Os Imperativos Da Contemporaneidade e o Não-lugar Da Adolescência
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1Autor. Bolsista de Iniciação Científica, financiado pela FAPEMIG. Graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais ([email protected]);
2Orientador. Psicólogo, psicanalista e professor do Departamento de Ciências Aplicadas à Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais ([email protected]).
Os imperativos da contemporaneidade e o não-lugar da adolescência
Kaio Adriano Batista Fidelis1
Marcelo Ricardo Pereira2
RESUMO
Em entrevista concedida a Revista Percurso, o psicanalista Jean-Jacques Rassial refere-
se a não aceitação dos estudos da adolescência pela psicanálise no passado, e a recusa
de algumas escolas psicanalíticas ao seu projeto sobre o tema. Nos últimos tempos, a
pesquisa sobre a adolescência ganhou grande atenção no campo psicanalítico, mas a
adolescência em si e o adolescente continuam numa espécie de não-lugar, assim como
as investigações de Rassial sobre o tema, no início dos anos 80. Relegados mais a uma
condição ou fase transitória do que a uma fase temporal, negados o lugar infantil e
também a posição de adulto, esses sujeitos não se localizam fixamente, privados das
características sólidas e seguras que a infância e a adultez oferecem. Ao mesmo tempo,
na sociedade contemporânea, a juventude e, por consequência, a adolescência ganharam
um espaço privilegiado, estendendo-se cada vez mais. O ideal cultural que nos incute o
auge da vida contemporânea associado à produtividade, performatividade, renovação,
tem constrangido a todos uma juventude indispensável. O trabalho pretende fazer uma
interlocução entre esses imperativos e a forma como o adolescente se vê preso a um
corpo novo e desconhecido e a ideais e identificações diferentes da infância. Nessa
instabilidade, consideram-se respostas transitórias, limítrofes e até mesmo sintomáticas,
e inerentemente contemporâneas.
Em “Adolescência, sintoma da puberdade”, Stevens (2004) apresenta três
principais possíveis saídas para o mal-estar adolescente: o enlace com o saber, onde,
numa espécie de casamento, o adolescente mergulha no conhecimento, na tentativa de
substituir o (não) saber sobre o sexo pelo saber sobre o mundo; a relação com as
identificações, na qual os fenômenos de grupos adolescentes marcam a tentativa de
construção de identificações e simbolização da separação do Outro; e a falha da
fantasia, fantasias infantis, que diante dos impasses adolescentes não operam como o
faziam, surgindo a passagem ao ato ou o acting out como solução. Além dessas
respostas, muitas outras são possíveis, quase todas suficientemente frágeis para
dificultar a localização do adolescente no laço social.
Segundo Laurent (2007), após a queda dos significantes mestres, que antes
tinham a função de unificação, de restauração de um todo, a sociedade se vê no
insuportável da falta de garantias de gozo, surgindo assim dois caminhos. O primeiro é
o apelo populista de tornar o Outro todo, tendo o fanatismo religioso, o
fundamentalismo e o romantismo ecológico como expoentes. O segundo é marcado
pelas tentativas de reacessar o gozo por meio de maneiras mais imediatistas, não apenas
em comportamentos suicidas, como as toxicomanias, mas podemos aqui pensar na
nossa sociedade hipermedicalizada, no uso excessivo e sem limites de privacidade da
internet, nos transtornos alimentares, nas condutas sexuais de risco, tatuagens e próteses
corporais, no excesso de trabalho. Por meio da overdose, do excesso e do imediatismo,
o sujeito contemporâneo experimenta a presença do Outro, podendo assim acreditar
nele.
Nesse movimento, as respostas adolescentes se encontram como
inexoravelmente contemporâneas, desligadas de referenciais fixos, transitórias,
limítrofes. Assim, talvez o diagnóstico estrutural clássico não se imponha a todos os
casos. Algumas mudanças de direção têm sido feitas, experienciando novos caminhos
para a clínica psicanalítica.
Uma dessas tentativas é a conceituação borderline, onde, de acordo com Luiz
Figueiredo (apud Coelho Junior, 2003, p. 179), o ponto central da estrutura borderline
seria a hesitação entre a natureza dos aspectos narcisistas e esquizoides, que juntos, se
fortificam e constituem uma estrutura estável, mesmo que definida pelo desequilíbrio.
Num momento onde as estruturas clínicas clássicas são colocadas em questão, o
surgimento de uma nova, possivelmente não se apresenta com um rumo que interrogue
a psicanálise e suas tradições. Ainda segundo Figueiredo (apud Coelho Junior, 2003, p.
178) a desconstrução e reconstrução das técnicas, práticas, metodologias da psicanálise
são necessárias para afastarmo-nos de repetições e imitações que assolam a academia e
a clínica. Por esse motivo, nesse ponto, afastamos-nos da estruturação borderline e a
cotejamos com outras discussões.
Lançando luz sobre a questão adolescente, recorremos a Jean-Jacques Rassial
como um dos precursores em estudos da adolescência no campo psicanalítico. Rassial
(2000) alega que é próprio da operação adolescente que, com a mudança corporal
imposta na puberdade, o eu tem de abdicar à bissexualidade, apesar das possíveis
homossexualidades provisórias, incertezas sexuais ou ainda a preservação dessa posição
através de sua aparência.
Também para Rassial (1999), o encontro com o objeto externo e, portanto, a
submissão das outras zonas erógenas à genitalidade não passa de uma promessa. Em
todas as oportunidades na infância e puberdade em que o indivíduo renunciou ao gozo
total, se anunciava uma futura chance de alcançar esse gozo. O púbere percebe e lida
com a revelação de que mesmo o gozo genital é parcial, e que a relação sexual,
incompleta por excelência, não regressa ao gozo nostálgico renunciado, só desvela e
coloca em questão a sexualidade nessa fase.
A adolescência seria um momento favorável a indefinições estruturais clássicas
ou claras. O desligamento das figuras parentais, a renúncia ao incesto e a abertura de
todos os outros indivíduos como possíveis objetos sexuais, acessam a questão da
operação do Nome-do-Pai1. Mas não somente a inscrição ou a forclusão do Nome-do-
Pai são possíveis, a suspensão dessa resposta imediata é favorecida nessa fase, e
principalmente na sociedade contemporânea, onde a adolescentização dos sujeitos, o
prolongamento adolescente e o adiamento da saída dessa condição favorecem diversas
respostas, amplas no sentido social e extremamente singulares no sentido individual.
Sem a severidade da tradução, Rassial (2000) interpreta o conceito de
breakdown, de Winnicott, como “pane”, e associa (ou elenca) duas séries de panes
equivalentes à maneira como ele revisa e questiona os transtornos boderlines a partir do
que denomina estados-limite, a saber, a adolescência e os maus encontros. Aqui nos
atentaremos mais a primeira das séries, já que é o objeto primordial de nosso estudo.
Para Rassial (2000) uma resposta possível para a questão que se impõe a
adolescência: “como mudar continuando o mesmo?” é a constituição de um novo
recalque ou clivagem, mas essa pergunta também caracteriza um golpe de real que afeta 1 Nome-do-pai segundo Lacan seria a metáfora paterna ou o que representa o pai interditor que separa
a relação edipiana. O Nome-do-Pai operante estabiliza a equivalência dos registros (real, simbólico e
imaginário).
o imaginário organizado. Esse golpe de real exerce influência na qualidade dos objetos,
já que os referenciais simbólicos e as construções imaginárias infantis são insuficientes
para poupá-los do desamparo, da decadência dos pais e da inutilidade do mundo
exterior.
O desabamento das encarnações imaginárias do Outro, a
desqualificação dos pais para ocupar essa função, a dissociação entre
o nome-do-pai e a metáfora paterna, que só sustenta na família
provisoriamente, carece que a operação primeira de inscrição do
nome-do-pai funcione além do que permitia o patronímico para que o
sujeito invente novos nomes-do-pai. (Rassial, 2000, p. 149).
Como significante mestre, o nome-do-pai sintomático operou para o sujeito na
infância, mesmo que sem a fundação autêntica desse nome-do-pai, ou ainda, tomada de
imediatismo e pobre de simbolização, “tudo o que pode fazer nome-do-pai, neste
sentido “per-versão” [père-version]” (Rassial, op.cit., p. 149). Segundo Rassial a
adolescência é caracterizada por indecisões narcísicas e simbólicas, onde o processo de
redefinição identitária, característico do adolescente, falha. Nesse sentido, ainda de
acordo com o autor, tomando o breakdown como função primordial, patologias
ocasionalmente advirão. Para alguns, esse processo desaba na psicose, para outros, o
recalque irá gerar adultos, que quando adolescentes estavam fora da crise dita normal.
Com essa conjuntura de crise manifestada através de uma maturidade enganosa, talvez
caiam por terra ao enfrentarem as questões de seus filhos ou outros adolescentes. Mas é
para os limítrofes que a suspensão dessas respostas se coloca como solução provisória
possível, e também, levando a um reacesso das “questões depressivas da fase autística e
ansiosa da fase fóbica”.
A partir de uma concepção clássica de Jean Bergeret, Rassial (2000) defende três
falhas parciais nos estados-limite. A primeira seria uma falha no setor autístico, com o
Nome-do-Pai fixado no lugar do Outro, materno e arcaico. A segunda seria a falha do
setor foboperverso, promovendo uma manutenção da parte angustiante e não
simbolizável do objeto e, por consequência, repetindo atos simbólicos que se esquivam
do objeto. A terceira falha, que pode ser vista como a cadeia final das outras duas, é a
falha adolescente, momento em que a impossibilidade de se criar novos Nomes-do-Pai
desagregados da metáfora paterna. Nesse entremeio, a possibilidade de identificações
esparsas e indefinidas é posta, dessaposadas da solidez e segurança infantis ou adultas.
Isso produzirá condutas cíclicas, de tonalidade maníaco-depressiva,
tentativas que sempre fracassam, de entrar num mundo adulto
prescrito pelo social, ou de retornar a uma situação de asseguramento
infantil. (Rassial, 2000, p. 151).
Ainda para Rassial (2000), três tipos de condições podem levar a essas falhas.
Condições objetivas, onde o discurso do pai, continuamente se aproxima de ideais
mercantilizados, objetalizados, capitalizados, graça à ciência, a economia, à técnica.
Condições subjetivas, sempre individuais, mas marcadas pela recusa de uma nova
castração, prezando pela errância, suspendendo assim, a resposta ao Nome-do-Pai. Por
último, defendidas com maior afinco pelo autor, estão as condições coletivas, o declínio
da função paterna, o declínio do Nome-do-Pai, como condições contemporâneas. “É
isso que faz do sujeito em estado limite o protótipo do sujeito moderno, na medida em
que ele só deixou ao pai – sustentação da tradição, isto é, da transmissão – um valor
nostálgico, nostalgia de um pai imaginário.” (Rassial, 2000, p. 151).
Talvez essa estrutura onde são apresentadas falhas e causas geradoras destas,
seja em si desenvolvimentista e se aproxime da concepção de borderline, mas em
acordo com Rassial o sujeito contemporâneo e, por sua vez, o adolescente como seu
retrato mais fiel, é o modelo do sujeito em estado-limite.
Pensando nesse sujeito contemporâneo e no adolescente como protótipo, Maria
Rita Khel (2004) em seu texto “A juventude como sintoma da cultura”, faz um traçado
histórico das causas do que a própria autora chama teenagização da cultura ocidental e
aponta o adolescente atual como àquele que usufrui das liberdades adultas, sem dívidas
com a responsabilidade e o adulto, como aquele que se identifica prontamente com
esses ideais, sendo assim, desqualificado como transmissor de um mínimo de
referências, de um horizonte infimamente delineado. Para Kehl (2004) intimados a
produtividade/reprodutividade, esses adultos adolescentizados desfazem-se do passado,
lançando mão de uma imprescindível juventude. “Ser jovem virou slogan, virou clichê
publicitário, virou imperativo categórico – condição para se pertencer a uma certa elite
atualizada e vitoriosa.” (Kehl, 2004, p. 1). A posição de “adulto” está vaga, resta apenas
a angústia e o desamparo, a errância.
Confrontando as origens da psicanálise a nossas reflexões, prontamente,
obteremos respostas e contribuições fundamentais. Freud (1905), na terceira parte de
seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, dedica todos seus esforços a
descrever “As transformações da puberdade” – título do ensaio – e a dívida que essa
fase tem com a infância. Enquanto na infância a sexualidade se caracterizava por seu
autoerotismo, encontrando a satisfação nas zonas erógenas do próprio corpo, na
puberdade essas zonas erógenas se subordinam à tirania da zona genital e a pulsão
sexual vai de encontro a um objeto externo ao corpo do púbere. Segundo Freud (1905)
na condição autoerótica as manifestações sexuais são análogas para ambos os sexos,
com o desenvolvimento dos caracteres masculinos e femininos. A necessidade de um
posicionamento frente à diferenciação sexual também é colocado como prova cabal à
adolescência.
Concomitante a esse desenrolar, também está implicado nesse processo a
separação das figuras parentais e a busca por novas identificações e novos ideais, já que
ainda de acordo com Freud (1914), o desligamento das referências parentais e a
transferência dessa identificação é um trabalho necessário para a saída do Complexo de
Édipo para a vida púbere.
Na contemporaneidade essas referências estão empobrecidas, a identificação dos
adolescentes aos adultos se inverteu, e é o adolescente que serve – no sentido
escravizador da palavra – de modelo aos adultos. Analisando esse empuxo à
adolescentização e a extensão ostensiva dessa fase a todas as outras, retornamos a
Rassial (2000) e apontamos como possíveis indícios da expansão dos chamados casos
limites os próprios imperativos de gozo da contemporaneidade, associados, como já
indicava Freud, ao mal-estar juvenil e à impossibilidade de a genitalidade inscrever-se
plenamente. Portanto, o estado-limite relacionado à adolescência estendida, seria a
prorrogação da dúvida, a fixação do sujeito na pane, obstando a operação adolescente. A
não decisão toma caráter de condição inexorável ao nosso tempo.
Referências Bibliográficas
Freud, S (1905/1980). Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição Brasileira das Obras Completas, vol. VII, Rio de Janeiro: Imago.
_______. (1914/1980). Algumas reflexões sobre a psicologia escolar. Edição Brasileira das Obras Completas, vol. XIII, Rio de Janeiro: Imago.
Coelho Junior, N. E. (2003). Resenha de "Psicanálise: elementos para uma clínica contemporânea" de Luis Claudio Figueiredo. Psychê. São Paulo: Universidade São
Marcos, 12(7), pp. 177-180. Disponível em: <http://redalyc.uaemex.mx/pdf/307/30701212.pdf>. Acessado em: 08 set. 2012.
Kehl, M. R. (2004). “A juventude como sintoma de cultura”. In: Novaes, R. e Vannuchi, P. (org.). Juventude e sociedade: trabalho, cultura e participação. São Paulo, Fundação Perseu Abramo. Disponível em: <http://www.mariaritakehl.psc.br/conteudo.php?id=75>. Acessado em: 14 set. 2012.
Laurent, E. (2007). A sociedade do sintoma. In: A sociedade do sintoma. Rio de Janeiro: Contra Capa, pp. 163-177.
Rassial, J-J. (1999). A adolescência como conceito na teoria psicanalítica. In: APPOA. Adolescência entre o passado e o futuro. 2ª ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios.
_____. (2000). O sujeito em estado-limite. Rio de Janeiro: Cia de Freud.
Stevens, A. (2004). Adolescência, sintoma da puberdade. Adolescência, sintoma da puberdade. Curinga, Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, Seção Minas Gerais, n.20, pp.27-39.