuntura reafirma uma
realidade intercultural ao enfatizar a existncia de um processo de hibridizao entre variadas
culturas, no qual o corpo percebe e reage.
Diferente do modo como sugere Lima (2010) e Carvalho (2004), a argumentao da
interculturalidade ilustra o debate que teremos sobre o Maracatu em dispora, pois falamos de
um universo em constante movimento. Isso fica claro quando Clifford (1994) explica que as
comunidades diaspricas so sustentadas por conjunturas histricas hbridas que proporcionam
uma variedade de experincias transnacionais e interculturais. Isto , dispora configura redes de
pessoas dispersas pelo mundo que compartilham experincias histricas comuns de
deslocamentos, adaptaes e de alianas transnacionais.
No entanto, continuando, a meu ver, com a mesma preocupao de Carvalho (2004) e
Lima (2010) em sua dissertao de mestrado em etnomusicologia, Dilogo de negros,
monlogo de brancos: transformaes e apropriaes musicais no Maracatu de baque virado,
Igncio (2007), afirma que o Maracatu vive numa era de sistematizao. Preocupa-se com o
aumento crescente de brancos no Maracatu, para quem as naes comearam a adaptar suas
formas de tocar para que fossem repassados, de modo higienizado, o ritmo para novos
interessados. A partir de um trabalho etnogrfico ele demonstra que essa sistematizao ocorreu
primeiramente entre as prprias naes na medida em que havia uma tentativa de resgate de
antigos Maracatus e fez-se necessrio que fossem criados mtodos para que esse conhecimento
fosse repassado em oficinas.
-
27
Seu trabalho pertinente porque ele localiza o mestre Walter, da nao que ser
estudada aqui, como o principal contribuidor para a sistematizao dos baques12 do Maracatu e
para a criao de convenes musicais. Desse modo, de acordo com Igncio, a interao
dialgica entre os batuqueiros13 perdida na medida em que ele compreende que as Formas
de dilogo no passam ento somente pela execuo e pela resposta, mas pelo conjunto da
comunicao inter-corporal, como at mesmo risadas, arregalao de olhos e outros sinais de
interao. No entanto, a minha experincia de campo demonstra que formas de comunicao
nunca deixaram de existir de modo que preocupar-se com suas mudanas como forma de
descaracterizao, mascarada ou sistematizao me parece no levar em conta a prpria
ambiguidade dos processos sociais, alm de corroborar com a noo mtica de um modelo
original e estanque de Maracatu.
Tal ambiguidade entre tradio e processos criativos exatamente a mola propulsora de
transformaes e manutenes culturais, como tento enfatizar na noo de Maracatu como uma
linguagem em trnsito. No entanto, de acordo com Scott (1999), a afirmao dessa ambiguidade
pode ser tambm revestida de objetivos polticos. Ele diz que
precisamente por causa do fato que o paradoxo inextirpvel que
necessrio enfrentar o poltico como um domnio no de princpios, mas de paz,
no de Verdade, mas de acordos parciais e contingentes; uma esfera em que a
diferena e a ambiguidade podem ser engajadas e negociadas, ao invs de
ocultadas. (1999, p.15. grifos meus)
Utilizo a passagem de Scott aqui para demonstrar que ao ver o Maracatu como uma
linguagem em transito enfatiza-se as ambiguidades de seus processos sociais. No entanto,
reconhecem-se seus modos de construo poltica na medida em que so reivindicadas
autenticidades e origens que no deixam de negociar com as contingncias e os trnsitos do
mundo atual.
Veremos isso na medida em que compreendemos o corpo como produtor de polticas, ou
seja, de significados e estticas oriundos de experincias especficas que confrontam e tambm
negociam com semnticas sociais e culturais dominantes. Tento apresentar, portanto, como o
engajamento do MNEBR se d de modo corporificado, de modo que so vividos discursos que
12
Os baques so os toques das naes. 13
Como so chamados os integrantes da nao que tocam em sua percusso.
-
28
exigem o reconhecimento de uma expresso cultural e de seus agentes que por muito tempo
foram subjulgados. Diante dessas ambiguidades so produzidas estratgias de sobrevivncia
(produo do carnaval, jogos de poder na famlia Estrela Brilhante...) como meios polticos, de
agncia e negociao com sua nova conjuntura diasprica.
Outros trabalhos tambm esto preocupados com essa conjuntura atual e compreendem
que a nfase na relao entre religio e Maracatu uma consequncia desse momento. Ana
Beatriz Zanine e Jamesson Florentino (2011) propem a hiptese de que o grande crescimento
da quantidade de grupos percussivos, tenha sido determinante para esse reforo da
religiosidade nos Maracatus nao.... Deste modo cabe a religio o papel de marco de
diferenciao nesse contexto.... Ou seja, a religiosidade torna-se critrio de legitimao da
autenticidade dessas naes, o que nos leva mais uma vez a um discurso poltico.
De acordo com Lima (2007) e Guillen (2005) a relao do Maracatu com as religies afro
descendentes foi socialmente construda ao longo do sculo XX. Eles sustentam que no h
documentos fiis que demonstrem que essa manifestao necessariamente tinha vnculos com
rituais religiosos. No entanto, a meu ver essa perspectiva negligencia a corporeidade como
constituidora de um arquivo (TAVARES, 1984) passvel de anlise e demonstrativo de
organizaes culturais e histricas dos grupos sociais. Logo, a relao entre Maracatu e religio
ser abordada ao longo deste trabalho, de modo que a corporeidade nos permite compreender a
religiosidade no somente como a sabedoria de rituais especficos, mas tambm como um
sistema de crenas culturais presentes em qualquer prtica social, seja uma nao ou um
grupo de Maracatu.
Nesse sentido Katherine Dunham (1983) com seu trabalho Danas do Haiti ter um
papel central ao longo de minhas reflexes. Ela tida como a primeira artista a lanar mo das
teorias antropolgicas para discutir danas de matrizes africanas revisando conceitos estanques
sobre sagrado e profano. Alm disso, prope que a leitura da complexidade dos rituais religiosos
do Vodum, no Haiti, extravase seus limites por considerar que a religiosidade daqueles
praticantes no se restringe apenas ao plano cultural, mas perpassa tambm as esferas sociais,
econmicas e polticas corporificadas no ato de viver.
-
29
A antroploga corrobora com a discusso da corporeidade afro diasprica na medida em
que ela constituda de prticas culturais incorporadas nos modos cotidianos de se viver, ver e
sentir o mundo, de forma que as prticas religiosas extravasam suas fronteiras sagradas para
acompanhar os seus praticantes em outras esferas de suas vidas.
Dos trabalhos recentes que tive acesso, Oliveira (2011) tambm se preocupa em debater
sobre o corpo do Maracatu a partir de uma anlise de gnero e raa, de modo a sustentar que h
uma hierarquia que privilegia os homens em detrimento das mulheres. Na sua perspectiva isso se
reflete nos corpos ao serem conformadas subjetividades que fixam os lugares do feminino. Alm
disso, seu trabalho tem a importncia de dar relevncia s indumentrias e instrumentos os
artefatos para a composio de uma esttica corporal. No entanto, ainda que proponha o debate
sobre corpo e a corporeidade sua analise se restringe a falar em representaes entendendo-os
como um constructo simblico.
Aqui apresento que a proposta da corporeidade deve ir alm ao estabelecer a nfase no
no dualismo das categorias analticas, buscando a inter-relao, o entre, o movimento. No
trabalho de Oliveira (2011), a meu ver, esse ponto fica em aberto. Por isso, retomarei as
definies de corpo e corporeidade na medida em que os conceitos descontextualizados remetem
ideias muito vagas. No entanto no negligencio o ponto de vista semitico/textual do corpo
como representao (constructo simblico), mas o sobreponho ao ponto de vista
fenomenolgico, para o qual o sujeito visto como ser no mundo. Isto quer dizer, que para o
fazer antropolgico a perspectiva da fenomenologia vem somar-se a semitica e no nega-la.
Desse modo, o ponto de vista fenomenolgico aparecer principalmente na ateno aos
movimentos como um meio de construo de categorias corporificadas e explicativas da vida
social, cultural e poltica. Essa perspectiva corrobora com o objetivo de diluir os dualismos
analticos revisando concepes tratadas nos trabalhos acima comentados como, por exemplo, o
Maracatu em termos de cultura popular.
Ainda que o termo seja exaustivamente utilizado pelos prprios agentes do Maracatu, de modo a
enfatizar o seu lugar da tradio, no plano analtico ele no d conta de sua atual realidade na
medida em que essa cultura est em movimento e ultrapassa as fronteiras de localidades
simblicas, sociais e econmicas.
-
30
Hall (2006) explica que, hoje, a modernidade e a globalizao tem revisado a distino
entre o erudito e o popular, pois na atual conjuntura o termo popular torna-se insuficiente para
falar sobre os intensos trnsitos vividos nas disporas. Estas engendram estratgias dialgicas e
formas hbridas de estticas de modo que as anlises em termos de ou erudito ou popular
corrobora com um lugar da excluso, das oposies que reificam o lugar da cultura baixa e
perifrica. Quando, na verdade, necessrio enfatizar as diferenas atravs de uma lgica de
acoplamento ou inter-relaes ao em vez da lgica da oposio binria (HALL, 2006).
No entanto, como j disse, o termo ainda fortemente utilizado e compartilho da proposta
de Hall (2006) no que diz respeito a:
O papel do popular na cultura popular o de fixar a autenticidade das formas
populares, enrazando-as nas experincias das comunidades populares das quais
elas retiram o seu vigor e nos permitindo v-las como expresso de uma vida
social subalterna especfica que resiste a ser constantemente reformulada
enquanto baixa e perifrica.
Nesse sentido, para seguir a lgica dos no dualismos, proposta pela corporeidade e pela
dispora, geradora de fluxos e refluxos de produtos culturais, no enfocarei o Maracatu como
uma cultura popular no entanto destacarei nfase na discusso sobre a busca da autenticidade
como uma estratgia poltica. Minha preferncia tratar o Maracatu como a expresso corporal
de uma cultura localizada em regio perifrica, porm em movimento. Ou seja, como j dito, uma
linguagem em trnsito que se produz, se renova e se afirma diante das contingncias da vida.
Diante desses debates sobre o Maracatu de Baque Virado pertinente ver esse texto como
um trabalho sobre a performance do Maracatu em processo afro diasprico, que resiste a
concluses mas fica entre a fronteira do vivido pelos seus agentes e do escrito por mim para mais
uma vez declarar o duplo entre o indeterminando e o determinado (CARLSON, 2009, p.213), a
tenso entre as experincias e suas tradues. Quero enfatizar, que se trata de um grande projeto
pensar o movimento como constituidor de categorias explicativas e esse um texto que descobriu
no campo que isso possvel e que h muito que se discutir ainda. Mas vamos comear...
-
31
CAPITULO DOIS:
CORPO E MOVIMENTO NA ANTROPOLOGIA
Como j apontei, esse um trabalho sobre o movimento. O movimento
o meio, o entre, a carne.
O movimento atravessa e impulsiona os corpos.
Esse um trabalho sobre corpos em movimento. Suas dinmicas geraram as questes que
vem sendo apresentadas nesse texto e, para compreend-las constru uma performance textual
que entende o movimento como constituidor de categorias corporificadas explicativas da vida.
Compreendo que movimento e percepo esto inter-relacionados, de modo que no h
um fazer da mente separado de um fazer do corpo. Disso decorre que o movimento no apenas
resultado de um processo mental ou de um processo fsico, mas o prprio movimento constitui-se
como uma maneira corporificada de pensar. Sheets-Johnstone (1999) argumenta sobre o
pensamento em movimento (traduo minha para thinking in movement) como uma forma de
estar no mundo, de questiona-lo e de explora-lo. Ou seja, o movimento em si um pensamento.
Desse modo revisamos concepes analticas da antropologia concebendo a importncia
do movimento para uma construo epistemolgica (SHEETS-JOHNSTONE, 1999). Ou seja, a
explicao das dinmicas da vida no comportam categorias analticas duais. Sheets-Johnstone
(1999) nos ajuda a compreender isso na medida em que diz que ao descobrirmos o fenmeno
do pensamento em movimento, ns estamos revendo nossa noo sobre pensamento. Desse
modo os pensamentos e reflexes acerca da vida no se do apenas por processos mentais, mas
por pensamentos corporificados que se relacionam com determinadas dinmicas culturais.
A meu ver as questes que surgiram entre os Maracatuzeiros hoje foram impulsionadas
pelo movimento inaugural de disperso do Maracatu Nao Estrela Brilhante de Recife, e da
circulao de seus agentes, ritmos, signos e significados. Seu movimento afro diasprico gerou
questionamentos sobre o sucesso e a expanso de sua nao e a necessidade de afirmar sua
prpria tradio e autenticidade. Isto , na medida em que as circunstncias da vida desses
-
32
agentes se transformam por exemplo, a atual existncia de uma conjuntura de expanso do
Maracatu os seus modos de se viver tambm mudam. Essas mudanas constituem um novo
campo de ao para o conjunto de movimentos que esses corpos podem experimentar. Deles
surgem discursos afirmativos sobre tradio e autenticidade, tanto na relao com novos
grupos de Maracatu quanto na produo de seu carnaval e de sua dana.
Logo, a realidade e a performance do Maracatu sugeriram que os debates tericos sobre
movimento e dispora do suporte proposta de discusso de sua corporeidade. Antes de
vermos como essas noes se encontram, vale ressaltar que dentre as mais de vinte naes de
Maracatu que existem, hoje, no Recife, fez-se necessrio um recorte de campo que busca
abranger, ao menos, os movimentos que vivem hoje o Maracatu Nao Estrela Brilhante de
Recife (MNEBR).
*Movimento
Os movimentos, aqui, so compreendidos como o que impulsiona a vida em suas vrias
dimenses, tanto nas micro percepes do indivduo quanto nas dinmicas culturais de um
coletivo. Nesta ltima dimenso, Hannerz (1997) considera os movimentos como fluxos culturais
globais que permitem que alguns significados tornem-se duradouros na medida em que esto em
constante reinveno e processo. Compreende-se esse aparente paradoxo quando se entende que
os movimentos culturais logo corporificados lidam com as tenses geradas pelas
contingncias do presente vivido.
Serres (2008) explica que as contingncias superam os formatos e que Esse
desequilbrio entre o formato e o informal, a lei e as multiplicidades que a excedem, esse
intervalo, essa existncia... movimentam o mundo, os seres vivos, a histria, as culturas e as
cincias... fazem brotar, aqui e ali, inumerveis ramos arborescentes.. Em seu trabalho
Ramos o autor citado explica que falar em formatos falar em causas e consequencias tidas
como necessrias para a explicao da vida e suas histrias. No entanto, o formato que existe
hoje foi tido anteriormente como uma novidade, no se tratava de uma regra, mas de apenas um
novo acontecimento. Isto , o que vemos agora como leis, ou seja, como formatos necessrios,
no passavam de contingncias que foram acampadas, diria eu, para explicar uma determinada
-
33
conjuntura. Essa dinmica consequente dos movimentos da prpria vida suscitando tenses e
mudanas sociais, culturais e polticas. Logo, os movimentos dizem respeitos s fronteiras entre
os velhos e novos significados corporificados num universo e o desequilbrio entre suas partes
geram renovaes culturais.
desse movimento entre o formato e a novidade que pretendo discorrer aqui, atentando
para a relao entre as histrias e o presente contingencial do Maracatu. Logo, nesta etnografia
veremos que os movimentos de disperso dos significados e prticas deste universo impulsionam
questes coletivas para toda uma nao de Maracatu, de modo a constituir sua atual
conjuntura. Os Maracatuzeiros de hoje, ao perceberem que seus saberes corporificados
ganham vida em outros corpos e em outras localidades ou seja, saem do formato conhecido
encontram-se diante, ento, do dilema de como manter a condio de detentor de uma
cultura? Isto , a partir de acontecimentos contingentes na histria do Maracatu, suas
singularidades ganham dimenses planetrias surgindo novas tenses e ambiguidades para seus
agentes e, logo, novas formas de organizao.
Diante disso, percebo uma transversalidade da concepo do movimento que permite
compreendermos como uma expresso cultural viva articula diversas dimenses da vida, desde o
religioso, o social, o cultural e o corporal. A meu ver, essa transversalidade do conceito
apontada por Tavares (1998) quando ele explica que no seria possvel a constituio de uma
paisagem cultural de localidades como Harlem, em Nova York, ou a Mangueira, no Rio de
Janeiro, sem os movimentos dos corpos desses locais. Ou seja, para uma anlise antropolgica
dos movimentos necessria a ateno s expresses no verbais que constituem a conjuntura, as
performances e os rituais de um grupo. Nesse sentido o autor sustenta que os movimentos
materializam-se em categorias verbais e/ou no verbais que expressam alguma atividade cultural.
Portanto, movimento, no contexto deste trabalho, deve ser entendido como a dinmica
que relaciona as variadas dimenses corporificadas da vida (cultural, social, histrica, econmica
e poltica) e que, consequentemente produz categorias verbais e no verbais que expressam uma
realidade vivida, o que, portanto, de fundamental importncia para a descrio etnogrfica e
uma anlise antropolgica vigorosa. Isto , os movimentos dos corpos individuais integram e
movem os corpos coletivos, e vice e versa.
-
34
*Corporeidade
A corporeidade corrobora com a importncia anunciada da anlise dos corpos em
movimento e das linguagens no verbais que os constituem. Como j disse, a corporeidade
considerada neste trabalho como um paradigma antropolgico, conforme sugere Thomas
Csordas. Para o autor o corpo apresenta-se como "a base existencial da cultura (CSORDAS,
2008, p.102) de modo que os plos indivduo e cultura se inter-relacionam. Para sustentar seu
argumento, o antroplogo conjuga os conceitos de habitus de Pierre Bourdieu e o de pr-objetivo
de Maurice Merleau-Ponty, tentando colapsar num nico conceito corporeidade os
movimentos entre esses dois plos.
Para explicar sucintamente, o conceito de Merleau-Ponty de pr-objetivo trata-se de uma
concepo na qual a anlise do mundo cultural deve se iniciar no nvel da percepo, isto ,
quando seus objetos ainda no foram constitudos. Visto desta maneira, o ato pr-objetivo inicia-
se no corpo, sem que a distino entre sujeito e objeto se realize. Esta ao, porm, no pr-
cultural, mas trata-se simplesmente do modo como estamos no mundo, o que, portanto, envolve
tambm uma dimenso simblica. Para Csordas o conceito de habitus, de Pierre Bourdieu,
paralelo a essa concepo originria em Merleau-Ponty no que tange o domnio da prtica,
porquanto, o habitus permite uma orquestrao no-auto-consciente das aes corporais.
(CSORDAS, 2008, p.371).
A corporeidade, portanto, no se restringe a microanlises, mas pode tambm servir de
artifcio terico e metodolgico para os estudos das performances coletivas e sobre os modos no
verbais de suas configuraes a partir das aes corporais individuais. A perspectiva proposta
por Csordas torna-se fundamental nesse trabalho porque revela a inter-relao entre indivduos e
coletividade. E, alm disso, toda a etnografia realizada ateve-se na tentativa de relacionar o
habitus (que envolve os campos sociais, culturais, econmicos e polticos) e os modos como
determinados valores so manifestados no verbalmente (o pr-objetivo).
Outro aspecto que necessita ser apontado que a corporeidade como um paradigma
colabora de modo central nos debates antropolgicos sobre ritual e performances. A anlise
destes do carnaval do MNEBR nos revelar como so afirmadas e renovadas categorias
corporificadas e experimentadas durante os cotidiano dos Maracatuzeiros Logo, interessa-me
-
35
no conceito de ritual a sua nfase na experincia e na criatividade, fenmenos que lidam com a
relao entre o finito e o contingente da vida, ou seja, a sua possibilidade de gerar mudanas e
movimentar a nao. No que tange as performances elas so compreendidas aqui como
excessos de pensamento e emoes (CSORDAS, 2008, p.116) que emergem em expresses
verbais ou no verbais e que so oriundas de experincias corporificadas, tanto dentro ou fora do
tempo do ritual do carnaval.
Portanto, ritual e performance ao serem vistos sob a tica da corporeidade demonstra
como uma nao se constri, como interagem indivduos e coletivos e como se lida com
contextos variados. Alm disso, permite que compreendamos como determinadas categorias
corporificadas emergem durante uma performance e so experimentadas ao longo do processo
ritual.
Retomaremos a discusso sobre corporeidade, mas por ora vale ressaltar que um dos
objetivos dessa dissertao enfatizar o corpo como lugar de produo de conhecimento a partir
de categorias corporificadas no universo do Maracatu de baque virado. Portanto, esta etnografia
analisa os modos como se constitui a corporeidade do MNEBR, atentando-nos aos movimentos
entre indivduo e cultura expressos em sua performance em processo diasprico.
*Dispora
A concepo de dispora fez-se necessria nesse trabalho na medida em que, a meu ver,
ela conceitua a atual conjuntura do Maracatu revelando os esforos de seus atuais agentes em
afirmar sua autenticidade a partir da nfase em categorias e ideias que apareceram para mim
como, concomitantemente, causas e consequncias da sua atual disperso, como, por exemplo, a
demanda de respeito aos seus trabalhos.
O conceito de dispora foi bastante abordado pelos estudos culturais e descreveu os
exlios, fugas e disperses dos judeus, as fragmentaes espaciais e culturais vividas pelos
africanos e as migraes na atual era da globalizao. Esses movimentos diaspricos
engendraram novas formas de organizao social e cultural para esses povos, de modo a
-
36
contribuir com a concepo aqui proposta de que os movimentos produzem categorias
corporificadas explicativas de uma realidade.
Clifford (1994) nos alerta para os variados usos do termo dispora. Ao longo do texto
ficar entendido que compartilho de sua proposta em entend-la como uma dimenso possvel
das experincias de grupos na medida em que ocorrem deslocamentos de suas prticas culturais.
Isto , falaremos de movimentos de disperses e fluxos que geram encontros interculturais, como
veremos no caso do Maracatu. A dispora tambm se relaciona com experincias de exlios, de
mitos sobre uma terra originria, do desejo de retornar a ela e de excluses no prprio pas.
No entanto, no caso da experincia diasprica da nao estudada vemos que seus
deslocamentos tratam-se de viagens para ministrar oficinas e realizar apresentaes de Maracatu
pelo mundo inteiro, o que gera trocas de experincias de vida e a manuteno e renovao de
seus artefatos e prticas em localidades que no a cidade de Recife. Isso no apaga, no entanto,
as precrias condies de vida dos agentes oriundos deste local. Consequentemente, para
Clifford (1994) as culturas diaspricas se esforam em manter suas tradies comunitrias
reinventando-as em situaes interculturais, muitas vezes desvantajosas.
Gilroy (2001) complementa essa compreenso ao dizer que o movimento diasprico de
hoje permite a subordinao das distncias espaciais entre os povos na medida em que elementos
culturais circulam pelo mundo por meio das facilidades tecnolgicas de hoje. A consequncia
disso um apelo pela tradio e pela histria de modo a tentar manter a estabilidade de uma
localidade diante desse movimento infinito de disperses (GILROY, 2001, p.364).
A compreenso da realidade atual a partir das experincias diaspricas exige da anlise
terica a ateno a descontinuidades histricas, as quebras das narrativas lineares e dos
paradigmas dualistas visto que estamos lidando com movimentos culturais que reconstroem suas
tradies a partir de uma rede de histrias interconectadas diante dos seus deslocamentos e da
reconfigurao de suas noes de tempo e espao diante do reforo ou inveno de uma origem.
No que tange o movimento diasprico no caso do Maracatu, falaremos de sua afro
dispora, ou seja, das disperses de signos , elementos, prticas e sujeitos que se relacionam com
performances e imaginrios histricos de matrizes africanas como os cultos de Xang e
Jurema, a relao entre dana e toque, o improviso e a organizao das performances a partir do
-
37
jogo de pergunta e resposta dos cantos. Isso no quer dizer, no entanto, que isso se mantenha de
forma pura, pelo contrrio, est sempre em movimento.
Alm disso, o processo afro diasprico revela a importncia do corpo como arquivo
histrico (TAVARES, 1984), isto , o corpo como produtor e negociador de tradies e
processos criativos. Nesse sentido, apesar de suas experincias afro diaspricas o Maracatu
reorganiza suas relaes sociais atuais, redefine fronteiras culturais e busca unidades diante de
seus mltiplos movimentos corporificados como, por exemplo, as formas de se pertencer ou
no a um grupo, ou de identificar o Maracatu autntico ou no a partir dos gestuais que esto
sendo performados.
***
Por fim, todas essas noes movimento, corporeidade e dispora apontam para uma
antropologia que pretende a corporeidade e o movimento como paradigmas epistemolgicos.
Anunciam, portanto, mais uma vez na trajetria da disciplina caminhos que revelam concepes
que se preocupam com a interao como modo de construo de valores e organizaes
culturais em constante processo. Alm disso, abarcam uma perspectiva terica que no d espao
aos pensamentos estticos e s categorias analticas dicotmicas, inaugurando o debate sobre as
categorias corporificadas.
H muito que a antropologia se preocupa os aspectos interativos da vida (MAUSS, 2003;
TURNER, 1992). Cliford Geertz em meados do sculo XX lana um olhar para as agncias e
criatividades individuais e nesse sentindo reconhece a necessidade da subjetividade estudada
pela psicologia ser reconhecida pelo antroplogo como uma dimenso da vida que mediada
pela cultura, o que, de fato fora o objetivo inicial da antropologia. No mesmo perodo Pierre
Bourdieu fala do habitus como a mediao universalizante que torna a prtica de um agente
individual, sem explicao explcita ou propsito significativo, sensata e razovel apesar de
tudo. Isso define o habitus como um princpio inconsciente que gere prticas sociais que, para
Bourdieu, no so aleatrias (CSORDAS, 2008, p.108). Nesse debate, agncia individual e
determinao estrutural tentavam se equilibrar. Demonstra-se um esforo terico que busca
entender os movimentos entre interior e exterior, entre indivduo e cultura, entre o indeterminado
e o determinado, entre o formato e a novidade.
-
38
Esta preocupao terica e metodolgica revela, no entanto que em termos de
corporeidade (habitus + atos pr-objetivos) ainda h muito que se estudar no Maracatu de baque
virado, visto sua expanso atual e a tenso que gera na relao entre indivduo e coletivo. Ou
seja, em seu processo diasprico, ilustrado pelas relaes entre nao e grupo, os
movimentos do Maracatu levam em conta o habitus e as experincias pr-objetivas de seus
participantes. Desse modo entendo que o processo de construo da corporeidade de um coletivo
um processo de objetivao cultural que a antropologia pode analisar tanto no caso de uma
nao quanto de um grupo. Nos dois casos, onde o corpo surge como catalisador de sentidos
e meio de sobrevivncia, criam-se laos de pertencimentos, mas que no deixam de lado as
experincias de vida localizadas em contextos distintos.
Como vimos, em se tratando de movimento no h sentidos fixos, mas h uma tenso
entre a determinao e a indeterminao. Por isso, prefiro falar de uma linguagem em trnsito,
compreendida por semnticas encarnadas sempre passveis de mudanas devido as prprias
imprevisibilidades da vida. Essas imprevisibilidades so imbudas de criatividades que nos
impulsionam a revisar nossos padres de anlise da vida e das prprias formas de se viver.
-
39
CAPTULO TRS:
A NAO MARACATU ESTRELA BRILHANTE DO ALTO JOS DO PINHO PARA
O MUNDO14
3.A Conjuntura afro diasprica
a partir das mudanas no ambiente presente (onde se d a ao), o movimento
configura-se como uma resposta sobrevivncia (GREINER, 2005, p.65)
O ttulo deste captulo foi retirado de uma faixa que a referida nao carregava em um
de seus cortejos no ano de 2000; j a citao de Greiner substancializa as mudanas que vem
ocorrendo hoje com o Maracatu, entendendo o movimento como algo intrnseco aos processos
culturais, s maneiras de se viver e construo das corporeidades, como j discutimos
anteriormente.
O Maracatu Nao Estrela Brilhante de Recife hoje desfila no plo das agremiaes
dentro da agenda do Carnaval Multicultural de Recife organizado pela prefeitura. E tambm
ensaia e apresenta-se pelos arredores do bairro de sua sede (Alto Jos do Pinho, Bomba do
Hemetrio e Mangabeira) e outras regies. Alm disso, disputa o posto de uma das maiores
nao de Maracatu da cidade. Sua corte real formada por diversos personagens como o rei e
a rainha, princesas e prncipes, a baronesa e o baro, baianas ricas, laneiros, catirinas, porta
estandarte e etc... a sua composio percussiva tem um mestre de bateria que rege mais de 100
batuqueiros que tocam alfaias, caixas, agbs e gongs (h aproximadamente trs anos o mestre
Walter tem ensaiado tambm com o patangome, instrumento da congada mineira). (V anexos I
e II)
Alm disso, a nao mantm seus vnculos religiosos a partir dos cultos de Xang com
suas calungas Dona Joventina e Dona Erundina15, regidas respectivamente pelos orixs Ians e
14
Dado etnogrfico retirado da monografia de Virgnia Barbosa (2001). 15
Dona Joventina e Dona Erundina so as calungas da nao. Ou seja, so bonecas de madeira escura que, no caso do Maracatu Nao Estrela Brilhante de Recife, ora representam um orix (Ians e Oxum, respectivamente),
-
40
Oxum16
. E mantm tambm vnculos com cultos de Jurema em que o Mestre Cangaruu aparece
como uma entidade protetora da percusso da nao voltaremos nisso adiante.
O bairro Alto Jos do Pinho uma comunidade recifense que abriga atualmente a sede do
Maracatu Nao Estrela Brilhante de Recife e onde tambm a maioria de seus integrantes vivem.
Desde 1995 a nao se instalou ali e passou a ser organizada por Dona Marivalda (a rainha do
Maracatu), mestre Walter (mestre da percusso) e seus companheiros que trabalham o ano todo
para construo de seu Maracatu, inclusive Maurcio Soares, integrante da corte da nao e de
grande importncia para os debates desse trabalho.
A comunidade bastante conhecida como uma fonte artstica, onde grupos de cultura
tradicional (caboclinhos, afoxs e bois) se fortaleceram, bandas de rock famosas nasceram e
convivem com o brega e o forr. Concomitante a esta efervescncia criativa a regio no esconde
sua infra estrutura precria, com reas sem gua encanada e deficincia no tratamento sanitrio.
nessa conjuntura que a nao sai do Alto Jos do Pinho e vai para o mundo. E o que
significa esse movimento? Quais estratgias sero traadas pela nao para lidar com as novas
situaes que surgem? Como esses corpos se movimentam para fazer do Maracatu a sua vida?
Essas perguntas e muitas outras so possveis a partir da compreenso de que esta
nao, assim como o Maracatu de baque virado como um todo, vive episdios inditos
consequentes de seus deslocamentos. A circulao desses indivduos com o seu Maracatu no se
restringe a sua comunidade, mas vai aos palcos do carnaval de Recife, passa por viagens e
oficinas no sul e sudeste do Brasil e pela construo de novos grupos de Maracatu tambm na
Europa e na Amrica do Norte.
Quando me refiro a deslocamentos e circulao no me restrinjo ao movimento espacial-
geogrfico (como a sada da nao e seus indivduos de sua comunidade), mas tambm a
movimentos de transferncias e compartilhamentos de simbologias e corporeidades (como na
ora representam princesas negras que j morreram (eguns). Essas duas representaes so complexas, mas para ns o importante entend-las como divindades aos quais so devotadas crenas religiosas. Para saber mais sobre as calungas v Kubrusly (2007). 16
Os orixs so divindades incoporadas nos corpos dos crentes nos rituais afro diaspricos (Daniel). Dizem respeito a elementos da natureza e fazem parte do repertrio da antiga nao africana Yorub. O orix Ians simbolicamente relacionado com as ventanias e as tempestades. O orix Oxum relacionado maternidade e s guas doces (Sabino, Jorge e Lody, Raul. 2011).
-
41
relao entre nao e grupos). Em suma, trata-se de uma conjuntura em que os bens
simblicos de determinada localidade encontram-se com outros configurando uma circulao
infinita de trocas e negociaes que redefiniro fronteiras e discursos polticos verbais e no
verbais.
Para compreender os movimentos que impulsionam essas circulaes utilizo uma
concepo no dualista de processo diasprico, pois O conceito fechado de dispora se apia
sobre uma concepo binria de diferena. Est fundado sobre a construo de uma fronteira
de excluso e depende da construo de um outro e de uma oposio rgida entre o dentro e o
fora (HALL, 2003).
Nos exemplos que veremos e na construo do que se chama famlia Estrela Brilhante,
como uma forma de pertencimento a uma nao, o dualismo terico de um conceito fechado
de dispora proporciona excluses a partir da noo de um outro e, logo, no d conta dos
movimentos vividos pela nao hoje em dia. Desse modo, o conceito de dispora utilizado
aqui nos permite olhar a conjuntura atual com suas circulaes e deslocamentos como efeito
de uma multiplicidade de articulaes que no podem ser conhecidas a priori, mas que emergem
a partir de relaes vividas.
Hannerz (1997) ao analisar o cenrio global atual diz que um dos aspectos fundamentais
dos fluxos culturais que eles tm direes. Ou seja, vivem trnsitos que se do a partir de
relaes de identificao, o compartilhamento de histrias e experincias no casos entre
nao e grupo, por exemplo. No entanto, a dimenso diasprica (ou seus fluxos culturais)
traz em suas constantes trocas e encontros algumas incertezas, renovao e polissemia dos
singinficados do Maracatu.
Desse modo, as perspectivas da dispora e da corporeidade apresentadas anteriormente
tornam-se pertinentes para a compreenso desse conjunto de movimentos imbricados a uma
conjuntura especfica que lida com as dimenses finitas e infinitas da vida a partir de relaes
caracterizadas por jogos, tenses e ambiguidades entre indivduos e coletivos.
Tais perspectivas lidam com o movimento como o impulsionador das transformaes que
ocorrem na vida, em seu cotidiano, desde o nvel das micro-percepes dos indivduos (LABAN,
1978; CSORDAS, 2008) at suas consequncias sociais e interculturais (CSORDAS, 2008;
-
42
CANCLINI, 2009). Alm disso, elas permitem compreendermos a poltica como um espao
problema17 (SCOTT,1999) que exige da anlise crtica ateno relao entre produo de
saberes corporificados portanto permeados de ideologia e uma determinada conjuntura que
leva em considerao as narrativas de um passado histrico e as contingncias18
do presente.
A etnografia demonstra que os saberes corporificados dos sujeitos tidos como
autnticos e tradicionais passam a ser compartilhados atravs de processos que redefinem o
Maracatu como uma linguagem em trnsito, em constantes trocas e transformaes: uma relao
tensa e ambgua entre o tradicional e as transformaes decorrentes de processos criativos entre
os que fazem Maracatu ao redor do mundo.
Esse trnsito e circularidade intensos das culturas afro diaspricas j foram observados
pela antroploga Yvonne Daniel (2002). Ao estudar as danas cubanas refere-se a esses
movimentos como processos criativos em que o manbo, o son e outros ritmos viveram na
medida em que se internacionalizaram, recebendo e trocando com elementos europeus,
americanos e africanos. Nesse sentido, esses ritmos assim como o Jazz e como o Maracatu
passam por reconstrues criativas que mantm, no entanto, elementos e estruturas espaciais,
rtmicas e corporais comuns, que caracterizam determinado saber corporificado e formas de
identificaes diante do processo de expanso.
Em se tratando de uma corporeidade afro diasprica percebe-se a manuteno da relao
com instrumentos percussivos, com uma complexidade rtmica forte e presente em suas danas e
msicas, alm dos cantos em perguntas e coros de respostas (DANIEL, 2002, p.40). Essa
estrutura compartilhada no mundo inteiro permitindo identificar o que um Maracatu, mesmo
em constantes trnsitos. Retornaremos a esse debate.
17
Scott (1999, p.5) diz que as conjunturas so, em efeito, espaos-problema; isto , so conjuntos ideolgicos-conceituais, formaes discursivas, ou jogos de linguagem que geram objetos e, portanto, perguntas. 18
O trabalho de Serres (2008, p.43) uma das bases para a compreenso do que estou chamando de contingncias. Ele diz que Em seu conjunto, a Grande Narrativa obedece, ento, s seguintes modalidades: raro e saturado de informao, com a durao, um acontecimento contingente converge para uma lei necessria, um formato sem informao; em seu desenvolvimento, os possveis, que flutuam a seu redor, desaparecem, eliminados impiedosamente pela impossibilidade; por vezes, um dentre eles emerge, mais uma vez contingente, resiste aos impossveis, surge e, por sua vez, torna-se necessrio... verdadeira no inerte, essa sucesso de ramos explica revoluo e minha existncia, assim como s produes culturais, cientficas ou artsticas.
-
43
Por ora importa que a atual conjuntura disporica do Maracatu engendra novos modos de
identificao e diferenciao, logo novas formas de pertencimento a uma coletividade e
afirmaes de autenticidade.
Desse modo o posicionamento terico proposto que intercruza corpo e dispora permite
compreender que no processo de expanso dos Maracatus novos formatos so construdos,
acionando quase-signos para que sejam mantidas na memria dos Maracatuzeiros
referncias histricas, simblicas e corporais - tais referncias sero o que distinguiro uma
nao e um grupo de Maracatu, por exemplo.
Por fim, enquanto a perspectiva diasprica conceitua a conjuntura de expanso do
Maracatu como uma dinmica permeada de movimentos que ultrapassam os binarismos para a
definio das diferenas identitrias, que por sua vez passam por processos de incorporao
(embodiment) que levam em conta as imprevisibilidades dos contextos, interaes e experincias
individuais; o paradigma da corporeidade lida com o finito e o infinito de sentidos na medida em
que leva em considerao as experincias de vida de cada indivduo num determinado coletivo.
Essas experincias engendram conceitos pr-objetivos ou seja, que no separa sujeito de objeto
que emergem como uma linguagem no verbal que incorpora sentidos orquestrados pelo
habitus daquele local e coletivo. Assim, ao ser configurada uma corporeidade, configura-se um
modelo de pertencimento diante do processo diasprico.
Nesse sentido, as distintas realidades e o compartilhamento de experincias possvel por
conta do movimento diasprico iro compor as semelhanas e diferenas entre as corporeidades
do Maracatu em diferentes lugares, o que engendrar formas de pertencimento. Por exemplo, nos
casos em que indivduos de todo o pas fazem oficinas de percusso e de dana tanto em Recife
como em suas cidades, participam do desfile do carnaval em Recife e ajudam na construo do
carnaval da nao em sua comunidade. Esses so casos em que um processo vivido
compartilhado contribuindo para a construo da corporeidade da nao. Ao mesmo tempo,
h, porm, uma dimenso que permite percebermos as distines que passam pelo habitus e
experincias individuais de seus agentes.
O argumento tanto da dispora quanto o da corporeidade revela, portanto que seria
errneo ver essas tendncias como algo singular ou no ambguo. diz Stuart Hall (2003,
-
44
p.27) a respeito dos processos diaspricos. A meu ver, as perspectivas da corporeidade e da
dispora se complementam para entender as tenses consequentes das relaes entre os
indivduos que fazem Maracatu. Permitem entender quais suas muitas dimenses de sentido e
quais as questes vividas por esses nativos, que so tambm expressas nos movimentos de danar
e de comunicar atravs de toda uma rede de trocas e laos sociais.
Alm disso, prprio do movimento diasprico que esses meios de distribuio
[circulao de bens simblicos e o encontro entre diferentes semnticas] so capazes de
dissolver a distncia e criar formas novas e imprevisveis de identificao e