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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 7189 OS GRUPOS DE TEATRO AMADOR E AS PRÁTICAS EDUCATIVAS DIFUSAS NO RIO DE JANEIRO DA PRIMEIRA REPÚBLICA: A EXPERIÊNCIA DA ARTISTA ARACY CORTEZ. Rebeca Natacha de Oliveira Pinto 1 Entre história, trajetórias de vida e o conceito de gênero Uma menina moça querendo entrar a muque, na arte" (BRASIL, 1977, p. 15). Assim se descreve Aracy Côrtes em entrevista para a Coleção Depoimentos do Serviço Nacional de Teatro. Atuante nos palcos cariocas por mais de 50 anos, a trajetória desta atriz, cantora e empresária do universo teatral, nos permite refletir, em meio às desigualdades de gênero, sobre as práticas educativas difusas e as múltiplas experiências possíveis a uma artista nas primeiras décadas do século XX. Apreender as relações entre espaços educativos vivenciados por Aracy Côrtes e os vínculos que estabeleceram com as questões políticas e as produções artísticas na capital federal se apresenta como um dos principais objetivos nesta pesquisa. Neste capítulo, busco perceber como a trajetória de Zilda de Carvalho Espíndola, a artista que ganhou a alcunha de Aracy Côrtes, dialoga com as transformações ocorridas na capital federal, compreendendo-a como uma brecha para percepção dos diferentes espaços de participação política conquistados pelas mulheres na primeira metade do século XX. Sua carreira artística, pontuada pelo trabalho em inúmeros palcos e companhias do Teatro de Revista, nacionais e internacionais, nos propicia a percepção sobre as diversas confluências culturais que dialogavam para uma maior participação das mulheres nos espaços públicos e nos locais de sociabilidades, à medida que se constituíam como polos dinâmicos da vida social. Desta forma, suas origens, processos educativos, laços de amizade, e as primeiras escolhas profissionais nos permitem iluminar um caminho possível, e muitas vezes tortuoso, para a ascensão social feminina através do mundo do divertimento e lazer na capital federal. Para a investigação da trajetória desta referida artista, importa-nos, portanto, a utilização instrumental do conceito de gênero. Para Maria Clementina Cunha, impõe-se a 1 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista CAPES. E-Mail: <[email protected]>.

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OS GRUPOS DE TEATRO AMADOR E AS PRÁTICAS EDUCATIVAS DIFUSAS NO RIO DE JANEIRO DA PRIMEIRA REPÚBLICA: A

EXPERIÊNCIA DA ARTISTA ARACY CORTEZ.

Rebeca Natacha de Oliveira Pinto1

Entre história, trajetórias de vida e o conceito de gênero

“Uma menina moça querendo entrar a muque, na arte" (BRASIL, 1977, p. 15). Assim

se descreve Aracy Côrtes em entrevista para a Coleção Depoimentos do Serviço Nacional de

Teatro. Atuante nos palcos cariocas por mais de 50 anos, a trajetória desta atriz, cantora e

empresária do universo teatral, nos permite refletir, em meio às desigualdades de gênero,

sobre as práticas educativas difusas e as múltiplas experiências possíveis a uma artista nas

primeiras décadas do século XX.

Apreender as relações entre espaços educativos vivenciados por Aracy Côrtes e os

vínculos que estabeleceram com as questões políticas e as produções artísticas na capital

federal se apresenta como um dos principais objetivos nesta pesquisa. Neste capítulo, busco

perceber como a trajetória de Zilda de Carvalho Espíndola, a artista que ganhou a alcunha de

Aracy Côrtes, dialoga com as transformações ocorridas na capital federal, compreendendo-a

como uma brecha para percepção dos diferentes espaços de participação política

conquistados pelas mulheres na primeira metade do século XX.

Sua carreira artística, pontuada pelo trabalho em inúmeros palcos e companhias do

Teatro de Revista, nacionais e internacionais, nos propicia a percepção sobre as diversas

confluências culturais que dialogavam para uma maior participação das mulheres nos

espaços públicos e nos locais de sociabilidades, à medida que se constituíam como polos

dinâmicos da vida social. Desta forma, suas origens, processos educativos, laços de amizade,

e as primeiras escolhas profissionais nos permitem iluminar um caminho possível, e muitas

vezes tortuoso, para a ascensão social feminina através do mundo do divertimento e lazer na

capital federal.

Para a investigação da trajetória desta referida artista, importa-nos, portanto, a

utilização instrumental do conceito de gênero. Para Maria Clementina Cunha, impõe-se a

1 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista CAPES. E-Mail: <[email protected]>.

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necessidade de documentar as experiências das mulheres, na perspectiva de evidenciar a

pluralidade de oportunidades vivenciadas pelas mesmas. A autora salienta que outras

interpretações acerca das identidades femininas somente virão à luz na medida em que

“diferentes conjunturas do passado forem gradativamente documentadas”, a fim de que

possa emergir não apenas a história da dominação masculina, mas, sobretudo, os papéis

informais, as improvisações, a resistência das mulheres (DIAS,1994, p.374).

Joan Scott nos aponta que este conceito se vincula a um lugar de debates e lutas,

especialmente no que tange a compreensão do que seria natural ou social, uma vez que não

se dividem simplesmente entre as linhas simplórias e concisas (SCOTT,1991, p.17). Segundo

esta autora, gênero é, então, sempre uma tentativa de amenizar as ansiedades coletivas sobre

os significados da diferença sexual, necessariamente imprecisos. Impreciso, pois a despeito

das diferenças visivelmente anatômicas entre os corpos (quaisquer que sejam suas

variações), nossa imaginação não pode ser limitada na atribuição de significados para eles.

Observamos que o gênero se constrói como uma possível resposta (contingente, contenciosa

e mutável) para a belicosa questão. Esta construção teórica se apresenta numa perspectiva

relacional, sendo também um lugar perpétuo para a contestação política, um dos locais para a

implantação do conhecimento pelos interesses do poder (SCOTT,2012, p.21).

As escolhas realizadas por Aracy Côrtes nos trazem indícios para pensarmos no

universo de possibilidades e alternativas tangíveis às mulheres que, de diferentes maneiras,

intentaram construir suas trajetórias no mundo do divertimento carioca. Rachel Sohiet

adverte que devemos olhar para a história das mulheres em sua pluralidade, na divergência

de posições, debates e controvérsias (SOHIET,1998, p.83). Para a autora devemos nos pautar

na diversidade, na perspectiva de enxergar a “re-descoberta de papéis, seja em situações

cotidianas ou inéditas e atípicas”, desvendando processos sociais plurais, ante uma

perspectiva normativa (SOHIET,1998, p.87).

Acredito que a abertura dos historiadores para os diferentes atores sociais, constitui-

se no recurso possível para a obtenção de pistas que nos viabilizem a reconstrução das

experiências concretas das mulheres na sociedade carioca. Nesta perspectiva, a trajetória da

atriz, cantora e proprietária da Companhia Aracy Côrtes nos ajuda a pensar como a figura

feminina estava sendo debatida e questionada por diferentes segmentos sociais e como

liberdades sexuais estavam em disputa no alvorecer do século XX.

Não intento estudar a atuação dessa multifacetada artista isoladamente, examinada

em si mesmo, mas sim, nas relações entre seu protagonismo e a sociedade na qual estava

inserida. Como destaca Sabina Loriga, debruço-me sobre as experiências dessa cantora, atriz

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e empresária na tentativa de “romper o excesso de coerência do discurso histórico, ou seja,

para se interrogar não apenas sobre o que foi, sobre o que aconteceu, mas também sobre as

incertezas do passado e suas possibilidades” (LORIGA, 1998, p.248-249).

Estudar trajetórias de vida não se apresenta como uma tarefa fácil, uma vez que

implica reconstruir - trazendo à tona a percepção de Pierre Bourdieu - a “estrutura da rede”

na qual o indivíduo está inserido e age. Isto ajuda a nos manter alerta, do ponto de vista

teórico-metodológico, para os perigos e as armadilhas da “ilusão biográfica”. Seguindo as

propostas deste sociólogo francês, compreendo que, ao refletir sobre as trajetórias, devemos

estar atentos para afastarmos a construção de uma cronologia unidirecional, a criação de um

“eu” coerente e constante, com um “destino manifesto” (BOURDIEU, 2006, p.189).

Emerge-se, assim, a consideração de que as ações, escolhas possíveis, decisões,

permanentes mudanças e deslocamentos desta artista, nos dão a dimensão da complexidade

dos condicionamentos da experiência, da pluralidade dos campos de possibilidades e

contextos móveis existenciais, assim como a percepção de que conflitos e tensões

caracterizam, não apenas a trajetória de um sujeito histórico, mas o próprio movimento da

história. Giovanni Levi defende que as trajetórias de vida sejam analisadas de forma “mais

indireta do que direta”, pois “trata-se de um meio eficaz de constituir uma narrativa que dê

conta dos elementos contraditórios que constituem a identidade de um indivíduo e das

diferentes representações que dele se possa ter conforme os pontos de vista e as épocas”

(LEVI, 1996, p.170).

Adriana de Souza nos aponta a importância dos estudos sobre os relatos de vida, ao

afirmar que há uma singularidade em toda prática social. Nesta perspectiva a autora destaca

que devemos estudar os comportamentos dos atores envolvidos nestas práticas partindo da

idéia de conflito, de movimento e de instabilidade das formas sociais. Para Souza as

vivências do indivíduo devem ser percebidas através de suas “margens de manobra”, visto

que a são através delas que ele pode movimentar-se socialmente e promover modificações no

ambiente em que vive. Para esta, as trajetórias se desenham como lugares de uma “atividade

intensa e especificamente humana de leitura, de interpretação e de construção do real”

(SOUZA, 2007, p. 28).

Carlo Ginzburg salienta que os relatos de vida devem trazer a tona um olhar atento

para estas construções narrativas, no sentido de pensá-los na reconstrução dos contextos

móveis, compreendendo-os como “campo de possibilidades historicamente delimitadas”

(GINZBURG, 1989, p.183). Benito Schmidt também adverte que “devemos adotar estratégias

narrativas que estabeleçam uma permanente tensão entre o personagem e os

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constrangimentos/oportunidades de sua época” (SCHIMIDT, 2004, p.137). Dessa forma,

este autor nos alerta que os personagens estudados a cada momento de suas vidas, têm

diante de si um futuro incerto e indeterminado, no qual fazem escolhas, seguem alguns

caminhos e não outros. Schimdt ainda nos traz uma importante reflexão thompsoniana, ao

afirmar que “é necessário expressar o ‘fazer-se’ do personagem ao longo de sua existência”

(SCHIMIDT, 2004, p.139).

Aracy Cortes e heterogeneidade das experiências femininas na cidade do Rio de Janeiro

Zilda de Carvalho Espíndola nasceu no Rio de Janeiro, na capital federal, em 31 de

março de 1905, filha de Argemira de Carvalho Espíndola e Carlos Espíndola2. O casal já

possuía dois filhos – Silvino e Dalva –, e moravam na Rua do Matoso, bem próximo a região

da Praça da Bandeira. Esta se constituía como um espaço usualmente utilizado pelos circos

para montar suas lonas, como o Circo Spinelli, o Dudu Circo, entre outros. Anos depois, a

família Espíndola se mudou para o bairro do Catumbi, na Rua Magalhães, sendo vizinho de

Alfredo da Rocha Vianna3.

Declarava que era uma “mestiça terrível – filha de brasileiro, com espanhol e neta de

paraguaio”, e que estas influências a favoreciam na construção de seus personagens,

oferecendo uma infinidade de possibilidades para os “tipos brasileiros” – entre eles a mulata

e a baiana (BRASIL, 1977). Sobre sua infância, destacava que:

[...]Fui criada pela minha madrinha, uma senhora de alta sociedade, uma megera que me dava surras de meia-noite. Era uma criança marcada por beliscões. Mas o que ela me ensinou, aproveitei bem. Não completei curso nenhum, fui até o segundo ano ginasial, depois me instrui por mim mesma. Hoje tenho curso de inglês, de música e não me envergonho de minha gramática. Depois que me senti senhora de meu nariz, pé na estrada: me fiz atriz (BRASIL, 1977,p.21).

Essa entrevista concedida a Orlando Miranda, Mario Lago, Aldo Calveet, Aldomar

Conrado e Jota Efegê, publicada na série Depoimentos do Serviço Nacional de Teatro em

1977, nos revela que, para além das primeiras letras, esta importante atriz e empresária

2Carlos Espíndola nasceu em 1870 e morreu, precocemente, em 1920. Era um exímio flautista, aprendendo a tocar com o professor Antônio da Silva Salgado, professor da Escola de Música, visto que este morava próximo a sua residência. Espíndola tornou-se figura constante em inúmeros bailes na Tijuca, Andaraí, Vila Isabel, Matoso e Itagipe, entre outras localidades do Rio de Janeiro do final do século XIX e começo do século XX. Ver RUIZ, Roberto. Araci Cortes: Linda Flor, Rio de Janeiro, Funarte, 1984.

3Alfredo da Rocha Viana Filho nasceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ) em 23 de abril de 1897 e morreu, na mesma cidade, em 1973. Foi compositor, arranjador, flautista e saxofonista brasileiro. É considerado um dos mais importantes compositores da Música Popular Brasileira. Ver: CABRAL, Sérgio. Pixinguinha: vida e obra. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2007.

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teatral iniciou seus estudos secundários. Vivenciou um processo de instrução

institucionalizado, nos revelando ainda que sua educação pôde ser oportunizada por meios

plurais, até mesmo num possível investimento autodidata.

Muitos estudos em história da educação têm nos salientado a pluralidade de

experiências educativas de meninas e mulheres em diferentes grupos sociais, desde a

segunda metade do século XIX. Importa-nos destacar que para além das instituições

pedagógicas, a educação e a instrução também costumavam a ser transmitidas pelas mães,

criadas e outras mulheres das famílias, ou ainda pela ação de preceptoras ou professores

contratados (GONDRA; SCHUELER, 2008, p.201). Para as meninas e mulheres das camadas

mais abastadas, a formação englobava saberes relativos à administração doméstica, bem

como a aquisição de normas de conduta e hábitos da cultura urbana, valorizando a música e

as artes. Para as meninas das camadas populares, os autores destacam que

Desde muito cedo, a aprendizagem prática das atividades cotidianas nas tarefas domesticas, na agricultura ou nos ofícios urbanos era prioritária. O trabalho feminino e a circulação das mulheres nas ruas e nos espaços públicos, na maioria dos casos em atividades do pequeno comércio (rendeiras, quitandeiras, ambulantes, costureiras, floristas, doceiras), e em atividades domésticas (criadas, lavadeiras, damas de companhia, amas de leite, copeiras, etc.), no magistério (preceptoras, professoras das escolas e colégios particulares e públicos de primeiras letras, mestras de música, de artes, de produção de flores e objetos decorativos, de línguas estrangeiras etc.), na imprensa e no mundo das letras, além de outras inúmeras atividades, eram uma realidade incontestável nas principais cidades brasileiras do século XIX. Mesmo as mulheres pertencentes às elites, não raras vezes, na ausência dos pais, maridos, filhos ou outros responsáveis, assumiam a administração dos negócios familiares, seja no âmbito da produção domestica, seja nas atividades de serviços urbanos (GONDRA; SCHUELER, 2008, p.202).

Guacira Louro afirma que havia uma progressiva inserção das mulheres no mundo

letrado, nas escolas e na profissão docente (LOURO, 1977). Não obstante, professoras,

escritoras, jornalistas, artistas e intelectuais, em meio às desigualdades de gênero, se

utilizaram das letras para redimensionar seus espaços de participação política. No campo da

educação tal questão é imperiosa, visto que grande parte das meninas e mulheres se fizeram

professoras primárias ou preceptoras, atuando no magistério em escolas e colégios públicos

ou particulares, nos evidenciando – ainda mais – a atuação feminina na esfera pública

(SCHUELER,2004).

Schueler destaca que aulas e escolas primárias, colégios e educandários de ensino

secundário e Escolas Normais, a partir da segunda metade do século XIX, foram sendo cada

vez mais frequentados por meninas e mulheres (SCHUELER,2004). Estas vivenciaram

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múltiplas práticas educativas, permitindo-nos compreender o avanço do acesso e domínio do

código letrado pelas mesmas. Gondra e Schueler nos apontam que “a escola como dispositivo

de educação e modo de socialização das crianças angariou adeptos ao longo do século XIX, o

que se manifesta tanto no incremento das iniciativas públicas e privadas quanto no

crescimento do numero de matrículas, [...] especialmente nas escolas de meninas”

(GONDRA; SCHUELER, 2008, p.217).

Aracy experimentava assim, oportunidades educacionais tangentes a inúmeras

meninas nas primeiras décadas do século XX. E mesmo diante das desigualdades existentes

na educação dos meninos e meninas nas escolas primárias, sua vivência na escola contribuiu

para sua inserção no mundo letrado e no universo do Teatro de Revistas. Com a educação

formal tutelada pela madrinha, a convivência familiar intensificava as artes

(BRASIL,1977,p.10).

Roberto Ruiz afirma que o ambiente familiar ajudou a revelar um profundo interesse

pelo teatro e pela música, visto que o pai – músico assíduo em diferentes rodas de choros,

maxixes e lundus – a levava para participar de encontros em que a música popular era

frequente, algumas delas nas residências dos Rocha Vianna e de Tia Ciata4 (RUIZ, 1984,p.14).

Ruiz destaca que a “menina cresceu numa modesta casa, [...] encravada num bairro onde

havia tocatas noturnas pelas ruas e onde se formaria a primeira escola de samba, sendo ainda

um reduto de ciganos” (RUIZ, 1984,p.13). Mais do que isso, sabemos que sua irmã – Dalva

Espíndola5 – também foi artista do teatro de revista nos anos 1920, nos possibilitando

perceber uma circularidade das experiências de formação artísticas vivenciadas no seio

familiar.

Aracy se desenvolveu num período de intensas mudanças na cidade. Não apenas do

ponto de vista físico, mas também político, social e ideológico. Nirlene Nepomuceno salienta

que o Rio de Janeiro nas primeiras décadas da Primeira República, ainda que em

crescimento e com perspectivas econômicas extremamente promissoras, vivia uma acanhada

4 Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata (Santo Amaro da Purificação, 1854 — Rio de Janeiro, 1924) foi uma cozinheira e mãe de santo brasileira, considerada por muitos como uma das figuras influentes para o surgimento do samba carioca. Ela era a dona de uma casa onde se reuniam sambistas e onde foi criado "Pelo Telefone", o primeiro samba gravado em disco, assinado por Donga e Mauro de Almeida, na voz do cantor Baiano, nascido também em Santo Amaro da Purificação. Foi a mais famosa das tias baianas, em sua maioria iniciadas no Candomblé. Estas eram negras baianas que vieram para o Rio de Janeiro, especialmente na última década do século 19 e na primeira do século 20, para morar na região da Cidade Nova, do Catumbi, Gamboa, Santo Cristo e arredores. Ver: MOURA. Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. 2º ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural , Divisão de Editoração, 1995.

5 Atriz e cantora do teatro de revista, integrou a Companhia Negra de Revistas em 1926.

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industrialização e urbanização6. O traçado geográfico da cidade caracterizava-se por vielas e

becos apertados que dificultavam o escoamento dos produtos até o porto. Este, por sua vez,

mostrava-se obsoleto, limitando a atracação de navios de grande calado. Além disso, a cidade

era assolada, constantemente, por epidemias. Havia se difundido a ideia de um Rio de

Janeiro altamente insalubre, a ponto de as companhias europeias de viagem enfatizarem, em

suas propagandas, que as rotas para Buenos Aires passariam ao largo dos “perigosos focos”

de febre amarela do Rio de Janeiro7.

Nepumoceno afirma que o processo de urbanização, que motivou a destruição dos

cortiços, envolveu, além da especulação imobiliária, a determinação dos dirigentes em

transformar a “urbis africana”, como era representado o Rio de Janeiro na época, em uma

“Paris nos trópicos”. Tais questões viam-se concretizadas no plano de urbanização e

sanitarismo traçado no governo Rodrigues Alves (1902-1906)” (NEPOMUCENO, 2006,

p.30). A cidade sofreu profundas modificações, principalmente na área central, ocorrendo

uma série de demolições. A reforma – comandada pelo prefeito Pereira Passos (1902-1906) –

recebeu, na imprensa alinhada com os ideais “modernizantes” da República, o nome de

Regeneração. O povo, sintomaticamente, a cunhou de “bota-abaixo”.

Entre 1903 e 1906, período que ocorre o nascimento de Zilda de Carvalho Espíndola,

para além do arraso de casarões do centro da cidade do Rio de Janeiro e dos anseios de

afastamento da população pobre e negra dessa região, observava-se uma incisiva atuação de

juristas e médicos em intervir na correção dos comportamentos sexuais, incidindo

profundamente sobre as representações simbólicas das mulheres. Estas adquirem a

centralidade nestes discursos, uma vez que deveriam “contribuir para que o homem

assumisse o sustento da casa, e, com isso, se ocupariam do lar e dos filhos” (ESTEVES,1989,

p.28) . Para Esteves, “o sexo passou a ser um negócio do Estado, um assunto de interesse de

todo o corpo social, em função das exigências e definições médicas sobre a normalidade”

(ESTEVES,1989, p.27).

Margareth Rago destaca a promoção de um novo modelo de feminilidade, a “esposa-

dona-de-casa-mãe-de-família”, que se construiu na percepção das mulheres como frágeis e

6 Nepomuceno destaca que o Rio de Janeiro concentrava, então, a maior rede ferroviária nacional; exercia um papel privilegiado na intermediação dos recursos da economia cafeeira; dominava o comercio de cabotagem para o Nordeste e o Norte ate Manaus e abrigava a maior parte das grandes casas bancárias nacionais e estrangeiras. Ver: NEPOMUCENO, Nirlene. Testemunhos de Poéticas Negras: De Chocolat e a Companhia Negra de Revistas no Rio de Janeiro (1926-1927). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Historia Social. PUC-SP, 2006. p.25.

7 Para maiores análises acerca dos Cortiços e Epidemias na cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX, ver: CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo, Cia da Letras, 1996.

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soberanas, abnegadas e vigilantes (RAGO, 1990, p.59). Novas formas de etiqueta e

comportamento se estabelecem, primeiramente às moças das famílias mais abastadas e

gradativamente às trabalhadoras, exaltando as virtudes burguesas de laborosidade, castidade

e do esforço individual (RAGO, 1990, p.59). Afetiva, mas assexuada – em reforço a ideia de

mulher-mãe, não-mulher-prazer – pairava sobre um imaginário social, visando afastar

quaisquer desvios que representassem uma ameaça à ordem sexual (ESTEVES,1989, p.59).

Entretanto, concomitante a modernização do espaço urbano e o desenvolvimento

industrial, algumas mudanças emergem na condição feminina, adquirindo um novo estatuto

na sociedade que se pretendia civilizada e próspera (RAGO, 1990, p.60). Não obstante, à

medida que o centro da cidade se transformava, com a proliferação de comércios mais

diversificados, se multiplicavam também os restaurantes, cafés, teatros, bordéis, praças e

passeios públicos, gerando alterações nas normas de comportamento e nas relações entre os

sexos (RAGO, 1990, p.63). Tais ações já podiam ser observadas desde o século XIX, mas

tomam um maior fôlego no alvorecer do século XX, tendo as mulheres uma participação mais

ativa na publicação de periódicos, organização de sociedades beneficentes ou associações,

entre outros (LENHARO, 1988, p.84). Essas novas práticas de sociabilidades, estavam,

gradativamente, modificando a circulação feminina nos espaços públicos. Malamud destaca a

emergência de novos papéis sociais, uma vez que se redefiniam suas funções sociais e sua

forma de inserção na sociedade (MALAMUD, 1988, p.66).

Para além do invólucro de “sexo frágil”, desde o século XIX, outros discursos entram

em disputa, lhe atribuindo diferentes perfis: combativa, corajosa, responsável pela educação

dos futuros homens da nação, ou escritora, trabalhadora, operária, advogada (RAGO, 1990,

p.65). Estas experiências podem ser observadas em algumas das revistas femininas do

período como “A Mensageira”, a “Revista Feminina” e o “O Quinze de Novembro do Sexo

Feminino”. Torna-se importante destacar que estes periódicos existiam desde a segunda

metade do século XIX, mas não apenas estes. A imprensa vigorava como um dos espaços de

participação política feminina, nos relevando as imbricadas relações entre gênero, imprensa e

a ampliação ao acesso à educação de meninas e mulheres no Rio de Janeiro (FRANÇA, 2013.

CAMPOS, 2007; BICALHO, 1989; ABRANTES, 2006). O Quinze de Novembro do Sexo

Feminino, especificamente, redigido e dirigido por Francisca Senhorinha da Motta Diniz –

tendo como colaboradoras suas filhas e diversas senhoras – apontava, no artigo intitulado

“Igualdade de Direitos”, a necessidade da “racional emancipação da mulher”:

Cremos, com aquella boa fé que as nobres causas inspiram, que, esse ideal chegara mui breve a sua realidade, quando a mulher illustrada e livre dos

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prejuízos e preconceitos tradicionaes banir de sua educação as opressões e erroneos preconceitos com que a cercam, e que der pleno desenvolvimento à sua natureza physica, moral e intelectual [...] A emancipação da mulher pelo estudo, é o facho luminoso que pode dissipar-se as trevas pela verdade em que deve viver e que leval-a há ao templo augusto da sciencia, de bem viver na sociedade civilizadora (O QUINZE DE NOVEMBRO, 1890, nº14).

As reivindicações por maior acesso a educação e aos mundos do trabalho pululavam

de forma pungente no alvorecer da República. Margareth Rago afirma que, paulatinamente,

novas profissões se abriram para o universo feminino, possibilitando um maior acesso à

educação pública e privada, a despeito dos inúmeros obstáculos. Intensificam-se as disputas

e os embates no momento em que – como operárias, enfermeiras, médicas, entre outras

profissões – as mulheres passam a ser percebidas como possíveis concorrentes dos homens,

abrindo espaços para reinvindicações acerca da igualdade entre os sexos e de uma cidadania

plena - sendo dotadas dos mesmos direitos e deveres perante a sociedade e do Estado

(RAGO, 1990, p.59).

Observa-se a presença das mulheres em profissões antes reservadas apenas ao

universo masculino e uma ampliação do número de profissionais em áreas com uma maior

abertura ao público feminino – como é o caso do magistério. Inúmeras pesquisas nos

elucidam o processo de feminização do professorado primário, nos revelando o maior acesso

de meninas e mulheres à educação pública e privada (SCHUELER, Alessandra, 2004;

GOUVÊA, 2004; CAMPOS, 2002; BONATO, 2002; MÜLLER, 1999; NOVAES, 1991;

VILLELA, , 2000).

Nas contradições inerentes ao processo histórico, mesmo com uma maior abertura

profissional, o “lar” permanecia como o espaço privilegiado de atuação feminina no horizonte

das autoridades públicas e detentores dos discursos científicos. Este imaginário doméstico

era cultivado nas mais heterogêneas esferas da vida social, e reverberado nos currículos da

escola primária. Na cidade do Rio de Janeiro, desde o período imperial, nas aulas destinadas

às meninas estabeleciam-se limites no ensino de álgebra, geometria, gramática, história e

geografia da nação (SCHUELER, 2001). Para Schueler,

a doutrina cristã, a leitura, a escrita e o cálculo elementar seriam ensinamentos suficientes, acrescidos das aulas de agulha, bordados e costura. A formação da mulher visando à vida doméstica, em detrimento da vida pública, reservada aos homens, era o ideal da instrução primária feminina (SCHUELER, 1999, p. 62).

Alessandra Schueler e José Gondra afirmam que, desde os meados do século XIX,

manuais de civilidade e livros de educação moral e de difusão de normas de comportamento

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para meninas começaram a ser noticiados entre as professoras e utilizados nas escolas

públicas primárias (GONDRA;SCHUELER, 2008, p.205). Rosa Fátima, ao trazer as

propostas de Rui Barbosa acerca da reforma do ensino primário e várias instituições

complementares da instrução pública em 1883, destaca que havia um consenso quanto à

diferenciação no currículo das meninas (SOUZA, 2000). Tais desigualdades de gênero faziam

parte do contexto histórico no qual Aracy Cortes estava inserida. E eram questões latentes em

uma esfera transnacional.

Destaca-se a necessidade de estarmos atentos à multiplicidade das experiências

históricas femininas na cidade do Rio de Janeiro entre o final do século XIX e as primeiras

décadas do século XX. Ou seja, não podemos encerrar apenas no universo doméstico, no

casamento, no lar e nas exigências morais os anseios, angústias e questões vividas pelas

mulheres na urbe carioca. Até mesmo a frequência das meninas e moças das camadas menos

abastadas à escola primaria, na qual aprendiam trabalhos manuais de agulha e bordados,

pode ter representado um meio de preparo para o exercício de ofícios remunerados, o que era

fundamental para a sobrevivência de suas famílias (GONDRA;SCHUELER, 2008, p.206).

Entende-se assim, como inúmeras possibilidades estavam em disputa ao nos debruçamos

sobre trajetórias femininas, e que entre o lar e os palcos das revistas havia uma infinidade de

nuances, que emergem a fim de iluminar nossas percepções acerca das escolhas promovidas

por Aracy Côrtes.

Torna-se, a meu ver, importante afirmar como o campo da cultura foi um importante

ambiente para construção do diálogo entre os diferentes lugares e grupos sociais na capital

federal. Ainda mais se for levada em consideração as inúmeras formas de circulação cultural

presentes em uma urbe multifacetada como esta. Acredito que foram nestas possibilidades

que Aracy Côrtes se debruçou, utilizando-se do universo do divertimento como uma

alternativa para a ascensão social, em meio às desigualdades de gênero.

Raymond Williams, como outros autores do século XX, usa o termo cultura como

“prática social” e “produção cultural”, ambos entendidos como “sistema de significações”

(WILLIAMS, 1992,p.109). Para esse autor, cultura passou a incluir toda e qualquer “prática

significativa”, contemplando três dimensões antes desagregadas: cultura como “modo de vida

global”, como “sistema de significações” e como “atividades artísticas e intelectuais”

(WILLIAMS, 1992,p.114). Cultura não exclui uma dessas dimensões, e sim as agrega, as

conjuga, pois tanto as produções artísticas, literárias e poéticas quanto às vidas ordinárias

são culturais, carregam em si significados e valores formulados no coletivo, nas interações

humanas. Para o autor, "é ordinária porque está em toda sociedade e em toda mente"

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(WILLIAMS, 1992,p.108). Em todo lugar há sempre entre as pessoas um mundo a extrair e é

nesse mundo que está o potencial, a verdadeira capacidade de luta pela vida, na experiência

ordinária – ou seja, a cultura.

Para Williams, cultura produz a realidade. Na condição de força produtiva, ela

constitui o mundo real quando, interagindo com ele, se vale de meios materiais tais como: a

língua, as tecnologias específicas de escrita, formas de escrever e formas mecânicas de

comunicação etc. O produto cultural é, em grande medida, um desdobramento das relações

sociais que alteram a consciência prática que o produz. Entendê-lo, nesse caso, é descrever

essas relações e, em decorrência, os esquemas, instituições, mecanismos e forças produzidas

no processo prático de sua elaboração.

O Rio de Janeiro contava com múltiplos espaços de entretenimentos vinculados ao

universo cultural. Tiago de Melo Gomes aponta que se encontra documentada nos arquivos

da polícia do Distrito Federal, para as primeiras décadas do século XX, a presença de 12

teatros (capacidade média de quase 1.500 pessoas), 18 cabarés, cafés-cantantes e cafés-

concertos (espaços que conjugavam espetáculos de dança e músicas ao vivo), 35 circos

(média de 1.700 pessoas) e 76 cinemas (com capacidade média de aproximadamente 550

pessoas) (GOMES, 2004. pg. 69). É muito provável que estes dados estejam aquém da

realidade, sendo um caso gritante o dos estabelecimentos conhecidos como cabarés, cafés-

cantantes ou cafés-concerto, locais em que era possível comer, beber e assistir a espetáculos

de variedades. Por certo havia um número significativamente maior desses locais que o

registrado pela polícia. Mas, ainda assim, parece claro que o panorama que emerge da

documentação policial aponta a presença de um grande número de casas de diversão, nas

quais se poderia encontrar todo o tipo de entretenimento – cançonetas, números de óperas,

duetos, monólogos, conferências e atos de cabaré, comédias, burletas, operetas e revistas.

Este esboço rápido nos permite trazer à tona uma questão que nos é muito cara na

trajetória de Aracy Cortes, que são as relações entre experiência, educação e cultura. Tal

importância se faz na construção das relações entre o universo cultural e as possibilidades de

compreensão das experiências dos sujeitos, visto que nosso objeto de estudo é uma

importante artista envolvida no mundo do entretenimento carioca no início do século XX –

atriz, cantora e empresária de diferentes peças do teatro de revista. Para Thompson, a cultura

pode ser descrita como uma “consciência afetiva e moral”, evidenciando uma profunda

conjunção entre experiência, cultura, moral e valores (THOMPSON, 1981, p.35).

Entre a determinação e a apropriação, entre a estrutura e o processo, entre a

singularidade e a generalização, Thompson introduz a noção de experiência – extremamente

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importante para o campo educacional. Esse termo implica, necessariamente, no

reconhecimento dos sujeitos como reflexivos que, em suas ações, repõem continuamente o

movimento da História. Para ele, “a experiência surge espontaneamente no ser social, mas

não surge sem pensamento. Surge porque homens e mulheres (e não apenas filósofos) são

racionais, e refletem sobre o que acontece a eles e ao seu mundo” (THOMPSON, 1981, p.16).

Luciano Mendes de Faria Filho, Marcus Aurélio Taborda de Oliveira e Liane Maria

Bertucci destacam as profícuas relações entre educação, experiência e cultura, uma vez que

muitos artesãos, domésticos, enfim, trabalhadores, no seu tempo livre, às vezes, às altas horas

da noite, à luz de velas, dedicavam-se a com vigor à cultura. Entre os elementos em

desenvolvimento se destacavam o letramento, a instrução e a linguagem, muitas vezes

adquiridos de forma autodidata. Os autores afirmam que a educação e a cultura se

desenvolvem também com o consórcio do teatro, dos pasquins e cartoons, da cultura oral, da

aquisição de um saber utilitário e de uma política das ruas, tabernas e mercados, onde os

textos das mais diversas naturezas eram lidos em voz alta para aqueles que não sabiam ler,

onde eram representadas peças que retratavam a miséria dos pobres e a opulência dos ricos,

onde eram discutidos com veemência os arbítrios do poder, onde eram produzidos impressos

baratos acessíveis à maior parte da população (BERUCCI; FARIA FILHO; OLIVEIRA, 2010,

p.76).

A cultura adquire assim uma materialidade tal que institui práticas antes não

realizadas e possíveis, estipula mudanças nas relações entre homens e entre grupos de

homens, gerando identidades, conflitos, relações de subordinação, alternativas de trabalho

intelectual, em suma, uma infinidade de interações e, com elas, instituições, valores, modos

de viver (BERUCCI; FARIA FILHO; OLIVEIRA, 2010, p.125). A cultura é um vivo espaço no

qual as experiências são vivenciadas e experimentadas. Nesse universo, educação, instrução e

formação podem ser adicionadas como ingredientes importantíssimos na vivência da cultura,

compondo-se como experiências absolutamente presentes nas questões acerca de normas,

obrigações e expectativas.

Luciano Mendes de Faria Filho, Marcus Aurélio Taborda de Oliveira e Liane Maria

Bertucci nos apontam como a ideia de formação8 pode remeter a um conjunto impreciso de

situações. A formação, que se insere em uma tentativa de compreensão e intervenção na

8 O “fazer-se” e “formar-se” foram temas de um importante estudo do autor, intitulado “Formação da classe operária inglesa”, tradução em português de “The Making of the english working class”. Neste estudo, Thompson procura ressaltar o movimento histórico perpetrado pelos próprios trabalhadores de se “autofazerem” como classe. Constata-se, assim, como a educação participa da formação da classe e se forma, ao mesmo tempo, pela ação dos trabalhadores. Ver THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: a força dos trabalhadores. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. Vol. III.

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cultura a partir das lentes próprias do sujeito que se forma, seja ele individual, seja coletivo,

não pode ser concedida nem tutelada. Thompson nos lembra que a formação é um ato de

autodeterminação, de autodisciplina (THOMPSON, 1989, v.III). Implica uma vontade de

conhecimento que visa, em última instância, ao desencantamento do mundo, articulando

uma profunda necessidade de autorreflexão crítica sobre as formas de organização da cultura.

Entre as ressignificações impostas pelas transformações na urbe carioca e a confluência

de diferentes grupos sociais oriundos de diversas regiões do País, tensões, conflitos, avanços,

recuos e transgressões afloraram numa sociedade em que “projetos hegemônicos dificilmente

coincidiam com as experiências concretas de setores oprimidos da população” (DIAS, 1995,

p.233). Assim, em meio às desigualdades de gênero, nas injunções entre entretenimento e

crítica social, na qual situam-se as obras que foram encenadas por Aracy Côrtes, a cidade do

Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XX, viu emergir experiências à contrapelo da

ordem dominante, vivendo um período marcado por diversificadas formas de expressão do

protagonismo feminino.

Se fazendo atriz: construindo experiências no Teatro Amador

No período que estava em meados do ensino secundário, Zilda de Carvalho Espíndola

cursava aulas de datilografia, piano e canto orfeônico. Sob o olhar atento da madrinha e do

pai, buscava desenvolver seus estudos em consonância com seus interesses no campo das

artes. Roberto Ruiz afirma que por volta dos 16 anos, após um convite de um professor,

passou a participar da Sociedade Dramática Particular Filhos de Talma (RUIZ, 1984, p.15).

Esta sociedade localizava-se no bairro da Saúde, em edifício próprio na Rua do

Propósito, nº12. Funcionava – ou melhor, funciona visto que ainda permanece aberta até os

dias atuais – não só como uma escola de arte dramática, mas também como um espaço de

apresentações de recitais e peças de teatro abertos ao público. As encenações teatrais, em sua

maioria composta pelos integrantes das turmas de teatro ou de música, poderiam também

fazer parte de algum evento beneficente – como por exemplo, em favor do Club Operário e

Proletário da Saúde, da Sociedade Beneficente dos Mestres Práticos da Bahia do Rio de

Janeiro9, ou até mesmo dos famintos do nordeste em meio a uma forte seca que assolou o

Norte do País em 1904. Em nota na sessão Theatros, o Jornal do Brasil (1893) anunciava:

9 Jornal do Brasil, Coluna Theatros, 27 de Fevereiro de 1893.

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A Sociedade Dramática Particular Filhos de Talma convida para recita em beneficio da Irmandade de Nossa Senhora da Saude, hoje, sábado 18 de maio de 1901, às 8 ½ da noite com a apresentação do afamado drama Braz, o tecelão e a commedia em 1acto O Lucas que ri... O Lucas que chora!

A comissão, composta por dez irmãos.

Observa-se que os grêmios dramáticos, para além de atividades artísticas e

recreativas, afirmavam-se como locais de auxílio mútuo aos diferentes trabalhadores e

moradores que compunham a localidade a qual pertenciam. Luciana Penna Franca destaca

que o teatro amador era uma alternativa extremamente presente no cotidiano carioca na

Primeira República, sendo vivenciado por grupos sociais heterogêneos, e em espaços cênicos

variados. Para esta autora, o “teatrinho”, como tantos se referiam ao teatro amador, assumiu

múltiplas formas e ocupava um espaço significativo nos diferentes bairros da cidade,

concorrendo e disputando plateias com o teatro comercial. Segundo Thiago de Melo Gomes,

a existência desses grupos dramáticos mostrava a força teatral nos bairros, evidenciando-nos

a importância desta vertente cultural para a vida da cidade.

Nas primeiras décadas do século XX, período em que coincide com a participação de

Aracy Cortes na Sociedade Dramática Particular Filhos de Talma, observa-se uma grande

quantidade de solicitações de licença para funcionamento, encaminhados pelos grupos

teatrais à polícia do distrito federal. Tiago de Melo Gomes aponta que uma análise superficial

dos estatutos das sociedades recreativas nos permitem compreender a difusão do teatro

amador na cidade, reconhecendo ainda uma heterogeneidade nos agentes sociais que

compunham esses grupos (GOMES, 2004, p.72). Franca afirma que, no Rio de Janeiro entre

1865 e 1920, é possível identificar cento e quarenta e um locais onde grupos amadores faziam

teatro, identificados como grêmios, clubes, palcos, grupos dramáticos, teatrinhos e

sociedades amadoras (FRANCA, 2011, p.36). Para essa autora:

Entre os grêmios encontrados em Botafogo, havia o Grêmio Amadoras da Flor de São João, que pretendia “ser dançante, recreativo e familiar”, formado apenas por senhoras ligadas à Sociedade Musical Flor de São João. No Centro, a Estudantina Furtado Coelho também estava ligada ao Grêmio Dramático de mesmo nome que, segundo os estatutos, era quem determinava as regras para os dois grupos, sendo a diretoria formada pelas mesmas pessoas. Com características bem distintas de outros clubes, havia o Centro Galego, com sócios que deveriam ser de Galiza ou ser filho de pai galego – apesar de aceitar os brasileiros, portugueses ou provenientes de outras províncias espanholas –, mas em categoria diferente dos primeiros. Os estatutos do Centro Galego são muito específicos em relação às homenagens, festas e atos patrióticos que deveriam cumprir; além disso, também tinham uma forte preocupação com a educação dos participantes e filhos de participantes. Outro clube cujo nome indica ser constituído por

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imigrantes, o Luzitano Club, no entanto, não fazia distinção de nacionalidade dos sócios. Uma preocupação comum de todos eles era com a criação de uma biblioteca para os associados. Essa preocupação também estava presente entre os membros do Recreio Dramático Juventude Portugueza e no Theatro Club ou no Grêmio Dramático Taborda, sediados no Centro do Rio de Janeiro. Ainda nessa área, encontrei, pelo menos, dois grupos mais ligados aos operários e seguidores da ideologia anarquista, que eram: o Grupo Dramático Teatro Livre e o Grupo Dramático Anti-Clerical (FRANCA, 2011, p.37).

Franca e Gomes destacam que essas agremiações constituíam-se como espaços de

formação social, promovendo práticas de letramento, palestras diárias, encontros e debates

de textos teatrais que permeavam o cotidiano da cidade. Como escolas de arte dramática e

palcos para as mais diferentes companhias teatrais da cidade, as sociedades configuravam-se

como locais em que práticas educativas plurais eram vivenciadas em diversos bairros do Rio

de Janeiro, especialmente nos subúrbios, nos evidenciando também a importância do teatro

em toda a cidade.

Nessa perspectiva, revela-se necessário compreender a educação de forma ampla e

multifacetada, no intuito de conceber que possibilidades muito diversas e heterogêneas de

letramento coexistiram nas décadas finais do Oitocentos e início do Novecentos. Ou seja, não

podemos engessar as iniciativas de formação pautadas apenas em uma ação educacional

institucionalizada.

Apresenta-se como extremamente relevante a ação da sociedade civil nos processos

educacionais, principalmente no contexto do pós-abolição, em que percebemos que as

instituições fundadas pelo Estado – tanto Imperial quanto Republicano – não conseguiam,

numericamente, atender a toda a população que demandava instrução. A pluralidade das

forças educativas, por meio da criação de diferentes espaços e redes de sociabilidade, formais

ou informais, em estreito diálogo, consolidou um amplo conjunto de relações, promovendo

aproximações, divergências e embates. Gondra e Schueler, trazendo à tona as reflexões de

Ângela de Castro Gomes, atribuem e analisam a educação no Brasil ao longo do novecentos

em uma perspectiva absolutamente mais vasta (GOMES,1996). Os autores destacam que:

Investigar as forças educativas oriundas da iniciativa da sociedade significa unir as trajetórias de indivíduos e grupos, buscando mapear suas ideias, tradições, comportamentos e formas de organização, de modo que seja possível caracterizar e compreender seus esforços de reunião e de afirmação de identidades em determinados momentos históricos. Significa, igualmente, privilegiar as condições sociais em que essas formas de sociabilidade foram produzidas, reconhecendo sua autonomia relativa, sem esquecer que possuem vinculações com outros setores da sociedade, como a família, a Igreja ou o Estado (GONDRA; SCHUELER, 2008, p.63).

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Esses espaços de sociabilidade nos demonstram como os projetos para a nação e a

educação estavam relacionados. Espaços de sociabilidade formais – entre eles as confrarias,

as irmandades religiosas e leigas, as lojas maçônicas e grêmios, as academias, institutos de

pesquisa, as sociedades corporativas ou profissionais, científicas, literárias, filantrópicas e

pedagógicas– adquirem uma importância fundamental na sociedade do século XIX

(GONDRA; SCHUELER, 2008, p.69). E não apenas nele, no novecentos também. Como

meios informais de sociabilidade podemos destacar as redes familiares e sociais, seus ritos,

cerimônias e comemorações, as festas, eventos e procissões religiosas e profanas; espetáculos

e festejos; os espaços públicos como ruas, praças, mercados, largos, tabernas e quiosques,

manifestações populares, os gritos, gestos, enfim, as vozes públicas e anônimas das ruas.

Entre as ações da sociedade civil, não podemos nos furtar a organização das

sociedades dramáticas. Até mesmo porque foram nestes palcos que Zilda de Carvalho

Espíndola viveu algumas de suas experiências artísticas. Franca salienta que, contrariando as

especulações de alguns críticos que evidenciavam um tratamento no diminutivo – “teatrinho”

–, evidenciava-se uma grande articulação desses grupos (FRANCA, 2011, p.45). Não

obstante, os pedidos de licença para funcionamento, os estatutos dos clubes, grêmios e

sociedades e os periódicos nos comprovam a presença significativa do teatro amador em toda

a urbe carioca.

O teatro amador reunia artistas dos mais diferentes grupos sociais, nos permitindo

também construir uma grande heterogeneidade de público, nas plateias que os frequentava.

Franca nos salienta que era possível ver nesses palcos intensas disputas e debates sobre

cotidiano da cidade, viabilizando a difusão de questões políticas e sociais na construção de

um “novo” e “moderno” Rio de Janeiro (FRANCA, 2011, p.45). O periódico Epoca Theatral –

suplemento da Revista Lettras e Artes – no dia 22 de setembro de 1917, anunciava que

[...] Nos subúrbios, onde muitos deles (amadores) existiram ou existem nesses palcos d’amadores dramáticos, não raras as organizações d’artistas se revelaram. Algumas delas são hoje, nos vários clubes ou no grande teatro, vultos queridíssimos pelos seus méritos. Podemos citar entre outras Lucilia, Carmen Azevedo, Cintra, etc.

Nesse viés, podemos ver a significativa presença dos grupos amadores nos subúrbios

da capital federal, organizados em clubes dramáticos e centros cômicos. Segundo Tiago de

Melo Gomes, esta é uma percepção difundida nas coletâneas sobre o teatro no Brasil

(GOMES, 2004, p.74). Em 1943, Escragnolle Doria publica um artigo citando os grupos

dramáticos amadores e destaca que, no Rio de Janeiro, a presença destes era extremamente

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marcante, havendo “teatrinhos” em quase todos os bairros da capital federal (DORIA, 1943,

p. 19).

Franca afirma que “essa disseminação do teatro amador ocorreu paralelamente à

expulsão da população do centro da cidade em direção as zonas norte e sul, em função das

diversas intervenções urbanas do princípio do século XX” (FRANCA, 2011, p.50). Essa autora

nos salienta que, nas primeiras décadas do novecentos, o teatro amador ocupava um espaço

destacado no mundo do divertimento e lazer da capital federal, formando novos artistas

teatrais, construindo múltiplas possibilidades de participação social, concorrendo ainda

concorrendo com o teatro comercial.

Arthur Azevedo, na peça O Mambembe, aponta que “há teatrinho em todos os

bairros” (AZEVEDO, 2010). Costa constata que os grupos de amadores teatros estavam

espalhados pela urbe carioca:

Não há recanto da cidade, por mais remoto, por mais despovoado que seja, que não se orgulhe de possuir um palcozinho, um grupo de amadores, e, o que é melhor, uma numerosa e entusiástica platéia. Possuímos, no centro, o Hodierno Club, instalado no casarão do Teatro Fênix, que espera a picareta de Passos, tendo por ensaiador o melhor técnico, que no gênero possuímos, o velho Heller. Além do Hodierno, há o teatro do Ginástico Português, o do Clube da Gávea, o do Grêmio de Botafogo, o do Elite, do Andaraí, o do Tijuca e o do S. Cristóvão. Há-os em Catumbi, no Itapiru, nas Laranjeiras, na Saúde (Clube Talma), no Campinho, em Cascadura e até em Jacarepaguá (COSTA, 1987, p.29).

Franca nos propicia uma reflexão sobre a notoriedade do teatro na capital federal,

visto que os periódicos de maior circulação na capital federal, como O Malho ou a revista Fon

Fon, evidenciavam as novidades e questões do teatro com regularidade; ou ainda a

publicação do Almanaque Suburbano visando atender o “público inteligente e progressista

que habita nos subúrbios” (FRANCA, 2011, p.55). Boletins e anuários eram também meios de

divulgação do que acontecia no meio teatral, e mais, de necessidades vividas pelos artistas,

como fazia, por exemplo, o Anuário da Casa dos Artistas, fundada pelo ator Leopoldo Fróes

em 1918. Esses periódicos eram, então, mais um recurso para a divulgação de ideias,

propostas e alternativas, e se tornaram fundamentais na história da imprensa e do teatro

(FRANCA, 2011, p.55).

A trajetória de Aracy Cortes, com sua participação na Sociedade Dramática Filhos de

Talma e no Democrata Circo, nos aponta para o fato de que a educação não esgota seu

significado na escola. José Gondra e Alessandra Schueler salientam a heterogeneidade das

forças educativas, ampliando as percepções a respeito da “noção” de educação, visto que esta

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também “se processa no espaço privado, no convívio intimo, nas leituras comuns, nas

conversas, músicas, danças, festas, procissões e jogos” (GONDRA; SCHUELER, 2008, p.10).

Ana Luiza Costa nos mostra a importância de redimensionarmos a nossa concepção de

educação, uma vez que devemos olhar para “o educar-se como a experiência vivida, o ensinar

e o aprender entre os próprios sujeitos populares, mesmo fora da escola, fosse em associações

de trabalhadores, ou de forma mais difusa em seu cotidiano” (COSTA, 2010, p.32).

É preciso evidenciar, então, que o projeto de educação posto em ação na e pela escola

dialoga, e até mesmo entra em tensão, com processos educativos já existentes. Para

Thompson, longe de qualquer idealização, as dimensões de formação devem ser percebidas

como estando intimamente relacionadas ao conjunto das experiências dos sujeitos. Este

afirma que:

Os valores não são pensados, nem chamados, são vividos, e surgem dentro do mesmo vínculo com a vida material e as relações materiais em que surgem as nossas ideias. São as normas, as regras, as expectativas etc. necessárias e aprendidas (e aprendidas no sentimento) no habitus de viver; e aprendidas, em primeiro lugar, no trabalho e na comunidade imediata. Sem esse aprendizado a vida social não poderia ser mantida e toda a produção cessaria (THOMPSON,1989, p. 358).

Ao considerarmos as diferentes vivências de Zilda no universo do entretenimento

carioca, apreendemos a percepção que Edward P. Thompson intenta ao nos incentivar a

olhar para a sociedade na sua multifacetada rede de relações. Tal concepção nos fornece uma

importante contribuição para o entendimento dos diálogos que espaços culturais travavam

com a formação dos sujeitos sociais na cidade do Rio de Janeiro, entre os séculos XIX e XX.

Valores, moral, censura e cultura eram debatidos nos diferentes palcos cariocas, para nós

com especial atenção aqueles em que os artistas negros começavam suas carreiras artísticas.

Dentre esses locais, destacamos as sociedades de arte dramática, os cafés, os circos, os

cinematógrafos e, principalmente, o teatro de revista.

A experiência na Sociedade Dramática Filhos de Talma, segundo Roberto Ruiz, fez

com que Aracy Cortez afirmasse para si a possibilidade de tornar-se uma artista do

entretenimento carioca. Para este, “os aplausos do público, as luzes sobre ela, a oportunidade

de viver mil vidas diversas” (RUIZ, 1984, p.26) alimentou sua escolha pelos palcos

musicados.

Entre as múltiplas possibilidades para mulheres, no alvorecer da Primeira República,

o universo de divertimento e lazer consolidou-se como alternativa plausível para esta

protagonista social. Entretanto, em meio às desigualdades de gênero, na multiplicidade de

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determinações que permeavam a condição feminina na capital federal, nas nuances entre a

vida doméstica e o espaço público, Zilda de Carvalho Espíndola foi, gradativamente

construindo a Aracy Côrtes.

Referências

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