Os Géneros Da Poesia Trovadoresca

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1 GÉNEROS DA POESIA TROVADORESCA CANTIGA DE AMIGO É um género autóctone, peninsular, cujas origens remontam a uma tradição arcaica da canção em voz feminina. Embora sejam compostas por homens, esta voz feminina que nelas se exprime é a da jovem enamorada, normalmente pertencente às camadas populares, que canta a variedade de sentimentos inspirados pelo seu amigo (que significa namorado ou amante): alegria pela proximidade de um encontro, tristeza e saudade pela sua partida ou pela incerteza do seu regresso, ciúme e raiva pela traição e pelos enganos. A atmosfera das cantigas de amigo é popular, rural e quotidiana, revelando um universo vincadamente feminino, no qual participam, além da jovem donzela, a mãe, as irmãs ou as amigas, com quem ela frequentemente desabafa. Ao nível formal, as cantigas de amigo são quase sempre de refrão e, muito frequentemente, apresentam uma construção estrófica conhecida como “paralelismo”, que consiste num esquema fixo de repetições e variáveis de versos. Muitas cantigas de amigo apresentam uma estrutura original, mas simples, assente num esquema de repetições. Este esquema facilita a fácil memorização, necessária à transmissão oral e ajusta-se ao acompanhamento musical. Além disso, permite construir uma composição de seis estrofes e dezoito versos com apenas quatro versos completamente diferentes e um refrão. As composições que obedecem a este esquema chamam-se paralelísticas perfeitas e apresentam as seguintes caraterísticas: - dísticos e refrão; - número par de estrofes; - estrofes agrupadas em unidades de duas estrofes muito semelhantes, diferindo só, ou quase só, nas palavras da rima; - rima de vogal tónica a num dos dísticos de cada par, e i ou ê no outro. - o segundo verso de cada estrofe é o primeiro verso da estrofe correspondente no par seguinte; - cada estrofe é seguida de refrão: Verso A Estrofe 1 Verso B Refrão 1.º par Verso A (variante de A) Estrofe 1 Verso B (variante de B) Refrão Verso B (variante de B) Estrofe 3 Verso C Refrão 2.º par Verso B (variante de B) Estrofe 4 Verso C (variante de C) Refrão As cantigas de amigo nasceram no meio rural, como complemento do bailado e do canto colectivo dos ritos primaveris, próprios das civilizações agrícolas em que a mulher goza de maior importância social. Transplantada para outros meios, as suas formas variaram e, em muitos sentidos, enriqueceram-se, ao mesmo tempo que se adaptavam a novos temas caraterísticos de uma civilização mais adiantada.

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Lírica trovadoresca

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GÉNEROS DA POESIA TROVADORESCA

CANTIGA DE AMIGO

É um género autóctone, peninsular, cujas origens remontam a uma tradição arcaica da canção em

voz feminina. Embora sejam compostas por homens, esta voz feminina que nelas se exprime é a da jovem

enamorada, normalmente pertencente às camadas populares, que canta a variedade de sentimentos

inspirados pelo seu amigo (que significa namorado ou amante): alegria pela proximidade de um encontro,

tristeza e saudade pela sua partida ou pela incerteza do seu regresso, ciúme e raiva pela traição e pelos

enganos.

A atmosfera das cantigas de amigo é popular, rural e quotidiana, revelando um universo

vincadamente feminino, no qual participam, além da jovem donzela, a mãe, as irmãs ou as amigas, com

quem ela frequentemente desabafa.

Ao nível formal, as cantigas de amigo são quase sempre de refrão e, muito frequentemente,

apresentam uma construção estrófica conhecida como “paralelismo”, que consiste num esquema fixo de

repetições e variáveis de versos.

Muitas cantigas de amigo apresentam uma estrutura original, mas simples, assente num esquema

de repetições. Este esquema facilita a fácil memorização, necessária à transmissão oral e ajusta-se ao

acompanhamento musical. Além disso, permite construir uma composição de seis estrofes e dezoito versos

com apenas quatro versos completamente diferentes e um refrão. As composições que obedecem a este

esquema chamam-se paralelísticas perfeitas e apresentam as seguintes caraterísticas:

- dísticos e refrão; - número par de estrofes; - estrofes agrupadas em unidades de duas estrofes muito semelhantes, diferindo só, ou quase só, nas palavras da rima; - rima de vogal tónica a num dos dísticos de cada par, e i ou ê no outro. - o segundo verso de cada estrofe é o primeiro verso da estrofe correspondente no par seguinte; - cada estrofe é seguida de refrão:

Verso A Estrofe 1 Verso B Refrão 1.º par Verso A (variante de A) Estrofe 1 Verso B (variante de B) Refrão Verso B (variante de B) Estrofe 3 Verso C Refrão 2.º par Verso B (variante de B) Estrofe 4 Verso C (variante de C) Refrão As cantigas de amigo nasceram no meio rural, como complemento do bailado e do canto colectivo

dos ritos primaveris, próprios das civilizações agrícolas em que a mulher goza de maior importância social.

Transplantada para outros meios, as suas formas variaram e, em muitos sentidos, enriqueceram-se, ao

mesmo tempo que se adaptavam a novos temas caraterísticos de uma civilização mais adiantada.

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Podemos notar uma intimidade espontânea com a Natureza que é muito diferente do gosto

romântico da paisagem (como quadro ou reflexo dos sentimentos humanos) e que deve antes relacionar-se

com o animismo típico de certa mentalidade primitiva. Parece haver uma afinidade mágica entre a água da

fonte, as flores, etc. É frequente a menina desabafar com a natureza, que passa a ser a sua confidente.

Outra caraterística desta poesia é o ambiente familiar e burguês a que ela nos conduz, uma poesia

de intimidades domésticas e nisso reside o seu maior encanto, a sua veracidade. Esta poesia reflecte um

ideal de vida muito menos elevado e muito mais humano: a donzela, sob a guarda da mãe, confia-nos os

mil e um incidentes psicológicos da sua vida sentimental, do seu namoro e da sua paixão.

A cantiga de amigo possui um carácter mais narrativo e descritivo do que a de amor, de feição

acentuadamente analítica e discursiva.

Esta classifica-se, de acordo com o lugar geográfico e as circunstâncias em que decorrem os

acontecimentos, em serranilha, pastorela, barcarola, bailada, romaria, - alva ou alvorada (surpreende

os amantes no despertar dum novo dia, depois de uma noite de amor).

CANTIGA DE AMOR

De origem provençal e aristocrática, segue muito claramente o universo de amor cortês: um

conceito de amor importado das cortes do sul de França, segundo o qual as relações entre o homem e a

mulher se regem por um código semelhante ao da relação feudal suserano-vassalo, sendo a mulher

amada a “senhor”, que o poeta venera pela sua perfeição e a quem serve e deve eterna obediência.

A cantiga de amor é, precisamente, a expressão dessa paixão em voz masculina, que canta as

superiores qualidades de uma senhora bela, perfeita e inatingível, e o sofrimento que a sua indiferença ou

a vivência silenciosa desse amor impossível provocam no poeta. No fundo, o trovador empreende uma

confissão dolorosa da sua angustiante experiência de amor frente a uma dama inacessível aos seus apelos.

Essa dama seria inacessível, entre outras razões, pelo facto de ter uma estirpe social superior, enquanto

que ele seria, quando muito, um fidalgo decaído. É a coita (sofrimento) de amor que afinal ele confessa.

Quanto aos temas, elaboraram os Provençais o ideal de amor cortês, tão diferente do idílio

rudimentar nas margens dos rios ou à beira das fontes que os cantares de amigo nos deixam entrever. Não

se trata agora de uma experiência sentimental a dois, mas de uma aspiração, sem correspondência, a um

objecto inatingível, de um estado de tensão que, para se manter, nunca pode chegar ao fim do desejo.

Manter este estado de tensão parece ser o ideal do verdadeiro amador e do verdadeiro poeta, como se o

movesse o amor do amor mais do que o amor a uma mulher. E não só a esta dirigem os poetas as suas

implorações, queixas ou graças, mas ao próprio Amor personificado, figura de retórica muito comum entre

os trovadores provençais e por eles transmitida aos galego-portugueses. O amor reina, até numa Vila ideal,

com as suas cortes, o seu foro e leis.

O trovador imaginava a dama como um suserano a quem “servia” numa atitude submissa de

vassalo, confiando o seu destino ao “bom sem” da “senhor”. Havia todo um código de obrigações que

preceituava o “serviço” do amador. Segundo esse código, o trovador teria de mencionar comedidamente o

seu sentimento (mesura), sendo essa uma qualidade suprema, a fim de não incorrer no desagrado (sanha)

da bem-amada; teria de ocultar o nome dela ou recorrer a um pseudónimo (senhal), não podia ausentar-se

sem a sua autorização e tinha de prestar-lhe uma vassalagem que apresentava quatro fases:

- a primeira correspondia à condição de fenhedor, de quem se consome em suspiros; - a segunda é a de precador, de quem ousa declarar-se e pedir; - entendedor é o namorado;

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- drut, o amante. O lirismo trovadoresco português apenas conheceu as duas últimas fases, mas o drut (drudo em

Português) encontrava-se exclusivamente na cantiga de escárnio e maldizer. Também a senhal era

desconhecida de nosso trovadorismo.

O trovador, portanto, subordina todo o seu sentimento às leis da Corte amorosa e, ao fazê-lo,

conhece as dificuldades interpostas pelas convenções e pela dama no rumo que o levaria à consecução de

um bem impossível. Mais ainda: dum' bem (e "fazer bem" significa corresponder aos requestos do trovador)

que ele nem sempre deseja alcançar, pois seria por fim ao seu tormento masoquista, ou início de um outro

maior. Em qualquer hipótese, só lhe resta sofrer, indefinidamente, a coita amorosa.

E ao tentar exprimir-se, a plangência da confissão do sentimento que o avassala, - apoiada numa

melopeia própria de quem mais murmura suplicantemente do que fala -, vai num crescendo até a última

estrofe (a estrofe era chamada na lírica trovadoresca de cobra; podia ainda receber o nome de copla ou de

talho). Notamos que uma ideia obsessiva empolga o trovador o que leva a que a sua confissão gire sempre

em torno do mesmo núcleo. Como tal, não acha palavras muito variadas, pelo contrário, parece que o seu

espírito caminha dentro de um círculo vicioso e ele acaba por repetir-se monotonamente, apenas mudando

o grau de lamento, que aumenta em avalanche até ao fim.

O estribilho ou refrão, com que o trovador pode rematar cada estrofe, diz bem dessa angustiante

ideia fixa para a qual ele não encontra expressão diversa. Quando presente o estribilho, que é um recurso

típico da poesia popular, a cantiga chama-se de refrão. Quando ausente, a cantiga recebe o nome de

cantiga de maestria, por tratar-se dum esquema estrófico mais difícil, intelectualizado, sem o suporte

facilitador daquele expediente repetitivo.

A este ideal de amor corresponde certo tipo idealizado de mulher que atingiu mais tarde a máxima

depuração na Beatriz de Dante ou na Laura de Petrarca: os cabelos de oiro, o sereno e luminoso olhar, a

mansidão e a dignidade do gesto, o riso subtil e discreto.

Ao nível formal, seguindo o modelo provençal, muitas cantigas de amor são cantigas de mestria

(sem refrão): no entanto, por influência das cantigas de amigo, também há muitas cantigas de amor com

refrão.

Ao passo que a cantiga de amor é idealista, a de amigo é realista, traduzindo um sentimento

espontâneo, natural e primitivo por parte da mulher, e um sentimento donjuanesco e egoísta por parte do

homem.

CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MALDIZER

Estas correspondem a mais de um quarto do total das cantigas recolhidas nos cancioneiros e

pertencem ao género satírico.

Nas cantigas de maldizer, a crítica é direta e ostensiva, o trovador mofa dos ridículos e das acções

de uma determinada personagem em termos diretos e achincalhantes.

Nas cantigas de escárnio, é mais subtil, num registo equívoco, de dupla leitura, recorrendo sempre

ao duplo sentido e à ambiguidade.

No entanto, a distinção entre uma e outra nem sempre é clara. Na grande maioria das cantigas, a

sátira é pessoalizada, dirigida a uma personagem particular, cujo nome surge habitualmente mencionado

nos primeiros versos.

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A leitura dos cancioneiros mostra-nos que os trovadores preferiam as de maldizer, o que nos

permite salientar desde já o caráter essencialmente individual e particularista, pessoal e insultuoso, da

sátira galego-portuguesa.

Os temas tratados nas cantigas de escárnio e maldizer são vastos: sátira aos costumes sociais, aos

comportamentos morais e sexuais, aos códigos do amor cortês, à política.

Muitas das cantigas de escárnio e maldizer referem-se ao conflito entre o trovador, homem

geralmente de classe nobre, autor de versos, e o jogral, saído da plebe, mero executor da melodia, que

tenta elevar-se à categoria do primeiro.

Ao mesmo tempo o ideal de amor cortês, impondo uma forma estrita e um figurino mais ou menos

estereotipado ao exaltamento das formas femininas, não deixa de ser ridicularizado em inúmeros escárnios

ao amor, tanto em cantigas de amigo, como de amor. Temos o exemplo da cantiga “dona feia, velha e

sandia”, de João Guilhade.

No entanto, podemos também encontrar alguns temas de interesse geral e político. A deposição de

D. Sancho II e a entrega de Castelos ao conde de Bolonha (1245) desencadearam vivos e ásperos

comentários na época. Uma sátira intenção directamente social é a que visa a decadência das classes

nobres entre os séculos XIII e XIV, ao passo que se regista o ascenso e o florescimento da burguesia que,

protegida pelos forais, se voltava contra os infanções e a nobreza de sangue. A penúria dos infanções,

dando azo a vários pormenores anedóticos e caricatos, é tema frequentemente glosado para contrastar a

pelintrice fidalga com tolas pretensões de grandeza.

Ao nível formal, as cantigas satíricas são geralmente de mestria, mas são também em grande

número com refrão.