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Universidade Estadual de Maringá 26 e 27/05/2011 1 OS HÁBITOS E A EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DE TOMÁS DE AQUINO (SÉC. XIII) CAVALCANTE, Tatyana Murer (UEM/Bolsista CAPES) 1 OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora/UEM) Neste texto analisaremos as possíveis relações entre as transformações sociais e a produção do conhecimento no Ocidente medieval no século XIII, particularmente no que diz respeito a formulações sobre a ética, em escritos do mestre dominicano Tomás de Aquino (1224-5?/1274). Elegemos a questão A causa dos hábitos quanto à sua geração da Suma de Teologia. Destacamos que para este estudo recorreremos a outras questões da Suma e a outras obras do autor que nos propiciem compreender as relações entre hábitos e educação. Nos apoiaremos também em autores contemporâneos da historiografia, que refletiram sobre as mudanças históricas do século XIII, e sobre escritos de Tomás de Aquino, a exemplo de Le Goff (1992; 2005; 2007), Verger (1999), Lauand (1999; 2004), Ullmann (2000), e Oliveira (2005; 2008). Observamos que a preocupação com a ética é recorrente em diferentes tempos históricos, mas em algumas épocas as transformações na forma de viver dos homens se aceleram e tornam a temática candente. Consideramos o século XIII como um destes períodos, pois foi um tempo de acirrados debates intelectuais, proporcionados por profundas transformações no viver dos homens. Para analisarmos especialmente as relações entre a educação e a ética naquela sociedade, organizamos o texto em dois tópicos. No primeiro, A cidade, os costumes e o Mestre de Aquino, explicitaremos a importância do papel da cidade no questionamento dos hábitos então sedimentados, uma vez que o ambiente urbano ampliou as possibilidades do viver humano e possibilitou a construção de novos ideais sociais, elaborados por intelectuais como Tomás de Aquino. No segundo tópico, O estudo tomasiano acerca dos hábitos e a educação, cercearemos o texto do Aquinate selecionado, buscando, em primeiro plano, 1 Doutoranda PPE/UEM, bolsista CAPES

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Universidade Estadual de Maringá 26 e 27/05/2011

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OS HÁBITOS E A EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DE TOMÁS DE

AQUINO (SÉC. XIII)

CAVALCANTE, Tatyana Murer (UEM/Bolsista CAPES)1

OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora/UEM)

Neste texto analisaremos as possíveis relações entre as transformações sociais e

a produção do conhecimento no Ocidente medieval no século XIII, particularmente no

que diz respeito a formulações sobre a ética, em escritos do mestre dominicano Tomás

de Aquino (1224-5?/1274). Elegemos a questão A causa dos hábitos quanto à sua

geração da Suma de Teologia. Destacamos que para este estudo recorreremos a outras

questões da Suma e a outras obras do autor que nos propiciem compreender as relações

entre hábitos e educação. Nos apoiaremos também em autores contemporâneos da

historiografia, que refletiram sobre as mudanças históricas do século XIII, e sobre

escritos de Tomás de Aquino, a exemplo de Le Goff (1992; 2005; 2007), Verger (1999),

Lauand (1999; 2004), Ullmann (2000), e Oliveira (2005; 2008).

Observamos que a preocupação com a ética é recorrente em diferentes tempos

históricos, mas em algumas épocas as transformações na forma de viver dos homens se

aceleram e tornam a temática candente. Consideramos o século XIII como um destes

períodos, pois foi um tempo de acirrados debates intelectuais, proporcionados por

profundas transformações no viver dos homens.

Para analisarmos especialmente as relações entre a educação e a ética naquela

sociedade, organizamos o texto em dois tópicos. No primeiro, A cidade, os costumes e o

Mestre de Aquino, explicitaremos a importância do papel da cidade no questionamento

dos hábitos então sedimentados, uma vez que o ambiente urbano ampliou as

possibilidades do viver humano e possibilitou a construção de novos ideais sociais,

elaborados por intelectuais como Tomás de Aquino.

No segundo tópico, O estudo tomasiano acerca dos hábitos e a educação,

cercearemos o texto do Aquinate selecionado, buscando, em primeiro plano, 1 Doutoranda PPE/UEM, bolsista CAPES

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compreendê-lo internamente e, a seguir, relacionando-o a historiografia referenciada.

Dessa forma, ao analisarmos a elaboração de um dos mais importantes autores

do período, Tomás de Aquino, considerando as condições da época em que foi

concebida, procuraremos apreendê-la como um esforço do autor em compreender o seu

tempo e também como uma proposta para a formação de uma boa sociedade.

A cidade, os costumes e o Mestre de Aquino

A relevância da cidade na construção e consolidação da civilização ocidental é

sustentado por diversos especialistas em Idade Média2. Le Goff, medievalista

contemporâneo, afirma em diversas obras que as cidades foram centrais no forjar de

uma nova sociedade. Para o autor, “As cidades são uma das principais manifestações e

um dos motores essenciais dessa culminação medieval” (LE GOFF, 1992, p. 1). A

historiografia atual já reconheceu que a cidade não foi uma exceção no mundo

medieval, mas parte do próprio desenvolvimento e entende, ainda, que este lócus abriu

novas possibilidades para a convivência humana. De acordo com Le Goff, no século

XII, um provérbio alemão afirmava: stadtluft macht frei, em bom português: “[...] o ar

da cidade torna livre” (2005, p. 296).

Ao trazermos esta citação não pretendemos fazer uma apologia ao tema

‘liberdade’, mas apontar que os medievais tomavam consciência da abertura

proporcionada pela cidade, em relação aos moldes das relações feudais:

Essencialmente, a liberdade na Idade Média opõe-se ao arbítrio de um superior, o homem medieval julga-se livre na medida em que as obrigações impostas a ele são objeto de uma definição contratual ou legal que vem substituir sua determinação unilateral e arbitrária por aquele que detém o poder e de quem ele depende. Ser livre é poder discutir os limites de sua submissão, ter um estatuto definido que especifique direitos e deveres (LE GOFF, 1992, p. 88).

Assim, do interior da cidade se processa uma nova negociação do convívio

2Já no século XIX historiadores a sustentavam. Consultar: OLIVEIRA, Terezinha. Guizot e a Idade Média. Assis: UNESP, 1997 (Tese de Doutorado).

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humano. Ainda segundo Le Goff (1992, p. 79), em seu (re)nascimento3 – no século XI e

na primeira metade do século XII – as cidades se desenvolveram de maneira intensa.

Entretanto, a partir da segunda metade do século XII e durante todo o século XIII,

ocorreu a consolidação da comunidade urbana, definida pelo autor como “[...] a

consciência de grupo que se afirma na ação e na oposição” (LE GOFF, 1992, p.81).

A construção da consciência de uma comunidade urbana implicava

necessariamente no confronto teórico da nova realidade com as verdades então

convencionadas, uma vez que essas verdades se sustentavam numa sociedade

estabelecida em outras bases. Segundo Oliveira:

Na medida em que os homens principiaram, em fins do século XI e ao longo dos séculos XII e XIII, a construir e habitar espaços urbanos, seus hábitos e costumes também se modificaram, pois, quando viviam somente nos feudos, em geral, o contato social entre os indivíduos era restrito ao grupo pertencente a este próprio universo. No entanto, quando passaram a viver nas cidades, as relações sociais assumiram contornos mais complexos, conduzindo os homens a adotar novos comportamentos e, acima de tudo, novas leis, que permitissem a vida em comum em um novo ambiente, sem passar pelos ditames dos senhores feudais, tradicionalmente envoltos em interesses pessoais (OLIVEIRA, 2008, p. 229-230).

As palavras da autora permitem-nos compreender as transformações sociais e

perceber que esta nova ambiência era propícia às mudanças também no campo teórico.

Sob este aspecto a educação assumia papel fundamental. Salientamos, também, o

caráter material dessa transformação e, neste sentido, não somente diversificavam-se as

atividades e os modelos humanos, mas também criava-se a possibilidade da aquisição

de novos bens materiais. Dessa forma, o “bem comum” e os “bens particulares”,

causavam impacto nas discussões citadinas. Defendeu Le Goff (2004) que, nas cidades

daquele período, algumas atividades conseguiram status diferenciado pela reabilitação

do trabalho. Citamos dois dos exemplos do autor: os mercadores, porque muito embora

o comércio em si fosse condenável – uma vez que a obtenção do lucro era entendida

como venda do tempo, pertencente a Deus – acabavam por realizar um trabalho de

3 O (re)nascimento das cidades é um tema complexo, relacionado ao conjunto de transformações que

começaram a ocorrer no Ocidente medieval por volta do Ano Mil. Sugerimos: GUERREAU, Alain. O feudalismo. Lisboa: Edições 70, 1980.

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utilidade pública, visto que era necessário à existência (LE GOFF, 198-?), e os

intelectuais, “mercadores de palavras”, que passaram a ser considerados não como

vendedores do conhecimento – que era dom divino – mas pelo trabalho de ensinar (LE

GOFF, 2004). Um dos defensores da necessidade da atividade comercial foi o próprio

Tomás de Aquino, ao afirmar, na Suma de Teologia, que o lucro poderia beneficiar

pessoas (LE GOFF, 2004, p. 49). Assim, os bens particulares, mesmo os materiais,

principiavam a adquirir status diferenciado, não mais contrário ao bem comum ou ao

bem maior.

Não estamos propondo que a maior receptividade para com os bens particulares

tenha sido em comum acordo. Queremos antes evidenciar que a vida na cidade

possibilitava aos homens o acesso a determinadas atividades e mercadorias antes

impensáveis, que poderiam desviá-los da preocupação com a bem aventurança (LE

GOFF, 1998, p. 69-91), e esta preocupação gerava acirrados debates, tanto no que diz

respeito ao estabelecimento de leis quando ao desenvolvimento de teorias que

legitimassem – ou excomungassem – os bens particulares.

O século XIII configurou-se como um tempo de fortes contradições. Nele se

destacaram autores que enfrentaram os problemas mais controversos da época, dos

quais Tomás de Aquino foi um grande exemplo:

Os cinqüenta anos da vida de Tomás de Aquino (1225-1274) estão plenamente centrados no século XIII, e não só do ponto de vista cronológico: todas as significativas novidades culturais desse tempo mantêm estreita relação com sua vida e lutas. Ao contrário do clichê que o apresenta como uma época de paz e equilíbrio harmônico, esse século é um tempo de agudas contradições, tanto no plano econômico e social como no do pensamento (LAUAND, 1999, p. 4-5).

Ao investigarmos as reflexões do mestre Tomás sobre a ética, precisamos

compreendê-la no bojo de sua elaboração: no tempo da tomada de consciência da

comunidade urbana (LE GOFF, 1992), que implicava na necessidade de novos hábitos e

costumes (OLIVEIRA, 2008), e portanto, em um tempo de agudas contradições

(LAUAND, 1999).

A obra do Aquinate tem como referência a ambiência urbana e nela,

particularmente, uma instituição também nova, a Universidade. A historiografia acerca

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do tema afirma a relevância da história dessa instituição – gestada entre o ocaso do

século XII e a aurora do século XIII e estruturalmente cravada no bojo do

desenvolvimento citadino – como o grande legado cultural da Idade Média (VERGER,

1999, p. 81).

Ao debater as origens das Universidades, Verger sustenta que as primeiras

tinham em comum serem “organismos autônomos de natureza corporativa” e data o

nascimento dessa instituição dos primeiros anos do século XIII (1999, p. 81-82). Le

Goff também assegura que o nascimento da Universidade foi fruto do grande

movimento de organização dos ofícios na cidade e afirma que o termo universitas

magistrorum et scholarium surgiu em Paris pela primeira vez em 1221, para designar a

comunidade de mestres e estudantes (2007, p. 173).

Ullmann, como Verger e Le Goff, destaca o surgimento dessa instituição no seio

da tendência corporativa. Afirma:

Por toda parte, fervilhava, naquele tempo, a tendência de se formarem associações ou grêmios ou corporações, sob o nome de universitates, para defesa dos direitos. No ocaso do século XII e, largo tempo, depois, universitas aplicava-se à corporação dos comerciantes, dos artífices, dos barbeiros, ou seja, a uma associação de pessoas idênticas, a fim de salvaguardarem seus interesses. A mesma terminologia passaram a usá-la os estudantes e os professores [...]. (ULLMANN, 2000, p. 101-102).

Segundo Verger, Le Goff e Ullmann, comerciantes, artífices, barbeiros,

estudantes, professores... novas e diferentes categorias profissionais organizavam-se em

associações citadinas. O debate acerca dos hábitos e costumes relacionava-se à essas

transformações e buscava responder aos problemas que se lhe impunham. Conforme

Oliveira (2008), debater e, principalmente, recriar hábitos e costumes era uma

necessidade real. Em outra obra, a autora escreve:

A própria designação destas instituições indica uma forma nova de saber, vale dizer, de uma nova modalidade de relação com o saber. Com efeito, o termo Universidade rompe com a ideia de isolamento presente nos mosteiros, nas escolas palacianas, nos castelos feudais, em síntese, na sociedade medieval como um todo. Os novos centros de saber que surgem, basicamente, nas primeiras décadas do século XIII, trazem em si a marca de um novo momento na vida dos homens

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medievais. […] Os homens do saber, que até então viveram em função dos mosteiros, das abadias, que viviam preocupados em justificar a existência divina, passam, então, a se preocuparem com as coisas terrenas, com o universo de questões vinculadas ao seu mundo cotidiano. A universidade cria, desse modo, a possibilidade, de os homens buscarem, por meio da razão, e não mais apenas por meio da religião, a explicação para as suas relações (OLIVEIRA, 2005, p. 6).

Tomás de Aquino foi um dos mestres universitários aos quais se refere Oliveira

(2005), um dos intelectuais que chamou para si a responsabilidade de explicar as novas

condições sociais dos homens. O Aquinate nasceu em 1224-5? e era filho caçula de uma

família nobre da província de Aquino, estando destinado, segundo o costume, à vida

religiosa. Com cerca de seis anos, foi entregue como oblato ao mosteiro beneditino de

Monte Cassino, no qual permaneceu até 14 ou 15 anos, quando foi encaminhado ao

Studium generale de Nápoles para aprofundar os estudos (TORRELL, 1999, p.5-7). Em

Nápoles Tomás de Aquino conheceu a obra aristotélica e a recém fundada Ordem

Dominicana, à qual se integrou em 1244 e na qual permaneceu (LAUAND, 1999, p.

XV-XVIII). A partir de então, esse mestre citadino trilhou um longo caminho

acadêmico: fora discípulo de Alberto Magno em Paris (1245-1248) e em Colônia (1248-

1252). Tornou-se professor universitário em 1252, lecionando em Paris, como Bacharel

Sentenciário (até 1256) e como Mestre Regente (até 1259). Depois, por cerca de oito

anos (1260-1268) realizou tarefas de evangelização e ensino em Nápoles, Orvieto,

Roma e Viterbo, e retornou para um segundo período de regência em Paris (1269-1272).

Por fim, o Aquinate foi Mestre Regente em Nápoles (1272-1273), falecendo em 1274.

Além de ter sido um intelectual que compôs uma vasta obra, manteve-se docente e

componente ativo de sua Ordem (TORRELL, 1999).

A nossa obra de referência, a Suma de Teologia – composta em diferentes

cidades e condições (1267-1274) – é essencialmente teológica, dedicada ao

conhecimento de Deus, não “em si mesmo”, mas enquanto princípio e fim das coisas,

especialmente, da criatura racional (TOMÁS DE AQUINO, ST, Ia, q.2, prólogo)4. O

Mestre de Aquino organizou a obra em três partes e destinou a segunda ao movimento

humano que poderia levar a Deus:

4 Para textos medievais a referência é: (AUTOR, obra, localização da citação no interior da obra).

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A segunda parte da Suma teológica5 considera o homem enquanto ser livre moral e, como tal, podendo tender para Deus como seu fim último, mas também afastar-se deste fim supremo. Em conjunto, o objeto desta segunda parte da Suma pode assim definir-se: os fins últimos da vida humana e os meios que para lá conduzem. (GRABMANN, 1944, p. 137).

Ao analisarmos a Suma de Teologia tomasiana como um debate acerca dos

comportamentos humanos, não queremos negar-lhe o aspecto teológico, uma vez que a

sua finalidade era a bem aventurança. Se o fizéssemos, destituiríamos do Aquinate o seu

comprometimento social como mestre dominicano, intelectual religioso. A

especificidade das novas ordens religiosas6 era, sobretudo, serem citadinas, se

preocuparem com a salvação dos homens nas novas condições de vida. A relevância do

debate tomasiano incide na percepção do autor de que os meios necessários para

“conquistar o paraíso” se alteravam com as mudanças no cotidiano dos homens.

O estudo tomasiano acerca dos hábitos e a educação

Usualmente, tomamos por “hábito” os atos que, de tão rotineiros, são

mecanizados. Por outro lado, entendemo-lo por vestimenta dos religiosos. Estes são

dois dos sentidos possíveis para o termo, mas outras definições podem ser encontradas

nos dicionários. Por exemplo:

hábito (latim habitus, -us, estado (do corpo ou de uma coisa), exterior, constituição, aparência, veste, trajo) s. m. 1. Túnica de membro de comunidade ou confraria religiosa. 2. Insígnia de membro de ordem militar ou honorífica. 3. Prática frequente. = costume 4. Disposição, constituição. 5. Aspecto. Aspeto exterior. = aparência (PRIBERAM, 2010).

5 O nome mais antigo da obra é Summa Theologiae (Suma de Teologia) (TORRELL, 1999, p. 173),

motivo pelo qual preferimos utilizá-lo, ainda que as edições mais recentes utilizem Suma Teológica, termo que aparece neste texto, em fidelidade aos autores ou tradutores das obras diretamente citadas.

6 Não debateremos as novas ordens. Consultar: Le Goff (1992; 2005; 2007) e Oliveira (2005; 2008).

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Ao observarmos essas possibilidades, notamos que as três primeiras e a última se

assemelham – são exteriores, observáveis – enquanto a quarta, oposta, define o hábito

como um aspecto primário interior, da constituição do sujeito. Este último sentido do

termo não nos soa familiar. Veremos adiante que ele guarda certa similaridade com a

compreensão do mestre Tomás, embora nesse autor a ultrapasse.

Segundo Plé, o sentido da palavra latina habitus está em desuso há séculos. Para

o autor: “[habitus] Significava uma constituição, um estado do corpo e da alma, uma

maneira de ser; alguma coisa que se tem (de habere: ter). É o contrário de um

<<hábito>>, que é um mecanismo já montado e fixo” (PLÉ, 2005, p. 35). Ou seja, para

compreendermos o sentido do habitus latino, do hábito como o entendia o Aquinate,

precisamos abandonar o sentido ao qual estamos familiarizados. À frente, esclarece Plé

que “[o habitus tomasiano] É uma disposição, uma capacidade da natureza humana, a

qual se enraíza em sua natureza específica e individual, finalizada pelo agir” (2005, p.

35). Na elaboração do Aquinate essa capacidade não pode ser compreendida como uma

“disposição” determinista, pois:

Os habitus não podem qualificar disposições ligadas ao determinismo de um só e único tipo de agir. É por isso que não pode existir habitus no mundo físico (e astral, segundo a cosmologia de Aristóteles) [...]. Só existe habitus nas disposições naturais do homem que, não sendo regradas ne varietur pelo instinto e por outros determinismos, deixam aberta – e a descobrir – a boa maneira de um agir adaptado ao concreto de um ato singular, e em fidelidade à natureza humana no que ela tem de específico: a inteligência desejante, ou o desejo refletido, no que Aristóteles garante o ser homem (PLÉ, 2005, p. 35. Grifos nossos).

Essa definição de habitus é oposta a qualquer determinismo trazido pelo

dicionário. Poderíamos afirmar – aproximando-nos da percepção Kantiana – que o

hábito tomasiano não se encerraria em determinações, seja do ponto de vista de uma

rígida constituição a priori, seja de um resultado da ação mecanizada, a posteriori, mas

sim, um mecanismo que partiria de certas predisposições que se alterariam em função

das escolhas cotidianas, ao longo da vida. Ao nos interessarmos centralmente por esses

mudanças, escolhemos debater não a questão que o Aquinate dedicou à definição de

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hábito, mas àquela que explicita um dos elementos dessa mudança: a sua proveniência,

a sua causa.

A causa dos hábitos quanto à sua geração (ST, IaIIae, q. 51) é, segundo o autor

esclareceu em seu prólogo, a primeira de três questões7 que debatiam a causa dos

hábitos, e foi organizada em quatro artigos que exploravam as seguintes possibilidades:

1o, se suas causas são a própria natureza; 2o, se, ao contrário, são adquiridos por meio de

ações; 3o, se uma única ação pode criar um hábito e 4o, se Deus pode infundir hábitos

nos homens.

O primeiro artigo, Existem hábitos provenientes da natureza? (ST, IaIIae, q. 51, a.

1), parecia contrapor duas possibilidades: estar presente na natureza humana ou ser

adquirido. A dificuldade exposta pelos argumentos iniciais é que se os hábitos fossem

naturais, seriam fixos em todos os homens. Entretanto, o primeiro desses argumentos

afirmava que a pessoa se utiliza dos hábitos quando quer. Ao resolver o problema, o

Aquinate ultrapassou a dualidade inicial, problematizando os hábitos quanto à natureza

do homem enquanto espécie, enquanto indivíduo, e como uma aquisição. Ele esclareceu

que certos princípios são naturais a todos os homens, dado que a especificidade humana

é ser animal racional, contudo, outras características são individuais, porque corporais.

Assim, aos animais racionais, certos princípios são comuns, mas eles se realizam, em

cada um, de forma singular:

Há, com efeito, uma disposição natural, própria da espécie humana e fora dela nenhum ser humano se encontra. É uma disposição natural pela natureza da espécie. - Como, porém, essa disposição tem certa amplitude, acontece que ela se realiza em graus diversos nas diferentes pessoas, conforme a natureza individual de cada uma. Tal disposição, por sua vez, pode provir inteiramente da natureza ou apenas uma parte, e outra, de um princípio exterior […] (TOMÁS DE AQUINO, ST, IaIIae, q. 51, a. 1, c.).

Em primeiro lugar, o Aquinate afirmou que algumas disposições são naturais aos

homens, de forma que não apenas cada homem as possui, mas porque só os homens as

possuem, são exclusivas dos animais racionais. Por outro lado, há aquelas que dizem

7 sua proveniência (q. 51), seu aumento (q. 52) e sua diminuição (q. 53).

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respeito à materialidade do animal homem, únicas em cada indivíduo. Esse aspecto é

ponto chave para a compreensão da questão8.

Lauand sustenta que a teologia dominante em Paris à época do Aquinate, de

origem platônica, compreendia corpo e alma como duas realidades justapostas em que o

homem, essencialmente espiritual, estaria unido extrinsecamente à matéria. Para Tomás

de Aquino, que partira do ponto de vista aristotélico, a união entre espírito e matéria era

intrínseca: o homem não era uma alma ocupando um corpo, mas uma unidade

substancial (LAUAND, 2004, p. 7-9). Porque a humanidade consistia não em almas

individuais encarnadas, mas em entes compostos de alma e corpo, os princípios

decorrentes da alma (razão partilhada de Deus) eram comuns, enquanto a materialidade,

individual. Assim, cada homem era corporalmente único. as características dependentes

desse aspecto, também9:

Todavia, o hábito que é disposição para a ação, cujo sujeito é uma potência da alma, como foi dito, pode, certamente, ser natural quer pela natureza específica quer pela natureza individual. Pela natureza específica, enquanto depende da própria alma que, sendo a forma do corpo, é um princípio específico. Pela natureza individual, enquanto depende do corpo, que é um princípio material. No entanto, de nenhum desses dois modos podem os homens ter hábitos naturais, originados inteiramente da natureza. [...]. Portanto, existem nos homens alguns hábitos naturais, procedentementes em parte da natureza e em parte de um princípio exterior e isso de um modo nas potências apreensivas e de outro nas potências apetitivas (TOMÁS DE AQUINO, ST, IaIIae, q. 51, a. 1, c.).

Neste trecho o mestre esclarecia uma dificuldade: como disposições para as

ações, os hábitos não eram os mesmos em todos os homens, dado que dependiam

também do corpo. Além disso, encaminhava a discussão acerca da alteração dos

hábitos. O Aquinate sustentou que os hábitos dos homens não podiam ser inteiramente

originados da natureza e, embora alguns de seus princípios nela estivessem, suas causas

estariam parcialmente em princípios exteriores.

8 A materialidade humana é reconhecida por medievalistas como um dos aspectos essenciais da

formulação tomasiana, por valorizar o corpo como parte integrante do homem (LAUAND, 2004). 9 Para Tomás de Aquino a alma individual imaterial não preexiste ao corpo. Cada homem “surge” na

união matéria-forma e nisso consiste o “princípio da individuação”. Ocorrida a individuação, a alma prescindirá do corpo, o que permite que a alma individual continue a existir depois da morte física. Consultar: TOMÁS DE AQUINO. O ente e a essência. Petrópolis: Vozes, 1995.

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Tomás de Aquino diferenciava a relação entre natureza e princípios exteriores

nas potências apreensivas e nas apetitivas. Quanto às apreensivas, sustentou que

parcialmente seus princípios estariam tanto na natureza humana quanto na individual,

porque embora os princípios do conhecimento estivessem na razão, os homens

precisariam dos seus sentidos para aprender10. Para o autor, a disposição orgânica

explicaria, por exemplo, porque um homem aprende mais prontamente que outro. De

outro lado, estariam os princípios exteriores, com os quais os homens precisavam entrar

em contato. O homem seria dotado não apenas de razão para conhecer, mas também de

conhecimentos iniciais, mas, para efetivamente conhecer, ele careceria de contato

exterior, sendo o “hábito do conhecimento” parcialmente natural e parcialmente

adquirido. Quanto às potências apetitivas, afirmou que não haveria hábitos naturais:

Nas potências apetitivas, porém, não há nenhum hábito natural incoativamente, porque parte da própria alma quanto à substância mesma do hábito. O que existe nela são certos princípios de hábito, do mesmo modo como se diz que os princípios do direito são os germes das virtudes. E isso porque a inclinação para os objetos próprios, que parece ser o início de um hábito não pertence a este, mas antes à própria razão das potências. - Quanto ao corpo, conforme a natureza individual, há certos hábitos apetitivos incoativamente naturais, pois há pessoas predispostas, pela própria compleição física, à castidade, à mansidão e a outras virtudes (TOMÁS DE AQUINO, ST, IaIIae, q. 51, a. 1, c.).

Para explicitar essa formulação, retomemos Lauand, para quem o Aquinate

sustentava que a alma humana era dotada de duas potências primárias: inteligência e

vontade. As potências apreensivas se referiam à inteligência, enquanto as apetitivas, à

vontade. A primeira potência – inteligência – matriz do conhecimento humano, teria

naturalmente certos princípios conhecidos (hábitos) e era, por meio deles, capaz de

universalizar, de abstrair conceitos gerais a partir das experiências singulares. A

segunda potência – vontade – era uma inclinação para os bens, materiais e imateriais,

que os homens, intelectualmente, reconheceriam como bons. Dessa forma, as potências

apetitivas humanas também dependiam do conhecimento (LAUAND, 2004, p. 13-20).

10 O tema “conhecimento intelectual humano” foi tratado na primeira parte da Suma, em que o Aquinate

frisou a importância da matéria para o conhecimento humano. Sugerimos os estudos de Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, na introdução da edição: TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teologia [Primeira parte – questões 84-89]. Uberlândia: EDUFU, 2004.

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Assim, para o Aquinate, o hábito do conhecimento preexistiria – em parte – nas

potências apreensivas. Quanto aos hábitos que se inclinam para os aspectos materiais da

vida, como comida, bebida, sexo, ou outro prazer ligado à materialidade, não

preexistiam nas potências apetitivas. O que existiria era potencialidade, possibilidade

desses hábitos virem a existir. Para o mestre, entretanto, assim como o corpo individual

interferia na apreensão intelectual, ele também predispunha a apreensão das virtudes,

mas para as virtudes apetitivas, o hábito era criado e não inato11.

Dessa perspectiva, para qualquer virtude moral, qualquer bom hábito da vida

cotidiana, como justiça, fortaleza ou temperança12, a inclinação era apenas potencial,

precisando ter outra proveniência. Com isso, o Aquinate encaminhava-se para o

segundo artigo: Existe algum hábito causado em nós? (ST, IaIIae, q. 51, a.2). A rigor, ele

questionava a possibilidade dos atos gerarem hábitos:

RESPONDO. Por vezes, o agente contém em si apenas o princípio ativo de seu ato, como no fogo há só o princípio ativo do aquecimento. Nesse agente nenhum hábito pode ser causado por sua própria atividade. Daí que as coisas da natureza, segundo o livro II da Ética [de Aristóteles], não podem se acostumar a alguma coisa ou se desacostumar. - Outro agente, porém, inclui em si um princípio ativo e passivo do próprio ato, como transparece nas ações humanas. Com efeito, os atos da potência apetitiva dela procedem enquanto movida pela potência apreensiva que lhe apresenta seu objeto e, ulteriormente, a potência intelectiva, quando reflete sobre as conclusões, tem por princípio ativo proposições por si mesmas evidentes. Dessa forma, por meio de tais atos, alguns hábitos podem ser causados nos seus agentes, não certo, quanto ao primeiro princípio ativo, mas quanto ao princípio ativo que move sendo movido [...]. Desse modo é que os hábitos das virtudes morais são causados nas potências apetitivas, enquanto movidas pela razão, da mesma forma como os hábitos das ciências são causados no intelecto, enquanto este é movido pelas proposições primeiras (TOMÁS DE AQUINO, ST, IaIIae, q. 51, a. 2, c. Grifos nossos).

De acordo com o mestre Tomás, nas potências apetitivas, as ações da razão são a

causa dos hábitos. Desse modo, as disposições naturais do homem deixam “por

descobrir” boas maneiras de agir, adaptadas aos atos concretos e singulares, o que é

11 Retomaremos esse debate ao explicitarmos o terceiro artigo. 12 Ao examinar as virtudes morais (ST, IIaIIae, q. 57-170), o Aquinate concebeu-as em certa proximidade

com as virtudes teologais (infusas no homem por Deus), entretanto, em sua especificidade (a vida material humana), existem apenas potencialmente e necessitam dos atos.

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especificamente humano: “[...] a inteligência desejante, ou o desejo refletido (PLÉ,

2005, p. 35). Para Tomás de Aquino, um bom hábito apetitivo seria criado a partir de

ações intelectuais e mantido pela reflexão que acompanharia a vontade, relacionando

conhecimentos anteriores aos da situação em particular.

Assim, os hábitos ligados à vida cotidiana não se encontravam naturalmente nos

homens, mas eram aprendidos. Não queremos com esta afirmação dizer que para o

Aquinate o aprendizado de hábitos bons dar-se-ia, como entendemos hoje, por meio do

contato social cotidiano, mas que os hábitos eram aprendidos e construídos pelo uso

continuado da própria razão, ao decidir e agir pela virtude (PLÉ, 2005). Nessa acepção,

um bom hábito jamais seria mecânico e sempre seria fortalecido. Em De magistro,

Tomás de Aquino explicitou que o professor não somente ensinava o conhecimento,

mas também a prática de hábitos positivos, facilidando o caminho intelectual do aluno,

fornecendo-lhe conteúdos e meios para que esse pudesse aprender o conhecimento e os

bons hábitos.

Mas como se dariam os processos de criação e/ou manutenção dos hábitos?

Neste sentido o mestre encaminhou o debate no terceiro artigo: Pode o hábito ser

gerado por um só ato? (ST, IaIIae, q. 51, a. 3).

Mesmo ao tratar da manutenção dos hábitos naturais, o Aquinate assegurava

certa dificuldade, na medida em que eles também tinham, em parte, causas externas. Por

isso, o autor iniciou a solução afirmando que, para gerar o hábito, o princípio ativo

deveria dominar por completo o passivo, “[...] eliminando as disposições contrárias,

para vencê-lo de todo […]” (ST, IaIIae, q. 51, a. 3, c.). Em outras palavras, por mais

naturais que os hábitos pudessem ser, apenas a persistência dos atos garantiria sua

manutenção. Prosseguia:

Ora, é manifesto que o princípio ativo que é a razão não pode, num só ato, dominar a parte apetitiva, porque esta se presta de diversas maneiras a muitas coisas. Pode, contudo, num só ato, julgar se alguma coisa é desejável, segundo determinadas razões e circunstâncias. E, por isso a potência apetitiva não é vencida totalmente, a ponto de, na maioria das vezes, ser levada, de modo natural, para o mesmo objeto, o que pertence ao hábito da virtude. Essa é a razão por que esse hábito não pode ser causado por um único ato, mas por muitos (TOMÁS DE AQUINO, ST, IaIIae, q. 51, a. 3, c.).

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Lembremo-nos que, na elaboração tomasiana, as potências apetitivas precisavam

também de conhecimento. A vontade, como explicitado, se dirige para um bem que o

homem ainda não possui (LAUAND, 2004). Comer, por exemplo, é um bem natural,

pois qualquer ser vivo precisa de alimento, de maneira que querer comer para viver é

sempre bom. A vontade de comer – o querer comer especificamente humano –

entretanto, pode ser boa ou má, dependendo das circunstâncias envolvidas: comer

muito, antes de executar exercícios pesados, é uma má escolha. Neste sentido, julga-se

num único ato, pois cada circunstância é exclusiva. e cada escolha pressupõe novo

julgamento. Assim, o hábito de bem comer consiste nos atos de cada escolha

circunstanciada. Prossegue o mestre:

Nas potências apreensivas, porém, deve-se levar em conta uma dupla passividade: a do próprio intelecto possível e a do intelecto chamado por Aristóteles passivo, que é a razão particular, isto é, a potência cogitativa com memória e imaginação. Quanto à primeira passividade, pode existir um princípio ativo que domine, por um só ato, totalmente, o que há de potência no passivo. Assim, uma única proposição evidente leva o intelecto a assentir, firmemente, na conclusão, o que, na verdade, uma proposição provável não faz. Consequentemente, até por parte do intelecto possível, são necessários muitos atos da razão para causar o hábito de opinar, enquanto que é possível ser o hábito da ciência causado no intelecto possível por um só ato da razão. - Quanto às potências apreensivas inferiores, porém, cumpre repetir os mesmos atos muitas vezes, para produzirem uma forte impressão na memória. Daí a sentença do Filósofo [Aristóteles]: <<A meditação fortalece a memória>> (TOMÁS DE AQUINO, ST, IaIIae, q. 51, a. 3, c.).

Se no primeiro artigo o Aquinate defendeu que todos os habitus precisariam de

outras causas para existir, no terceiro esmiuçou diferentes níveis de dificuldade para sua

aquisição. No caso de conhecimentos mais evidentes, um único ato de conhecer seria

suficiente. Assim, poderíamos dizer que uma vez que entendemos a formulação “um

mais um é igual a dois” (1+1=2), esse conhecimento nos pertence, que fixamos o hábito

deste saber num único ato. Ao contrário, quanto pensamos: “a energia é o resultado da

massa multiplicada pela velocidade da luz no vácuo ao quadrado (E=m.c2) nada nos há

de evidente. Aliás, à época de Tomás de Aquino, esse conceito nem poderia ser

concebido, pois energia, massa, velocidade da luz, vácuo (!) nem eram realidades

pensáveis. Entretanto hoje, ainda que pensáveis, para que possamos conhecer o conceito

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de energia, dependemos de uma série de atos que possam gerá-lo. Assim,

conhecimentos científicos mais abstratos das ciências exatas precisam de muitos atos

para se tornarem hábito mas, quando apreendidos, nos pertencem como habitus. Não

podemos hoje, entretanto, dizer o mesmo sobre os conhecimentos de que dispomos em

relação a “objetos” mutáveis, como “o homem”, do qual temos desistido de abstrair

qualquer universal. E o que dizer dos conhecimentos aplicáveis? Das escolhas do dia a

dia?

Ao debater as potências apreensivas inferiores, o Aquinate se referia à

inteligência voltada aos problemas cotidianos, para a possibilidade de utilizar o

conhecimento no comando dos apetites, concretos ou abstratos. De posse de intelecto e

vontade, o homem poderia conhecer o bem (intelecto) e querer o bem (vontade). A boa

escolha, entretanto, dependia do conhecimento. Assim, tanto os hábitos da vontade mais

concretos, quanto os mais abstratos, se refeririam aos conhecimentos implicados na

decisão, entretanto, maior dificuldade apresentariam os últimos, exclusivamente

humanos – como fortaleza ou temperança – por estarem mais distantes da materialidade

e dela não dependerem inicialmente. A justiça, por exemplo, embora não fosse material

como “o prato de arroz com feijão”, só poderia acontecer entre os homens e estaria, em

princípio, fora do homem. Para ser justo o homem precisaria agir com justiça, mas

alcançá-la seria ainda mais complicado do que decidir pelo bem comer. Guardava com

ele, a mesma necessidade de reflexão, pois cada circunstância implicaria num ato de

justiça específico, entretanto, precisaria de um conhecimento maior, porque era um bem

maior, algo que se daria entre os homens.

Dessa forma, na elaboração de Tomás de Aquino, os hábitos, naturais ou não, só

existiriam nos homens por meio dos seus atos. Ainda que, no último artigo, Existem

hábitos infundidos nos homens por Deus? (ST, IaIIae, q. 51, ª 4) o autor tenha garantido

uma ajudazinha extra – ao afirmar que Deus infunde, em alguns homens, certos hábitos

que confirmam e ultrapassam os preexistentes –, sem o exercício cotidiano da ação

reflexiva, não haveria habitus. Ao depender de conhecimentos para serem melhores, os

homens precisavam de educação, não de instrução. Em suma, precisariam atuar na

circularidade “conhecimento-reflexão-ação”.

Ao concluirmos a exposição deste tópico, gostaríamos de relacioná-lo ao debate

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entre os bons hábitos morais (as virtudes morais) e a vida citadina, do anterior.

Retomemos a necessidade de se forjar novos costumes (OLIVEIRA, 2008). Vimos que

Tomás de Aquino defendia que um bom hábito tinha realidade objetiva apenas quando

cada ação refletia sobre aquela situação específica. Podemos com isso entender que os

“bons costumes” que os homens traziam consigo da longa experiência da vida nos

feudos não se refletiam em bens citadinos. Como afirmou Oliveira, os homens

precisavam viver numa sociedade mais complexa (2008) e criar conhecimentos

relacionados à essas necessidades (2005). Os estudos tomasianos acerca dos habitus nos

permitem compreender a necessária mudança de atitude – intelectual e física – nos

comportamentos dos homens.

Considerações finais

Ao examinar a obra do mestre de Aquino, entendemos que seu estudo estava em

consonância com as necessidades de sua época. Do ponto de vista ético, reformular

conhecimentos, tendo em vista a configuração citadina da sociedade e ensinar aos

homens a serem cotidianamente virtuosos nessa nova situação, eram necessidades reais.

Com esse intuito, o Mestre Dominicano estudou e debateu profundamente os autores

disponíveis em sua época, com destaque para os clássicos. Como aquele era um tempo

de profundas transformações, procurou elaborar novos ideais sociais, consistentes com

suas convicções e estudos. Compreendeu que, naquela situação, hábitos bons seriam

hábitos novos, tanto no que dizia respeito ao conhecimento intelectual, quanto ao

conhecimento prático e mesmo com as necessidades cotidianas.

Neste sentido, ainda que o mestre dominicano não tenha abandonado nem a

noção de bem comum, nem a de bem aventurança, resignificou-as ao conceber a

materialidade como constitutiva essencial da humanidade, frisando a importância do

conhecimento, do uso da razão e do ensino, na – e para a – sociedade citadina poder

forjar-se como uma boa sociedade. Ele não esqueceu, entretanto, da dificuldade

implicada em se criar e manter “bons hábitos”, ou seja, de se recriar costumes sem

perder de vista bens maiores.

Gostaríamos, por fim, de fazer nossas as palavras aristotélicas que Tomás de

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Aquino tomou para si: “A meditação fortalece a memória”. Ler um mestre medieval

hoje não é seguir suas elaborações como verdades, mas compreender que dispomos de

conhecimentos acumulados que nos permitem, em nossa realidade específica, repensar

nossos hábitos e, quem sabe, propor novos habitus.

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