Os Índios Xokleng

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S ÍLVIO COELHO DOS SANTOS OS ÍNDIOS M EMÓRIA V I SUAL XOKLENG

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Os Xokleng despertaram o interesse dos imigrantes, desde o primeiro momento. Vistos como motivo de insegurança pelos colonos e obstáculo ao “progresso”, pelas empresas de colonização, centraram um debate que levou o governo a criar o Serviço de Proteção aos Índios, em 1910. Alvos das atenções do novo Serviço, vivenciaram nos primeiros anos de convívio na reserva de Ibirama a perda de dois terços da população originalmente contatada. Este livro, portanto, trata de resgatar a dramática experiência vivida por esses índios, tendo como principal referência a documentação fotográfica.

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SÍLVIO COELHO DOS SANTOS

OS ÍNDIOS

M E M Ó R I A V I S U A L

XOKLENG

S237i Santos, Sílvio Coelho dosOs índios Xokleng: memória visual. -

Florianópolis : Ed. da UFSC; [Itajaí] : Ed.da UNIVALI, 1997.

152p. : il.

1. Índios Xokleng. 2. Etnologia - Brasil.3. Antropologia social. I. Título.

CDU: 397 (=82:81)

UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ

Edison Villela - ReitorPaulo Márcio da Cruz - Vice-Reitor

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(CATALOGAÇÃO N A FONTE PELA B IBLIOTECA D A U NIVERSIDADE F EDERAL DE SA N TA C ATARINA)

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SÍLVIO COELHO DOS SANTOS

Depto de Antropologia, UFSCCP. 476 - 88.040-900 - FlorianópolisE-mail: silvio @ cfh.ufsc.br

© 1997 Sílvio Coelho dos Santos

Os direitos autorais desta edição, representados por 300 livros,serão entregues aos indígenas da AI Ibirama, como estímulo à

compreensão de sua história e à valorização de seu ethos.Sílvio Coelho dos Santos - editor

CA PA , DESIGN E PRODUÇÃO G RÁFICA

Renato Rizzaro

R E V I S Ã O

João Sepetiba

1997Ano em que se comemora o Centenário de Ibirama

A P O I O

Prefeitura Municipal de IbiramaPrefeitura Municipal de Blumenau(Fundação Cultural de Blumenau)

Prefeitura Municipal de Victor MeirellesSecretaria de Educação e do Desporto de Santa Catarina

P A T R O C Í N I O

de acordo com os incentivos previstos na Lei 8.313/91 de Incentivoà Cultura, Ministério de Educação e Cultura.

Aos índios da AI. Ibirama, com a expectativa de estarcontribuindo para a compreensão de seu passado eencorajando suas lutas presentes;

Aos colegas e estudantes instituidores do Núcleo deEstudos de Povos Indígenas (NEPI), UFSC, na certezade uma profícua produção etnológica e política;

Aos estudantes da FURB, fundadores da Comissão VivaYanomami, e à Diretoria da APUFSC-SIND, peloesforço em apoiar os Xokleng;

À Procuradora Analúcia Hartmann, por sua dedicaçãoaos pleitos dos índios em Santa Catarina;

Para Júlia, alegria dos avós, com carinho.

Apresentação 9Introdução 15

P r i m e i r a p a r t e :Disputa De Terras Provoca O Extermínio IndígenaOs índios reagem à presença do branco 21Os bugreiros 27Maria Korikrã: o drama de uma das vítimas que sobreviveram 28A Liga Patriótica e o debate humanista 29Fotos 32

S e g u n d a p a r t e :“Pacificação”: Uma Experiência ComplexaO Serviço de Proteção aos Índios em Santa Catarina 55Convívio, depopulação e mudanças 57Eduardo Hoerhan: lutas e ambigüidades 58O SPI é substituido pela FUNAI 59Fotos 61

Te r c e i r a p a r t e :Apesar De Tudo, Um Povo Luta Para Construir Seu FuturoA implantação da barragem Norte e os índios 113O direito dos índios 115Notícia sobre a população indígena do Brasil 116O povo Xokleng no presente 117Fotos 120Mito: a geração do homem 150

S U M Á R I O

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Asaga dos índios Xokleng é muito particular. No passadodistante, sofreram a competição de outros gruposindígenas pelo domínio dos campos do planalto e dosbosques de pinheiros. Depois, vivendo nas encostas doplanalto e nos vales litorâneos, viram suas terras serem

gradativamente ocupadas pelos brancos. Nesse processo,sofreram as conseqüências de decisões políticas e econômicas,em regra executadas a fio de facão e a tiros de escopeta porexperimentados caçadores de índios, os bugreiros. Estabelecidasas relações amistosas com os brancos, iniciaram um difícilaprendizado de convivência que chega aos nossos dias.

Incrivelmente, uma boa parte dessa tragédia foi documentada.Relatórios oficiais, correspondências, notícias de jornais, debatesacadêmicos e fotografias registraram as práticas genocidascontra este povo indígena. Um caso raro, pois os indígenas dopaís foram, em maioria, dizimados sem deixar informaçõessobre a sua existência.

Os Xokleng despertaram o interesse dos imigrantes, desde oprimeiro momento. Vistos como motivo de insegurança peloscolonos e obstáculo ao “progresso”, pelas empresas decolonização, centraram um debate que levou o governo a criaro Serviço de Proteção aos Índios, em 1910. Alvos das atençõesdo novo Serviço, vivenciaram nos primeiros anos de convíviona reserva de Ibirama a perda de dois terços da populaçãooriginalmente contatada.

Este livro, portanto, trata de resgatar a dramática experiênciavivida por esses índios, tendo como principal referência adocumentação fotográfica.

No início do século, fotógrafos entusiasmados com suaspesadas câmeras registraram a presença de bugreiros e de suas

A P R E S E N T A Ç Ã O

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vítimas em Blumenau e em outras colônias. Depois, ocorreu oregistro fotográfico na reserva, em parte por conta de EduardoHoerhan, “o pacificador”. Outros profissionais estiveram comos índios, nos primeiros anos do convívio, como, por exemplo,José Ruhland. Excetuando-se algumas fotos de Ruhland,entretanto, há grande dificuldade para se identificar a autoriadesta ou daquela foto, pois a maioria não tem assinatura.

Sabe-se que, em 1927, o viajante alemão Werner Blüschow,que se encontrava em viagem para a Terra do Fogo, visitou areserva indígena. Em 1929, foi lançado na Alemanha o filmeSilberkondor über Feuerland (Condor de prata sobre as Terrasdo Fogo) e um livro com o mesmo título, narrando suasimpressões sobre o extremo Sul da América. O filme contémaproximadamente dois minutos com cenas sobre os índios deIbirama. Em 1968, Marcondes Marchetti, que desde jovempreocupava-se com a preservação da memória da região,publicou no “Jornal do Vale” uma tradução feita por José Ferreirada Silva, então Diretor da Biblioteca Municipal de Blumenau,do texto em que Werner relatava sua visita.

Em 1930, foi publicada no Rio de Janeiro uma pequenamonografia do médico Simões da Silva, intitulada “A TribuCaingang (índios Bugres-Botocudos), Estado de SantaCatharina”. Há neste texto uma série de fotos sobre os índios,porém, o fotógrafo que acompanhou Simões da Silva não estáidentificado. No arquivo Histórico de Ibirama, em organização,está depositado um enorme acervo de negativos em vidrooriginário do ateliê do fotógrafo alemão Martim Schmoelz. Esteacervo não está classificado e é impossível se saber, nomomento, se há negativos referentes aos índios e, também, asua autoria.

A partir dos anos trinta, iniciaram-se os estudosantropológicos entre os Xokleng, com o antropólogo norte-americano Jules Henry. Os Xokleng entram na literaturaantropológica, e a sua trajetória começa a ser melhor conhecida,pelo menos, no circuíto acadêmico.

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Deve-se compreender, também, que a saga dos Xokleng emmuitos momentos se confunde com a história da imigração noSul do Brasil e, em particular, em Santa Catarina. No Alto Valedo Itajaí, a colonização só se afirmou na medida em que osíndios foram confinados na reserva de Ibirama. Nada maisoportuno, pois, que na ocorrência do Centenário de Ibiramaseja colocado à disposição de um público mais amplo, emparticular, dos estudantes e dos próprios índios, umdocumentário eloqüente sobre o passado/presente de sua terrae de suas vidas.

A realização dessa tarefa foi possível na medida em que conteicom a colaboração e o interesse de diversas pessoas einstituições. Gilberto Gerlach foi o responsável pelos detalhesde diversas fotos que envolvem os “bugreiros e suas vítimas”,originalmente preparados para ilustrar meu livro Índios eBrancos no Sul do Brasil - a dramática experiência dosXokleng. (Florianópolis, Edeme, 1973, 2a edição, Movimento,1988). Marcondes Marchetti forneceu-me informações sobreWerner Blüschow e seu filme, além de colocar a minhadisposição seu acervo documental e fotográfico. O ArquivoHistórico José Ferreira da Silva (AHJFS), da Fundação Culturalde Blumenau, através de sua Diretora, Profa. Sueli Petry,permitiu o uso de um número significativo de fotos. O mesmoaconteceu com o Arquivo Histórico de Ibirama (AHI), no qualos funcionários, Marcelo Blank e Nancy Bini, foram incansáveisem atender minhas solicitações. Edmar Hoerhan, cedeu-mediversas fotos de sua coleção particular. A professora DoloresSimões de Almeida, permitiu que copiasse fotos colecionadaspor sua família. O Museu Universitário (MU), da UFSC,facilitou a consulta às suas coleções etnográficas e àdocumentação fotográfica, que em grande parte foramorganizadas a partir de minhas próprias pesquisas de campo.

De outra parte, o Diário Catarinense permitiu o uso de fotosobtidas pelo repórter-fotográfico Daniel Conzi, durante aelaboração da série do Caderno Especial Índios do Sul,

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publicada em abril último. A Prefeitura Municipal de Blumenaucedeu fotos de Eraldo Schenaider, que registram momentos daluta indígena em busca das indenizações devidas pelaimplantação da Barragem Norte. O colega doutorando FlávioWiik, que no momento realiza pesquisa na área indígena,colocou a minha disposição parte da documentação fotográficaque está obtendo. O professor Sálvio Müller, da FURB, tambémpermitiu o uso do material fotográfico apresentado em suadissertação de mestrado, Opressão e Depredação (Blumenau,Editora da FURB, 1987), que inclui fotos aéreas de autoria doecologista Lauro Bacca.

De meu arquivo pessoal, entretanto, saiu uma boa parte dasfotos selecionadas para integrar o livro. Algumas obtidasinclusive por colegas e alunos que têm me acompanhado nasinúmeras viagens de campo, e que aparecem com os devidoscréditos.

Objetivando mostrar que, além de fotógrafos e antropólogos,outros profissionais têm sido impactados pelo drama dosXokleng, incorporei no texto a contribuição do pintor alemãoF. Becker, que produziu diferentes versões do retrato do cacique“Câmrém”, conhecido na reserva como “trovoada” e ainda hojeevocado por sua competência como xamã. A foto de uma dessasversões foi-me cedida pelo professor Valberto Dirksen.Aparecem ainda duas xilogravuras de Elvo Damo, que integrama série de sua autoria intitulada “Bugreiro”, editada em Curitiba,em 1979, e motivo de uma exposição e da edição do álbumXilos. Os textos poéticos de Reynaldo Jardim, que foramoriginalmente escritos para integrar essa exposição e o álbumXilos, são em parte incluídos no livro. O mesmo acontece como “Poema para o Índio Xokleng” de Lindolfo Bell, publicadono livro Código das Águas (S. Paulo, Global, 1994). Essascontribuições enriqueceram demais meu trabalho, e eu agradeçoseus autores pelo entusiasmo com que atenderam meus pedidos.

Por fim, incorporei uma versão resumida do “mito dacriação”, colhido e traduzido pelo professor bilíngue Nãmblá

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Gaklã, que realiza um excepcional trabalho de preservação dalíngua e da cultura Xokleng.

A edição do livro foi possível na medida em que contei como apoio decidido dos Prefeitos Dieter Staudinger, de Ibirama,Aldo Schneider, de Victor Meirelles, e Décio Lima, deBlumenau; do Prof. Bráulio Maria Schloegel, Presidente daFundação Cultural de Blumenau; dos Reitores Rodolfo Pintoda Luz, da UFSC, e Edison Villela, da UNIVALI; do Prof.Fernando Ferreira de Mello, ex-Presidente, e do Sr. Júlio CesarPungan, atual Presidente do BESC. As editoras da Universidadedo Vale do Itajaí e da Universidade Federal de Santa Catarina,formaram um “pool” e se dispuseram a participar dessa parceriaeditorial. O projeto foi inicialmente aprovado pelo ProgramaNacional de Apoio à Cultura, do Ministério da Cultura, Lei8.313/91. Assim foi possivel obter o patrocínio do Banco doEstado de Santa Catarina (BESC).

A proposta não teria sido materializada se eu não contassecom a colaboração dedicada e entusiástica das bolsistas doCNPq, que integram o Projeto “Hidrelétricas, Privatizações eos Povos Indígenas no Sul do Brasil”, respectivamente,Maristéla H. Faria, Karyn N. R. Henriques, Myrnaia deAlencastro Grandi Kasandra Schmidt, Gisela A. Batistela e CatiaWeber, sendo que as duas últimas participaram ativamente daseleção das fotos e do pré-projeto de editoração. Recebí aindavaliosas sugestões do doutorando Flávio Wiik, da professoraAneliese Nacke e de João Sepetiba, este último incansável nastarefas de revisão.

O projeto gráfico foi desenvolvido por Renato Rizzaro.

A todos esses colaboradores, e a outros tantos contribuintesnão referidos que se esmeraram em auxiliar em diferentesmomentos, meus agradecimentos.

Sílvio Coelho dos Santos, Pesquisador do CNPq.

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I N T R O D U Ç Ã O

Durante séculos, os índios Xokleng dominaram as florestasque cobriam as encostas das montanhas, os valeslitorâneos e as bordas do planalto no Sul do Brasil. Eramnômades. Viviam da caça e da coleta. A mata atlântica eos bosques de pinheiros (araucária) forneciam tudo o que

necessitavam para sobreviver. Caçavam diferentes tipos deanimais e aves, coletavam mel, frutos e raízes silvestres. Etinham o pinhão como um dos principais recursos alimentares.

O território que ocupavam não tinha contornos bem definidos.As rotas de perambulação eram freqüentadas de acordo com oseu potencial em suprir, através da caça e da coleta, asnecessidades alimentares do grupo. Mantinham uma disputasecular com os Guarani e os Kaingang para o controle desseterritório. Os Guarani dominavam extensa parte do planalto, asmargens dos rios que integram as bacias do Paraná/Paraguai eo litoral. Os Kaingang eram senhores das terras interiores doplanalto. Todos pretendiam o domínio dos fabulosos recursosprotéicos representados pelos bosques de pinheiros e a faunaassociada ao pinhão. Dessa forma, os Xokleng tinham nasflorestas que se localizavam entre o litoral e o planalto o seuterritório de domínio e de refúgio. Ao Norte, chegavam até aaltura de Paranaguá; ao Sul, até as proximidades de Porto Alegre;ao Noroeste, dominavam as florestas que chegavam até o rioIguaçu e aos campos de Palmas.

Entre excursões de caça e coleta, a vida fluía. Os homensfabricavam arcos, flechas, lanças e diversos outros artefatosnecessários ao cotidiano. As mulheres teciam com fibra de urtigamantas que serviam de agasalho nas noites de inverno; cuidavamdas crianças; faziam pequenas panelas de barro e cestos detaquara para a guarda de alimentos; limpavam animais e aves;

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cuidavam do preparo da comida; colhiam, estocavam emaceravam o pinhão e com ele faziam um tipo de farinha;cozinhavam ou moqueavam peças de carne dos animais e avesabatidos; preparavam bebidas fermentadas com mel e xaxim.Quando o grupo se deslocava, as mulheres carregavam toda atralha doméstica. As crianças iam sendo socializadas na vidacotidiana do grupo, num processo crescente de aprendizado quelhes deveria garantir a sobrevivência futura. O mundo dosXokleng não era um paraíso como muitos podem imaginar. Eraum mundo de forte interdependência com a natureza. Ossucessos alcançados eram conseqüência do esforço individuale coletivo, e baseados nos saberes que diversas gerações haviamdesenvolvido para aproveitar aquele espaço ecológico queelegeram como o seu habitat. As doenças eram raras. O frio doinverno e as chuvas eram enfrentados como fatos da natureza.Os acampamentos não passavam da construção de simples para-ventos, aproveitando ramos de árvores que eram devidamentearqueados e cobertos com folhas de palmeira. Outras vezes, seo tempo era favorável, dormiam ao relento. O fogo aceso todaa noite, a todos aquecia.

Os Xokleng formavam um povo. Tinham língua, cultura eterritório que os diferenciavam dos outros povos indígenas, taiscomo, os Guarani e os Kaingang. Viviam separados em grupos,que quase sempre mantinham disputas entre si. A família, osexo, o nascimento de crianças, a vida em grupo, a parceria nasatividades de caça e coleta, a divisão dos alimentos entre todos,as festas, as disputas e a morte faziam parte do cotidiano. Nãotinham uma autodenominação específica. Se identificavam a sipróprios como “nós” e, todos os demais estranhos, como os“outros”. O nome Xokleng é apenas uma palavra de seuvocabulário pela qual eles foram identificados na literaturaantropológica. Regionalmente, continuam a ser os Botocudos,em conseqüência do uso pelos homens de um enfeite labial,denominado tembetá, ou os Bugres, termo pejorativo tambémdado pelos brancos.1

Encontros de estranhos

Com a chegada do europeu ao Sul do Brasil, iniciou-se umprocesso de mudanças que até hoje não terminou. Os Guaranique tão amistosamente receberam os primeiros navegadores,logo foram impactados pela presença de doenças até entãodesconhecidas, tais como, a gripe, a varíola, a pneumonia, osarampo e a tuberculose. Em seguida, foram arrebanhados para

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servirem como mão-de-obra escrava nos empreendimentos queos portugueses começaram a instalar em São Vicente e SãoPaulo. A continuação dessas agressões motivou a fuga para ointerior de diversos grupos indígenas. O Litoral logo acaboudespovoado de índios e foi ocupado pelo homem branco. Maisadiante, no século XVII, mamelucos paulistas promoveramincursões de caça ao índio na região dos rios Paraná/Paraguai,denominada Sete Povos das Missões.

No século seguinte, os campos do planalto foram ocupadospor fazendas de criação de gado. Caminhos de tropa foramabertos, ligando o Rio Grande do Sul a São Paulo. O planalto eo litoral foram definitivamente conquistados. Tudo isto acentuoua disputa de territórios entre os grupos indígenas que escaparamnesses primeiros momentos da dominação exercida peloseuropeus, ou, pelos paulistas, seus descendentes. Alguns gruposKaingang, manipulados pelos brancos, participaram do processode submissão dos Guarani e, assim, puderam estender seusdomínios para o Sul. Neste avanço, também pressionaram osXokleng que acabaram expulsos das bordas do planalto, nasquais tinham acesso fácil aos bosques de pinheiros.

Darcy Ribeiro conta em seu livro Os Índios e a Civilização2

que ouviu de Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, responsávelpela contatação dos Xokleng no Alto Vale do Itajai, uma narraçãomítica de como os índios haviam travado o primeiro contatocom o homem branco. Durante uma expedição de caça, algunsíndios observaram uma trilha diferente, na qual o mato estavacortado de forma nova e estranha, frente à prática indígena desimplesmente afastar ou torcer os ramos que dificultam acaminhada na floresta. Curiosos, adiante se depararam com otronco de uma árvore cortada pelo mesmo processo. Seguirampela picada acautelados, em direção a uma praia. Ali, observaramrastros estranhos. Algumas pegadas se dirigiam para o maradentro, enquanto outras acompanhavam a linha da praia.Continuando a investigação, cada vez mais curiosos e sempreprotegidos pela vegetação da orla costeira, descobriram aoanoitecer um acampamento. Discutiram sobre quem seriam osestranhos que de longe observavam. Depois de muitasinterrogações decidiram atacá-los para se apropriarem dosinstrumentos cortantes, que permitiam enorme facilidade nocorte de arbustos e árvores. Durante a madrugada assaltaram abarraca improvisada e mataram seus ocupantes. A seguir,puseram-se a examinar o que ali havia. Logo descobriram ummachado, alguns facões e umas tantas facas. Ao amanhecer,ansiosos, examinaram detalhadamente os cadáveres daqueles

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seres cabeludos e barbados. Tiraram suas roupas com cuidado,para observar seus corpos peludos. As botinas, responsáveispelos estranhos rastros, foram minuciosamente analisadas, bemcomo suas roupas. Colocaram alguns dos mortos de pé, apoiadosem alguns paus, e de longe cogitaram sobre a possibilidade deserem esses “outros”, seres humanos verdadeiros. A certa alturadão-se conta de questões que não podiam responder. Separaramos intrumentos cortantes e queimaram todo o resto. A seguirvoltaram ao encontro do grupo principal, carregados com osinstrumentos de ferro e cheios de novidades. As demonstraçõesentusiásticas do poder do machado e das facas, a todos envolveu.Muitas disputas logo ocorreram por sua posse. E não poucoscomeçaram a incursionar pelo litoral, pretendendo encontrarnovos acampamentos daqueles seres estranhos, senhores depreciosos instrumentos cortantes.

Os artefatos de ferro chegaram assim aos Xokleng, sem quede fato houvesse contato direto entre eles e os novos homensque estavam chegando ao seu território. Diligentes, os indígenaslogo adaptaram os instrumentos de ferro dos brancos às suasarmas tradicionais. As pontas de flecha feitas com madeiraendurecida ao fogo, ou com lascas de pedra, foram em partesubstituídas por pontas de ferro. A forma, entretanto, dessaspontas foi mantida. Com as lanças ocorreu o mesmo. As enormespontas de madeira, foram substituidas por similares de ferro.Foices e outros instrumentos dos brancos foram cuidadosamentereelaborados, para alcançarem a forma desejada. Um trabalhopaciente para quem não dominava as técnicas de forja e do ferrobatido. O resultado, entretanto, era compensador. O ferro deuaos Xokleng, muito tempo antes da “pacificação”, uma novasuperioridade tanto para as atividades de caça, como para aguerra.

O ferro foi assim um atrativo para os índios se aproximaremdos brancos. Observá-los à distância, objetivando o encontrode oportunidade para se apropriarem de suas ferramentas, passoua ser uma maneira de os Xokleng “pesquisarem” o cotidianodaqueles seres que para eles continuaram sendo muito estranhose, provavelmente, não humanos.

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O governo estimula a imigração para a região Sul

Proclamada a independência, o Brasil passou a favorecer aimigração de europeus. No Sul foram criadas diversas colôniasoficiais. Também foram feitas concessões para empresasprivadas que assumiram o compromisso de promover alocalização de imigrantes. No Rio Grande do Sul, os primeirosimigrantes alemães chegaram em São Leopoldo (1824). EmSanta Catarina, a colonização começou em 1829, em São Pedrode Alcântara, próximo a Florianópolis. No Paraná, imigrantescomeçaram a ser localizados no rio Negro, a partir de 1829.

Os governos provinciais e monárquico, estavam interessadosna ocupação das terras localizadas entre o litoral e o planalto.Os vales litorâneos, cobertos com exuberantes florestas, e asencostas do planalto até então não haviam sido explorados. Todaessa área era considerada como desabitada, embora há muito sesoubesse da presença ali de indígenas. A idéia de um “vaziodemográfico” prevaleceu nas decisões oficiais.

Toda essa área, em que os imigrantes começaram a serlocalizados, era território tradicional dos Xokleng. Esses índiosforam envolvidos simultaneamente pelas frentes de colonizaçãoque se instalaram no Rio Grande, Santa Catarina e Paraná. Suascondições de sobrevivência ficaram, assim, ameaçadas. Osimigrantes, por sua vez, enfrentaram diferentes problemas emseu processo de adaptação. Em muitos casos, as terras eraminadequadas. Muitas colônias não dispunham de infra-estruturamínima que garantisse o escoamento da produção. Ocorreramproblemas de inadaptação ao clima, devido ao calor e à umidade,e ao domínio de novas formas de cultivo. Não poucosfracassaram. Outros abandonaram as colônias, indo para oscentros urbanos em busca de melhores condições de trabalho.

Intensificando-se a colonização em Santa Catarina, com ainstalação das colônias Blumenau (1850) e Joinville (1851), acada dia mais terras eram tomadas aos Xokleng. A partir de1870, começaram a chegar italianos. Diversas colônias foramabertas também no Sul do Estado, como Urussanga e NovaVeneza. A floresta dava lugar às cidades, às estradas, àspropriedades de colonos, com seus pastos e roças. Não poucosforam os empreendimentos madeireiros. Os estoques de caça eoutros recursos alimentícios que a floresta proporcionava, comoo palmito e o pinhão, foram logo disputados pelos recémchegados. À falta de como prover suas necessidades alimentares,os indígenas passaram a assaltar as propriedades dos colonos.Ou a atacá-los em seus locais de trabalho e de trânsito. Neste

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contexto, a violência se exacerba. A terra estava sendo usurpadaao índio pela força. Os governos tinham seus interesses. Ascompanhias de colonização também. É fácil compreender,portanto, que em muitos casos tanto o índio, como o colono,foram vítimas.

Pode-se entender melhor a sucessão de colônias que surgiramem Santa Catarina, em particular no Vale do Itajaí, se atentarmospara as atividades econômicas básicas desses empreendimentos,que estavam centradas na agricultura. Assim, um jovem casalse localizava num lote (em regra com 25ha), e iniciava o seudesbravamento. Chegavam os filhos, e o casal aumentava a suaprodução conforme as crianças iam crescendo e cooperando notrabalho. Quando o primeiro filho chegava à idade de casar,ocorria a necessidade de adquirir um novo lote colonial. Eraneste instante que a frente agrícola avançava. O ciclo reiniciava-se. No Vale temos, como exemplo, entre outras cidades,Blumenau fundada em 1850; Timbó, Indaial e Pomerode,fundadas por volta dos anos de 1870; e Ibirama, nos anos 90.Fica claro que a cada 20 anos, ou seja, uma geração, eranecessário criar novas colônias, tanto para abrigar os jovensque queriam estabelecer novas famílias, como para atender ademanda decorrente da chegada de novos imigrantes. Tratava-se, pois, de um modelo de colonização que estava centrado napequena propriedade rural. A implantação desse modelo, deoutra parte, pressupõe a existência de novas terras para a suacontínua expansão.

O território tradicional dos Xokleng foi, portanto, objeto deum plano de ocupação sistemático e irreversível. Os governose as companhias de colonização estavam em acordo, inclusive,quanto à conveniência de se minimizar a presença indígena.Diziam que os índios viviam no distante sertão e queesporadicamente faziam incursões às florestas e vales litorâneos.Para os colonos, a existência de índios nas terras que estavamadquirindo era mais do que uma surpresa. Era um fator de risco,de insegurança. O cenário para a ocorrência de acontecimentostrágicos, em particular para os índios, estava montado.

1. Além de Xokleng, Botocudo e Bugre, há na literatura as denominações Xokrén, Aweikoma e Kaingangpara designar este grupo indígena. Nenhuma dessas designações tem fundamento numa autodenominação dogrupo. Foram termos consagrados pelos brancos. Xokleng é o termo pelo qual o grupo aparece sistematicamentena literatura antropológica. Botocudo é um termo de designação pós-contato que é aceito pelos índios. Entretanto,hoje, alguns índios procuram outra autodesignação, preferindo o termo “lacranon”, que quer dizer “povo ligeiro”ou “povo que conhece todos os caminhos”, conforme informações fornecidas pelo professor Nãmbla Gakrã aoantropólogo Flávio Wiick. Lingüisticamente, os Xokleng filiam-se ao grupo Kaingang e ao macro-grupo Jê.Destaco ainda que por uma convenção estabelecida pela Associação Brasileira de Antropologia, os termosindígenas são grafados somente no singular, como por exemplo, os Xokleng;

2. RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização. Petrópolis, Editora Vozes, 2a edição, 1977, pp. 318-320.

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EXTERMÍNIOA DISPUTA DE TERRAS PROVOCA O

I N D Í G E N A

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Os índios reagem à presença do branco

As notícias sobre a presença dos Xokleng nas áreas queestavam sendo cogitadas para o estabelecimento deimigrantes eram do conhecimento tanto dos governosmonárquico e provincial, como dos interessados nosnegócios da colonização. Em 1808, logo após a chegada

de D. João VI ao Brasil, foi emitida uma Carta Régiadeterminando que se fizesse guerra aos índios que faziamincursões nas cercanias de Lages. Em seguida, 1814, em Caldasda Imperatriz, nas cercanias de Florianópolis, aconteceu um

ataque dos índios aos milicianos doRei que guardavam aquelas termas.O fato foi devidamente registradonuma placa de bronze colocada nolocal. Depois, em 1836, registrou-se um ataque nas proximidades deCamboriú. Outras notícias sobreconflitos com índios aparecem,nessa época, esparsas em toda aregião Sul.

Visando dar segurança aoscolonos que chegavam, o governoprovincial criou uma “companhiade pedestres” (Lei n. 28, de 25/4/1836). A iniciativa governamental,entretanto, pouco adiantou. Osindígenas dominavam um extensoterritório. Os encontros com osbrancos eram ocasionais e não haviacomo uma pequena tropa assegurartranqüilidade no sertão. Em

verdade, o território indígena estava sendo invadido e os índiosreagiam à presença dos imigrantes. O estabelecimento decritérios que assegurassem aos índios os espaços territoriais que

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necessitavam para sobreviver não interessava, evidentemente,aos governos e aos mandatários dos negócios da colonização.

Logo após a instalação da Colônia Blumenau, aconteceu umepisódio singular e que bem exemplifica como eram difíceis aspossibilidades de entendimento entre os índios e os recém-chegados. Operários que terminavam a casa do Dr. Blumenau,onde hoje é o bairro da Velha, no dia 28 de dezembro de 1852,foram surpreendidos com a presença de alguns índios nasimediações da residência. Certamente, logo pegaram suas armase gritaram, em alemão, para que os índios se afastassem. Comotal não aconteceu, pois os índios nada entendiam da língua dos

brancos e estavam muito curiosose entretidos com as plantações,equipamentos e instalações noentorno da casa, os trabalhadoresem seguida deram alguns tiros paraassustá-los. Como resultado do“susto”, no dia seguinte um índiofoi encontrado desfalecido emconseqüência de ferimento à bala.Logo depois, este índio morreu.

Este episódio foi objeto decartas enviadas ao Dr. Blumenau,que neste momento se encontravana Alemanha, com o registro deque algumas flechas foramencontradas nas cercanias e de quea perseguição aos “bugres” foiinterrompida por já ser noite.Informava-se também que o índio

morto era robusto, tinha aproximadamente 20 anos e usava, nolábio inferior “um pedaço de madeira, característico da tribodos botocudos”1. Denota-se deste episódio que os imigrantessabiam da existência dos índios e que a sua segurança era dadapelo uso continuado de armas de fogo, em particularespingardas.

Na medida em que o número de colônias foi aumentando, areação indígena vai sendo noticiada com maior intensidade.Alguns colonos foram atacados e uns poucos mortos. Emcontrapartida, aumenta a violência contra os índios. Os colonosreclamam continuamente da falta de segurança nas colônias e,em certas situações, ameaçam abandonar seus lotes. Em 1856,o Presidente da Província, Dr. João José Coutinho, em sua “falla”à Assembléia dizia “que a única maneira realmente eficaz seria

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obrigar estes assassinos e filhos de bárbaros deixarem a floresta,localizando-os em lugares dos quais não pudessem fugir”2.Ainda neste ano, o Dr. Blumenau reclamava que a Companhiade Pedestres, à época com 70 homens, estava mal equipada. A“tropa” acabou sendo dissolvida em 1879 por falta de verbas

para mantê-la.Os governos do Império e da

Província também tentaramestimular os trabalhos de catequesedos índios. Em 1868, os padrescapuchinhos, Virgílio Amplar eEstevam de Vicenza, foramcomissionados para iniciartrabalhos de catequese em Lages eItajaí. Em 1885, o Ministério daAgricultura encarregou o Frei Luizde Cimitile, antigo missionário dealdeamentos indígenas no Paraná,para se estabelecer em SantaCatarina. O Frei recebeu algunsrecursos financeiros concedidospelo Ministério, mas não teve êxitoem sua missão. As tentativas decatequese, entretanto,continuaram.

Simultaneamente, outrosesforços foram feitos para aldearos índios. Grupos de “batedores domato” foram organizados emdiversas colônias. Em Blumenau,Frederico Deeke, que chefiavauma dessas turmas, foi credenciadopelo Dr. Blumenau para procurare contratar um intérprete quefacilitasse o contato com os índios.Este experimentado desbravador

conseguiu contratar tal auxiliar, porém contatos amistosos nãoconseguiu. Uma outra tentativa de aldeamento foi feita emPapanduva pelo sertanista Joaquim Francisco Lopes, em 1877.Pelo que se sabe, nenhum índio foi atraído.

As expedições de vingança ao interior do sertão para revidarataques cometidos pelos indígenas, eram conhecidas no Brasildesde os tempos coloniais. As colônias e o governo provinciallogo começaram a organizar e remunerar grupos armados que

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adentravam na floresta com o intuito de dizimar os índios emseus acampamentos. A justificativa oficial era afugentar osindígenas “para longe dos lugares habitados”3. As palavras“bugreiro”, “caçadores de índios”, “tropas” e “montarias” logocomeçam a aparecer nos documentos oficiais e no noticiáriodos jornais.

Na “falla” à Assembléia de 1876, o Presidente da ProvínciaJoão Capistrano Bandeira de Mello Filho, informava: “Emalguns pontos da Província, como na Barra Velha, vila deJoinville, Costa da Serra, Curitibanos e Colônia Militar SantaTereza, houve diversas correrias dos selvagens, algumas dellasseguidas de funestas conseqüências, sendo elles enérgicamenterepellidos, já pelos habitantes, a defenderem o lar das violênciasque o assaltavão, e já pelo acêrto das medidas empregadas pelasautoridades...”. Nessa mesma “falla”, em anexo, o chefe dePolícia da Província apresentava seu relatório, esclarecendosobre os indígenas que “na Barra Velha e Villa de Joinville oaparecimento deles, em os mezes de Janeiro e Fevereiro, pozem alarma os moradores desses districtos; saindo, porém, d’entreestes alguns homens mateiros, embrenharão-se nas matas eafugentaram os selvagens ...” 4

Pouco antes, em 3/1/1874, o jornal Kolonie Zeitung, deJoinville, noticiava que havia partido no dia 28 de dezembro deSão Bento a maior expedição aprovada pelo presidente daprovíncia, para combater os “bugres” que circulavam nasimediações de Joinville e Blumenau. A expedição era formadapor 31 homens e era dirigida pelo vaqueano João dos SantosReis.

E em 1880, o governo provincial relatava à Assembléia, coma maior simplicidade que “para afugentar (os índios-SCS) tomeias medidas de costume: recorri aos battedores de matto”5.

O noticiário telegráfico do Jornal do Comércio(Florianópolis), do ano de 1883, dá-nos vários exemplosreferentes à autorização de despesas pelo governo para oextermínio indígena. Em 22 de fevereiro, “Ao Exmo. Sr. CoronelVice- Presidente da Província, n. 39, solicitando, em vista doofício do delegado de Tubarão, que S. Excia dignou-se enviar aesta chefia (...) autorização para que seja despendida a quantiade 200$000 réis com o serviço de afugentar os indígenas daquelaparagem...” Dia 23 do mesmo mês, ainda dirigido ao vice-presidente, com o n. 41, “propõe esta chefia a S. Excia se digneautorizar o dispêndio de 300$000 réis (...) no pagamento devaqueiros que batam as matas e afugentem os selvícolas”. Nodia 24, outro telegrama dirigido ao delegado de S. Francisco

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autoriza despesas com batedores de mato para “garantir apopulação dos assaltos dos selvagens no Jaraguá” E a listaprossegue, dando-nos idéia da chacina que ocorria no sertão.

Em 5 de junho de 1904, o Jornal Novidades (Itajai) comentamatéria publicada no Blumenau Zeitung sob o título “Como seciviliza no século vinte”. Neste texto, o jornal de Blumenaudenuncia as atrocidades cometidas pela turma incumbida pelogoverno para “afugentar” os índios6.

Os bugreiros

As tropas de bugreiros compunham-se, em regra, com 8 a 15homens. A maioria deles era aparentada entre si. Atuavam sobo comando de um lider. A quase totalidade dos integrantes dessesgrupos eram “caboclos”, que tinham grande conhecimento sobrea vida no sertão. Atacavam os índios em seus acampamentos,de surpresa. Às vítimas poucas possibilidades havia de fuga.

O mais conhecido bugreiro em Santa Catarina foi MartinhoMarcelino de Jesus, ou Martinho bugreiro. Nascido por voltade 1876, em Bom Retiro, trabalhou em Taquaras na fazenda domajor Generoso de Oliveira. Depois do casamento, morou comos sogros na serra da Boa Vista. A seguir, mudou-se para o lugarCaeté, no município de Alfredo Wagner, voltando depois a morarem Bom Retiro, no Distrito de Catuíra. Dedicava-se à criação eao comércio de gado. Foi nessa condição de criador, isto é,pequeno fazendeiro, que começou a atender pedidos departiculares e do governo para “afugentar” os índios. Volta emeia estava em Florianópolis, prestando contas ao governo. Noinício do século, comandou diversas expedições no vale do Itajaí.Em algumas de suas estadas em Blumenau foi fotografado comsua turma e suas vítimas.

Para dar segurança aos colonos que se fixavam em Ituporangae Barracão, foi nomeado gerente da Cia Colonizadora SantaCatarina, por seu diretor, coronel Carlos Poeta. Entre 1923 e1928, Martinho esteve a serviço do agrimensor de terras CarlosMiguel Koerich, que fazia seu trabalho nas regiões de Barracão,Anitápolis, Esteves Junior, Angelina e Brusque. Participoucontra a revolução constitucionalista de 1932, oportunidade emque estando aquartelado em Itararé, deu um depoimento dizendoque em Santa Catarina “tinha liquidado muitos bugres” 7.

Segundo um depoimento que obtive do bugreiro IrenoPinheiro, em 1972, na localidade de Santa Rosa de Lima,afugentavam-se os índios “...pela boca da arma. O assalto se

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dava ao amanhecer. Primeiro, disparava-se uns tiros. Depoispassava-se o resto no fio do facão. O corpo é que nem bananeira,corta macio. Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço.Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres ecrianças. Tinha que matar todos. Se não, algum sobreviventefazia vingança. Quando foram acabando, o governo deixou depagar a gente. A tropa já não tinha como manter as despesas.As companhias de colonização e os colonos pagavam menos.As tropas foram terminando. Ficaram só uns poucos homens,que iam em dois ou três pro mato, caçando e matando essesíndios extraviados. Getúlio Vargas já era governo, quando eufiz uma batida. Usei Winchester. Os índios tavam acampadosnum grotão. Gastei 24 tiros. Meu companheiro, não sei. Euatirava bem” 8.

No Sul do Estado, Natal Coral, Maneco Ângelo, e um talVeríssimo, entre outros, tornaram-se famosos como líderes das“batidas” e pela violência com que assaltavam os acampamentosdos índios.

Bugreiro, ou, mais explicitamente, o caçador de índios, foiassim uma profissão criada e necessária ao capitalismo emexpansão nesta parte da América.

Maria Korikrã: o drama de uma das vítimas que sobreviveram

Entre as crianças e mulheres que Martim bugreiro trouxe,em 1905, para mostrar à população de Blumenau que haviaefetivamente “afugentado” os índios, estava a menina Korikrã.Ela foi adotada pelo Dr. Hugo Gensh, que atuava como médicoem Blumenau. Recebeu o nome de Maria Gensh e teve educaçãoesmerada, aprendendo alemão e francês.

O Dr. Gensh publicou uma pequena monografia sobre suaexperiência em adotar e educar uma indígena, incluindo aíalguns vocábulos Xokleng que foram depois usados por EduardoHoernhan durante seus trabalhos de atração dos índios. Mariafaleceu aproximadamente com 42 anos, vitimada portuberculose.

Em 1918, quatro anos após o estabelecimento de relaçõesamistosas com os Xokleng, surgiu uma oportunidade de umencontro entre Maria e seus verdadeiros pais. Darcy Ribeiro9,baseado em depoimento de Hoerhan assim narra o episódio:“depois de muita espera chegou a manhã do encontro. Eduardodispôs os índios, colocando à frente o pai de Korikrã... uma tia,irmã de sua mãe, e três irmãos, recomendando que tratassem

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bem os visitantes... Depois, foi buscar o Dr. Gensh, sua ilustreespôsa e Maria, trazendo-os morro acima ao encontro dosíndios...

Eduardo explicou que o velho era o pai adotivo de Maria,que a criara com o carinho que já contara. E Maria,perguntaram, chamando-a naturalmente Korikrã, seu nometribal, pois não a reconheciam naquela figura esguia, vestidanuma blusa elegante, saia bem talhada e com a cabeleiraelegantemente arranjada num chapéu. Eduardo a indicou. Osíndios observaram-na um instante e avançaram para ela,apalpando-a, incrédulos. Logo alguém se lembrou de procurara marca tribal, cicatriz de duas incisões feitas na perna esquerdadas mulheres, logo abaixo da rótula. Levantaram a saia damoça para procurá-la. Enquanto isso outros lhe arrancavam ablusa, o pai tirava o chapéu e desmanchava o penteado,tentando refazer a imagem da filha tão cedo arrancada de seuconvívio...

Alguém encontrou a marca tribal e todos se agacharam paraver: kó, kó, - aqui, aqui está... Outra cicatriz produzida porferimento numa queda, quando criança, foi encontrada nobraço, e, então, já não havia dúvidas, era ela. O pai tomouentre as manoplas a cabeça de Maria... e perguntou: “vocênão me reconhece? Eu sou seu pai”. Maria não era só pavor,era mais asco que medo. Beiços pregados não dizia palavra, eo velho implorava e ordenava: “fala, você me entende? Fala,fala se me reconhece”. Dr. Gensh, transido de medo, tanto temiapela própria sorte como pela da pupila. A mãe adotivaesgueirava-se horrorizada. Aí o velho cacique larga a cabeçade Maria com um safanão, afasta-se, olha a filha com ódio ediz: Eu estou vendo, você tem nojo de mim, tem nojo de tôda asua gente...”

O número de crianças trazidas como troféus pelos bugreirosnão foi pequeno. Sabe-se que em alguns casos autoridadesestaduais e um ou outro humanista as adotaram. O mesmoaconteceu com casas de religiosos. Um bom número deve tersido incorporado às fazendas do planalto para servirem comomão-de-obra. Sobre algumas dessas crianças ficaram registrose, às vezes, fotos. Em raríssimos casos, chegaram à idade adulta.

A Liga Patriótica e o debate humanista

A violência que acontecia no interior do sertão repercutiu naimprensa, nas áreas urbanas e, também, no exterior. Um longo

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debate ocorreu. Muitos tinham opinião que os índios eram umobstáculo ao “progresso” do país e que deveriam ser,simplesmente, eliminados. Esses, em verdade, assumiampublicamente uma prática do que vinha acontecendo de maneiraàs vezes camuflada, outras vezes aberta, desde os tempos daColônia. Isto é, o genocídio indígena. Outros, mais generosos,defendiam o fim da carnificina, da violência. Esses humanistasjustificavam sua posição dizendo que os indígenas eram sereshumanos e como tais tinham o direito à vida e ao convívio coma civilização.

Em Santa Catarina, este debate se acentuou no início desteséculo quando foi fundada em Florianópolis, no ano de 1906, a“Liga Patriótica para a Catechese dos Selvícolas”. A Liga eraconseqüência do esforço do então Major-Engenheiro, PedroMaria Trompowsky Taulois, positivista e maçom, para dar fimà violência contra os índios, tendo o apoio de um pequeno grupode políticos, humanistas e intelectuais. Gustavo Richard, entãogovernador, foi escolhido seu Presidente de Honra.

A Liga se envolveu forte no debate que acontecia na imprensa,opondo-se às investidas que o jornal Der Urwaldsbote, editadoem Blumenau, fazia contra os índios.

Ainda em 1906, Taulois convidou o naturalista e etnógrafotcheco, Albert Vojtech Fric*, para assumir a “pacificação”dosXokleng. Fric fazia a sua terceira viagem à América do Sul econhecia a violência que era cometida contra os índios, pelosgovernos e companhias de colonização. Era também umhumanista. Sua chegada em Florianópolis e, depois, em Itajaí,Blumenau, Curitibanos e Palmas foi devidamente noticiada. Ojornal Der Urwaldesbote publicou diversos artigos criticandoos objetivos de Fric e da Liga, bem demonstrando o cenário deinsegurança que dominava os colonos.

Fric resumia seu projeto numa aproximação pacífica com osXokleng, com o apoio de índios Kaingang; na reserva de umaárea suficiente para os indígenas terem condições desobrevivência; na punição das caçadas e negócios de escravosfeitos pelos bugreiros; na devolução das crianças capturadasaos seus pais; e na prática da compreensão e da crença noprogresso humano. Fric, entretanto, acabou regressando àEuropa sem ter colocado em prática seu plano, pois havia sidodescredenciado de sua condição de representante do Museu RealEtnográfico de Berlim, e perdeu seu vínculo com o MuseuEtnográfico de Hamburgo. Tudo indica, que isto aconteceu porpressões exercidas pelas companhias de colonização alemãs,que atuavam em Santa Catarina.

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Foi no cenário do XVI Congresso Internacional deAmericanistas, realizado em Viena, em 1908, que Fricreapareceu. Apresentou um extenso trabalho sobre asiniqüidades que se praticavam contra os indígenas no Sul doBrasil, em nome da colonização e do “progresso”. Denunciouque a “colonização se processava sobre os cadáveres de centenasde índios, mortos sem compaixão pelos bugreiros, atendendoos interesses de companhias de colonização, de comerciantesde terras e do governo”. E finalizou, solicitando que o Congresso... “protestasse contra êstes atos de barbárie para que fôsse tiradaesta mancha da história da moderna conquista européia naAmérica do Sul e dado um fim, para sempre, a esta caçadahumana”10.

As denúncias de Fric repercutiram na imprensa européia. NoBrasil, a questão tornou-se motivo de amplo debate, quando oProf. Hermann von Ihering, Diretor do Museu Paulista, tentourefutar as declarações do etnógrafo tcheco. Ihering disse naocasião, referindo-se aos Kaingang de São Paulo, que “os índiosnão representam um elemento de trabalho e progresso” epropunha o seu extermínio11.

O nacionalismo embrionário da Velha República, inspiradono positivismo, recolocava a questão indígena comoresponsabilidade do Estado. A discussão se espalhou pelo paíse o governo da República acabou criando, em 1910, o Serviçode Proteção aos Índios, (SPI). Os ideais de Fric, de Taulois e da“Liga”, afinal, prevaleceram.

1. Essa carta ao Dr. Blumenau foi escrita pelo Prof. Ostermann (cf. Blumenau em Cadernos, tomo IX, no

9, 1970). O Dr. Fritz Müller também enviou uma carta ao Dr. Blumenau, comentando o episódio. Veja-se SANTOS,Sílvio Coelho. Índios e Brancos no Sul do Brasil. A dramática experiência dos Xokleng . Florianópolis,Edeme, 1973, 1 a edição, pp.61-62;

2. “Falla” é o mesmo que relatório ou, atualmente, “mensagem” à Assembléia. Neste caso, trata-se da“falla” do Dr. João José Coutinho, de 1856, conforme SANTOS, 1973: 65;

3. “Falla” do Presidente da Província João Tomé da Silva, in SANTOS, ob. cit., p. 79;4. SANTOS, idem, p. 79;5. Idem, idem, pp. 80-81;6. Ver SANTOS, ob. cit., pp. 84-85;7. De acordo com SANTOS, idem, pp.89-91;8. De acordo com o texto de SANTOS, Sílvio Coelho dos, “Bugreiro”, elaborado para a exposição do artista

plástico Elvo Damo, intitulada, XILOS, Curitiba, 1979. Os dados apresentados referem-se a uma entrevista querealizei com um bugreiro em Santa Rosa de Lima (SC);

9. RIBEIRO, Darcy, ob. cit., 1970: 399-400; e SANTOS, ob. cit., pp.185-189;10. STAUFFER, David Hall. Origem e Fundação do Serviço de Proteção aos Índios. In Revista de História,

no 37 e seguintes. São Paulo, 1959/1960. Neste caso, 1960: 169-172;11. STAUFFER, ob. cit., p.177; SANTOS, 1973: 116-120;* FRIC é grafado corretamente com um pequeno “v” sobre a letra “C”. Deve-se pronunciar “Fritch”, de

acordo com STAUFFER, 1960:169.

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1. Índio Xokleng com arco e flechas,nos primeiros momentos do contato.

Foto provável de E. Hoerhan.Acervo SCS.

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2/3. Vítimas de bugreiros.Foto provavelmente obtida em Blumenau, em 1905.

Detalhe de G. Gerlach, 1972.Acervo SCS.

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“O metal dessa tinta

que enferruja na lâmina

da faca, surda e cega,

antes loquaz e pânica,

não é o sangue das gentes

brancas, limpas, germânicas:

é o óleo que fluía na máquina

de um bípede emplumado: o Xokleng,

o bicho bugre, ríspido

animal nocivo e impertinente

que se pensa dono deste continente.

Indigente animal

que pegado de surpresa nas aldeias

das matas, assusta-se com o

estampido das balas e

é agradável matar

com um golpe de faca

se o gume é aceso e no golpe

se opõe o comedido peso. ”*

* Este texto poético e os que se seguem, de Reynaldo Jardim,foram escritos originalmente para integrar o álbum Xilos, denominado Bugreiro, de autoriado escultor catarinense Elvo Damo, apresentado em Curitiba, Pr, em 1979.

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“Da ferocidade impenitente

Da artimanha amarga, gorda e azeda.

Da cerimônia fúnebre e martírio.

Da sanha que em sendas se envereda.

Da massacrada gente e seu delírio.

Da pele recortada a golpe frio.

Da solidão perdida dessas matas.

Da vida que o bugreiro desbarata.

Da mortandade calculada em planos.

Da moeda que paga os assassínios.

Da aldeia queimada, palha e panos.

Da genocídia guerra contra os índios.

Da criminosa história que não honra.

Da mentirosa gente que difama.

Da tribo trucidada enquanto é sombra.

Da noite que amanhece em sol de lama.

Da lama que mistura sangue e gritos.

Da inclemência que aflige o aflito.

Da gente que acorda em sobressalto.

Da fúria que cai sobre essa gente.

Da criança abatida em pleno salto.

Da aflição, mil vezes da aflição.

Da lâmina ladrando do facão.”*

* Reynaldo Jardim, ob. cit.

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4. Vítimas de bugreiros II.Detalhe de Gerlach ,1972;

Acervo SCS.

5. Martinhobugreiro e suasvítimas.

6. Retrato deMartinho

Marcelino de Jesustirado em 1932.

Acervos: MuseuUniversitário (MU)

UFSC, e SCS.

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7/8/9. Bugreiros e suas vítimas I.Detalhes de Gerlach, 1972.

Acervo SCS.

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10. Bugreiros e suas vítimas II.Acervo SCS.

11. Bugreiros e suas vítimas III. Acervo SCS.

13. Grupo de “Batedores de Mato” II. Acervo AHJFH.

12. Grupo de “batedores de mato” I. O termo era um eufemismo oficial para referir-se a uma“tropa”de bugreiros. Acervo Arquivo Histórico José Ferreira da Silva (AHJFS).

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“Disse o bugreiro

que eram vinte

os índios liquidados

a facão, na mata,

Que, de rastros,

no lusco-fusco

da manhã que nascia,

penetraram na aldeia

quando os índios dormiam.

Que, sobre eles,

o bugreiro e seus pares,

caíram de chofre

sem fazer alarde.”*

* Fragmento do texto de Reynaldo Jardim, ob. cit.

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PÁGINAS SEGUINTES:

17/18 Xilogravuras de ElvoDamo, sobre o tema Bugreiro,

integrante do álbum Xilos,1979.

14/15/16. “Tropa”de bugreiros de Martinho.Reprodução de Gerlach, 1972.Em detalhe aparecem outra “tropa” de Martinhoe um grupo de bugreiros do Sul do Estado,apresentado na obra do Padre Luigi Marzano(Coloni e Missionari Italiani nelle foreste del

Brasile. Firenze, Tipografia Barbéra, 1904, p.119).Acervo SCS.

19/20/21/22.Maria Korikrãcom a famíliado Dr. Gensh,em Blumenau.Uma trágicahistória.Acervos SCS eAHJFS.

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23.Vítimas de bugreiros III.Acervo AHJFS. Recolhidas pelas

freiras da cidade de Blumenau,duas mulheres e duas criançasconseguiram fugir, voltando à

floresta.

24. Francisco Topp foi mais umadas vítimas capturadas pelos

bugreiros. Foi adotado peloMonsenhor Topp, religioso

célebre por sua oratória.Freqüentou o Colégio

Catarinense, em Florianópolis,por alguns anos. Depois que

abandonou os estudos, seguiupara Buenos Aires, onde teria

falecido ainda jovem.Acervo AHJFS.

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“Meu nome, Martim Bugreiro,assim me chamam os da terra.Nascido de Bom Retiro,vivente de mar e serra.Ciência tenho de tiroe minha arma não emperra.Sei do facão toda manha,sei do bugre toda sanha,do ferro sei como ferra.Posso errar pelas veredasmas minha fúria não erra.Sei as táticas do ataquesei estratégias de guerra.Sozinho por essas matasjamais do nunca me embrenho.Jamais estalo um gravetoque olhos nos pés eu tenho.Que serpenteio meu corpopor entre rios e mangues,por entre águas e lamas,por entre chagas e sangues.Conheço a seiva das terrasdos bichos sei todas manhas.Varo campinas agrestes,caminho além das montanhas.Enfrento as feras das matas,as conhecidas e estranhas.Do meu último trabalhoaqui exibo as entranhas:este coração saqueadodo corpo que agonizava;este braço decepadoda mulher que dormitava;esta mão que ainda sangrae se contrai como viva; essa cabeça e seus olhosainda cheios de vida.”*

* Fragmento do texto de Reynaldo Jardim, ob. cit.

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25. O bugreiro Ireno Pinheiro em entrevista ao autor, em 1972, dizia temer a vingança dospoucos índios arredios que circulavam pela Serra Geral, em Santa Rosa de Lima. Foto SCS.

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“PACIFICAÇÃO”UMA EXPERIÊNCIA COMPLEXA

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O Serviço de Proteção aos Índios em Santa Catarina

Logo após ter sido criado o SPI, o general Cândido Marianoda Silva Rondon designou o tenente José Vieira da Rosapara atuar como Inspetor em Santa Catarina. A idéia eraestabelecer a paz no sertão, eliminando-se as açõesviolentas dos bugreiros. Aos índios pretendia-se

demonstrar que havia intenção do governo em estabelecer umcontato amistoso. As dificuldades a vencer eram muitas e logoo novo Serviço começou a receber inúmeras críticas. Os índiosprosseguiam em seus ataques às propriedades dos brancos, embusca de alimentos e ferramentas. As ações deflagradas porVieira da Rosa mostraram-se insuficientes para conter osindígenas e evitar as pressões exercidas pelas colônias. Asrepresentações diplomáticas da Itália e da Alemanha exigiamque o governo brasileiro garantisse a segurança dos imigrantes.A direção do SPI resolveu então dar mais atenção à região Sul,instalando “postos de atração” em diferentes pontos do Vale doItajaí e na região do rio Negro ( Porto União), onde os índioshaviam atacado os operários que construíam a estrada de ferroSão Paulo-Rio Grande e ameaçavam imigrantes que estavamsendo instalados ao longo da linha férrea. A equipe de sertanistasfoi ampliada e o próprio vice-diretor do órgão, Manoel Miranda,se deslocou para Ibirama para incentivar os trabalhos e obterdas autoridades locais o apoio e a compreensão necessários aoêxito dos sertanistas.

Nas vizinhanças do rio Negro, à época sob jurisdição doParaná, em 1912, Fioravante Esperança, sertanista do SPI,logrou a aproximação com um subgrupo Xokleng. Poucassemanas depois, entretanto, devido à presença no “posto deatração” de um grupo de fazendeiros que costumava perseguiros índios, ocorreu uma tragédia. Os índios desconfiados,cercaram os visitantes e a equipe do sertanista, e os massacraram.Fioravante Esperança tentou, inutilmente, demover os índiosde seu intento, morrendo sem fazer uso de suas armas. Depois,

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os indígenas fugiram para a mata e só voltaram a aceitar oconvívio com outro grupo do SPI, em 1918.

No Alto Vale do Itajai os trabalhos de atração prosseguiram.Em 1914, uma pequena equipe de funcionários do SPI, lideradospelo jovem Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, conseguiufinalmente estabelecer o contato pacífico com os Xokleng.Hoerhan mantinha “postos de atração” nos rios Plate e Krauel,afluentes do Hercílio. Alguns índios Kaingang e experimentadosmateiros colaboravam nas tarefas de atração. Presentes eramcolocados em diferentes pontos nas trilhas nas quais a presençaindígena era detectada. No entorno dos postos, roças foram feitasvisando oferecer alimentos para os índios. Nas torres de vigia,gramofones tocavam diferentes músicas. Intentava-sedemonstrar aos índios que os ocupantes daqueles postos estavamdispostos a um relacionamento pacífico.

Finalmente, em 22 de setembro, Hoerhan num ato de coragematravessou nu e desarmado o espaço de uma clareira às margensdo Plate e confraternizou com os índios. A “pacificação” estavaem marcha, na versão dos brancos. Para os Xokleng, entretanto,eles é que estavam conseguindo “amansar” Hoerhan e seuscompanheiros. Isto a era razão das contínuas exigências quefaziam aos servidores do SPI.

As ações do SPI não foram estendidas para outras regiões doEstado. No Sul, os bugreiros continuaram dizimando osintegrantes de um terceiro subgrupo Xokleng. Desse subgrupo,há notícias de que uns poucos sobreviventes arredios ao convíviochegaram até os anos setenta, refugiados nas encostas da SerraGeral e na Serra do Tabuleiro.

Em Ibirama, apesar de todos os cuidados de Hoerhan, osXokleng começaram a vivenciar a trágica experiência doconvívio com os brancos.

Convívio, depopulação e mudanças

Estabelecido o contato pacífico com os índios, era necessáriocriar as condições para garantir a sua sobrevivência. Isto nãoaconteceu. Em verdade, o SPI tinha adquirido experiência decomo efetivar a atração. Sabia que a reserva de terras erafundamental, bem como o estabelecimento de um clima deconfiança e de apoio para atender os indígenas em suasnecessidades mais imediatas. Mas, dificuldades de toda ordemdificultaram a compreensão do complexo quadro que se iniciavaquando um grupo indígena estabelecia o convívio com

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representantes da sociedade nacional. Os ideais positivistas deRondon e de seus companheiros logo se revelaram insuficientespara atender a realidade crua que emergia do contato. Nãoexistiam conhecimentos científicos, especialmente nas áreas deAntropologia e Biologia, para orientar sobre o que fazer. Hoje,também é relativamente fácil compreender que o SPI haviasurgido para atender os interesses da sociedade nacional e nãodos indígenas1. À época dos acontecimentos que estamostratando, porém, esta compreensão era quase impossível.

De início, Hoerhan tentou atender os indígenas em suasnecessidades mais imediatas. Preocupado, com a segurança dosíndios tratou de mantê-los próximos ao posto de atração. Paratanto, precisava alimentá-los. A aquisição de gado, entretanto,dependia de verbas e essas eram escassas. Para manter osindígenas no local em que ocorreu a atração, na confluênciados rios Plate e Hercílio, foi necessário iniciar uma longadiscussão com o governo do Estado e com a Cia. ColonizadoraHanseática, que havia adquirido tal área de terras do Estado.

Paralelamente, a gripe, o sarampo, a coqueluche, apneumonia, as doenças venéreas, etc, começaram a fazer suasvítimas entre os índígenas. Além da falta de recursos para aaquisição de medicamentos, não havia corpo médico disponívelpara socorrer os índios. Hoerhan teve que assumir também acondição de “prático” nessa área. A alimentação dos índiospassou a ser garantida por produtos agrícolas. Isto, certamente,teve graves implicações na resistência às doenças endêmicasque atingiam o grupo. As incursões na floresta para a prática dacaça, tão a gosto dos índios, foi desestimulada para não deixá-los à mercê de alguma violência praticada pelos brancos queviviam no entorno da reserva. Os rituais de “furação”do lábioinferior dos jovens para a inserção do tembetá, de tatuagem daspernas das meninas e de cremação dos mortos foram proibidospor Hoerhan para evitar as aglomerações que facilitavam adisseminação das doenças endêmicas. A desmotivação de vidae o desespero pela perda dos parentes também afetaramprofundamente os sobreviventes.

Em pouco tempo, a maioria dos indígenas havia morrido.Hoerhan tinha contatado, em 1914, aproximadamente 400índios. Em 1932, quando o antropólogo Jules Henry começouextenso trabalho de pesquisa entre os Xokleng, só havia 106índios2.

Isto desesperou a tal ponto o pacificador que, certa ocasião,disse: “se pudesse prever que iria vê-los morrer tãomiseravelmente, os teria deixado na mata, onde ao menos

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morriam mais felizes e defendendo-se de armas na mão contraos bugreiros que os assaltavam”.3

A miscigenação entre os Xokleng com os índios Kaingang ecom os brancos também aconteceu. Disto resultaraminumeráveis hierarquizações internas, contribuindo, emmomentos de tensão, para a exacerbação do “faccionalismo”que caracteriza os povos Jê, entre eles os Xokleng.

Tudo isto deve ser compreendido como um processo demudança. Os Xokleng foram levados a passar da condição decaçadores e coletores nômades, para a situação de povosedentário confinado numa reserva. As mudanças da vidacotidiana que vivenciaram não foram pequenas. Da dietaalimentar, às roupas, às ferramentas, aos medicamentosindustrializados, ao aprendizado de uma nova língua, às pressõesreligiosas, etc. Sofreram ainda a perda de sua autonomia, desua liberdade de ir e vir, sujeitando-se à tutela do SPI. Mas, poroutro lado, revelaram-se bastante capazes para manter o grupoenquanto uma unidade étnica diferenciada. Para tanto,reelaboraram contínuamente diferentes aspectos de sua culturatradicional, ao mesmo tempo que desenvolveram estratégiaspara continuar a enfrentar os brancos enquanto índios,enquanto Xokleng.

Eduardo Hoerhan: lutas e ambigüidades

Hoerhan tinha pouco mais de vinte anos quando contatou osXokleng. Nascido no Rio de Janeiro numa família que tinharecursos, havia freqüentado o curso ginasial. Depois, decidiuengajar-se no Serviço de Proteção aos Índios, objetivandoaventurar-se pelo sertão e defender os índios. Teve uma primeiraexperiência acompanhando Rondon e, depois, foi deslocado parao Sul. Suas atividades centraram-se no Alto Vale do Itajai,intentando a atração dos Xokleng.

Estabelecido o contato, Hoerhan passou a enfrentar diversasdificuldades. O SPI era um órgão que não dispunha de umorçamento que atendesse as crescentes despesas decorrentes doestabelecimento do contato pacífico com diversos grupos indígenas.Segundo Hoerhan, esta falta permanente de verbas prejudicoudemais seu trabalho nos anos imediatos à “pacificação”. Os índiosapresentavam reivindicações que não podiam ser atendidas, comopor exemplo, referentes à aquisição de ferramentas, alimentaçãoou medicamentos. Paralelamente, os regionais criticavam Hoerhan,desacreditando-o perante os índios.

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Dotado de uma personalidade forte, não poucas vezesHoerhan enfrentou autoridades locais, a companhia decolonização e os próprios dirigentes do SPI. Também emdiversos momentos se atritou com os indígenas, seus liderados.

Costumava dizer, ao final de sua vida, que “o papel do SPIera o de engordar sapo para a cobra comer”, isto é, submeter oindígena para servir a sociedade dominante.

No ano de 1954, Hoerhan se envolveu na morte de um índio.Quarenta anos depois que atravessou nu e desarmado umaclareira para lograr o contato com os Xokleng, o “pacificador”foi destituído de suas funções de chefe do Posto Indígena Duquede Caxias. Absolvido, levou anos para obter sua justaaposentadoria. Seus últimos anos de vida, foram tristes. Viviamarginalizado pelos índios, pelos funcionários do SPI/FUNAIe pelos regionais. Apesar das posições ambígüas que em muitosmomentos assumiu, não há dúvidas, porém, de sua dedicação àcausa indígena e aos Xokleng. Basta referir que foi ele quemassegurou junto ao governo do Estado, em 1926, as terras quehoje integram a área indígena de Ibirama. Os desenganosque vivenciou decorreram mais da complexidade dosproblemas que pretendia administrar do que de sua faltade vontade em resolvê-los4.

O SPI é substituído pela FUNAI

Em 1967, o governo militar resolveu extinguir o Serviço deProteção aos Índios. Uma série de escândalos recentes,envolvendo entre outros a utilização do patrimônio indígena eo uso do índio como mão-de-obra escrava, orientou a decisãodo poder militar. Pretendia-se, com essa iniciativa, minimizar arepercussão que tais acontecimentos estavam tendo no exterior.

Em substituição ao SPI, o governo criou a Fundação Nacionaldo Índio (FUNAI). A este órgão foram acometidas todas asatribuições de defesa e tutela das populações indígenas no país,visando a sua “ integração à comunidade nacional”.

Algumas mudanças paliativas logo foram feitas. Funcionáriosforam demitidos. Outros foram contratados, sendo muitos dessesmilitares da reserva. Também as denominações dos postosindígenas mudaram. Assim, o Posto Indígena Duque de Caxiaspassou a se chamar Posto Indígena Ibirama e, mais tarde, ÁreaIndígena Ibirama5.

Funcionários se sucederam na chefia do Posto. Estradas foramabertas no interior da reserva, permitindo a circulação de

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veículos e pessoas. A população indígena intensificou assimseus contatos com a sociedade regional.

A exploração dos recursos florestais disponíveis na áreaindígena foi uma conseqüência imediata. Primeiro, os indígenasforam estimulados para comercializar o palmito, atendendo asofertas das empresas dedicadas à fabricação de conservas.Depois, gradativamente, as madeiras nobres começaram a serobjeto de diferentes negociações, na maioria das vezes nadahonestas. A própria FUNAI patrocinou muitos contratos, poisentendia que a área indígena integrava o patrimônio da União,cabendo a ela, FUNAI, administrá-la visando à obtenção derecursos para que o órgão pudesse dar conta de “sua missão”6.

1. Veja-se, por exemplo, SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Um Grande Cerco de Paz. Poder tutelar;indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1995;

2. SANTOS, ob. cit., p. 181. Ver também HENRY, Jules. Jungle People. A Kaingáng Tribe of The Highlandsof Brazil. N. York, J.J. Augustin Publisher, 1941;

3. RIBEIRO, Darcy, ob. cit.,p.316;4. SANTOS, ob. cit., pp. 173-185, oferece dados sobre a trajetória de Eduardo Hoerhan;5. Ver sobre o funcionamento do posto indígena Ibirama SANTOS, Sílvio Coelho dos. A Integração do

Índio na Sociedade Regional. A função dos postos indígenas em Santa Catarina. Florianópolis, ImprensaUniversitária/UFSC, 1970;

6. Sobre a exploração florestal na AI., além de SANTOS, 1973, ob. cit, ver MÜLLER, Sálvio. Opressão eDepredação. Blumenau, Editora da FURB, 1987.

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1. Retrato do cacique “Câmrém” feito pelo pintor alemão F. Becker.Foto de V. Dirksen, 1997.

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2. Cacique “Câmrém”, liderdos Xokleng à época

do contato com E. Hoerhan.Foto provável de E. Hoerhan.

Acervo AHJFS.

3. Vista do posto de atraçãodo SPI, no Alto Krauel,

em 1913.Foto provável de E. Hoerhan.

Acervo Edmar Hoerhan.

4. Eduardo Hoerhan, MâncioRibeiro e um terceiro

funcionário do SPI, nãoidentificado, em Ibirama,

à época dostrabalhos de atração.

Acervo AHJFS.

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5/6 e 7.Os Xokleng flecham ecarneiam um boi.Acervo SCS.

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10. Festa de iniciação para perfuração dos lábios dosmeninos e introdução do “tembetá”.

Acervo AHJFS.

11. Índios fazem disputa simulada. Acervo SCS.

8/9. Temposiniciais do contato.Acervos AHJFS e SCS.

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12/13/14/15.Guerreiros

Xokleng fazemdemonstraçãode suas armastradicionais.

Fotos deJ. Rulhand.

Acervos AHJFS;SCS; MU-UFSC.

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16/17/18. Gerreiros Xokleng.Fotos de J. Rulhand.Acervo AHJFS.

19. Hoerhan, ladeado por guerreiros e tendo àfrente uma criança, parece reafirmar o ideal do SPI

em estabelecer a paz no sertão.Foto de J. Rulhand.

Acervo AHJFS.

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20/21. Construção de paraventos tradicionais.Acervo SCS.

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22. Demonstrando o uso de arcos e flechas. Acervo SCS.

23.Casas no interior da reserva indígena. Acervo AHJFS.

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24. Vista parcial da sede do “posto Duque de Caxias”,junto ao rio Plate. Anos vinte.Acervo AHJFS.

25. Índios visitam a paróquia polonesa, em Itaiópolis, 1923.Acervo SCS.

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26/27.Hoerhan, no detalhe, e com um pequeno grupo de índios e visitantes.Acervos de Edmar Hoerhan e AHJFS.

28. Uma parte dos sobreviventes, em maioria crianças, retratada com visitantes. Anos vinte.Acervo AHJFS.

30/31. Hoerhan com algunsguerreiros e visitas. Note-se os

trajes do “pacificador”.Acervos AKJFS e DSA.

32. Índios ladeados porvisitantes alemães.

Acervo Edmar Hoerhan.

29. Hoerhan, acompanhado poríndios Kaingang que oauxiliavam nos trabalhos de“domesticação” dos Xokleng,sobe o rio parafazer uma caçada.Acervo AHJFS.

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33. O padre JoãoKomíneck visita o

posto indígena, em1923, com o intuito

de iniciar umprocesso deconversão.

Acervo SCS.

34. Vista dasinstalações do

posto indígena,1930.

Acervo AHJFS.

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35/36 Em 1926, depois de insistentes convites, o governador AdolfoKonder e comitiva visitam o posto indígena Duque de Caxias.

Acervo AHJFS.

PÁGINA SEGUINTE:37. Em poucos anos, dois terços dos índios contatados estavam mortos.

Hoerhan rapidamente desiludia-se com sua “missão”. Acervo SCS.

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38/39. Vistas parciais dasinstalações do posto indígena,

anos vinte.Acervo AHJFS.

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40/41. Trabalho artesanalcontrastando com a chegada da

máquina moderna noposto indígena.

Finais dos anos vinte.Acervo Edmar Hoerhan.

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42/43.O médico Simões da

Silva realizou umapesquisa na área

indígena, em 1928.As fotos constam de

seu pequeno livro,referido na

apresentação.Acervo AHJFS.

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44/45/46.Preocupado com“tipos físicos”, omédico Simões daSilva promoveu adocumentaçãofotográfica dediversas mulheresindígenas.Acervos AHJFS,DSA e SCS.

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47/48.Gradativamenteos índios vão sesubmetendo àsnormas devestuário própriasaos brancos.Acervo AHJFS.

49/50/51. Oconvívio com obranco impõe asubmissão.Acervos AHJFS eSCS.

52/53/54/55. A política indigenista brasileira sempre objetivou a integração doíndio na sociedade nacional, ou seja, o seu desaparecimento étnico e cultural.Hoerhan tentou isto de várias maneiras, inclusive através da miscigenação. As

fotos detalham momentos do casamento do índio Mokanã com uma jovemdescendente de italianos, chamada Filomena, em setembro de 1930.

Acervo AHJFS.

56/57/58. Nos finais dos anostrinta, o professor polonêsMieczyslaw Brzezinskiorganizou uma escola nointerior da reserva indígena.Observe-se os símbolos doEstado-nação.Hoerhan não só apoiou ainiciativa, como parecia vigiá-la.Acervos SCS e AHJFS.

59/60/61. Uma nova escolafoi construida nos anosquarenta. Os índiosparticiparam das tarefas deconstrução e da suainauguração.O Professor Brzezinski logroualfabetizar diversosindígenas.Acervo AHJFS.

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62/63/64/65/66. Um casal deíndios velhos e um jovem deaproximadamente 18 anosforam encontrados porcaçadores, no interior deOrleães, em 1949. Em poucotempo, os velhos morreramvítimas de gripe. O jovem foitransferido pelo SPI para otoldo de S. João de Cima (ouS. João dos Pobres), emCalmon, onde morreu. Nãoeram os últimos. Uns poucoscontinuaram a viver nafloresta, por alguns anos mais.Acervos Casa da Cultura deUrussanga;MU-UFSC; SCS;AHJFS.

67/68. Convívio e miséria I.Velho índio Xokleng com o autor

no toldo S. João de Cima.Fotos SCS e Luiz C. Halfpap, 1964.

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69. Convívio e miséria II.Mulher Xokleng do toldo de S. João de Cima.

Foto SCS,1975.

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70. Acampamento na floresta I. AI. Ibirama.Foto SCS, 1963.

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71. A exploração de palmito na AI Ibirama começounos finais dos anos 50. Foi o começo da destruiçãodos recursos florestais.Foto SCS, 1963.

72. Acampamento na floresta II.Foto SCS, 1963.

73. Pressionados para mudarem sua tradiçãonômade, os Xokleng aos poucos foram construindocasas à maneira dos “civilizados” pobres.Foto SCS, 1964.

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74. Aipon Pathé, sobrevivente e testemunha, um de nossos informantes.Foto SCS, 1965.

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75. Nos anos 60, ainda era comum se encontrar índios na AI. Ibirama com o lábio inferior furado.Foto SCS, 1963.

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76. O velho índio Co-ovi vivenciou o contato com os brancose a tragédia do convívio na reserva.

Foto SCS, 1963.

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77/78/79/80.Cenas de uma pesquisa que já vai distante.

AI. Ibirama.Fotos, SCS,1963-65.

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81. Velhice e memória aguardam reconhecimento.Acervo AHJFS.

82. Mulher e criança circulando na área indígena, anos quarenta.Acervo AHJFS.

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83/84.Mulheres Xokleng

em atividades domésticas.Fotos SCS, 1965.

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85/86.Resgatando a maneira

de tecer a fibra da urtiga.Fotos de Vladmir Kozák, 1966.

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87/88/89/90/91.As mulheres Xokleng conheciam as técnicaspara fazer pequenas peças de cerâmica.Fotos SCS, 1965-66.

92/93/94.Nos anos 70, o regime militar levou o Mobral

(movimento brasileiro de alfabetização)até a área indígena. Solenidade e

emblemas nacionais estão em cena.Acervo SCS.

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95. Primeira igreja da Assembléia de Deus construída na AI. Anos 50.Foto SCS, 1963.

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96. Em 1968, o governador Ivo Silveira inaugurou em Ibirama o monumento “do pioneiro e do índio”.Foto original arquivo do Jornal O Estado.Acervo SCS.

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97/98.Em momentos festivos naregião, os índios eram“convocados” para desfilare, às vezes, a vergonha nãopodia ser escondida.Acervo SCS.

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99/100/101.Hoerhan (1892-1976) não viu

sua casa ser destruída emconseqüência das obras da

barragem.Mas vivenciou muitas outras

desilusões.Acervo AHJFS.

PARA CONSTRUIR SEU FUTURO

APESAR DE TUDO,

UM POVO LUTA

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Poema publicado no livro Código das Águas. São Paulo, Editora Global, 3a edição, 1994, p. 40.

Poema para o índio XoklengLindolfo Bell

Se um índio xoklengsubjazno teu crime brancolimpo depois de lavar as mãos

Se a terrade um índio xoklengalimenta teu gadoque alimenta teu gritode obediência ou morte

Se um índio xoklengdorme sob a terraque arrancaste debaixo de seus pés,sob a mira de tua espingardadentro de teus belos olhos azuis

Se um índio xoklengemudeceu entre castanhas, bagas e conchasde seus colares de festagraças a tua força, armadilha, raça:cala a tua boca de vaidadese lembra-te de tua raiva, ambição e crueldade

Veste a carapuçae ensina teu filhomais que a verdade camufladanos livros de história.

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A implantação da barragem Norte e os índiosCom a intenção de proteger das inundações as cidades do médiovale do Itajai, entre elas Blumenau, o governo militar decidiuconstruir uma barragem de contenção no rio Hercílio, afluentedo Itajai-Açu, no interior de Ibirama, hoje, município de JoséBoiteux. Esta barragem fazia parte de um projeto mais amplo,que incluía outras obras similares de menores dimensões namesma bacia. No contexto dos megaprojetos à épocaimplantados no país e no cenário de uma perversa proposta dedesenvolvimento econômico, que dava suporte político àditadura militar, esta barragem pode ser caracterizada como depequeno porte.

A barragem Norte (também denominada Ibirama) começoua ser construída em 1972, e foi oficialmente terminada emoutubro de 1992. As obras complementares, entretanto, nãoforam integralmente concluídas. A barragem tem 400m deextensão; 270 de base; 10 m de topo; 60 m de altura ( a partir dabase rochosa); e uma capacidade de reter cerca de 387 milhõesde m3 de água. Funcionando plenamente e em condiçõesfavoráveis, ela pode representar a diminuição de 2 m no níveldas enchentes que atingem, na cidade de Blumenau, entre 10 e15 m acima do leito normal do rio.

Localizada a cerca de 6km à jusante da área indígena Ibirama,de início, por absoluta falta de informações, os indígenas nãose opuseram à sua construção. Alguns anos depois, em 1978,devido à ensecadeira que havia sido construída para permitir ostrabalhos no leito do rio, ocorreu uma primeira cheia na áreaindígena. Os índios sofreram perdas de roças e animais, etiveram diversas de suas casas inundadas. Em conseqüência,começaram a fazer reivindicações junto à FUNAI e ao DNOS(Departamento Nacional de Obras e Saneamento), este últimoresponsável pela obra. Iniciou-se, neste momento, uma luta queaté o presente não chegou ao fim, devido à falta de seriedadedos setores governamentais envolvidos em efetivamente

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considerar como relevantes e passíveis de indenização osprejuízos causados por projetos dessa natureza.

O lago de contenção ocupou cerca de 900 ha das terras daárea indígena. Todas as casas, roças e pomares que selocalizavam às margens do rio Hercílio e de seu afluente, oPlate, tiveram de ser abandonados. Trechos de estradas, pontese instalações do posto indígena tiveram (ou têm) de serreconstruídos. Os índios passaram a reivindicar gradativamente,e de maneira mais precisa, a indenização de seus prejuízos,exigindo a construção de casas, escolas, estradas, igreja, sededo posto, instalação de redes elétrica e de água, etc, bem comoum programa de auto-sustentação da comunidade.

De início, o DNOS e a FUNAI deram pouca atenção aosreclamos indígenas. Depois, quando as conseqüências negativasdo projeto da barragem começaram a ficar claras para todos osenvolvidos, não houve mais como argumentar em contrário.Nesse ínterim, os indígenas haviam obtido o apoio de diferentesorganizações não-governamentais, de entidades religiosas, deantropólogos, do Ministério Público Federal e de ambientalistas,conseguindo demonstrar que tinham sofrido e continuavam asofrer graves prejuízos com a construção da barragem e quetinham direito a justas indenizações. As definições sobre o quefazer por parte dos setores responsáveis foram morosas e, até omomento, não foram cumpridas integralmente.

Em 1991, os indígenas tomaram o canteiro de obras dabarragem. Depois de 18 meses, conseguiram um acordo com ogoverno do Estado que assumiu parte das indenizações. A estaaltura, o DNOS havia sido extinto. A Secretaria deDesenvolvimento Regional, órgão que assumiu as obras antesatribuídas ao DNOS, também teve vida efêmera. O governoKleinübing não cumpriu integralmente o que fora acordado comas lideranças indígenas. E no presente (maio/97) os indígenascontinuam lutando para conseguir a implantação das obras quereivindicam, bem como do projeto de auto-sustentação.

Os problemas decorrentes da implantação da barragemacentuaram a depauperação física e cultural dos índios. Osrecursos florestais da reserva foram explorados até a suaexaustão 1. O “faccionalismo” interno se acentuou. Disputasinternas envolvendo os índios como um todo e um segmentonão indígena, denominado “cafuzo”, que, por sua extremapobreza e trágica trajetória histórica, vivia no interior da reserva,se acentuaram. Cisões familiais devido à necessidade derelocalizar casas e aldeias, tornaram-se comuns. Neste contexto,muitos índios migraram para áreas urbanas.

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O projeto da barragem não observou a legislação ambiental.Nunca foi elaborado um “relatório de impacto ambiental”(RIMA), nem tampouco existe “licença de operação”. Por tudoisso, pode-se dizer que esta obra acabou se tornando um exemplode como não se deve construir uma barragem.

O direito dos índios

A Constituição Federal promulgada em 1988 assegurouimportantes dispositivos em favor dos povos indígenas. Oreconhecimento dos “direitos originários sobre as terras quetradicionalmente ocupam” e a explicitação do respeito àdiferença cultural e lingüística, bem como a obrigatóriaconsulta aos interesses desses povos em caso de aproveitamentode recursos hídricos ou de exploração de minerais em suas terras,realmente significaram conquistas.

O capítulo VIII da Constituição Federal (CF) intitulado DosÍndios , em seus artigos 231 e 232 e respectivos parágrafos,delineou as bases políticas em que se devem efetivar as relaçõesentre os diferentes povos indígenas e o Estado brasileiro. O art.231, da CF, explicitou, pela primeira vez, que “são reconhecidosaos índios sua organização social, costumes, línguas, crençase tradições, e os direitos originários sobre as terras quetradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Ficou dessa forma consignado na CF a manifesta intençãodos constituintes de projetar para o campo jurídico normasreferentes ao reconhecimento da existência dos povos indígenase definição das pré-condições para a sua reprodução econtinuidade. Ao reconhecer os direitos originários dos povosindígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas, a CFincorporou a tese da existência de relações jurídicas entre osíndios e essas terras anteriores à formação do Estado brasileiro.

De outra parte, foi garantido o usufruto exclusivo das riquezasdo solo, dos rios e dos lagos existentes nas terrastradicionalmente ocupadas pelos índios (parágrafo 2, art. 231).Ficou também explícito que no caso de aproveitamento dosrecursos hídricos e de exploração mineral em terras indígenassão necessárias a prévia audiência das comunidades indígenasafetadas e a autorização do Congresso Nacional (parágrafo 3,art. 231).

A CF assegurou ainda aos povos indígenas o direito àeducação, reconhecendo a utilização das línguas nativas e dos

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seus próprios processos de aprendizagem (art. 210, parágrafo2), e a proteção às suas manifestações culturais (art. 215,parágrafo 1).

Em princípio, pois, com a CF de 1988 os povos indígenasque vivem no território controlado pelo Estado brasileiropassaram a ter reconhecidos os seus direitos fundamentais,enquanto sociedades diferenciadas. Isto foi importante paragarantir a sua reprodução biológica e a continuidade de suaslínguas e tradições.

A Constituição do Estado de Santa Catarina, promulgada em1989, por sua vez, assegura que “O Estado respeitará e farárespeitar, em seu território, os direitos, os bens materiais, crençase tradições, e todas as garantias conferidas aos índios naConstituição Federal” (Art. 192). E no parágrafo único desseartigo, fica ainda expresso que “O Estado assegurará àscomunidades indígenas nativas, de seu território, proteção,assistência social, técnica e de saúde, sem interferir em seushábitos, crenças e costumes”.

Os povos indígenas estão ainda protegidos por uma série deconvenções internacionais. A Declaração dos Direitos doHomem, por exemplo, aprovada pela Assembléia Geral dasNações Unidas, em 1948, estabelece em seu art. 1, que “todosos homens nascem livres e iguais em dignidades e direitos.São dotados de razão e consciência e devem agir em relaçãouns aos outros com espírito de fraternidade”2.

Está, portanto, claro que os Xokleng têm direitos explicitosque lhes garantem a igualdade com os demais cidadãos do Brasile de Santa Catarina. Além disto, eles têm alguns direitos a maisque lhes asseguram a proteção do Estado por sua condição deintegrantes de um povo minoritário. Esta proteção deve sersimultaneamente exercida pelos governos federal, estadual emunicipal.

Notícia sobre a população indígena do Brasil.

Cerca de 280 mil indígenas vivem aldeados no Brasil hoje,representando quase 0,2% da população do país, que é estimadaem 150 milhões de habitantes. Admite-se que cerca de 50 milindígenas vivem desaldeados na periferia de áreas urbanas, ouna zona rural. Esta população nativa se apresenta à sociedadenacional com enorme sociodiversidade. São cerca de 200 etnias,falando mais de 160 idiomas. Estima-se que 60 pequenos gruposainda se mantêm arredios ao convívio com o branco no interior

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da Amazônia. Na maioria desses povos, a população nãoultrapassa a 1000 pessoas. Dois povos teriam populações porvolta de 20 mil indivíduos (Kaingang e Ticuna); e apenas umpovo tem mais de 30 mil pessoas (os Guarani). Falamos,portanto, de microssociedades.

No seu conjunto, esses povos representam uma ínfima parcelada população nativa existente no espaço ocupado pelo territóriobrasileiro, à época da invasão européia (século XVI), e que éestimada entre 4 e 6 milhões. A dominação colonial vitimoupovos inteiros pela introdução do trabalho escravo; doençasepidêmicas; guerras de extermínio; conversão religiosa;desorganização social; miscigenação; etc.

Os contingentes que lograram escapar ao invasor nosprimeiros séculos, foram gradativamente submetidos a umapolítica integracionista que se acentuou com a formação doEstado-nação.

É neste contexto que a partir de meados dos anos setenta, ospovos indígenas foram adquirindo uma crescente visibilidade.Este fenômeno não foi isolado. Coincide com o processo deredemocratização do país e a emergência de diversasorganizações não-governamentais. Gradativamente, liderançasindígenas emergem no cenário nacional reivindicando direitos,especialmente relativos à demarcação de suas terras de ocupaçãotradicional; a assistência governamental em programas de saúdee de educação; o respeito à diferença cultural e lingüística, etc.

Os Xokleng, portanto, fazem parte enquanto povo de umuniverso maior, ou seja, o universo das minorias étnicas nocenário do Estado-nação. Suas lutas não são isoladas. Elasintegram um processo de conquistas que está permitindo acompreensão dos direitos do cidadão, seja ele índio ou não, etambém dos espaços políticos próprios aos povos minoritários.Nesse sentido, é preciso se pensar o Brasil como um paísdemocrático, pluriétnico e multissocietário.

O povo Xokleng no presente

A área indígena de Ibirama tem 14.528 ha, onde vivemaproximadamente 1200 pessoas. A maioria se identifica comoXokleng. Neste número está incluído um pequeno grupo deíndios Guarani. Mas, cerca de 30% dessa população está a maiorparte do tempo fora da reserva, em busca de trabalho. Unspoucos estão tentando viver permanentemente na periferia decidades como Blumenau, Camboriú, Joinville ou Florianópolis.

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Existem quatro aldeias na área indígena, sete escolas ediversas igrejas Evangélicas. O acesso para algumas dessasaldeias é difícil, devido à precariedade das estradas. A infra-estrutura mantida pela FUNAI para atender os indígenas éinsatisfatória, tendo em vista a permanente falta de recursosfinanceiros e humanos. A assistência à saúde está sendooferecida pela Fundação Nacional de Saúde, mas não atendeaos reclamos dos índios. Há casos detectados de tuberculose, ea diarréia, a gripe, a pneumonia, etc, são comuns.

Dois grupos estão vivendo há meses em acampamentosimprovisados, como uma forma de protesto para obter asindenizações devidas em conseqüência das obras da barragem,e para a regularização fundiária de uma parte da reserva.

As condições de vida na área indígena são difíceis. Háproblemas de abastecimento de água, de falta de energia elétricapara a maioria da população aldeada e dificuldades de acessoentre as diversas aldeias. Com os problemas conseqüentes daimplantação da barragem, a maioria das famílias indígenas ficousem condições de manter roças com tamanho suficiente paralhes assegurar a sobrevivência. Paralelamente, a legislaçãofederal relativa à proteção ambiental impediu drasticamente osusos possíveis dos recursos representados pela flora e fauna.Não sendo cumprido o acordo com o governo estadual, quepermitiria a implantação do “projeto Ibirama”, destinado apromover a auto-sustentação dos indígenas, a partir de 1992, asituação se agravou. Muitas famílias sofrem as conseqüênciasda fome, do desespero e da falta de futuro.

Felizmente, um número significativo de idosos conta com osrendimentos de aposentadorias, como trabalhadores rurais. Essesrendimentos, embora pequenos, são muito valorizados, poisasseguram a alimentação de filhos e netos dos beneficiados.

O artesanato é uma outra fonte de renda. Hoje, arcos e flechas,colares, cerâmicas, chocalhos, etc, são produzidos para a vendaaos eventuais visitantes da área, ou para a comercialização nascidades mais próximas. As incursões aos centros urbanos sãotambém motivadas para a obtenção de auxíl ios,representados por agasalhos, sementes, medicamentos, etc,ou para resolver questões burocráticas e políticas. Noâmbito das Prefeituras locais, os indígenas fazemdiferentes pedidos, em particular para a solução imediatade problemas de saúde, transporte e material escolar.

Na falta de condições para tirar da natureza o que necessitampara sobreviver, parece, que os índios agora se especializamem fazer suas incursões de “caça e coleta” nos espaços urbanos,

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particularmente nos domínios da burocracia. Uma tristerealidade. No passado, foram atraídos ao convívio com osbrancos com presentes e promessas. Agora, têm que pedir,comover, implorar!

Nas aldeias, contudo, a vida acontece e se renova. Há festas.Há partidas de futebol. Há namoros, casamentos, brigasfamilares e políticas. Nascem crianças. Ocorrem batizados.Freqüentam-se cultos nas Igrejas. As crianças vão às escolas eos pais acompanham com interesse o desempenho escolar dosfilhos. A língua Xokleng é falada pela maioria, numamanifestação explícita de resistência étnica. Há poucos anos,os pais passaram a valorizar o aprendizado da escrita Xoklenge, hoje, o grupo vivencia um momento histórico particular dereestruturação e perpetuação da cultura, a partir dessa novaforma de conhecimento. Muitos adolescentes prosseguem osestudos, tentando concluir o primeiro e, mesmo, o segundograus. A busca de trabalho, de ganhos, é outra constante. Ganhare gastar fazem parte do cotidiano indígena, pois sua tradição écontrária às diversas formas de acumulação. O coletivo aindapredomina sobre o individual. Se alguém tem demais, divide;faz uma festa ou gasta com presentes. Assim, os Xoklengcontinuam sendo mantenedores dos espaços da diferençacultural, que lhes permite continuar a ser índios, a ser um povo.

1. O livro de NAMEM, Alexandro M. Botocudo: uma história do contato, (Florianópolis, Editora daUFSC - Editora da FURB, 1994), oferece mais informações sobre as conseqüências da implantação da barragem.

2. No livro A Temática Indígena na Escola. Novos subsídios para professores de primeiro e segundograus, organizado por SILVA, Aracy e GRUPIONI, Luís Donisete, e publicado pelo MEC/ UNESCO/MARI,1995, publicamos o artigo Os Direitos dos Indígenas no Brasil , que oferece mais detalhes sobre este tema. Vertambém o livro de minha autoria Povos Indígenas e a Constituinte, (Porto Alegre, Movimento - Editora daUFSC, 1989).

1. O cacique Aniel Priprá caminhasobre parte da massa de concreto

da barragem Norte.Arquivo do Diário Catarinense (DC).

Foto de Daniel Conzi, 1997.

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2. Vista aérea da barragem, em 1985. Foto de Lauro Bacca. Acervo Sálvio Müller.3. O entorno da barragem e a degradação ambiental, em 1991. Foto SCS.

4. Vista parcial da barragem, em 1991. Foto SCS.5. Olhar de tristeza junto a “grande obra”de engenharia. Foto SCS, 1991.

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6/7/8.A construção dabarragem impôs arelocalização dascasas dos índios.Depois de anos,poucas casas foramconstruidas e algumasficaram inacabadas.Todas com materiaisde categoria duvidosa.Fotos de Flávio Wiik,SCS e EraldoSchnaider (arquivo PMBlumenau), 1997.

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9/10/11/12/13/14 .Acampados junto à barragem, os índios protestam e exigema retomada das negociações para o cumprimento do processo indenizatório.Fotos SCS, 1997.

15. Recebidos pelo Prefeito Décio Lima, de Blumenau,líderes indígenas expõem o drama da população afetada pela barragem.

Foto Eraldo Schnaider (arquivo PM Blumenau), março/1997.

16. O Prefeito de Blumenau visita os indígenas no acampamento de protestoe escuta suas reivindicações.

Foto SCS, abril/97.

17/18. Reunir, discutir, pressionar, uma constante na vida dos Xokleng nos últimos tempos.Fotos SCS, 1997, e Karyn Henriques, 1995. Acervo SCS.

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19. O velho apresenta em dia defesta sua versão do índioguerreiro.Foto Gisele Camargo,1991.Acervo SCS.

20/21/22.Festas do “Dia do Índio”.Fotos Gisele Camargo e SCS,1991; e Flávio Wiik, 1997.Acervo SCS.

23/24.Expectadores eparticipantes da festa.Fotos SCS, 1991.

25/26.Nos anos 80, não eram

poucos os caminhospara a retirada de

madeira.Fotos aéreas de Lauro

Bacca, 1985.Acervo Sálvio A. Müller.

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27/28. A sociedade regional estimulava e o índio vendia.Assim, o patrimônio florestal da AI. foi se esgotando.

Fotos de Sálvio Müller, 1982 e SCS, 1997.

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29. A família de Vechá Priprá em visita de compras,na sede do município de José Boiteux.

Foto SCS, 1994.

30. A persistência nas atividades agrícolas faz parte do cotidianoXokleng. Foto de Flávio Wiik, 1997.

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31. Avó visita netos numa favela, em Blumenau.Foto SCS, 1997.

32. Família indígena Xokleng favelada, em Blumenau.Foto SCS, 1997.

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33. Mulher Xokleng casada combranco e seus filhos, vivendo na

periferia da GrandeFlorianópolis. Foto SCS, 1996.

34. Casa de índio numa favela,em Blumenau.

Foto SCS, 1997.

35. “A gente ganha de dia paracomer a noite, mas tá bom”.

Depoimento de um índio quetrabalha na construção civil,

em Blumenau.Arquivo Diário Catarinense.Foto de Daniel Conzi, 1997.

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36/37/38/39. Crianças e seus sonhos, na maioria das vezes induzidas a reproduziro mundo dos brancos. Fotos de Eraldo Schnaider (arquivo PM Blumenau), 1997;

Myrnaia Grandi, 1995; e Flávio Wiik, 1997.

40. Esperando melhores dias I. Foto SCS, 1995.

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41. Esperando melhores dias II.Foto SCS, 1997.

42/43/44.Esperando melhores dias III.Fotos, SCS, 1997.

PÁGINAS SEGUINTES:

Fotos de Daniel Conzi, 1997.Arquivo Diário Catarinense.

45. A velha índia Aiú, testemunhasilenciosa de uma trágica trajetória,

interroga-se sobre o futuro.

46. Panelas vazias,no acampamento de protesto.

47. O ex-cacique questiona-se sobreos direitos de seu povo.

48. O futebol, quem sabe, uma saída.

49. Liberdade, liberdade...Criança indígena vivendo

em favela, Blumenau.

50. Aulas de artes plásticas, ensinobilíngüe e valorização da identidade

étnica são experiências recentesque muito prometem.

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Kónhgág óg Kapó jó

1- Kónhgág óg kapó vén te vu) légle te).2- Kle)do óg vu ) kle ) tól tá kapó mu).3- Jãgló Vãje)ky óg vu), goj (goj-vanh) tá kapó mu).4- E )kapó jé txul te ku) óg, klãn te mõ, nõde) ké ke mu).5- Jãgló Plándjug vu), óg jo ãme)n te han kataply mu).6- Ku) ta, e )tõ han kan te ku), u)te óg to téle mu).7- Ku) óg ti blé, me) kajaply mu).8- Ku) óg, e)tõ gó kle ) kapó vén jó há ki, ãglan jó han ku), ki ãglan mu).9- Jãgló Plándjug te, óg djo ãme )n te han te)g ban mu).10- ku) óg ló ti du kamu) jã, hun ge ku), ãglan ban mu).11- Mu) jãgló, kónhgág kale jógy mã ku), Vãje)ky te kómãg mu ).12- Ku) ta, mã ku ) óg jó me)g han mu).13- Ku), Zágpope) tõ Paté vu), ti mõ me)g te lán mu).14- Ti tej me), ti lál tõ pam-pam ke ku ), u)tõ lu)m-lu)m ke ku) kalem mu).15- Jãgló Ze)ze) vu), ti tej me) tõ lu )m-lu)m ke ku), me) kunhke )n mu).16- Ku) Txu tõ Txuvanh vu), ti luj (dunh) me) kunhke )n, me) tõ pam-pam ke mu).17- Tóg óg ha vu) Vãje)ky te mõ me)g te lán kan mu ).18- Ku) ta: — E)nh mãg ha kyl nã te)n - ge mu).19- Ku) ta kyl mu), vaha ta u)n te óg du me) óg ko te) mu ).

20- Ku) Zágpope), Paté vãnhhól há vu) o • ku) te).

21- Jãgló Ze)ze) vãnhhól ha vu ) • o ku) te ).

22- Jãgló Txu Txuvanh vãnhhól ha vu ) o o ku) te ).23- Vaha óg, vãnhklã te óg, e)jug óg vãnhhól ha liké ké ke vã.

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A Geração do Homem*

1- Há duas formas da geração do homem.2- Os Kle)do saíram da montanha.3- E os Vãje)ky saíram da água (provavelmente da água do mar).4- Eles queriam sair e ficaram esperando do lado de baixo da água.5- Enquanto isso Plándjug veio subindo, fazendo caminho.6- E quando terminou de fazer caminho, voltou para buscar os outros.7- Então vieram subindo com ele.8- Onde pisaram em terra, prepararam lugar e festejaram dançando.9- Enquanto isso, Plándjug continuou fazendo caminho.10- Então eles vieram atrás dele, e novamente pararam para festejar.11- Nisso, ouviram de outros homens, que vinham atrás, e o Vãje)ky ficou comendo.12- Então Vãje)ky fez para sua criação uma onça.13- E o Zágpope) Paté pintou a onça para ele.14- No pescoço, deixou marcas pintadas de forma arredondada fechada, outras compridas.15- O Ze)ze) pintou com marcas compridas e umas circulares, na paleta da onça.16- E Txu Txuvanh pintou nas costas marcas circulares e arredondadas fechadas.17- E eles acabaram de pintar a onça do Vãje)ky, que ele criou.18- E ele disse: minha criação agora grita do jeito que quiser.19- Então ele gritou e foi atrás dos outros, para comê-los.20- Agora a pintura (marca) do Zãgpope) Paté é arredondada fechada e umas compridas.21- E a pintura do Ze)ze ) agora é comprida e umas circulares.22- E a pintura do Txu Txuvanh, agora é circular e outras arredondadas fechadas.23- Agora a geração deles usa a pintura (marcas) de seus pais.

* Este mito foi obtido pelo Professor Bilíngue Nãmbla Gaklã do velho informante Xokleng Kãnhãhá Nãmbla.O Professor Nãmbla procedeu a transcrição em língua Xokleng e a sua tradução.

Sílvio Coelho dos Santos nasceu na Ilha de SantaCatarina, em 1938. Licenciado em História pelaUFSC, realizou curso de Especialização emAntropologia no Museu Nacional da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro. Obteve o grau de Doutorem Antropologia Social na Universidade de SãoPaulo, em 1972. É Professor Titular de Antropologiada UFSC (aposentado), Pesquisador Sênior doCNPq e membro do Conselho da Fundação deCiência e Tecnologia de Santa Catarina. FoiPresidente da Associação Brasileira de Antropologia- ABA - (1992-94), e integrou o Conselho daSociedade Brasileira para o Progresso da Ciência -SBPC (1993-97). Participa do Conselho Diretor daABA, coordena o projeto “Hidrelétricas,Privatizações e os Índios no Sul do Brasil”,financiado pelo CNPq, e está implantando na UFSCo Núcleo de Estudos de Povos Indígenas (NEPI).É autor de 16 livros e de mais de 60 artigos, muitosdos quais têm os Xokleng como referência.

“O assalto se dava ao amanhecer. Primeiro,disparava-se uns tiros. Depois passava-se o resto nofio do facão. O corpo é que nem bananeira, cortamacio. Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço.Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumasmulheres e crianças”.

IRENO PINHEIRO, BUGREIRO, 1972

“E fallam das barbaridades, das depredaçõespraticadas pelos silvícolas, censuram-n’os eperseguem-n’os a tiros de fuzil, mas não se lembramque assim procedendo tornam-se mais ferozes que ospróprios índios”.

TENENTE VIEIRA DA ROSA,PRIMEIRO REPRESENTANTE DO SPI EM SC, 1905

“Tenho um arrependimento negro de ter tirado estagente da mata.... para quê pacificá-los se nãopoderíamos proteger?”

EDUARDO HOERHAN, 1953,EM DEPOIMENTO A DARCY RIBEIRO

“Esse negócio de índio já desacorçoa a gente. Àsvezes, penso que o melhó é sair de lá. Arrumádocumento. Deixá de se índio. Ganhá um salário pormeis. Como tá não dá.”

VECHÁ PRIPRÁ, 1971

“... que o governo olhe por nós. Que o governo lembreque nós morava aqui. Que a terra era nossa. Que nósera os primeiro brasileiro. Que nós somo índio. Queprecisamos trabalhá e viver. Que precisamos criáfilhos”.

KLENDÔ, 1966

“Nós queremos o que é nosso. A terra era nossa. Veioa barragem. Ninguém nos consultou. As enchentescomeçaram. Lutamos pela indenização. Fizemosacordo. Mas até agora nada está resolvido e osíndios sofrem”.

ANIEL PRIPRÁ, CACIQUE, 1997

O R E L H A S