Os factos do Direito - Repositório da Universidade de...

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Universidade de Lisboa Faculdade de Direito Os factos do Direito Pedro Tiago da Silva Ferreira Dissertação de Mestrado em Teoria do Direito orientada pela Sr.ª Professora Susana Videira 2016

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Direito

Os factos do Direito

Pedro Tiago da Silva Ferreira

Dissertação de Mestrado em Teoria do Direito

orientada pela Sr.ª Professora Susana Videira

2016

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À minha mãe

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ÍNDICE

ADVERTÊNCIAS 5

RESUMO 6

ABSTRACT 9

INTRODUÇÃO 11

1. FACTOS BRUTOS E INTENÇÕES 14

1. Factos brutos e mentais 14

2. Três tipos de intenção 15

3. Factos brutos 21

A. A característica relacional 21

B. A relação entre «ser» e «dever-ser»:

HUME, MOORE e KELSEN 23

C. Derivar um dever-ser a partir de um ser:

o caso das promessas 31

2. FACTOS MENTAIS 36

1. Atos de decisão 36

2. Atos de fala 37

A. Regras linguísticas 38

B. O papel da intenção na interpretação 39

C. O papel das regras linguísticas

na interpretação 41

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3

D. A intenção e o significado são inseparáveis 42

3. Factos institucionais 49

A. Regras regulativas e constitutivas. 49

B. Regras regulativas 50

C. Regras constitutivas 53

3. O PENSAMENTO HUMANO 68

1. Ciências naturais, ciências sociais e humanas,

indústria e tecnologia 68

2. Conceitos 71

3. A passagem do abstrato para o concreto 72

4. A unidade do pensamento – a Alegoria da Caverna 74

5. A unidade do pensamento – a «teoria das ideias»

de Hume 79

6. Os critérios de verdade apresentados por S. Tomás 84

7. O «rigor» científico 86

8. Conclusão 90

4. O PROCESSO DE ELUCIDAÇÃO 92

1. Introdução 92

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4

2. O método per genus et differentiam

e a paráfrase de BENTHAM 95

3. O método per genus et differentiam:

dificuldades identificadas por HART 98

4. O erro esconde-se nas generalidades 99

5. Abstrações e realidades per se 101

6. Refutação da tese do terceiro Capítulo? 103

7. O método condicional 106

8. O processo de elucidação 111

5. REGRAS E NORMAS 115

CONCLUSÃO 125

NOTAS 132

BIBLIOGRAFIA 154

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ADVERTÊNCIAS

As citações e paráfrases do pensamento de outros autores encontram-se sinalizadas

numericamente como notas finais. No caso de autores que escrevem em língua estrangeira o

texto original é fornecido juntamente com as respetivas notas, tendo-se preferido no texto

corrido traduzir ou parafrasear o pensamento original para português, sem prejuízo do uso

ocasional de traduções publicadas. As notas de pé de página encontram-se sinalizadas através

dos símbolos * e †.

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RESUMO

O objetivo deste estudo é lançar e desenvolver um argumento segundo o qual o Direito é

totalmente composto por factos. Este argumento não é original, nem tão-pouco desconhecido

da generalidade dos autores que se debruçam sobre as temáticas da Teoria e da Filosofia do

Direito, mas cremos que algumas das suas características e, naturalmente, das suas implicações

ainda não foram satisfatoriamente compreendidas, o que se deve, no nosso entender, em parte

ao facto de as bases para um entendimento ontológico do Direito como sendo uma realidade

completamente factual não serem especificamente jurídicas. Dito por outras palavras, é a partir

do trabalho de autores que não se debruçam diretamente sobre o Direito que se começa a

perceber não que o Direito não pode ser separado daquilo a que tradicionalmente se chama

«matéria de facto», mas sim que o Direito é, considerado em si mesmo, facto.

Ora, a diferença entre uma conceção do Direito como sendo inseparável dos factos, tese

que uma fação importante de autores pós-positivistas não tem dificuldade em reconhecer, e

uma conceção do Direito como sendo, efetivamente, facto, não consiste nem numa subtileza,

nem num mero jogo terminológico. Este trabalho é dedicado, precisamente, a elucidar esta

diferença entre ambas as conceções sem, no entanto, recorrer a um método comparativo, ou

seja, a exposição não consistirá numa avaliação dos méritos de cada uma das conceções com o

intuito de demonstrar as razões pelas quais a segunda é melhor do que a primeira. Pelo

contrário, toda a exposição assume que conceber o Direito como facto explica cabalmente a

natureza do Direito, e é um ponto de partida para discutir outros detalhes filosoficamente

obscuros da realidade jurídica, e, por isso, encetamos uma análise dos pressupostos sob os quais

a conceção do Direito como sendo uma realidade integralmente factual assenta.

Esses pressupostos passam, em primeiro lugar, por debater a natureza do conceito

designado através do termo «facto». O Capítulo 1 é dedicado a factos brutos e ao papel que a

intenção desempenha quando o facto bruto seja resultado da produção de um ato físico

voluntário. O Capítulo 2 debruça-se sobre factos mentais. Esta distinção demonstra, desde já,

que arguir que todo o Direito é facto não implica defender qualquer tese niilista contra a

possibilidade de existência de uma realidade normativa. Pelo contrário, essa realidade

normativa encontra-se muito presente na vida do Direito, mas, ao contrário do que é assumido

e entendido pela maioria dos autores, não é uma realidade do dever-ser, uma espécie de tertium

genus entre o factual e o ficcional. O normativo é uma valência do factual, inserindo-se na

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categoria de factos mentais. No Capítulo 2 esclarecemos igualmente em que circunstâncias é

que certos factos mentais, como regras jurídicas, poderão pertencer ao domínio do dever-ser,

mas uma das coisas que pretendemos demonstrar ao longo do argumento é que factos mentais,

tomados em si mesmos, são realidades da ordem do ser, e não do dever-ser.

Distinguidos os tipos de factos mais importantes para a vida do Direito, no Capítulo 3

desenvolvemos um argumento segundo o qual o pensamento humano debruça-se

metodologicamente de igual forma sobre todo o tipo de factos, brutos ou mentais. Este

argumento é importante porque os juristas, académicos e praticantes, pensam o Direito de

forma unitária, ou seja, é nossa contenção que, independentemente de qual a sua conceção da

natureza do Direito, todos os juristas tratam aquilo que é tradicionalmente designado pela

expressão «matéria de facto» da mesma forma, e com o mesmo rigor, com que tratam aquilo

que é tradicionalmente designado através da expressão «matéria de Direito». Isto significa não

que põem o mesmo empenho no apuramento dos factos brutos relevantes para o caso concreto

que põem na interpretação de certos factos institucionais como as regras jurídicas (este grau de

empenho depende do zelo profissional de cada um), mas sim que, para se resolver uma questão

de Direito, o tipo de pensamento analítico que há que encetar sobre a «matéria de facto» é

idêntico ao que incide sobre a «matéria de Direito». Conceber todo o Direito como sendo facto,

bruto e mental, implica demonstrar que a forma que os seres humanos têm de pensar sobre

estes dois tipos de factos é idêntica.

O Capítulo 4 é uma exploração, com algum detalhe, de uma circunstância resultante do

corolário do argumento do Capítulo 3; na medida em que pensamos sobre factos brutos e

mentais da mesma forma, a maneira através da qual elucidamos o significado de termos

concretos e abstratos é, também, idêntica entre si. O argumento apresentado neste Capítulo é

importante porque ajuda a explicar as razões pelas quais algumas das definições atualmente

existentes de termos e expressões jurídicos são deficitárias, apontando o caminho que, no nosso

entender, deve ser seguido para se elucidar convenientemente os termos e expressões que

fazem parte do vocabulário jurídico, ao mesmo tempo que distingue entre termos e expressões

que cumprem o seu papel característico em conclusões de Direito e termos e expressões cujo

papel característico aparece na descrição de factos institucionais.

O Capítulo 5, não sendo uma conclusão (algo que, de resto, aparece após esse mesmo

Capítulo), pretende ser um capítulo aglutinador das várias linhas de pensamento desenvolvidas

nos quatro Capítulos anteriores, propondo uma conceção de «norma jurídica» que, no nosso

entender, não é totalmente original, embora os moldes em que a mesma é exposta o sejam

porque a mesma efetua um corte radical entre regra legal, ou consuetudinária, por exemplo, e

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norma jurídica, que tem como característica principal, de acordo com a conceção avançada, o

ser sempre individual e concreta e criada por quem tenha a responsabilidade de tomar um ato

de decisão jurídico. Com efeito, somos da opinião de que «regra» e «norma» não devem ser

usados como sinónimos, mas sim como termos de arte que distingam entre uma injunção ou

permissão retirada de uma fonte do Direito e uma declaração que diga, numa situação concreta,

a que é que determinado indivíduo se encontra adstrito, i.e., que conduta é que deve realizar

tendo em conta a sua situação concreta.

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ABSTRACT

This essay’s goal is to develop the following idea: law is a factual reality in its entirety. This

hypothesis is neither original nor unknown amongst the authors who write on legal theory and

legal philosophy, but I believe that some of its features and implications have not been

satisfactorily understood so far, which may have to do with the fact that the bases for an

ontological understanding of law as a completely factual reality are not specifically juridical.

In other words, it is from the work of authors whose concerns are not directly legal that one

comes to understand not so much that law cannot be separated from what is traditionally known

as ‘matter of fact’ but that law is, in itself, fact.

Now, the difference between a conception of law as inseparable from facts, a hypothesis

acknowledged by most post-positivistic authors, and a conception of law as being, in itself,

fact, is not a mere terminological difference. This work intends to elucidate this difference

without, however, using a comparative method. This means that the argument of this essay is

not built by comparing the relative merits of each of the two conceptions of law

abovementioned with the intention of showing why the latter is better than the former. In fact,

I assume throughout the essay that conceiving law as fact thoroughly explains the nature of

law, which is a good starting point to discuss other somewhat philosophically obscure details

of legal reality. For this reason, the argument unfolds through an analysis of the foundations

over which the conception of law as a factual reality is based.

First off, it is necessary to shed some light on the nature of the concept designated by

the term ‘fact’. Chapter 1 is dedicated to brute facts and to the role performed by intention

whenever the brute fact in question comes about as the result of a voluntary physical act.

Chapter 2 is about mental facts. This distinction shows that arguing for a conception of law as

fact does not entail a nihilist hypothesis against normative reality. On the contrary, normative

reality is part and parcel of the life of the law but it is not in itself an ought, unlike what is

assumed by most authors, who tend to fit the law in between the factual and the fictional. Both

the normative and the mental are part of the factual. Chapter 2 is also devoted to a discussion

of the circumstances in which certain mental facts, as, for instance, legal rules, may be

considered as an ought, despite the fact that, in themselves, mental facts are an is, not an ought.

After making these distinctions concerning the most important kinds of fact for the life

of the law, I present, in chapter 3, an argument according to which human thought is

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methodologically the same regarding every kind of fact. This argument is important for the aim

of this essay because it outlines the reasons why lawyers and jurists do not think about law and

fact in a distinct way. In other words, the type of thinking one has to do regarding what is

traditionally called ‘matter of fact’ is undistinguishable from the type of thinking that is to be

done concerning what is traditionally referred to as ‘matter of law’. This means that the sort of

analytical thought which is necessary to decide a legal question is the same for both the factual

and the legal parts of the legal question. To conceive the law as being utterly fact, both brute

and mental, implies showing that the way human beings think about these two kinds of fact is

identical.

Chapter 4 explores a circumstance which results from the corollary of the argument

presented in chapter 3, namely that, since we all think about brute and mental facts in the same

way, we necessarily elucidate the meaning of concrete and abstract terms in the same way as

well. The argument outlined in this chapter is important because it helps to explain the reasons

why some of the currently existing definitions of legal terms and expressions are inadequate.

The argument aims, furthermore, to point the way that should be followed in order to

conveniently elucidate legal terms and expressions, as well as distinguishing between terms

and expressions that play a characteristic role in conclusions of law and terms and expressions

whose characteristic role is played by describing institutional facts.

Chapter 5 gathers all trains of thought developed throughout the essay while proposing

a conception of ‘legal norm’ which, in my opinion, is not completely original, although some

of its features are because it clearly separates, in a somewhat novel may, legal rules, customary

rules and legal norms. According to the conception of norm introduced in this chapter, the legal

norm is always individual and concrete, and is created by whoever has the responsibility of

taking a legal act of decision. This means that, contrary to the current accepted linguistic usage,

the terms ‘rule’ and ‘norm’ should not be employed as synonyms, but as terms of art capable

of distinguishing between an enjoinment or a permission derived from one of the traditional

sources of law and a statement which says, in a concrete situation, what it is that an individual

is bound to, i.e. which conduct they ought to follow considering their concrete situation.

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INTRODUÇÃO

O objetivo deste estudo é lançar e desenvolver um argumento segundo o qual o Direito é

totalmente composto por factos. Este argumento não é original, nem tão-pouco desconhecido

da generalidade dos autores que se debruçam sobre as temáticas da Teoria e da Filosofia do

Direito, mas cremos que algumas das suas características e, naturalmente, das suas implicações

ainda não foram satisfatoriamente compreendidas, o que se deve, no nosso entender, em parte

ao facto de as bases para um entendimento ontológico do Direito como sendo uma realidade

completamente factual não serem especificamente jurídicas. Dito por outras palavras, é a partir

do trabalho de autores que não se debruçam diretamente sobre o Direito que se começa a

perceber não que o Direito não pode ser separado daquilo a que tradicionalmente se chama

«matéria de facto», mas sim que o Direito é, considerado em si mesmo, facto.

Ora, a diferença entre uma conceção do Direito como sendo inseparável dos factos, tese

que uma fação importante de autores pós-positivistas não tem dificuldade em reconhecer, e

uma conceção do Direito como sendo, efetivamente, facto, não consiste nem numa subtileza,

nem num mero jogo terminológico. Este trabalho é dedicado, precisamente, a elucidar esta

diferença entre ambas as conceções sem, no entanto, recorrer a um método comparativo, ou

seja, a exposição não consistirá numa avaliação dos méritos de cada uma das conceções com o

intuito de demonstrar as razões pelas quais a segunda é melhor do que a primeira. Pelo

contrário, toda a exposição assume que conceber o Direito como facto explica cabalmente a

natureza do Direito, e é um ponto de partida para discutir outros detalhes filosoficamente

obscuros da realidade jurídica, e, por isso, encetamos uma análise dos pressupostos sob os quais

a conceção do Direito como sendo uma realidade integralmente factual assenta.

Esses pressupostos passam, em primeiro lugar, por debater a natureza do conceito

designado através do termo «facto». O Capítulo 1 é dedicado a factos brutos e ao papel que a

intenção desempenha quando o facto bruto seja resultado da produção de um ato físico

voluntário. O Capítulo 2 debruça-se sobre factos mentais. Esta distinção demonstra, desde já,

que arguir que todo o Direito é facto não implica defender qualquer tese niilista contra a

possibilidade de existência de uma realidade normativa. Pelo contrário, essa realidade

normativa encontra-se muito presente na vida do Direito, mas, ao contrário do que é assumido

e entendido pela maioria dos autores, não é uma realidade do dever-ser, uma espécie de tertium

genus entre o factual e o ficcional. O normativo é uma valência do factual, inserindo-se na

categoria de factos mentais. No Capítulo 2 esclarecemos igualmente em que circunstâncias é

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que certos factos mentais, como regras jurídicas, poderão pertencer ao domínio do dever-ser,

mas uma das coisas que pretendemos demonstrar ao longo do argumento é que factos mentais,

tomados em si mesmos, são realidades da ordem do ser, e não do dever-ser.

Distinguidos os tipos de factos mais importantes para a vida do Direito, no Capítulo 3

desenvolvemos um argumento segundo o qual o pensamento humano debruça-se

metodologicamente de igual forma sobre todo o tipo de factos, brutos ou mentais. Este

argumento é importante porque os juristas, académicos e praticantes, pensam o Direito de

forma unitária, ou seja, é nossa contenção que, independentemente de qual a sua conceção da

natureza do Direito, todos os juristas tratam aquilo que é tradicionalmente designado pela

expressão «matéria de facto» da mesma forma, e com o mesmo rigor, com que tratam aquilo

que é tradicionalmente designado através da expressão «matéria de Direito». Isto significa não

que põem o mesmo empenho no apuramento dos factos brutos relevantes para o caso concreto

que põem na interpretação de certos factos institucionais como as regras jurídicas (este grau de

empenho depende do zelo profissional de cada um), mas sim que, para se resolver uma questão

de Direito, o tipo de pensamento analítico que há que encetar sobre a «matéria de facto» é

idêntico ao que incide sobre a «matéria de Direito». Conceber todo o Direito como sendo facto,

bruto e mental, implica demonstrar que a forma que os seres humanos têm de pensar sobre

estes dois tipos de factos é idêntica.

O Capítulo 4 é uma exploração, com algum detalhe, de uma circunstância resultante do

corolário do argumento do Capítulo 3; na medida em que pensamos sobre factos brutos e

mentais da mesma forma, a maneira através da qual elucidamos o significado de termos

concretos e abstratos é, também, idêntica entre si. O argumento apresentado neste Capítulo é

importante porque ajuda a explicar as razões pelas quais algumas das definições atualmente

existentes de termos e expressões jurídicos são deficitárias, apontando o caminho que, no nosso

entender, deve ser seguido para se elucidar convenientemente os termos e expressões que

fazem parte do vocabulário jurídico, ao mesmo tempo que distingue entre termos e expressões

que cumprem o seu papel característico em conclusões de Direito e termos e expressões cujo

papel característico aparece na descrição de factos institucionais.

O Capítulo 5, não sendo uma conclusão (algo que, de resto, aparece após esse mesmo

Capítulo), pretende ser um capítulo aglutinador das várias linhas de pensamento desenvolvidas

nos quatro Capítulos anteriores, propondo uma conceção de «norma jurídica» que, no nosso

entender, não é totalmente original, embora os moldes em que a mesma é exposta o sejam

porque a mesma efetua um corte radical entre regra legal, ou consuetudinária, por exemplo, e

norma jurídica, que tem como característica principal, de acordo com a conceção avançada, o

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ser sempre individual e concreta e criada por quem tenha a responsabilidade de tomar um ato

de decisão jurídico. Com efeito, como PEDRO FERREIRA MÚRIAS observa, no Direito «“norma”

e “regra” são usados como sinónimos.»1 Todavia, somos da opinião contrária, a saber, a de que

«regra» e «norma» não devem ser usados como sinónimos, mas sim como termos de arte que

distingam entre uma injunção ou permissão retirada de uma fonte do Direito e uma declaração

que diga, numa situação concreta, a que é que determinado indivíduo se encontra adstrito, i.e.,

que conduta é que deve realizar tendo em conta a sua situação concreta. O Capítulo 5 é dedicado

ao desenvolvimento desta ideia, mas afigura-se-nos necessário, desde já, advertir para o

seguinte aspeto: na medida em que os autores citados ao longo deste texto invariavelmente

usam os termos «regra» e «norma» e seus respetivos derivados e cognatos sinonimicamente,

somos obrigados, ao falarmos de regras e normas, a adotar o uso terminológico comumente

aceite. Isto será feito ao longo dos primeiros quatro Capítulos, dado que apenas no quinto

estaremos em condições de arguir que há uma diferença vincada entre aquilo que deve ser

considerado uma regra e aquilo que habitualmente se considera como uma norma.

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1

Factos Brutos e Intenções

1. Factos brutos e mentais

O objetivo deste trabalho não passa por efetuar uma taxinomia nem de factos brutos, nem de

factos mentais, mas apenas por realizar uma análise sobre os vários conceitos, relevantes para

o Direito, cuja designação faz uso do termo «facto». O presente Capítulo é maioritariamente

dedicado à elucidação do que é um facto bruto. Quanto aos factos mentais, que são o tema do

Capítulo 2, interessa-nos realçar três tipos, a saber, intenções, factos institucionais e atos de

decisão. De entre os atos de decisão, focar-nos-emos particularmente na resolução de questões

de Direito.

A divisão entre factos brutos e mentais encontra-se longe de ser estanque. Por razões

que ficarão claras ao longo dos dois primeiros Capítulos deste trabalho, pode-se afirmar que

um facto institucional é um facto bruto que se encontra inserido num determinado contexto.1

A ligação entre factos brutos e institucionais é, em grande medida, feita pela intenção com que

dizemos ou fazemos alguma coisa, bem como através dos efeitos que visamos produzir através

daquilo que dizemos ou fazemos. Do mesmo modo, e de uma forma mais geral, factos mentais

são factos brutos em contexto, sendo que a intenção cumpre a mesma função conectora que

acabámos de referir. Por esta razão, afigura-se-nos necessário analisar as intenções neste

Capítulo, apesar de estas serem factos mentais.

Ora, se um facto mental é um facto bruto em contexto, cujo significado, linguístico,

normativo, teleológico, etc., depende, em grande medida, da intenção com que dizemos ou

fazemos alguma coisa, bem como dos efeitos que se visam produzir através desses atos,

chegamos à conclusão que é importante analisar tanto atos de fala como atos físicos. No

entanto, é preciso desde já esclarecer que um ato de fala (que pode ser reduzido a escrito ou

efetuado com as mãos e os dedos no contexto de uma língua gestual) é um ato físico num

determinado contexto, e, por isso, não é um facto bruto. Mexer a língua e os lábios produzindo

sons são exemplos de atos físicos que são factos brutos. O significado atribuível a esses sons

já depende de um facto institucional, a linguagem. O ato de fala é um tipo de facto mental

aplicado, e, por isso mesmo, é um ato. Assim, analisaremos os atos de fala no Capítulo 2,

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reservado aos factos mentais. Atos físicos que não são factos mentais aplicados, e, por isso, são

factos brutos serão analisados na secção 3 do presente Capítulo. Em todo o caso, e em virtude

de as intenções dos seres humanos só serem manifestáveis através do que dizemos e fazemos,

qualquer análise da intenção passa por referir aspetos que pertencem tanto à teoria dos atos de

fala como à dos factos brutos. Esta é, contudo, uma mera dificuldade de exposição, e não

lógico-conceptual. É uma dificuldade de exposição porque falar de intenções pressupõe

conhecimento acerca do que são factos mentais, nomeadamente atos de fala (mas, também,

atos de decisão e factos institucionais), e factos brutos, mas, por outro lado, para se falar tanto

de factos brutos como de atos mentais é necessário perceber que há, pelo menos e no que

interessa para o tema deste ensaio, três tipos diferentes de intenção. Intenções e factos

encontram-se logico-conceptualmente interligados, mas, para se falar do tema, é necessário,

apenas e só para efeitos de exposição, tentar separá-los, encarando-os como se fossem

entidades desconectadas. Visto que tal não é completamente possível, ao falarmos de intenção

abordaremos alguns aspetos que só poderão ficar completamente esclarecidos após falarmos

de atos de fala, de factos brutos, de factos institucionais e de atos de decisão. Esperamos, por

conseguinte, que quaisquer perplexidades que surjam ao longo do Capítulo 1 se encontrem

resolvidas no final do Capítulo 2.

2. Três tipos de intenção

Todas as ações voluntárias são intencionais, mas é preciso estar ciente que há tipos de intenção

específicos com os quais se executa determinada ação. Sem pretender que as considerações

efetuadas ao longo deste e do próximo Capítulo esgotam os tipos de ação e de intenção que

existem, iremos analisar, por ser pertinente para este trabalho, quanto às ações, factos brutos,

factos institucionais, atos de fala, que são atos como, por exemplo, declarar, ordenar,

questionar, prometer, referir ou predicar,2 e atos de decisão. É necessário advertir, desde já,

que há factos brutos e factos institucionais que são ações, mas estas são apenas algumas

instâncias daqueles. Isto significa que factos brutos e institucionais que sejam ações são, como

pretendemos deixar claro, intencionais, mas factos brutos e institucionais que não sejam ações

não são, por maioria de razão, fruto da intenção de ninguém.

Quanto à intenção, afloraremos, nesta secção três tipos, a saber: a intenção linguística,

a intenção relacionada com a execução de uma ação, e a intenção teleológica, i.e., quanto à

produção de determinado(s) efeito(s). JOHN SEARLE constata que a intencionalidade, em geral,

é uma propriedade de muitos estados e eventos mentais que direciona estes últimos.3 Com

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efeito, se um indivíduo tem uma intenção, a mesma tem que ser uma intenção em fazer qualquer

coisa,4 sendo que fazer qualquer coisa não pode deixar de incluir, na nossa ótica, dizer qualquer

coisa ou produzir algum efeito. Na medida em que a intencionalidade não é o mesmo que a

consciência, visto que muitos estados conscientes não são intencionais, ao passo que muitos

estados intencionais não são conscientes,5 ter a intenção de fazer ou de dizer qualquer coisa,

ou de produzir determinado efeito, é apenas uma forma de intencionalidade ao lado de outras

como, por exemplo, crenças, esperanças, medos ou desejos.6 Assim sendo, chega-se facilmente

à conclusão de que crenças e desejos são estados intencionais, mas não são estados a partir dos

quais se possa dizer que o agente tem a intenção de fazer ou de dizer qualquer coisa, ou de

produzir um dado efeito.7

SEARLE aprofunda esta ideia esclarecendo que acreditar, ter esperança, ter medo e

desejar não são atos mentais, ao contrário do que sucede, por exemplo, com fazer contas de

cabeça ou formar imagens mentais, na medida em que atos são coisas que um indivíduo faz;

ora, não se pode responder à pergunta «o que é que estás a fazer?» dizendo «agora estou a

acreditar que vai chover», ou «estou a desejar ir ao cinema».8 Isto significa, por exemplo, que

a crença que um determinado deputado tem no facto de que o Projeto-Lei X é mais indicado

para favorecer determinada causa social perfilhada pela sua ideologia partidária em relação ao

Projeto-Lei Y é uma razão para votar no primeiro, mas não uma intenção em exercer esse

mesmo voto, ou seja, não é uma intenção em fazer qualquer coisa, não obstante o estado de

espírito, i.e., a crença, ser intencional.

O facto de crenças e desejos serem estados intencionais sem que, contudo, acarretem

uma intenção de fazer algo, ou de dizer alguma coisa, ou de produzir determinado efeito, ajuda

a explicar a confusão recorrente entre ter uma intenção e ter uma crença, ou desejo. Cremos

que esta divisão tripartida, que não é feita por SEARLE, ajuda a elucidar as suas ideias, que são

importantes no âmbito do tema que consiste em apurar a relevância da intenção do legislador,

ou do juiz, nos ordenamentos em que existe a regra do precedente vinculativo, na interpretação

jurídica. JOSEPH RAZ observa que quando as pessoas agem intencionalmente exibem mais do

que uma intenção, apontando, como exemplos, a intenção de examinar os conteúdos do

frigorífico, de ir à cozinha, de sair da sala de estar, de andar, de viajar uma certa distância, etc.9

Estes exemplos de RAZ coincidem com a formulação de SEARLE segundo a qual uma pessoa

tem sempre, quando pratica uma ação, a intenção de fazer qualquer coisa. No entanto, quando

RAZ menciona que um membro da legislatura que vota num Projeto-Lei poderá ter a intenção

de granjear favor com o eleitorado, de parecer corajoso e resoluto perante os seus filhos, de

aliviar o transtorno causado a pais e mães solteiros, para, seguidamente, perguntar qual de todas

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estas intenções é relevante para a interpretação da legislação,10 um começo de resposta só pode

ser procurado em SEARLE se a sua conceção de intenção for suplementada pela nossa divisão

tripartida de intenções linguísticas, quanto à execução de atos e quanto à produção de efeitos,

na medida em que esta divisão permite discutir que intenções, se algumas, são relevantes na

interpretação da lei, e quais são irrelevantes e, por isso, devem ser descartadas.*

Com efeito, os últimos exemplos apontados por RAZ consistem em intenções

teleológicas, sendo que os seus argumentos indiciam que o autor está a par de que há uma

diferença pelo menos quanto à intenção de fazer qualquer coisa e de produzir dado efeito. RAZ

reconhece que instituições como as assembleias legislativas são agentes que agem

intencionalmente,11 e, por isso, é possível identificar pelo menos a intenção de criar um ato

legislativo,12 o que é uma instância da intenção de fazer qualquer coisa, que é logicamente

independente da intenção de produzir um efeito como, e.g., agradar ao eleitorado.

Contudo, fontes do Direito como a lei e a jurisprudência são, na sua essência, atos de

fala reduzidos a escrito, e, por isso, contêm, enquanto textos, uma intenção linguística que lhes

é inerente. De facto, todos os atos de fala têm uma intenção linguística; por razões que ficarão

claras ao longo da segunda secção do próximo Capítulo, não há atos de fala não-intencionais,

não obstante a existência de várias teorias que implicam a possibilidade da sua existência. Não

há muito a dizer, no âmbito do ato de fala, acerca da intenção relacionada com a execução de

uma ação, i.e., com os factos brutos que lhe subjazem. O ato de fala pode ser executado

foneticamente, através da produção de sons utilizando órgãos do corpo humano como a laringe,

a língua, os lábios, etc., graficamente, através da ação dos dedos das mãos sobre o teclado de

uma máquina que permita processar texto ou sobre um utensílio de escrita tal como uma

esferográfica ou um lápis, ou gestualmente, através das mãos e dos dedos em utilização da

gramática de uma língua gestual. Isto demonstra que o ato de fala que está na base de uma fonte

do Direito como a lei não se confunde com o ato da sua aprovação. Redigir a lei é uma atividade

distinta da votação encetada com o intuito de a aprovar.

Como veremos na próxima secção, o conceito de factos brutos integra objetos físicos,

processos que lhes sejam inerentes, incluindo relações de causa e efeito, os quais também

podem ser designados pelo termo «ato» ou pela expressão «ação involuntária», e ações

voluntárias, embora estes aspetos não sejam cumulativos, i.e., a ausência de um, ou de alguns,

deles não transforma o facto bruto em algo diferente. Por ser «o elemento que manifesta a

* Naturalmente, somos nós próprios que vemos utilidade em aproveitar as ideias de SEARLE, e não RAZ,

que desenvolve uma teoria da intenção autónoma das ideias do primeiro.

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humanidade da pessoa, (…) a acção é específica do homem e é por ela que se realiza a cultura

e a civilização»,13 o que significa que um certo facto mental, a intenção, é inseparável da ação.

Ora, factos mentais contrapõem-se a factos físicos, e, no entanto, verifica-se, tal como teremos

oportunidade de desenvolver na secção 3, que a noção de factos brutos engloba ambos os tipos

de facto. De forma a desfazer este aparente paradoxo, é necessário efetuar algumas

considerações sobre a relação entre ação e intenção antes de nos debruçarmos sobre a análise

do que são factos brutos, de forma a demonstrar que não há qualquer erro conceptual ao se

considerar que factos brutos têm uma componente mental, ainda que não sejam, na sua

essência, factos mentais.

Com efeito, «[t]oda a conduta humana é ontologicamente demarcada pela finalidade»

e, «[p]or este prisma, só há acções; não haveria espaço para um acto simplesmente

caracterizado pela mera voluntariedade da manifestação no mundo exterior.»14 O termo

«voluntariedade» designa vários conceitos próximos,15 mas distintos entre si, e, pela sua

relevância para o Direito penal, é estudado com alguma profundidade no âmbito desta

disciplina, sem embargo de os resultados aí obtidos serem transponíveis para uma

caracterização geral do papel da voluntariedade na ação, caracterização essa que revela que a

intenção é algo contido dentro do espectro da voluntariedade. Assim, se, no âmbito do Direito

penal, um ato humano culposo é «praticado com voluntariedade, o que implica querer ou não

querer, agir ou omitir a ação que venha a contrariar a norma jurídica»,16 então uma ação (ou

omissão) em geral é um ato praticado (ou não praticado) com voluntariedade, conceito que, por

abranger querer ou não querer produzir certo efeito (e.g. a infração de normas jurídicas) é

notoriamente mais amplo do que o conceito de intenção. Dito por outras palavras, todas as

ações (ou omissões) que sejam voluntárias são intencionais, mas a intenção com que se pratica

uma determinada ação pode não corresponder aos efeitos produzidos pela mesma. Neste caso,

os efeitos não seriam intencionais, apesar de a ação que os provoca ser voluntária e intencional.

Esta é a diferença entre a intenção quanto à execução de um ato e a intenção teleológica, i.e., a

intenção quanto aos efeitos que se visa produzir através da execução de determinado ato.

G.E.M. ANSCOMBE acaba por destrinçar a intenção da voluntariedade de forma

negativa, dado que a autora está sobretudo preocupada, em Intention, com apurar o que é

exatamente a intenção; a elucidação deste conceito acaba por demarcá-lo de outros conceitos

afins, como o de voluntariedade, que é muitas vezes utilizado indevidamente de forma

permutável com o conceito de intenção pelo facto de este se incluir no escopo daquele.

Assim, no §23 de Intention, ANSCOMBE pede ao leitor para imaginar um homem que

está a bombear água envenenada para dentro da cisterna que fornece água para uma casa que

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se encontra habitada por um grupo de pessoas. O objetivo de ANSCOMBE ao analisar esta

situação em concreto prende-se com a tentativa de responder à seguinte questão: «há uma

descrição que seja a descrição de uma ação intencional, na medida em que uma ação intencional

ocorra?»17 ANSCOMBE encontra-se, aqui, preocupada com respostas à pergunta «Porquê?» que

têm a ver com o futuro, visto que, se a descrição de um dado estado de coisas que se localiza

no futuro fizer sentido em si mesma enquanto resposta à questão «Porquê?», então essa mesma

descrição é uma expressão de intenção.18

Tal como ANSCOMBE corretamente observa, os inquéritos por si encetados em relação

à pergunta «Porquê?» possibilitam que se reduza a consideração de descrições daquilo que o

homem que está a bombear água está a fazer a descrições que cubram apenas e só as suas ações

intencionais.19 Isto significa que, se a resposta dada pelo homem à pergunta «Porquê?» fosse

«não me interessava se a água estava envenenada, eu queria o meu salário e fiz somente o meu

trabalho habitual», seria incorreto, de acordo com os critérios estabelecidos por ANSCOMBE,

dizer que o ato de bombear água envenenada para dentro da casa seria intencional, sem

embargo de o ato de bombear ser intencional. Neste ponto, a distinção que ANSCOMBE procura

estabelecer corresponde à nossa própria distinção entre a intenção quanto à execução de atos e

a intenção teleológica, dado que, no exemplo fornecido, bombear a água é um ato executado

intencionalmente, ao passo que envenenar as pessoas é um ato não-intencional porque,

teleologicamente, não é isso que o homem do exemplo em questão quer fazer.20 Dito por outras

palavras, saber que a água está envenenada e que há pessoas que muito provavelmente irão

ingerir o veneno não faz com que a ação intencional (quanto ao ato de execução) de bombear

seja uma ação (teleologicamente) intencional de envenenamento, o que é, por exemplo,

juridicamente relevante para se perceber se a hipotética morte ou lesão corporal provocada

devido ao envenenamento resulta, ou não, de uma ação intencional do bombeador.*

Os critérios aos quais ANSCOMBE se refere, e que são por si estabelecidos no §22, são

os seguintes: o estado de coisas futuro tem que ser tal que seja possível entender que o agente

que o pensa poderá concretizá-lo através da ação acerca da qual está a ser escrutinado.21

Portanto, para que uma ideia pensada pelo agente, como, por exemplo, «faço P para alcançar

Q» faça sentido, é preciso entender de que forma é que o futuro estado de coisas Q consiste

* A doutrina do dolo eventual possibilita que se impute ao agente determinados factos em circunstâncias

onde a intenção teleológica não é a de praticar um crime. Basta que as consequências descritas no ilícito-

típico sejam previsíveis no caso concreto e o agente se tenha conformado com a possibilidade da sua

ocorrência.

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numa etapa subsequente de um processo no qual a ação P foi executada numa fase inicial.22 A

aplicação destes critérios ao exemplo fornecido por ANSCOMBE resulta na seguinte proposição:

de forma a demonstrar que a ação de bombear água envenenada é uma ação intencional de

envenenamento das pessoas que se encontram dentro da casa é necessário tanto que bombear

água (P) seja uma ação que faça parte da etapa inicial de um procedimento que culminará com

o envenenamento de certas pessoas (Q), como que o homem pense que envenenar as pessoas

(Q) resulte da ação de bombear água (P). Os critérios de ANSCOMBE incluem aspetos mentais

e empíricos. Bombear água envenenada sabendo que tal ação envenenará os habitantes da casa

não é uma ação intencional de envenenamento se para o homem for indiferente a ocorrência

do envenenamento (aspeto mental), e se ele não se desviar das ações que habitualmente teria

que executar no decurso normal da sua prestação de trabalho, i.e., se ele não fizer nada que

auxilie ao envenenamento para além, naturalmente, de bombear a água.23 O aspeto empírico

consiste, por conseguinte, no facto de que o homem não altera a sua conduta habitual em virtude

de saber que a água contém veneno.

Estas considerações permitem-nos postular que todas as ações voluntárias são

intencionais quanto à sua execução, mas que podem ser não-intencionais quanto aos seus

efeitos. Assim, bombear água que contém veneno é uma ação voluntária e intencional, mas

provocar o efeito «morte» ou o efeito «lesões corporais» por envenenamento pode não ser

intencional. A primeira intenção é quanto à execução de atos, a segunda é teleológica.

ANSCOMBE procura afastar a relevância do conhecimento do veneno demonstrando que a ação

é a mesma independentemente desse mesmo conhecimento, já que aquilo que o homem

efetivamente faz no exemplo fornecido é manobrar uma bomba, o que se mantém

independentemente de a água conter, ou não, veneno, de se estar a par deste facto, ou, inclusive,

de a bomba conter água (i.e., pode-se imaginar uma situação em que alguém, de forma

voluntária, dá à bomba com a intenção de fornecer água sem que haja água na bomba em

questão).

Ações voluntárias são, por isso, sempre intencionais quanto à execução de atos. A

questão que permanece por esclarecer é se serão sempre teleologicamente intencionais. Atos

de fala, por exemplo, para além de terem sempre intenções linguísticas têm, igualmente, e em

todas as circunstâncias, intenções teleológicas. Pense-se em saudações como, por exemplo,

«olá», que têm a intenção linguística de saudar outrem e pelo menos uma de várias intenções

teleológicas, como, por exemplo, a de ser bem-educado ou a de produzir no interlocutor a

alegria de se ver saudado. Confundir a intenção teleológica com a intenção linguística é um

erro que deu, e continua a dar, azo a uma discussão interminável acerca não só do papel da

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intenção do autor na interpretação de um texto como inclusive acerca do que se deve entender

através do termo «intenção». Num texto que se debruça precisamente sobre esta temática no

âmbito da Literatura e do Direito, defendemos que o artigo 9.º do Código Civil é inútil, letra

morta, incapaz de qualquer efeito prático porque se limita a prescrever uma conduta que

simplesmente não pode ser desobedecida, a saber, a de interpretar a letra da lei tendo em

atenção o pensamento legislativo.24 Esta posição tem que ser revista parcialmente, dado que

apenas é aplicável, como veremos na secção 2 do Capítulo 2, à intenção linguística. No entanto,

a referência feita pelo artigo 9.º ao pensamento legislativo deve ser entendida como uma

injunção efetuada sobre o intérprete da lei segundo a qual este deve levar em linha de conta os

efeitos que o legislador visou produzir na sociedade através da aprovação da lei em questão,

interpretação esta que é apoiada pelo facto de o artigo 9.º prescrever também que se deve ter

em conta «as circunstâncias em que a lei foi elaborada». Assim, o artigo 9.º do Código Civil

não é nem letra morta, nem inútil na prática, dado que, ao contrário do que acontece com a

intenção linguística, a intenção teleológica pode (no sentido em que é possível) ser descurada,

ignorada ou afastada pelo intérprete. Se isto acontecer, então o falante não consegue alcançar

o efeito por si almejado, e a intenção teleológica com que produziu o ato de fala é gorada. Algo

de semelhante sucede quanto às intenções teleológicas de factos brutos. Tal como nos atos de

fala, qualquer pessoa que queira fazer qualquer coisa tem, para além da intenção em executar

o ato em questão, a intenção de produzir determinado efeito. No entanto, podem-se produzir

efeitos não previstos ou não queridos através de atos intencionais, tal como, de resto, também

se podem produzir efeitos imprevistos, ou manifestamente contrários às intenções teleológicas

do falante, através de atos de fala. A partir do momento em que os três tipos de intenção

discutidos ao longo desta secção sejam reconhecidos como logicamente distintos entre si, muita

da confusão que paira sobre os debates acerca do papel da intenção na interpretação de texto,

bem como no da qualificação do que é uma ação intencional, será dissipada.

3. Factos brutos

A. A característica relacional

A expressão «factos brutos» foi cunhada por ANSCOMBE, e é usada, pela autora, para descrever

uma determinada situação factual que se encontra numa dada posição em relação a uma outra

situação factual. É o que acontece, por exemplo, entre o facto «entrega de um saco de batatas

por parte do merceeiro» e o facto «o comprador das batatas “deve” dinheiro ao merceeiro»,

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onde o primeiro facto é bruto em relação ao segundo. De acordo com ANSCOMBE, o facto bruto

emerge num contexto em que se relaciona com outros factos, aos quais ANSCOMBE não atribui

qualquer denominação especial (a expressão «factos institucionais», como veremos na terceira

secção do próximo Capítulo, foi popularizada por SEARLE, sendo tributária das alusões que

ANSCOMBE faz ao «contexto das nossas instituições»).

ANSCOMBE começa o seu raciocínio através de uma conversa imaginária entre um

seguidor de DAVID HUME e o seu merceeiro, no decurso da qual o seguidor postula que a

verdade consiste em concordarmos quer quanto a relações de ideias, como vinte xelins serem

o mesmo que uma libra, quer quanto a questões de facto, como o merceeiro ter-lhe entregue

uma determinada quantidade de batatas. Dizer que o cliente deve ao merceeiro uma dada

quantidade de dinheiro por causa da entrega das batatas não é, segundo os critérios acima

referidos, parte da verdade, visto que não se pode saltar de um «é» (e.g., pedido e entrega das

batatas) para um «deve».25

A conclusão de que a proposição «o comprador deve dinheiro ao merceeiro» não é

verdadeira, ou não faz parte da verdade, nesta circunstância é contraintuitiva e, com efeito,

ANSCOMBE não entretém por um momento que seja que tal é o caso. A autora está, isso sim,

interessada em perceber de onde vem a veracidade de tal proposição, e, por isso, interroga-se

se o facto de o cliente dever ao merceeiro neste caso consiste em quaisquer factos para além

daqueles mencionados, ao qual responde que não. Em alternativa, continua ANSCOMBE, alguém

poderá querer dizer que a verdade consiste nos factos mencionados tal como estes são

entendidos no contexto das nossas instituições, apesar de a declaração de que o cliente deve ao

merceeiro não conter uma descrição de nenhuma das instituições de determinada sociedade, tal

como a declaração de que A doou uma quantia de dinheiro a B não contém uma descrição da

instituição «dinheiro» ou da instituição «moeda» tal como estas existem no país onde a

transação ocorreu. A declaração requer, isso sim, instituições iguais ou parecidas a estas de

forma a ser o tipo de declaração que é.26

Seguidamente, ANSCOMBE inicia uma discussão onde esclarece que a existência de

certas instituições não implica necessariamente a veracidade de determinadas proposições,

visto que, no exemplo apresentado, a compra das batatas pode fazer parte de uma encenação

cinematográfica e, por isso, não seria verdade que a pessoa a quem se entrega as batatas tem

uma dívida para com o merceeiro,27 analisando, posteriormente, qual a relevância da intenção28

para o tema em debate, chegando, finalmente, à conclusão de que, quando se compara o

fornecimento de uma quantidade de batatas com o carregamento das mesmas para casa do

cliente, deixando-as nesse local, a segunda descrição é um «facto bruto» em relação à primeira.

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Mas, quando se compara o fornecimento com a dívida resultante do contrato estabelecido entre

cliente e merceeiro, o fornecimento é, em si mesmo, um facto bruto. Deste modo, conclui

ANSCOMBE, pode-se sempre apurar quais são os factos brutos em relação a muitas descrições

de eventos ou de estados de coisas que asseveramos que existem, entendendo-se, assim, por

brutos aqueles factos que existiram, e em virtude dos quais, num contexto adequado,

determinada descrição é verdadeira ou falsa. Seguidamente, poder-se-á indagar que factos são

mais brutos do que os factos brutos da primeira descrição, e assim sucessivamente. Finalmente,

também é possível pensar em factos em relação aos quais a dívida para com o merceeiro se

torna num facto bruto, como, por exemplo, diz ANSCOMBE, o facto de o devedor ser solvente.29

Designar determinado facto como sendo bruto depende, portanto, da possibilidade de

se estabelecer uma relação entre esse facto e um outro facto, que, no contexto dessa mesma

relação, não poderá ser bruto. Resulta, por conseguinte, claro que, para ANSCOMBE, não há

factos brutos em si mesmos, ou factos «absolutamente» brutos. Ser bruto é, portanto, uma

característica relacional de um determinado facto, que, naturalmente, precisa de estabelecer

uma relação com outro.

B. A relação entre «ser» e «dever-ser»: HUME, MOORE e KELSEN

A conceção de facto bruto apresentada na subsecção precedente tem a vantagem de abranger

no seu seio objetos físicos, processos que lhes sejam inerentes, incluindo relações de causa e

efeito, e ações voluntárias, que são intencionais nos termos referidos na secção 2. Estes aspetos

não são, no entanto, cumulativos. Assim, «carregar determinada quantidade de batatas para um

dado local deixando-as aí» é um facto bruto que integra coisas corpóreas, as batatas, ações

como a de carregá-las e pousá-las num certo sítio, e a intenção (que é quanto à execução do ato

em si) de fazer precisamente isto. Por outro lado, o processo de fotossíntese nas plantas, por

exemplo, não contém qualquer ação intencional, visto que se trata de um processo natural, de

um ato não-humano, segundo o qual determinada planta, que é um objeto físico, utiliza outras

coisas corpóreas, como dióxido de carbono e água, para, através da energia da luz solar, que

também é uma entidade física, produzir uma substância física, a glicose. Este processo é,

contudo, igualmente um facto bruto.

Poder-se-á arguir que a presente conceção tem a desvantagem de permitir, no âmbito

das ações intencionais, que se classifiquem fenómenos valorativos e/ou normativos como

sendo factos brutos, especialmente para quem defenda que não se pode retirar um «dever-ser»

a partir de um «ser». Como é sabido, os proponentes desta posição derivam-na a partir de uma

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passagem de HUME,30 onde o autor defende que não é possível deduzir a partir de algo que é

que algo deve ser sem que se apresentem razões para tal. O raciocínio não pode, por

conseguinte, ser dedutivo. Na versão de HUME, o problema do «dever-ser/ser» parece não

implicar que nunca se possam retirar conclusões de dever-ser a partir de um ser, mas sim que

essas mesmas conclusões requerem argumento, e, por isso, não podem ser formuladas

dedutivamente, i.e., como se a conclusão de dever-ser fosse uma consequência óbvia e

inescapável de um estado de coisas que é. É preciso ter em conta que esta observação surge

num contexto no qual HUME prepara o terreno para o seu argumento segundo o qual a Moral

advém das emoções e não da razão. A passagem em questão surge, com efeito, no final da

secção I da Parte I do Livro III de A Treatise of Human Nature, intitulada «distinções morais

não derivadas da razão». É, por isso, compaginável que, para HUME, fosse possível derivar

aquilo que deve-ser a partir daquilo que é, desde que tal não fosse feito dedutivamente em

questões de Moral. De facto, HUME não é tão perentório a propósito de uma outra realidade

normativa, o Direito, havendo espaço para arguir que, para este autor, o conteúdo do Direito

positivo deve-ser aquilo que é efetivamente sentido quer pela população que se encontra sob a

sua jurisdição, quer por quem se imponha através da força.31 No entanto, e independentemente

do alcance que HUME realmente pretendeu atribuir à proposição segundo a qual não se pode

extrair um dever-ser a partir de um ser, a mesma acabou por se cimentar no mundo da Ética e

da Moral, tendo sido refinada e reafirmada por G.E. MOORE, para quem, se o «bom» não

denotar algo simples e indefinível, então ou é um complexo acerca de cuja análise correta pode

haver desacordo, ou então não significa nada de todo, e, consequentemente, a Ética é uma

disciplina que não existe.32

Contudo, como, para MOORE, «bom» denota, com efeito, algo simples e indefinível,

estas duas alternativas são facilmente refutáveis.33 É durante a construção dos argumentos que

refutam as duas alternativas mencionadas por MOORE que o autor acaba por elaborar a posição

que acabou por ficar conhecida por «argumento da questão aberta», que é um argumento que

propõe um método analítico que consiste em colocar aquela que é a questão mais fundamental

de toda a ética, a saber, «como definir o “bom”?», concluindo MOORE a partir desta análise que

todas as definições da noção de «bom», quer sejam naturalistas ou metafísicas, proveem de um

sofisma: «bom» é um termo indefinível, pelo que nenhum sinónimo pode ser encontrado34

porque a hipótese de que o desacordo acerca do significado de «bom» é um desacordo em

relação à análise correta de um dado todo é uma hipótese em si mesma incorreta, o que é

verificável, na ótica de MOORE, através da consideração do facto de que, qualquer que seja a

definição oferecida, pode-se sempre perguntar, com relevância, acerca do complexo assim

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definido, se este é em si mesmo bom. Tomando como exemplo a definição segundo a qual «ser

bom significa ser aquilo que desejamos desejar», verifica-se, continua MOORE, que, ao se

aplicar esta definição a uma instância em particular dizendo-se «quando pensamos que A é

bom, estamos a pensar que A é uma das coisas que desejamos desejar,» esta proposição, ainda

que pareça bastante plausível, acaba por se tornar ininteligível após a colocação de uma questão

subsequente, a saber, «é bom desejar desejar A?», que de resto, é, na ótica de MOORE, tão

ininteligível quanto a questão original «é A bom?» Para além disso, conclui MOORE, o

predicado «bom» é positivamente diferente da noção de «desejar desejar» que entra no sujeito

das proposições acima avançadas, pelo que a proposição «que devemos desejar desejar A é

bom» não é meramente equivalente à proposição «que A deve ser bom é bom.»35

Há um eco, nestas ideias de MOORE, daquilo que acabou por ficar conhecido como

«dilema de Êutífron», isto é, saber «se algo é pio (moral) porque agrada aos deuses, ou seja, a

preferência dos deuses por esse algo torna-o pio, ou se, pelo contrário, os deuses manifestam o

seu agrado por esse mesmo algo ser pio em si mesmo.»36 Em MOORE, a alusão ao prazer dos

deuses é substituída pela alusão ao prazer do próprio indivíduo que se interroga se aquilo que

deseja é bom (a questão original «é A bom?»), ou se aquilo que deseja desejar é bom. Em todo

o caso, como, para MOORE, não se pode definir o bom (tal como não se poderia, pelos mesmos

motivos, definir a piedade), é irrelevante apurar se o bom em si mesmo existe ou se é tornado

bom através da vontade de um agente. Com efeito, uma resposta correta ao dilema de Êutífron

seria um grande contributo para a definição do bom, dado que revelaria uma das suas

características principais, a saber, a da sua proveniência.

Este argumento de MOORE deixa, por conseguinte, em aberto a questão de apurar o que

é o bom porque mesmo que tenhamos determinado que algo é o que desejamos desejar, a

questão de saber se esse algo é bom permanece em aberto, no sentido de que não é resolvida

através do significado da palavra «bom».37 MOORE acaba por reforçar o argumento de HUME

quanto à impossibilidade de (pelo menos em questões morais) se retirar um dever-ser a partir

daquilo que é porque demonstra que, a partir da qualificação de atos ou sensações como sendo

«bons», não se pode retirar uma noção do que é o bom em si mesmo; com efeito, se, por

exemplo, o que quer que seja que se chame «bom» parece ser agradável, a proposição «o prazer

é o bom» não estabelece uma conexão entre duas noções diferentes, mas envolve somente uma,

a do prazer. MOORE argumenta que quem refletir na realidade que está perante a sua mente

quando se interroga «é afinal o prazer (ou o que quer que seja) bom?» pode facilmente chegar

à conclusão de que não está meramente a interrogar-se se o prazer é agradável. É percetível

que a pergunta «isto é bom?» é diferente das perguntas «isto é agradável, ou desejado, ou

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aprovado?», na medida em que a primeira tem um significado distinto para o indivíduo que é

questionado, ainda que o próprio não consiga reconhecer exatamente em que respeito é que a

distinção opera. Quando um indivíduo pensa em «importância intrínseca», ou «valor

intrínseco», ou diz que uma coisa «deve existir», tem perante a sua mente o objeto ímpar, a

ímpar propriedade das coisas, que MOORE quer dizer através do termo «bom».38

Em suma, MOORE argui que a partir de algo que é, e.g., o prazer, não se pode extrair

algo que deve-ser, e.g., o bom. Qualificar algo como bom exige um juízo normativo que vai

para além das propriedades naturais das coisas, ou seja, não se pode identificar o bom em si

mesmo com coisas que qualificamos através do adjetivo «bom» e respetivos cognatos e

derivados, dado que ser bom não pode ser identificado com nenhum membro de uma

pluralidade de bens intrínsecos.39 Uma vez mais, a questão aberta surge porque, em relação a

qualquer propriedade natural X proposta como sendo idêntica à propriedade de ser bom, há

sempre uma questão aberta como, por exemplo, «ter X é inevitavelmente necessário e

suficiente para se ser bom?» Mesmo que a resposta a esta questão seja afirmativa, assim que a

mesma seja disputada tornar-se-á claro que a propriedade X e a propriedade de ser bom não

são uma e a mesma coisa, dado que, se tal fosse o caso, então a questão avançada a título de

exemplo seria equivalente à questão tautológica «ter X é inevitavelmente necessário e

suficiente para se ter X?»40

No nosso entender, o conceito de bom é, de momento, indefinível devido ao facto de

pura e simplesmente não sabermos o suficiente acerca do mesmo para o definirmos através do

processo de elucidação, acerca do qual falaremos no Capítulo 4. Em todo o caso, e

independentemente de o bom ser, com efeito, definível ou não, e de quais os motivos pelos

quais eventualmente possa não o ser, o que nos interessa destacar das ideias de MOORE é o

facto de as mesmas implicarem, no seguimento de HUME, que a partir de algo que é não se

pode derivar algo que deve ser. Parafraseando ERNEST SOSA,41 se uma propriedade como, por

exemplo, a de ser alto fosse boa, então ser alto seria ser bom e, por isso, o alto e o bom seriam

uma única e a mesma entidade.

O facto de ser patentemente verdadeiro que ser alto não é o mesmo que ser bom, no

sentido de as duas propriedades não se confundirem, não demonstra, no entanto, aquilo que

MOORE, no seguimento de HUME, pretende estabelecer, a saber, que não se pode, pelo menos

regra geral, derivar um dever-ser a partir de um ser. Com efeito, a propriedade «altura» não é

nem necessária nem suficiente para que se possa extrair, a partir da mesma, um juízo normativo.

Isto não demonstra, todavia, que não se possam efetuar juízos normativos a partir de nenhuma

situação de facto. É precisamente por aceitar acriticamente que tal não é possível que, no

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âmbito da Filosofia do Direito, HANS KELSEN enfatiza que a partir de uma situação fáctica não

se pode fazer derivar uma situação normativa. Para KELSEN, é importante salientar que a norma,

enquanto sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é algo

diferente do ato de vontade cujo sentido essa mesma norma constitui. Na verdade, continua o

autor, a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que a mesma constitui o respetivo sentido

é um ser. Dito por outras palavras, o ato de vontade, e.g., o da aprovação da norma, é um facto

institucional intencional quanto à execução desse mesmo ato que pode ser descrito através de

uma proposição que descreve o facto bruto sobre o qual o facto institucional se baseia: «o

deputado A votou a favor erguendo o braço direito»; no esquema conceptual de KELSEN, este

facto pertence à ordem do ser. No entanto, e ao contrário do que KELSEN admite, as regras

jurídicas também pertencem à ordem do ser, embora apenas algumas delas sejam factos

institucionais, tal como ficará claro no próximo Capítulo. Em todo o caso, no esquema de

KELSEN a norma pertence ao domínio do dever-ser, àquilo que o Direito ordena que aconteça,

e não ao que acontece de facto.

Por estas razões, argumenta KELSEN, a situação fáctica perante a qual nos encontramos

na hipótese de o ato de vontade ocorrer tem que ser descrita através do seguinte enunciado:

«um indivíduo quer que o outro se conduza de determinada maneira.» A primeira parte deste

enunciado, assevera KELSEN, refere-se a um ser, o ser fáctico do ato de vontade, ao passo que

a segunda parte se refere a um dever-ser, a uma norma com o sentido do ato fáctico de vontade.

Por isso não é correto, na ótica de KELSEN, dizer que o facto de um indivíduo ter o dever de

fazer algo equivale ao facto de que um outro indivíduo quer algo, porque isto é o mesmo que

dizer que o enunciado de um dever-ser se deixa reconduzir ao enunciado de um ser. KELSEN

conclui o seu raciocínio em relação a esta questão apelando à circunstância de que não é

possível aprofundar mais a distinção entre ser e dever-ser, na medida em que esta é um dado

imediato da consciência humana. Por isso, para o autor, ninguém pode negar que o enunciado

através do qual se descreve um facto se distingue essencialmente do enunciado com o qual se

descreve uma norma, o que advém da posição segundo a qual a circunstância de algo ser não

implica que algo deva ser, e vice-versa.42

A posição de KELSEN revela uma tendência, a saber, a de que autores na esteira de

HUME foram paulatinamente estremando uma orientação relativamente moderada. Com efeito,

se HUME apenas rejeita terminantemente que se deduza, prescindindo de argumentação, que,

em questões morais, algo deve ser a partir de algo que é, e se MOORE fortalece esta doutrina

filosófica arguindo que há conceitos indefiníveis que são incapazes de se identificar com

realidades do domínio do ser, KELSEN acaba por aderir a um dualismo total onde ser e dever-

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ser nunca são deriváveis um do outro, não só no domínio da Moral mas, igualmente, naquele

onde KELSEN foca a sua atenção, o do Direito. Apesar de KELSEN admitir que o dualismo entre

o ser e o dever-ser não significa que ambos se coloquem um ao lado do outro sem qualquer

relação,43 a verdade é que a relação existente entre ser e dever-ser se resume, na ótica de

KELSEN, à possibilidade de comparar a conduta estatuída na norma como devida, e que

constitui o conteúdo da norma, com a conduta que de facto ocorre.44 Assim, a relação que

KELSEN admite existir entre ser e dever-ser consubstancia-se num procedimento comparativo

nos termos do qual se afere se a conduta que é, i.e., que ocorre de facto, corresponde à conduta

que deve-ser, i.e., que é prescrita de iure, o que é feito com o propósito de verificar se é

necessário aplicar um ato de coação que deve ser efetivado quando se verifique, não a conduta

prescrita, que é do domínio do dever-ser, mas sim a conduta proibida, que é do domínio do ser,

a conduta que é contrária ao Direito, realidade da ordem do dever-ser.45 No entanto, em caso

algum a conduta devida e que constitui o conteúdo da norma pode ser identificada, no sentido

em que se procura, erradamente na ótica de MOORE, identificar o prazer com o bom, com a

conduta de facto correspondente à norma.

Voltando a HUME, a única postulação que este autor originariamente faz é a de que é

inadmissível deduzir que algo deve-ser a partir de algo que é em questões morais prescindindo

de argumento. Ora, a ser assim, poderemos argumentar que é possível deduzir, a partir das

ideias de HUME, que, para este, se pode deduzir, inclusive em questões de Moral, que algo

deve-ser tendo em conta algo que é desde que se apresente um argumento idóneo que

fundamente tal dedução. Isto significa que há casos onde é possível deduzir que algo deve-ser

a partir de algo que é, e vice-versa. Na mesma linha, cremos que a implicação retirada pelos

comentadores de MOORE segundo a qual, a partir da impossibilidade de identificar o bom,

conceito do domínio do dever-ser, com propriedades do domínio do ser, como o prazer, se

segue que nunca se pode derivar um dever-ser a partir de um ser poderá, eventualmente,

corresponder a uma atribuição, a este autor, um pouco distorcida do ponto onde MOORE

realmente quer chegar. Um exemplo do que acaba de ser dito pode ser fornecido por algo que

KELSEN diz de passagem, em nota de rodapé: «Do conceito de dever-ser vale o mesmo que

GEORGE EDWARD MOORE diz (…) do conceito de “bom”: “‘bom” é uma noção simples,

precisamente como “amarelo” é uma noção simples’. Uma noção simples não é definível nem

– o que vale o mesmo – analisável.»46 KELSEN atribui, assim, pelo menos por implicação, a

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Moore a opinião de que, para este, o conceito de dever-ser é uma noção simples, com tudo o

que daí decorre.*

O facto de KELSEN ser coerente na sua argumentação não significa que não esteja errado

ao qualificar o conceito de dever-ser como sendo uma noção simples. Com efeito, a coerência

da argumentação de KELSEN funda-se no pressuposto de que há conceitos indefiníveis por

natureza e que, por isso, não são analisáveis. No entanto, só é possível esclarecer devidamente

a relação entre ser e dever-ser se se analisarem estes conceitos com alguma profundidade, de

forma a que se possa concluir, através de argumento, se um ser pode, ou não, ser derivado de

um dever-ser, e vice-versa. HUME e MOORE fornecem, efetivamente, argumentos que apoiam

a posição segundo a qual, regra geral, tal não é possível, mas não nos parece que rejeitem

liminarmente a existência de exceções, especialmente HUME, que se mostra um pouco mais

flexível, na sua posição, do que MOORE.

Tudo isto é relativamente claro, e, com efeito, nada há a apontar à ideia de que, por um

lado, o conteúdo de uma norma é uma proposição segundo a qual o seu destinatário se deve

comportar de determinada maneira, e, por outro lado, que conteúdo da norma e conduta

efetivamente praticada podem ser comparados. No entanto, KELSEN, bem como todos os

filósofos que, de forma geral, aderem ao dualismo entre dever-ser e ser, cometem um erro ao

não entender que o domínio daquilo que deve ser só é um domínio diferente daquilo que é

porque, entre ambos, há uma relação análoga à que existe entre um facto bruto e um facto

institucional. Dito por outras palavras, tal como não há factos absolutamente brutos nem factos

absolutamente institucionais, sendo apenas possível classificar-se uns e outros tendo em

atenção as suas posições mutuamente relativas, também não há realidades absolutamente do

domínio do dever-ser.† Uma norma, moral ou jurídica, pertence à ordem do dever-ser em

relação à conduta que visa regular, sendo que a conduta efetivamente encetada pertence à

* Assim, os termos sob os quais a aproximação feita por filósofos do século XX da falácia naturalista

de MOORE à questão do ser/dever-se de HUME poder-se-ão dever a vários entendimentos do argumento

de MOORE que distorcem essa mesma aproximação, i.e., a ligação entre a falácia naturalista e a questão

do ser/dever-se não é tão linear como é habitualmente entendida, o que abre a possibilidade de que

atribuir a MOORE a ideia de que nunca se pode derivar um dever-ser a partir de um ser é incorreto.

† Não sendo possível fundamentar aqui a seguinte postulação, diríamos que, no entanto, há realidades

que são absolutamente do domínio do ser, como factos brutos físicos, e.g., montanhas e moléculas, dado

que as mesmas nunca podem passar para a ordem do dever-ser através do estabelecimento de uma

relação com um outro facto bruto físico.

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ordem do ser; todavia, se separarmos a norma da conduta, e a analisarmos em si mesma, como

uma realidade autónoma, o que se constata é que estamos perante um facto mental, uma

realidade da ordem do ser, dado que as normas, morais ou jurídicas, que prescrevem os

comportamentos obrigatórios para os seus destinatários são, existem, tanto na sua forma e

origem, i.e., ao serem criadas por atos de decisão, como no seu conteúdo que, sendo avaliativo,

não deixa de ser factual, dado que premissas avaliativas são factos mentais. As normas são, por

conseguinte, realidades fácticas, tanto quanto à sua origem como quanto ao seu conteúdo, ainda

que não sejam factos brutos. Isto significa que, quando o tribunal cria normas jurídicas

aplicáveis às partes em litígio essas mesmas normas são do domínio do dever-ser em relação

às condutas que as partes, futuramente, encetarão, e que, com efeito, poderão, ou não,

corresponder àquilo que é prescrito, mas as referidas normas pertencem igualmente à ordem

do ser quando tomadas em si mesmas, dado que são realidades fácticas, nomeadamente factos

institucionais, quer quanto à sua origem, quer quanto ao seu conteúdo avaliativo. Fazendo uso

da distinção por nós referida na Introdução deste trabalho entre regras e normas jurídicas, que

será desenvolvida no Capítulo 5, diríamos que as primeiras, por serem incapazes de, por si só,

regular condutas, pertencem exclusivamente à ordem do ser, dado que, entre estas e a conduta

que efetivamente ocorre, não se pode estabelecer uma relação de regulação como a que existe

entre normas e conduta. No entanto, tal como ficará claro no final do próximo Capítulo, as

regras jurídicas extraíveis de fontes do Direito são factos institucionais, tal como as normas,

não obstante as primeiras serem sempre do domínio do ser, por só poderem ser tomadas em si

mesmas, ao passo que as segundas serão ou da ordem do ser, ou do domínio do dever-ser,

consoante a perspetiva que se adote, i.e., se considerem em si mesmas ou em relação às

condutas que visam regular.

Por não entenderem isto, quase todos os filósofos, da lógica, da Ética ou do Direito,

postulam, através de argumentos que são falaciosos por caírem no erro de base que acabámos

de apontar (o de não se aperceberem de que o domínio do dever-ser é relacional), que regras e

normas pertencem exclusivamente à ordem do dever-ser. No entanto, há um outro argumento,

da autoria de SEARLE, que demonstra que certas injunções normativas, como as promessas,

fazem parte da ordem do ser apesar de se encontrarem numa situação de relação com a conduta

fáctica. Tal como ficará claro no final do Capítulo 5, as promessas são consideradas normas na

medida em que, de forma a orientarem a conduta do promitente, levam em linha de conta as

suas circunstâncias fácticas concretas. No entanto, os argumentos de SEARLE, debatidos na

próxima subsecção, demonstram que o ato de prometer, i.e., que o facto bruto de produzir sons

com a boca ou de inscrever marcas num suporte material, aliado ao facto institucional

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linguagem que confere sentido aos sons ou às marcas mencionados, é sempre da ordem do ser,

não obstante ter por objetivo regular uma conduta fáctica que, naturalmente, pode não vir a

ocorrer (ou seja, a promessa pode ser incumprida). As promessas são um caso intrigante porque

fazem parte da ordem do ser, apesar de se encontrarem numa posição relacional com a conduta

efetiva.

Gostaríamos de advertir que estas conclusões são nossas, não de SEARLE; por isso, na

próxima subsecção, dedicada aos argumentos deste autor quanto às promessas, analisá-los-

emos tal como SEARLE os formulou. A vantagem, para o argumento que visamos estabelecer,

de chamar a atenção para uma conceção de certos factos institucionais normativos como

pertencentes à ordem do ser mesmo em situações onde estes se encontram numa relação de

comparação para com a conduta devida prende-se com o facto de esta conceção de SEARLE,

aliada à nossa, ajudar a demonstrar que as normas, morais ou jurídicas, são, por inércia,

realidades do domínio do ser, e que, para serem encaradas como pertencentes à ordem do dever-

ser, é necessário, quando possível, uma ação, a saber, a de as comparar com a conduta devida.

C. Derivar um dever-ser a partir de um ser: o caso das promessas

SEARLE procura explorar o espaço deixado em aberto por HUME providenciando um

contraexemplo da tese proposta por este último, sem embargo de advertir, desde logo, que

apenas está preocupado com a versão moderna do problema dever-ser/ser, e não com a forma

como HUME o tratou.47 Em todo o caso, SEARLE formula o problema com base na passagem de

A Treatise of Human Nature aludida na subsecção anterior em termos que demonstram a

habitual ligação que é feita entre a falácia naturalista de MOORE e a tese dever-ser/ser de HUME,

dizendo que a última, apesar de não ser tão clara como poderia, é pelo menos clara em linhas

gerais;48 a formulação do problema, tal como é feita por SEARLE com base na passagem de

HUME, passa por constatar que há uma classe de declarações de facto que é logicamente distinta

de uma classe de declarações de valor. Nenhum grupo de declarações de facto em si mesmas

implica qualquer declaração de valor. Em terminologia mais contemporânea, nenhum grupo de

declarações descritivas pode implicar uma declaração avaliativa sem a adição de pelo menos

uma premissa avaliativa. Acreditar no contrário é cometer aquilo que habitualmente se designa

por falácia naturalista.49

SEARLE está, naturalmente, consciente de que não se deve supor que um único

contraexemplo pode refutar uma tese filosófica, mas, diz o autor, se for possível oferecer uma

teoria que apoie o contraexemplo fornecido, poder-se-á pelo menos lançar uma luz

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considerável sobre a tese original, e, possivelmente, vir a concluir que o escopo desta tese é

mais restrito do que aquilo que originalmente se supôs.50 Pelas razões avançadas no final da

subsecção anterior, cremos que SEARLE não entende a força dos seus próprios argumentos, o

que o leva a ser excessivamente cauteloso e a não entrar no argumento que, quanto a nós, é

verdadeiramente interessante, e que, de resto, como teremos oportunidade de ver ao longo do

próximo Capítulo, se coaduna perfeitamente com a sua conceção de factos institucionais, a

saber, o de que realidades habitualmente classificadas como sendo da ordem do dever-ser são

factos, e que tal classificação só é, de resto, possível quando se estabelece a relação de

comparação entre aquilo que deve ocorrer e aquilo que é. O contraexemplo de SEARLE tem,

por conseguinte, apenas e só o objetivo de chamar a atenção para o facto de que há possíveis

exceções à tese de HUME, e não o de demonstrar que a tese, pelo menos tal como a mesma foi

interpretada por filósofos posteriores a HUME, é incorreta.* O contraexemplo de SEARLE

demonstra, para além disso, a razão pela qual o raciocínio de ANSCOMBE está certo ao incluir

uma característica mental na noção de facto bruto. Como começámos por observar, a objeção

a esta inclusão procede, em grande medida, de se considerar que não se pode retirar um dever-

ser a partir de um ser, um juízo avaliativo a partir de um dado factual, uma intenção a partir de

um gesto; todavia, se se demonstrar que intenções são dados de facto, que certos

comportamentos contêm inerentemente, em si mesmos, como parte da sua natureza e essência,

um (ou mais) juízo(s) avaliativo(s), então a noção de que factos brutos têm (pelo menos) uma

característica mental é não só correta, mas extremamente reveladora para se entender que a

fonte dos nossos juízos normativos e avaliativos não se encontra única e exclusivamente em

factos mentais que não têm qualquer conexão com factos brutos.

O contraexemplo indicado por SEARLE consiste em quatro declarações que, segundo o

próprio, qualquer proponente da tese em análise concederia que são puramente factuais ou

* Esta ressalva é feita porque, tal como dissemos na subsecção anterior, HUME apenas se parece insurgir

contra a possibilidade de se retirar que algo deve ser a partir de algo que é sem se apresentarem

argumentos, o que sugere que os seus intérpretes poderão ter estendido o escopo da sua tese muito para

além do intencionado pelo seu autor original. É, naturalmente, impossível estabelecer que HUME

aceitaria a correção do argumento aqui desenvolvido se o mesmo lhe tivesse sido apresentado, mas a

mera existência do nosso argumento preenche a condição segundo a qual, para se ligarem realidades do

ser a realidades do dever-ser, tem que se justificar essa opção, que não é uma mera dedução lógica. Em

suma, é contra a ausência de justificação que, na nossa ótica, HUME se parece insurgir, e não contra a

possibilidade de se considerarem normais morais ou jurídicas como fazendo parte da ordem do ser.

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descritivas, sem que seja, contudo, preciso que as mesmas contenham o verbo «ser»; a tarefa

que o autor se propõe executar consiste em demonstrar que estas declarações se encontram

logicamente relacionadas com uma declaração que um proponente da tese consideraria como

claramente avaliativa.51 Ao todo, temos, portanto, cinco declarações, que são as seguintes:

(1) Jones proferiu as palavras «prometo por este meio pagar-te a ti, Smith, cinco dólares.»

(2) Jones prometeu pagar cinco dólares a Smith.

(3) Jones colocou-se sob (assumiu) a obrigação de pagar a Smith cinco dólares.

(4) Jones encontra-se sob a obrigação de pagar a Smith cinco dólares.

(5) Jones deve pagar a Smith cinco dólares.52

O raciocínio desenvolvido por SEARLE com o intuito de demonstrar que se pode derivar

um dever-ser a partir de um ser é o seguinte: proferir as palavras que se encontram entre aspas

na primeira declaração é o ato de fazer uma promessa, pelo menos em certas circunstâncias

como, por exemplo, aquelas que são exigidas para a celebração de negócios jurídicos, o que

inclui, naturalmente, circunstâncias positivas (e.g., ter a intenção de prometer, a declaração

chegar ao conhecimento do promissário, ambos os falantes dominarem a mesma língua) e

negativas (e.g., ausência de erro, de incapacidade acidental ou permanente, etc.).53* Parte do

significado das palavras da primeira declaração consiste no facto de que proferi-las nas

circunstâncias indicadas é prometer.54 De modo a tornar explícito este facto acerca do uso

destas palavras SEARLE adiciona uma premissa extra à primeira declaração, reformulando-a da

seguinte maneira:

(1a) Sob certas condições C quem proferir as palavras (frase) «prometo por este meio pagar-te

a ti, Smith, cinco dólares» promete pagar a Smith cinco dólares.55

Se se adicionar a esta premissa extra uma outra (1b) segundo a qual as condições C se

verificam, então, diz SEARLE, a partir de (1), (1a), e (1b) derivamos (2), não se vislumbrando

quaisquer premissas morais no interior do raciocínio.56 SEARLE estabelece, assim, uma ligação

entre as duas primeiras declarações demonstrando que a segunda deriva da primeira se se

acrescentarem certas premissas que não são morais, ou seja, que não são do domínio do dever-

* Os exemplos de SEARLE são, na verdade, circunstâncias concretas do que é dito em texto de forma

geral. Assim, SEARLE não fala, por exemplo, de «ter a intenção de prometer», mas refere que é

necessário «estar a falar a sério», «não estar a contar uma piada», etc.

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ser. Para além disso, a exposição de SEARLE revela desde logo a existência de pelo menos uma

característica mental (a intenção de prometer) no seio do ato de prometer, que, como diria

ANSCOMBE, é um facto bruto em relação à execução dos atos que correspondem ao

cumprimento da promessa (no caso, dar cinco dólares a Smith).

A veracidade desta posição depende, contudo, de se determinar cabalmente que se pode

derivar um dever-ser a partir de um ser, na medida em que, se tal for possível, isso deve-se à

circunstância de ambos os domínios se encontrarem ligados por algo, nomeadamente (mas não

exclusivamente) a instituição «linguagem». Se a linguagem unir, com efeito, o domínio do

dever-ser ao domínio do ser então demonstra-se claramente que há atributos do dever-ser em

certas circunstâncias do ser, designadamente atributos linguísticos que são, tal como vimos na

secção 2, intencionais. Isto leva à conclusão de que em factos brutos como o ato de prometer a

intenção do promitente quanto ao efeito de se colocar sob uma obrigação é simultaneamente

uma intenção linguística. Como é fácil entender, esta constatação não colapsa a intenção

linguística e a intenção teleológica tornando-as num único conceito; ambas continuam a ser

dois conceitos distintos que, sem embargo, num caso especial como o do ato de prometer se

identificam, tal como sucede com o dever-ser e o ser, que, continuando a ser dois conceitos

distintos, em casos especiais como este também se identificam. Para a atividade interpretativa

advém, contudo, uma consequência importante, a saber, a de que, nestes casos especiais, aquilo

que se quer dizer é o efeito que se visa produzir, e, quando assim sucede, a intenção teleológica

não pode ser postergada pelo intérprete, visto que equivale à intenção linguística.

Com o intuito de demonstrar que a linguagem une os domínios do ser e do dever-ser,

SEARLE continua a analisar as relações entre as demais frases com o intuito de estabelecer que,

tal como a frase (2) deriva da declaração (1), (3) deriva de (2) e assim sucessivamente. Assim,

para SEARLE, (3) deriva de (2) porque prometer é, por definição, um ato segundo o qual quem

promete se coloca sob uma obrigação,57 e, por isso, (2) implica (3). Em todo o caso, SEARLE

não objeta a que se acrescente uma premissa tautológica (que não é moral), a saber:

(2a) Todas as promessas são atos segundo os quais quem promete se coloca sob (assume) a

obrigação de fazer o que foi prometido.58

(3) relaciona-se com (4) porque, se alguém se colocou sob uma obrigação, então,

mantendo-se inalteradas outras coisas, essa pessoa encontra-se sob uma obrigação. SEARLE

mantém que isto é tautológico, mas que a qualificação ceteris paribus é necessária porque é

possível que aconteçam várias coisas que libertem alguém de obrigações por si assumidas. Por

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esta razão, é necessário acrescentar a premissa (3a), a saber, a de que outras coisas se mantêm

inalteradas,59 e, se se desejar, a seguinte premissa tautológica:

(3b) Todos aqueles que se colocam sob uma obrigação encontram-se, mantendo-se inalteradas

outras coisas, sob uma obrigação.60

Entre (4) e (5) existe uma tautologia análoga à que se verifica entre (3) e (4), visto que,

mantendo-se inalteradas outras coisas, uma pessoa deve fazer aquilo que se encontra sob a

obrigação de fazer.61 Uma vez mais, a premissa segundo a qual «todas as coisas se mantêm

inalteradas» tem que se verificar de forma a eliminar a possibilidade de que algo extrâneo à

relação entre obrigação e dever possa interferir.62

Seguidamente, SEARLE refuta uma possível objeção, a saber, a de que a cláusula ceteris

paribus obriga a um juízo avaliativo. SEARLE argumenta que tal não é o caso, visto que as

circunstâncias que podem dar azo à exoneração do promitente tanto podem ser avaliativas

como factuais; não havendo, por conseguinte, uma implicação necessária entre «todas as coisas

mantêm-se iguais» e um juízo avaliativo, não há razão para se concluir que derivar um dever-

ser a partir de um ser implica sempre recurso a uma premissa avaliativa, ou moral.63 Em todo

o caso, SEARLE diz que, mesmo que esteja errado quanto à relação entre a cláusula ceteris

paribus e a presença de juízos avaliativos, é sempre possível reescrever os passos (4) e (5) de

forma a incluírem a cláusula ceteris paribus como parte da conclusão. Assim, derivar-se-ia das

premissas a proposição «mantendo-se inalteradas outras coisas, Jones deve pagar a Smith cinco

dólares», e isto seria suficiente para refutar a conceção de que nunca se pode derivar um dever-

ser a partir de um ser, dado que ainda assim se teria demonstrado uma relação de implicação

entre declarações descritivas e avaliativas. SEARLE conclui afirmando que não foi o facto de

que circunstâncias atenuantes podem anular obrigações que levou os filósofos à falácia da

falácia naturalista; foi, ao invés, uma teoria da linguagem.64

Por ter uma teoria da linguagem diferente da dos filósofos aos quais SEARLE alude, este

consegue estabelecer uma relação de implicação entre ser e dever-ser existente em pelo menos

certas circunstâncias. O papel da linguagem e da intenção com que a mesma é usada não pode,

com efeito, ser menosprezado, apesar de haver uma divergência quanto ao papel da intenção

na interpretação entre o pensamento de SEARLE e o nosso, que analisamos no Capítulo seguinte.

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2

Factos Mentais

1. Atos de decisão

Segundo PETER GEACH, em narrativa histórica ou ficcional ocorrem relatórios, não só daquilo

que os seres humanos manifestamente disseram ou fizeram, mas também do que eles pensaram,

de como se sentiram, do que eles viram e ouviram, e por aí adiante, sendo este último tipo de

relatórios designados pelo autor através da expressão «relatórios de atos mentais».1 Atos

mentais são, por conseguinte, atividades desenvolvidas no seio da vida mental privada de cada

indivíduo, e incluem pensamentos, sentimentos, perceções sensoriais e outras operações do

género. Usar palavras e expressões para exteriorizar, isto é, para reportar os nossos atos mentais

é uma condição necessária da socialização, da partilha dos mesmos com outras pessoas, mas

não da sua existência. Um pensamento é um ato mental formado no seio da vida mental do

indivíduo que o pensa; um relatório, efetuado através de termos e expressões adequados para

o efeito, é a exteriorização desse mesmo ato mental, e não a sua criação.

GEACH defende que atos de decisão são um tipo de ato mental.2 Em princípio, diz o

autor, se alguém puser uma crença sua em palavras, não da maneira que os papagaios o fazem

mas com consideração, então ocorre um ato mental do tipo que o autor denomina por «ato de

decisão». Toda a gente, conclui GEACH, executa um ato de decisão pelo menos quando

determina, na sua mente, como responder a uma questão.3

Assim, uma conclusão de Direito é um tipo de ato mental, mais concretamente um tipo

de ato de decisão, na medida em que quem tem a responsabilidade de decidir uma determinada

questão jurídica fá-lo expressando através de palavras com o máximo grau de consideração

possível uma crença sua, nomeadamente a crença de que «X é o caso», ou de que «Y é

verdade». Note-se que os atos de decisão que são conclusões de Direito incidem sobre diversas

valências jurídicas, distinguíveis umas das outras mas interligadas entre si, que expressam,

entre outras, a crença na veracidade da matéria de facto apurada, na validade da interpretação4

que o decisor faz das fontes que julga serem aplicáveis ao caso, ou na correção das definições

dos termos jurídicos presentes nas regras a aplicar ao caso concreto. Apesar de não estar a

pensar especificamente em conclusões de Direito, mas sim em atos de decisão em geral, a

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observação de GEACH segundo a qual os atos de decisão são claramente episódicos, na medida

em que têm uma posição cronológica,5 aplica-se tout court à resolução de questões de Direito,

como se pode ver através da constatação de que há vários atos de decisão intermédios (atos de

decisão quanto à definição de termos e expressões jurídicos, quanto às fontes aplicáveis, etc.)

no percurso metodológico que leva ao ato de decisão final, o da resolução da questão de Direito,

isto sem prejuízo de sermos da opinião, que resulta daquilo que é dito no Capítulo 5, de que a

resposta à questão Quid iuris? é uma resposta que incide sobre uma determinada factualidade,

e, por isso, as circunstâncias factuais de um caso concreto são parte integrante da decisão

jurídica, ou seja, só há Direito porque há casos concretos, o que faz com que diferentes aspetos

da realidade jurídica como as definições, as fontes, as regras daí extraíveis e muitos outros só

sejam entendíveis em conjunto.

2. Atos de fala

Na presente secção pretendemos desenvolver e justificar a asserção segundo a qual todos os

atos de fala são intencionais, o que implica que o significado de um ato de fala é equivalente à

intenção linguística com que o seu autor o produziu. Como referimos no Capítulo anterior,

nada há de revelante a dizer sobre a intenção em executar uma ação no contexto de um ato de

fala. Quanto à intenção teleológica, afigura-se-nos que a mesma é irrelevante para apurar o

significado de um ato de fala; dito por outras palavras, perceber o que é que o autor de um texto

quis dizer através das palavras que utilizou é diferente de perceber quais os efeitos que visou

atingir através do texto em questão. O corolário desta investigação, amplamente estabelecido

em dois outros textos anteriormente publicados, é o de que interpretar um texto é buscar a

intenção do seu autor, e, por isso, interpretar uma lei é apurar a intenção de quem a redigiu (e

não a de quem votou a favor da respetiva proposta de lei), tal como interpretar um poema é

identificar a intenção de quem o escreveu.6 Aproveitamos o presente trabalho para enfatizar

algo que não mereceu o devido realce nas referidas publicações, a saber, o facto de que a

intenção que é indissociável do significado é a intenção linguística, na medida em que o

objetivo da interpretação de um texto é perceber o que é que o mesmo significa, e o que este

significa é o que quer que seja que o seu autor queira que ele signifique. Apurar as intenções

teleológicas de um texto não equivale, por conseguinte, a apurar o seu significado. Por este

motivo, autores como PAUL BREST, por exemplo, têm toda a razão quando argumentam que a

melhor interpretação de documentos como a Constituição dos Estados Unidos da América é

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aquela que visa resolver os problemas contemporâneos da sociedade, e não a que busca a

intenção do legislador constituinte plasmada no texto constitucional,7 na medida em que,

apesar de não o articular da forma como o estamos a fazer, a posição «não-interpretativista» é

precisamente aquilo que a sua designação sugere, i.e., não é um exercício de interpretação das

intenções teleológicas do legislador constituinte. Esta posição não implica, contudo, que

postergar intenções teleológicas acarrete postergar intenções linguísticas dado que, se tal for o

caso, não faz sentido continuar a chamar à atividade dos constitucionalistas «interpretação».

A. Regras linguísticas

Dizer que o significado de um ato de fala corresponde, em toda e qualquer circunstância, à

intenção com que o seu autor o proferiu ou reduziu a escrito colide, à primeira vista, com um

aspeto dos sistemas linguísticos das línguas naturais que é quase universalmente aceite, a saber,

o de que as palavras, umas vezes isoladamente, outras vezes em determinados contextos, têm

significados que são independentes da vontade e/ou da intenção dos falantes. Há versões mais

e menos elásticas desta posição, que variam entre considerar, no polo mais rígido, que as

palavras têm significados intrínsecos, cabendo apenas ao falante a discrição entre usá-las

literalmente ou através de um tropo,8 e, perto do polo menos rígido, que as palavras têm

significados in abstracto que podem ser escolhidos consoante a intenção do falante na produção

de atos de fala. Em todas as versões do espectro, o falante encontra-se, no entanto, obrigado a

seguir regras linguísticas, umas do foro gramatical, outras do foro semântico, sob pena de

cometer aquilo que JOHN L. AUSTIN famosamente denominou por «infelicidade», i.e., casos em

que algo «corre mal» e, portanto, o ato em questão é, de forma mais ou menos gradual, um ato

falhado.9 Uma das circunstâncias que pode «correr mal» é linguística, e consiste no facto de

que é necessário, para se produzir um ato de fala que não seja infeliz, seguir um determinado

processo que produza um dado efeito, ambos convencionais, processo esse que inclui proferir

certas palavras em certas circunstâncias.10 A partir do momento em que se advoga que há certas

palavras que têm que ser usadas, e que, não obstante poderem, eventualmente, ser substituíveis

por outras palavras aptas a produzir os mesmos efeitos das primeiras, não podem ser

substituídas aleatoriamente segundo o arbítrio total do falante, é impossível fugir da conclusão

de que há pelo menos algumas palavras cujo significado não depende da intenção com que o

falante as queira usar, mas sim das regras gramaticais e, especialmente, semânticas da língua

natural em questão. Esta conclusão é geralmente alargada a todas as palavras que fazem parte

de uma dada língua natural.

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B. O papel da intenção na interpretação

Estas considerações indiciam que há um golfo, uma diferença, entre intenção e significado e,

por isso, é possível que, ao articular um ato de fala, o falante diga efetivamente algo diferente

daquilo que pretende dizer. PAUL GRICE encara esta circunstância como um facto insofismável

que usa como pressuposto tácito de várias teorias (ou, talvez, de uma única teoria com vários

detalhes obscuros) às quais dá designações como «significado intemporal», «significado

intemporal aplicado», «significado de ocasião de um enunciado-tipo» e «significado de ocasião

de um falante», e que são desenvolvidas a partir da análise de uma frase que, traduzida

livremente, contém as seguintes palavras:

Se eu então começar a ajudar a erva a crescer, não terei tempo para ler.11

GRICE postula, seguidamente, que o termo «erva» tem, pelo menos, dois significados

intemporais, a saber, «o material de que um relvado é feito» e «marijuana».12 Num determinado

ato de fala, ou, para utilizar a terminologia de GRICE, num enunciado concreto (particular

utterance) é necessário especificar qual dos dois significados intemporais é que está a ser usado

na ocasião em questão, de forma a que se estabeleça qual a leitura correta de um determinado

enunciado numa dada ocasião concreta. A esta operação de especificação GRICE atribui a

designação de significado intemporal aplicado.13

GRICE reserva o papel da intenção do falante para os dois últimos tipos de significado,

assumindo que a noção de significado de ocasião de um falante pode ser explicada a partir das

intenções do falante. A partir desta posição, GRICE argui que tanto o significado temporal como

o significado temporal aplicado podem ser explicados tendo por base a noção de significado

de ocasião de um falante, e, por conseguinte, todos os significados são explicáveis à luz da

intenção dos falantes.14 Não é importante analisar em detalhe os contornos da teoria de GRICE;15

o que nos interessa realçar é somente o facto de que a ideia de que o significado pode ser

explicado em correlação com as intenções de um falante pressupõe a existência de um espaço

lógico entre os dois termos. Dito por outras palavras, GRICE e outros teóricos que seguem uma

linha de pensamento similar à sua argumentam que os significados de palavras e de textos por

si compostos podem ser explicados através da intenção dos falantes, o que indicia que há uma

ligação, relevante e importante, entre significado e intenção, mas não têm necessariamente que

o ser. O argumento é somente o de que a melhor forma de perceber um enunciado linguístico

concreto, de o interpretar, é olhar para a intenção do falante, visto que, se se tomar em atenção

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apenas os significados intemporais, o significado do enunciado concreto em questão

permanecerá indeterminado.

No âmbito da teoria literária, a ideia de que se deve apelar à intenção do autor de um

texto para se apurar o significado do mesmo foi anátema durante algum tempo. Esta posição,

que foi um dos expoentes do movimento literário que ficou conhecido por «New Criticism», é

claramente articulada por duas das suas principais figuras, WILLIAM K. WIMSATT JR. e

MONROE C. BEARDSLEY, que argumentam que críticos que buscam a intenção do autor de um

texto com o intuito de apurar o significado do mesmo incorrem naquilo que os próprios autores

designam por «falácia intencional».16 Os autores procuram estabelecer a sua posição através

da comparação com aquilo que, no seu entender, bem como no de ELMER EDGAR STOLL, com

quem entram em diálogo, acontece na interpretação de constituições bem como de certos

instrumentos de Direito privado, como contratos e testamentos. STOLL compara o crítico

literário a um juiz na medida em que a função de ambos passa não por explorar a sua própria

consciência, mas sim o significado que o autor quis dar a um texto, que é fruto da sua intenção,

tal como se o poema, que é o exemplo avançado por STOLL, fosse um testamento, um contrato

ou uma constituição, isto porque o poema não é pertença do crítico.17 A importância que é dada

à intenção separa radicalmente STOLL de WIMSATT e BEARDSLEY, visto que o primeiro revela-

se um intencionalista, ao passo que os segundos argumentam que STOLL tem razão ao

considerar que o poema não é do crítico, mas que está errado na implicação de que é do autor,

dado que, na realidade, é do público, porque, e isto é essencial para a discussão que temos

vindo a encetar, se encontra corporizado na linguagem, que é posse do público.18 Assim, e

apesar de se encontrarem separados quanto ao papel da intenção na interpretação de textos, há

algo que une STOLL, WIMSATT e BEARDSLEY, a saber, o facto de pressuporem que há a

possibilidade de escolher entre interpretar o significado de um texto ou a intenção que lhe é

atribuída pelo seu autor, facto sobre o qual constroem toda a sua argumentação.

Posteriormente, autores como E.D. HIRSCH JR.19 e P.D. JUHL,20 entre outros,

desenvolveram novas teorias contra as de WIMSATT e BEARDSLEY e as dos demais autores

inseridos no mesmo quadrante teórico, onde destacam a importância que apurar a intenção tem

para se interpretar um texto literário. Seria supérfluo examinar aqui os argumentos destes

autores que, apesar de se revelarem intencionalistas, não concordam totalmente entre si. Aquilo

que procurámos até agora estabelecer, e cremos tê-lo conseguido, é que há teóricos, tanto do

domínio da teoria da literatura como do da filosofia da linguagem, intencionalistas e anti-

intencionalistas. Afigura-se-nos desnecessário discutir aqui a fundo, até porque já o fizemos

noutro lugar,21 as querelas entre aquilo que a doutrina portuguesa denomina por «subjetivistas»,

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que correspondem, grosso modo, aos intencionalistas, e «objetivistas», que são, na

terminologia jurídica portuguesa, a contraparte, grosso modo, dos anti-intencionalistas.22 Ora,

para que seja possível tomar qualquer uma destas posições teóricas, seja na filosofia da

linguagem, na teoria literária, na parte da teoria do Direito que se debruça sobre a interpretação

jurídica ou em qualquer outra área do saber que lide com a interpretação de textos, é necessário

pressupor que existe um golfo, um espaço lógico que possibilita a ocasião de se efetuar uma

escolha entre interpretar o significado de um texto ou a intenção do seu autor, ou até mesmo

uma mistura dos dois, tal como o artigo 9.º do Código Civil prescreve.

C. O papel das regras linguísticas na interpretação

Assumir que o significado de um texto e a intenção do seu autor são entidades distintas, e que,

por isso, há uma escolha entre interpretar o significado ou a intenção faz surgir uma dúvida

cética que, apesar de ser expressamente direcionada à possibilidade de interpretar significados,

não deixa de abranger igualmente a possibilidade de se interpretar intenções linguísticas, na

medida em que estas são expressáveis através da linguagem. Dito por outras palavras, é

controvertido saber se pode, ou não, haver linguagem sem intenção linguística, mas não há

dúvidas de que não podem haver intenções linguísticas sem recurso à linguagem. Note-se que

pode, sem dúvida, haver intenção independente da linguagem, visto que é notório que tanto

animais como seres humanos nos primeiros meses de vida têm intenções e manifestam-nas sem

recorrerem a um código linguístico ou a qualquer outro tipo de código convencional; no

entanto, a intenção que neste momento nos preocupa é a intenção linguística, o sentido que o

autor de um texto lhe pretende atribuir. A própria existência deste tipo de intenção depende da

capacidade de usar linguagem.

A dúvida que o cético coloca pode ser formulada através da seguinte interrogação:

«como é que o intérprete de um texto sabe que aquelas palavras significam o que as regras

gramaticais e semânticas de uma determinada língua natural dizem que elas significam?» A

teoria da linguagem avançada por SEARLE responde, quanto a nós insatisfatoriamente, a esta

questão, afirmando que um falante nativo de uma dada língua natural sabe, por exemplo, que

«oculista» é sinónimo de «médico dos olhos», que «banco» tem (pelo menos) dois significados,

ou que «gato» é um nome comum, e isto independentemente da existência de critérios

operacionais de sinonímia ou de ambiguidade que, em todo o caso, têm que ser consistentes

com o conhecimento que os falantes têm da sua língua nativa, sob pena de ser considerado

inadequado. Por este motivo, qualquer apelo a um critério pressupõe a sua adequação a

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exemplos como os acima mencionados. O ponto onde SEARLE quer chegar não é o de que as

reivindicações feitas em caracterizações linguísticas não podem ser justificadas na ausência

dos tipos preferidos de critérios, mas sim o de que qualquer critério proposto não pode ser

justificado na ausência de conhecimento expresso por caracterizações linguísticas.23

Assim, os seres humanos sabem o significado de certos termos em virtude de serem

falantes de uma língua (o facto de serem nativos ou não parece-nos irrelevante; o que é

essencial é dominar o código linguístico em questão). Quaisquer critérios operacionais têm que

ir ao encontro do conhecimento linguístico obtido em virtude do simples facto de se conhecer

o código linguístico no âmbito do qual certas palavras têm certos significados. SEARLE observa

que a resposta a questões como, por exemplo, «Que tipos de explicação, ou fundamentação, ou

justificação poderiam ser oferecidos para a reivindicação de que tal fio de palavras é uma frase

ou que “oculista” quer dizer médico dos olhos ou que é analiticamente verdade que as mulheres

são fêmeas?»24 passa por sugerir que falar uma língua é entrar numa (altamente complexa)

forma de comportamento governado por regras. Aprender e dominar uma língua é aprender e

dominar essas regras, e, por isso, um indivíduo, enquanto falante proficiente, faz

caracterizações linguísticas similares àquelas acima exemplificadas, não se limitando a reportar

o comportamento de um grupo; o falante descreve, com efeito, aspetos do seu domínio de uma

perícia, que consiste em falar, ou escrever, uma língua, que é governada por regras.25

Na medida em que saber uma língua é dominar um conjunto de regras, o que inclui o

significado de frases e palavras, é um truísmo, na ótica de SEARLE, que um falante competente

sabe o significado das palavras que ele e outros falantes competentes da sua língua usam. A

linguagem do Direito é um código linguístico que se baseia numa dada língua natural mas que

contém especificidades devido ao facto de conter termos técnicos, i.e., termos que ou não

existem fora da linguagem jurídica, ou que, a existirem, visam designar conceitos diferentes.

Os juristas são os falantes competentes, ou «nativos», da linguagem jurídica, e, por isso, o

raciocínio de SEARLE, adaptado ao código linguístico do Direito, levaria à conclusão de que,

tal como os falantes de uma língua sabem que «oculista» quer dizer «médico dos olhos», os

juristas sabem o que é que «direito» ou «dever» querem dizer.

D. A intenção e o significado são inseparáveis

O problema desta conceção, e é isto que, no nosso entender, a torna insatisfatória como resposta

à pergunta formulada pelo cético, é o de não tomar em devida conta duas dificuldades, uma de

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ordem geral, que tem a ver com a língua em geral, e outra mais específica, que se prende com

a linguagem técnica.

Começando pela última, a dificuldade de ordem específica que se prende com a

linguagem técnica é a seguinte: determinado termo ou expressão técnico tem, de acordo com o

código linguístico do qual faça parte, um significado que vai sendo construído pelos

especialistas da área do conhecimento em questão ao longo do tempo. Ora, se o significado vai

sendo construído isto significa que não se mantém estanque, mas sim que se encontra em

permanente mutação. Isto é algo do qual o processo de elucidação depende. Como veremos ao

longo do Capítulo 4, o processo de elucidação tem por objetivo descobrir o significado de

determinado termo ou expressão através do seu uso em contextos paradigmáticos. Contudo,

para se descobrir algo é preciso que esse algo seja, de alguma forma, criado. O que quer que,

por exemplo, a expressão «princípio da legalidade» signifique, a mesma é fruto do pensamento

de certos autores que dedicaram parte da sua obra à temática da legalidade. Parte do trabalho

de autores contemporâneos é descobrir o significado assim construído para, posteriormente,

modificá-lo na medida em que tal seja necessário, e.g., por o princípio da legalidade tal como

foi elaborado após a Revolução Francesa ser imprestável para as necessidades político-jurídicas

atuais.

Este raciocínio demonstra que, sem embargo de os juristas terem uma ideia partilhável

do significado de expressões como, por exemplo, «princípio da legalidade», «segurança

jurídica» ou «Estado de Direito» em virtude de serem conhecedores do código linguístico no

âmbito do qual estas expressões adquirem sentido(s), o código linguístico não proporciona, por

um lado, uma ideia unívoca, dado que juristas diferentes têm entendimentos diferentes do

significado das expressões em questão, e, por outro lado, não é suficiente para determinar o

sentido que estas expressões adquirem em contextos, ou atos de fala, tidos por paradigmáticos.

Quanto à dificuldade de ordem geral, esta consiste no facto de que o significado de

palavras, expressões, frases e de outras unidades textuais é manifestável através das regras do

código linguístico, mas é completamente estabelecido pela intenção linguística do falante. Dito

por outras palavras, «oculista» só quer dizer «médico dos olhos» se a intenção do falante for a

de usar o termo «oculista» para designar «médico dos olhos». As regras do código linguístico

indiciam, ou manifestam, uma dada intenção, mas esta não depende da observância das regras

em questão.

Assim, se o falante produzir uma frase como, por exemplo, «temos de chamar o oculista

para vir desentupir os canos» não é claro, usando as regras do código linguístico, o que é que

«oculista» significa neste ato de fala. Se a intenção do falante for a de chamar um indivíduo

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que é médico dos olhos com o intuito de este vir desentupir determinados canos, porventura

porque o oculista em questão é amigo do indivíduo e terá talento para a tarefa, então o termo

«oculista» funciona, na realidade, como um pronome, visto que está a ser usado para designar

uma pessoa em concreto em substituição do seu nome próprio. «Oculista» não significa, neste

ato de fala, «médico dos olhos»; está, isso sim, a ser usado como termo designativo de uma

determinada pessoa, cumprindo a função normalmente reservada a nomes próprios como

«João» ou «António». Se, por outro lado, «oculista», na frase em questão, for usado para

designar um indivíduo cuja profissão é a de canalizador (o que pode ser feito por vários

motivos, e.g., por ser uma alcunha, por o falante não ser competente, como acontece com

estrangeiros numa fase inicial da aprendizagem de uma língua, etc.), então «oculista», no ato

de fala em questão, quer dizer «canalizador». Apelar às regras do código linguístico é

insuficiente para determinar o significado de um termo, porque mesmo que se chegue à

conclusão de que há uma infração às regras em questão, o facto é que «oculista» não quer dizer,

em circunstâncias semelhantes à do exemplo dado, «médico dos olhos».

O mesmo acontece em linguagem técnica, como, por exemplo, a do Direito. Com efeito,

se um jurisconsulto, um advogado ou um juiz proferir uma frase como «a revogação do contrato

de trabalho sem justa causa é inconstitucional» é óbvio que o indivíduo em questão está a

utilizar o termo «revogação» numa circunstância em que as regras do código linguístico do

Direito impõem que se use o termo «despedimento». De facto, segundo as regras do código

linguístico jurídico, «revogação de um contrato» é uma expressão que denota uma forma de

cessação do contrato em questão, por mútuo acordo entre os contraentes, antes de o mesmo ser

cumprido ou caducar pelo decurso de um prazo. Não faz, por isso, qualquer sentido falar em

«revogação sem (ou com) justa causa», dado que, à luz do código linguístico do Direito, juntar

«revogação» e «justa causa» numa frase como a exemplificada é simplesmente ininteligível.

Deste prisma, acontece o mesmo com «é preciso chamar o oculista para vir desentupir os

canos»; enquanto aplicação de regras de códigos linguísticos, ambas as frases são ininteligíveis.

Considerar a intenção faz, no entanto, com que ambas as frases sejam inteligíveis, no

caso do oculista pelos motivos acima avançados, no caso da revogação a partir do momento

em que se entenda que o jurista em questão sofreu, por exemplo, um lapso freudiano, ou, então,

se encontra convencido de que «revogação» quer dizer aquilo que, no âmbito da linguagem do

Direito do Trabalho, se designa através do termo «despedimento». É sem dúvida correto

constatar que há uma infração ao código linguístico praticada pelo jurista, mas isto não elimina

o facto de que «revogação», neste ato de fala em concreto, quer dizer «despedimento». As

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regras linguísticas servem para aferir da correção com que se usa a língua, mas são

insuficientes, por si só, para determinar o significado de cada palavra num dado ato de fala.

Pode-se objetar que esta circunstância não demonstra que todos os atos de fala são

intencionais porque não é mais do que uma reformulação da parte da teoria de GRICE segundo

a qual é necessário especificar qual dos significados intemporais é que está a ser usado em cada

enunciado concreto. A conceção de significado intemporal de GRICE corresponde, grosso

modo, à conceção de SEARLE de que as palavras e as frases têm intrinsecamente certos

significados que se encontram automaticamente acessíveis a todos os falantes competentes da

língua em questão. Uma vez mais, deparamo-nos com o golfo entre significado e intenção:

«oculista» tem o significado intrínseco de «médico dos olhos»; constatar que o vocábulo

também pode ser usado em referência a outras realidades, ainda que as mesmas não sejam

sancionadas pelas regras do código linguístico, não é mais do que chamar a atenção para o

facto de que o código linguístico pode ser infringido.

É a partir deste momento que a importância de se entender claramente em que consiste

a atividade interpretativa se afigura como fulcral. Concedendo que «oculista» tem o significado

intrínseco de «médico dos olhos», parece-nos altamente incongruente que, num ato de fala em

que o termo é claramente usado em referência ao canalizador, se continue a preferir o

significado intrínseco ao significado intencional mantendo que se está a fazer uma

interpretação. A posição segundo a qual há palavras, isoladas ou em pequenos grupos

(habitualmente designados por «expressões idiomáticas»), que têm sentidos in abstracto não

faz sentido a partir do momento em que se entenda que não há usos abstratos da linguagem;

todos os usos são concretos, ou seja, todas as instâncias em que um indivíduo fala, ou escreve,

ou gesticula (no âmbito da língua gestual) são atos de fala. «Oculista» não pode querer dizer

abstratamente, ou intemporalmente, «médico dos olhos» porque ninguém consegue utilizar a

língua em termos abstratos. Na terminologia de GRICE, só há enunciados concretos, e, na de

SEARLE, só há atos de fala. Na medida em que todas as pessoas usam a língua com a intenção

de comunicar qualquer coisa é impossível descobrir um exemplo de um enunciado concreto,

ou de um ato de fala, não-intencional.

O melhor argumento que conhecemos para fundamentar o que acaba de ser dito é

formulado numa série de artigos da autoria de STEVEN KNAPP e WALTER BENN MICHAELS, por

nós analisados a fundo noutras ocasiões.26 Para os propósitos do presente trabalho, limitamo-

nos a referir que KNAPP e MICHAELS demonstram que «significado» e «intenção» são dois

termos que se referem à mesma realidade, no sentido em que o significado de um texto é a

manifestação da intenção do seu autor, através do seguinte exemplo: alguém vai a passear na

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praia e vê riscos na areia. Após retroceder alguns passos, consegue discernir que os riscos são

palavras de um poema de WORDSWORTH. Segundo os autores, parece, à primeira vista, que nos

encontramos perante um caso de significado não-intencional, na medida em que reconhecemos

as palavras como uma instância de escrita, conseguimos perceber o seu significado, e,

inclusive, é possível que as identifiquemos como fazendo parte de uma estrofe de um poema.

Tudo isto é possível mesmo que se desconheça o autor e sem que seja necessário ligar as

palavras a qualquer noção autoral. Dito por outras palavras, estes atos mentais podem ser feitos

sem que se pense na intenção do autor.27

Passados alguns segundos, continua o exemplo, uma onda atinge a areia, por baixo das

palavras, e inscreve a segunda estrofe do referido poema. Os autores questionam até que ponto

a intenção continua a parecer irrelevante, conforme o aparentava ser antes do surgimento da

onda, para a decifração de como é possível o mar ter escrito uma estrofe de um poema, e

chegam à conclusão de que há duas explicações possíveis para este fenómeno: ou há um agente

capaz de intenções responsável pelas marcas inscritas na areia – que poderia ser o fantasma de

WORDSWORTH, ou o facto de o mar ser uma criatura viva –, ou estas surgem em consequência

de processos mecânicos não-intencionais – as marcas seriam o resultado de um processo de

erosão que, por coincidência, se assemelharia a signos linguísticos.28

Eleger a segunda opção levantaria a seguinte questão: «agora que as palavras parecem

ser acidentes, continuarão a parecer palavras?» Os autores respondem dizendo que não, uma

vez que as palavras apenas parecerão assemelhar-se com palavras, mas, na realidade, não o

são,29 uma vez que, se elas nascem a partir de um acidente da natureza, não são linguagem.

KNAPP e MICHAELS comparam esta situação à de um computador que fale, argumentando que,

por serem máquinas, decidir se estes têm a capacidade de falar parece depender de se

reconhecer que existe linguagem não-intencional. No entanto, continuam os autores, o exemplo

do poema na areia demonstra que não existe linguagem não-intencional, e, por isso, a questão

prende-se somente com apurar se os computadores são capazes de intenções.30 Dito por outras

palavras, se os computadores forem capazes de manifestar intenções, então as palavras por si

usadas serão linguagem. Se, por outro lado, os computadores nada mais fizerem para além de

reproduzir frases previamente introduzidas por um programador, que se manifestarão quando

o utilizador efetue determinadas ações numa dada ordem, então essas mesmas frases não serão

linguagem; serão o resultado de uma fórmula algorítmica – o parâmetro introduzido pelo

programador instrui o computador a dizer X quando o utilizador faça A, ou a dizer X e Y

quando o utilizador faça A mais B, e por aí adiante. Semelhantes frases não seriam linguagem

porque o computador não está a manifestar uma intenção própria; está somente a espelhar uma

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equação matemática, da mesma forma que a onda não está a recitar um poema; está somente a

provocar erosão na areia. Mutatis mutandis, o mesmo raciocínio aplica-se a outros exemplos

clássicos avançados no contexto de discussões semelhantes, como o do macaco que,

pressionando as teclas de uma máquina de escrever, de vez em quando produz grafemas que se

assemelham às palavras de uma língua natural, ou o do papagaio que repete amiúde certas

palavras e frases que os seres humanos à sua volta usam constantemente. Em todos estes casos,

macacos, papagaios, computadores, etc. produzirão linguagem se tiverem a capacidade de

formar a intenção de usar palavras; caso contrário, as «palavras» por si formados equivalem

aos riscos na areia, são em tudo análogas a processos de erosão, e, por isso, não são palavras,

não são instâncias de linguagem.

Naturalmente, não se pode considerar, no esquema por nós apresentado, que aquilo que

se diz em resultado de um lapso freudiano é uma instância de uso da linguagem. Diríamos,

adotando a terminologia de J.L. AUSTIN, embora não exatamente os pressupostos da sua teoria,

que nestes casos ocorre uma infelicidade, dado que não se estabeleceu comunicação porque,

com efeito, não se disse nada, e, precisamente por isso, estamos perante um lapso. Dito por

outras palavras, o falante tem a intenção de produzir um ato de fala, mas, como o som (ou o

grafema) por si emitido (ou escrito) não corresponde à sua intenção porque ocorreu um dos

vários lapsos aos quais SIGMUND FREUD alude,31 o ato é falhado, ou infeliz. Possivelmente, a

comunicação poderá ser estabelecida, o que depende do grau de (in)inteligibilidade do ato de

fala falhado ou infeliz, mas o mesmo é, indubitavelmente, uma anomalia. Quando o ato de fala

falha em virtude de um lapso freudiano, não se verifica uma separação entre significado e

intenção; apenas se constata que o falante não conseguiu transmitir qualquer intenção porque,

com efeito, não conseguiu significar nada.

Estas considerações de KNAPP e MICHAELS não parecem, contudo, dar conta de um

paradoxo, que consiste no facto de que é demasiado óbvio que palavras como «cadeira»,

«mesa» ou «cão» têm um significado determinado, intrínseco, e, por isso, todos estamos

sensíveis de que é, no mínimo, desconcertante designar um gato através do termo «cão», ou

referirmo-nos a uma casa através do vocábulo «caneta». Esta observação é, no fundo, reflexo

do argumento de SEARLE segundo o qual a comunicação através de atos de fala é possível

porque os falantes de uma língua sabem o que é que as palavras querem dizer, e, portanto, se o

significado pode ser aprendido, então, por maioria de razão, existe independentemente da

vontade ou da intenção do falante.

Este aparente paradoxo é, no entanto, imediatamente dissolvido a partir do momento

em que se entenda que KNAPP e MICHAELS estão preocupados em refutar a possibilidade de se

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fazer teoria da interpretação de textos, que são, entre outras coisas, atos de fala. O argumento

não é contra a possibilidade de se erigir uma teoria, ou várias, que postule a existência de uma

ordem normativa linguística, estruturada por regras gramaticais e semânticas, que atribui a

palavras, individuais ou em grupo, significados intrínsecos, literais, metafóricos, alegóricos,

etc., que explica, entre outras coisas, a existência e o fundamento de frases e expressões

idiomáticas, e por aí adiante. Tudo isto é possível mas, se quisermos fazer uma analogia com

as fontes do Direito, pode-se observar que as regras de uma língua natural são consuetudinárias

e não legislativas, o que afasta, desde logo, a possibilidade de a sua intencionalidade depender

da vontade de um único indivíduo; é, isso, sim, um fenómeno de intencionalidade coletiva.32

O Direito fornece, de facto, um termo de comparação que, no nosso entender, é a todos os

títulos elucidativo. Com efeito, e tal como elaboraremos no Capítulo 5, o Direito manifesta-se

no caso concreto, todo o sistema jurídico existe com o intuito de possibilitar a resolução de

questões concretas de Direito. O ato de fala equivale, neste esquema conceptual, à decisão

jurídica. O ato de fala é como se fosse um caso concreto, a gramática, que, lato sensu, inclui

regras semânticas, é o sistema que possibilita a produção de atos de fala. Ora, não há decisões

jurídicas não-intencionais. Há decisões certas ou erradas, tomando como padrão o sistema de

fontes, tal como há atos de fala corretos ou incorretos, quando comparados com as regras de

uma dada língua natural. O que não há é atos de fala não-intencionais. A possível exceção dos

lapsos freudianos não é, de todo, uma exceção, porque é uma tentativa falhada de ato de fala,

tal como uma tentativa falhada de decisão jurídica não seria uma decisão jurídica.*

Em suma, o ato de fala contém inerentemente uma intenção linguística. A

desobediência às regras de uma língua natural poderá tornar, em maior ou menor grau, o ato

de fala ininteligível para os interlocutores do falante. Na medida em que interpretar não é um

exercício de apuramento de significados intemporais, ou intrínsecos, ou literais, mas sim de

apuramento do significado de um ato de fala, interpretar é buscar a intenção do autor. Não há

um golfo, um espaço lógico, entre significado e intenção linguística. O intérprete não pode

escolher entre um e outra porque interpretar o significado leva ao apuramento da intenção, e

vice-versa. Como temos vindo a referir, a intenção relevante para se apurar o significado de

um ato de fala é a intenção linguística; as intenções teleológicas são irrelevantes para a

* Dada a institucionalização do sistema judicial, é difícil imaginar casos de tentativas falhadas de

decisão jurídica. Possivelmente, lapsos freudianos de escrita que tornassem uma sentença ou um

acórdão incoerente poderiam ser incluídos nesta rubrica. A institucionalização permite a retificação de

erros deste tipo, tornando o ato de decisão completo, i.e., não-falhado.

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interpretação da intenção linguística (a não ser, como vimos, em casos especiais como o das

promessas), ainda que possam, eventualmente, ser muito relevantes para se decidir o que fazer

com uma interpretação. No entanto, é preciso não perder de vista que a intenção teleológica é

determinável da mesma maneira que a intenção linguística, a saber, lendo o texto com o intuito

de perceber o seu significado, que equivale à intenção do seu autor. Conduto, a intenção

linguística poderá ser insuficiente para revelar as intenções teleológicas. Tal acontece quando,

por exemplo, o legislador aprova uma lei com o intuito de agilizar o mundo dos negócios,

apesar de o texto da lei ser, por qualquer motivo, insuscetível de demonstrar essa mesma

intenção. Nestes casos, a intenção teleológica só poderá ser descoberta através do recurso a

outros textos, e.g., os trabalhos preparatórios. Estas considerações levam-nos a arguir que

decidir uma questão de Direito não é, exclusivamente, uma atividade de interpretação de textos

que sejam fontes do Direito. Como ficará claro no final do Capítulo 5, há outros textos a ter em

conta, bem como outros fatores, e.g., a interpretação de princípios e valores, bem como a dos

factos brutos e institucionais que façam parte da situação concreta, que, quando conjugados

com a interpretação das fontes ou de outros textos relevantes, possam levar a que a decisão não

coincida, ou pelo menos não coincida totalmente, com a letra e o espírito da lei.

3. Factos institucionais

A. Regras regulativas e constitutivas

Os factos em relação aos quais, no esquema conceptual de ANSCOMBE, determinado facto é

bruto, e que dependem do contexto das instituições de uma sociedade, acabaram por ficar

conhecidos por «factos institucionais», designação cunhada por SEARLE. Factos institucionais

são, na ótica deste autor, factos que pressupõem a existência de certas instituições humanas, ao

contrário da existência de factos brutos, como, por exemplo, montanhas e moléculas, que

existem independentemente das representações que os seres humanos façam dos mesmos.33

Estas instituições, refere SEARLE, baseiam-se em regras constitutivas,34 e, por isso, torna-se

necessário indagar sobre a essência das mesmas, bem como sobre a diferença entre este tipo de

regras e um outro identificado por SEARLE, a saber, o das regras regulativas.*

* SEARLE adverte que JOHN RAWLS, anteriormente, já tinha estabelecido uma distinção relacionada com

a sua. No entanto, a tese de RAWLS assenta em pressupostos diferentes dos de SEARLE, tem um

enquadramento teórico distinto do da tese deste último, e não visa alcançar exatamente os mesmos

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SEARLE distingue os dois tipos de regras observando que as regras regulativas regulam

formas de comportamento que existem logicamente antes da formulação das regras em questão

e independentemente de essa mesma formulação algum dia vir a ser encetada, ao passo que

regras constitutivas não só regulam, como também criam, ou definem, novas formas de

comportamento.35 No entanto, como o autor oportunamente observa, não há uma linha nítida

entre o institucional e o não-institucional,36 visto que os factos institucionais evolvem a partir

de factos brutos, que precedem logicamente os factos institucionais. Como SEARLE refere a

título de exemplo, qualquer tipo de substância pode ser considerado «dinheiro», mas este tem

que existir numa dada forma física, independentemente de a mesma consistir em pedaços de

metal (e.g. ouro ou prata), papel ou plástico, o que revela que os factos institucionais existem

sobre factos brutos.37 O passo a partir do não-institucional, ao nível dos factos brutos, para o

institucional é dado pela atribuição de funções a determinados factos brutos, o que é feito

através da intencionalidade coletiva, i.e., estados intencionais como crenças, desejos e

intenções que levam dois ou mais indivíduos a agir em cooperação.38 A fórmula encontrada

por SEARLE para designar regras constitutivas de factos institucionais é, por conseguinte, «X

conta como Y no contexto C»,39 onde «X» se refere ao(s) facto(s) bruto(s), «Y» à(s)

função(ões) atribuída(s) ao(s) facto(s) bruto(s) e «C» às condições em que a(s) mesma(s) é

(são) operativa(s). De forma a tornar estas distinções claras analisaremos em detalhe, ao longo

das próximas duas subsecções, as características de ambos os tipos de regras aqui mencionados.

B. Regras regulativas

SEARLE aponta como exemplos de regras regulativas regras de etiqueta40 cuja fórmula

linguística é tipicamente capturada através de imperativos, como, por exemplo, «quando

cortares a comida, usa a faca na mão direita», ou «os oficiais devem usar gravata ao jantar.»41

Um exemplo mais esclarecedor, e muito mais desenvolvido, deste tipo de regras é avançado

por NEIL MACCORMICK no contexto de uma discussão acerca da génese de uma ordem

normativa. Apesar de este autor não se rever totalmente na posição de SEARLE segundo a qual

as instituições são sistemas de regras constitutivas, por implicar uma confusão entre institutos

jurídicos e regras, o que leva a que se confunda, por exemplo, o instituto jurídico «contrato»

com uma instância do mesmo (e.g., um contrato de compra e venda entre A e B),42 a verdade

efeitos. Por este motivo, e pese embora haver uma parecença genuína entre ambos os argumentos, a

hipótese de RAWLS não será analisada neste trabalho.

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é que o exemplo daquilo que o próprio designa como uma «prática normativa informal», que,

juntamente com outras práticas do mesmo género, constituem uma «ordem normativa

informal»,43 equivale às condutas que as regras regulativas de SEARLE visam regular a

posteriori.

O exemplo dado por MACCORMICK44 é o da prática de formar fila com o intuito de

determinar a ordem pela qual vários indivíduos poderão usufruir de um serviço, pagar pelo

mesmo, aceder a determinado estabelecimento, e outras situações análogas, prática essa que

ocorre frequentemente e, muitas vezes, de forma espontânea, sem que seja necessário qualquer

tipo de organização para que a mesma seja levada a cabo. Salvo exceções que, segundo os

dados da experiência, ocorrem muito raramente, indivíduos mais fracos não são expulsos da

fila ou ultrapassados na mesma por indivíduos mais fortes. Para além deste uso estatisticamente

excecional da força, há exceções admissíveis de um ponto de vista moral, como, por exemplo,

passar para a frente da fila para pagar produtos adquiridos para fazer face a uma emergência

médica de um familiar que está em casa, ou o caso do médico que desrespeita uma fila de

trânsito com o intuito de chegar o mais rapidamente possível ao auxílio de um doente em estado

grave.

Tudo isto funciona independentemente da existência ou formulação de regras que

regulem este comportamento, esta prática de formar fila. No entanto, há uma condição

necessária para que a mesma seja sustentável: as regras, implícitas ou explícitas, não-

articuladas ou formuladas, têm que ser geralmente obedecidas pela esmagadora maioria dos

indivíduos que participam na prática. Como MACCORMICK observa, seria literalmente

impossível que, no meio de uma multidão, apenas uma pessoa aguardasse pela sua vez na fila,

tentando as demais obter o serviço ou a entrada em questão através do uso da força física,

porque a própria noção de «aguardar pela sua vez» implica uma prática coordenada entre pelo

menos duas pessoas.

Esta condição necessária poderia, à primeira vista, deitar por terra a distinção entre

regras regulativas e regras constitutivas, na medida em que aceitar a noção de «aguardar pela

sua vez» seja encarado como constitutivo da prática, dado que, sem pelo menos esta regra, a

prática de formar fila não faria sentido. O mesmo, de resto, pode ser dito acerca das regras de

etiqueta, dado que, se apenas uma pessoa, no seio de um grupo, as respeitar, dificilmente esta

atitude poderia ser encarada como fazendo parte de uma prática. Por este motivo, SEARLE

observa que há um sentido trivial segundo o qual a criação de qualquer regra cria a

possibilidade de novas formas de comportamento, nomeadamente comportamento efetuado de

acordo com a regra.45

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No entanto, em circunstâncias como estas, a prática seria, ao invés, estabelecer a ordem

de admissão a um estabelecimento através de quaisquer meios julgados pelos indivíduos como

sendo convenientes, incluindo o uso da força física, e as regras de etiqueta passariam por se

comer usando os utensílios de forma totalmente discricionária, ou, inclusive, pela possibilidade

de não os utilizar. Se a antítese de certos comportamentos sociais que estamos habituados a

praticar fosse habitualmente observada então também estaríamos perante práticas cuja

existência não dependeria igualmente da formulação ou institucionalização de quaisquer

regras. O ponto onde SEARLE e MACCORMICK querem chegar é o de que a cronologia consiste

no aparecimento de uma prática antes do estabelecimento das regras que a regulam.

Naturalmente, o efetuar habitualmente certos atos, cuja reiteração faz surgir uma prática, é

constitutivo da mesma. Assim sendo, o que é constitutivo de uma prática é a reiteração de

certos atos, não as regras, dado que estas só surgem em momento posterior ao estabelecimento

da prática em questão, que, por isso mesmo, não pode estar dependente das regras. Deste modo,

esclarece SEARLE, o termo «constitutivo», tal como aparece na expressão «regras

constitutivas», não pode ser entendido no sentido que adquire quando se fala em atos

constitutivos de uma prática através de reiteração. Em situações onde a regra é puramente

regulativa, o comportamento efetuado de acordo com a regra pode ser descrito ou especificado

independentemente da existência da regra (através de proposições, e.g., as pessoas formam

fila).46

MACCORMICK conclui, assim, que fazer fila é uma atividade normativa, visto que os

indivíduos, no seio desta prática, são guiados por um dever,* i.e., o de formar uma fila que

permita, de forma ordeira, estabelecer uma ordem de entrada num local ou de acesso a um

serviço, dever esse que alerta as pessoas para a presença de uma norma que, no entanto, não se

encontra explicitamente formulada, e que, com efeito, surge após a reiteração dos atos que

constituem a prática a terem tornado habitual.47 Pode-se, portanto, dizer que a conduta regulada

através de regras regulativas consiste em factos brutos. Fazer fila é um facto bruto, tal como o

ato de carregar batatas para casa de uma pessoa é um facto bruto. Nenhuma das condutas

depende de regras, sendo que estas, a surgirem de todo, fazem-no em momento posterior ao da

prática fundada única e exclusivamente pela reiteração de certas condutas. Note-se, por

conseguinte, que as noções de facto bruto e de prática normativa informal não são equivalentes.

* Tal como o exemplo o demonstra, estamos perante uma realidade do domínio do dever-ser

precisamente porque a regra é vista em relação à conduta que visa regular, e não em si mesma, i.e., de

forma absoluta.

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Deste modo, fazer fila e carregar batatas para um certo local são factos brutos, mas só

se tornam práticas normativas informais através da reiteração. Carregar batatas para um dado

local seria uma prática normativa informal no contexto de uma tradição, e.g., se fosse uma

comemoração de um evento periódico. Excluem-se aqui práticas do género efetuadas na

maioria dos contextos religiosos, dado que estes são institucionais.

C. Regras constitutivas

As regras constitutivas, diz SEARLE, criam ou definem novas formas de comportamento.48

Assim, ao contrário do que sucede com as regras regulativas, que não fundam a prática de fazer

fila ou as condutas próprias da etiqueta, as regras constitutivas formam a base de práticas

normativas institucionais, que são factos institucionais.

SEARLE aponta como exemplos de atividades que só fazem sentido no contexto de

regras previamente instituídas jogos, individuais ou coletivos, como o xadrez ou o futebol

americano. Estas regras têm uma forma linguística não-imperativa, como, por exemplo, «faz-

se xeque-mate quando o rei é atacado de forma a que lhe seja impossível mover-se para uma

posição onde deixe de se encontrar sob ataque».49 O importante, contudo, é destacar que mover

peças sobre uma tábua de madeira só conta como jogar xadrez após o surgimento das regras

que instituem o jogo do xadrez porque as regras constitutivas, como as dos jogos, providenciam

a base para que se efetue certas especificações de comportamentos que não poderiam ser feitas

na ausência das regras em questão;50 a cronologia é, portanto, a de que as regras surgem

primeiro, a prática, necessariamente normativa e institucional, depois.

O exemplo dos jogos, avançado por SEARLE, pode ser confrontado com a seguinte

objeção: é difícil defender, começaria o argumento, que a instituição das regras de um jogo

como, por exemplo, o futebol de onze precede cronológica e logicamente a prática de jogar

futebol de onze. Por um lado, ao longo dos últimos mil anos várias formas de futebol foram

sendo disputadas nas ruas de vilas e aldeias de toda a Europa, tendo a prática chegado a ser

criminalizada em Inglaterra. Por outro lado, não parece haver uma correlação entre as regras

do futebol de onze, tal como as mesmas são aprovadas e alteradas pelo International Board da

F.I.F.A., e a atividade desempenhada por milhões de crianças e adultos à volta do mundo, que

se entretêm com bolas de pano e usam pedras para delimitar balizas sobre um terreno de jogo

que não se encontra claramente definido. SEARLE argumentaria, em resposta a esta putativa

objeção, que os factos brutos de dar pontapés em bolas de pano numa rua com o intuito de as

fazer passar entre pedras não conta como futebol de onze (o próprio nome seria desadequado,

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dado que estes jogos não têm necessariamente onze jogadores em cada equipa), admitindo-se,

no entanto, que tais práticas informais seriam jogos informalmente derivados daquele que é

regulado pela F.I.F.A., o que acaba por demonstrar que as regras surgiram primeiro, o jogo

depois.

Contudo, arguiria o objetor, a história demonstra que a institucionalização de desportos

coletivos e individuais baseia-se em práticas normativas informais que surgiram antes dessa

mesma institucionalização. O xadrez tem na sua base práticas informais que, em primeiro lugar,

fizeram surgir regras regulativas que, posteriormente, foram institucionalizadas, com,

possivelmente, alterações importantes que ajudaram a definir o jogo tal como o conhecemos.

O mesmo pode ser dito do futebol americano, do basquetebol, ou do hóquei em patins, visto

que, antes de alguém se lembrar de instituir as respetivas regras, já havia indivíduos que

patinavam ou que tentavam introduzir bolas em cestos. Assim, e voltando ao futebol de onze,

o objetor concederia que as várias formas de futebol que se praticam na atualidade em ruas ou

em recreios de escola são formas derivadas do jogo cujas regras constitutivas se encontram sob

a égide da F.I.F.A., mas estas regras constitutivas, por sua vez, mais não são do que uma

codificação de outras regras, mais antigas, que foram surgindo informalmente, e que regulavam

a prática de dar pontapés em bolas com o intuito de as introduzir numa qualquer espécie de

baliza. Assim, a prática do futebol não se funda em quaisquer regras; as regras do futebol são

regulativas, encontrando-se ao mesmo nível das regras de etiqueta ou das regras da prática

informal de formar fila. Isto é igualmente demonstrável se se considerar que, tal como formar

fila implica aguardar a respetiva vez, jogar futebol implica não usar, pelo menos regra geral, as

mãos e os braços para jogar a bola. Dito por outras palavras, a ilegalidade do uso das mãos e

dos braços para jogar a bola parece ser uma regra constitutiva, mas será, quanto muito, uma

prática reiterada constitutiva da prática em questão, tal como a reiteração da espera pela

respetiva vez constitui a prática de formar fila. Sem estas condições necessárias, tanto formar

fila como jogar futebol não seriam nem formar fila, nem jogar futebol, mas sim atividades

diferentes. Uma prática reiterada constitutiva de uma prática normativa informal não é, no

entanto, como vimos, uma regra constitutiva.

Esta objeção ao exemplo dos jogos fornecido por SEARLE torna-se aparentemente muito

mais forte a partir do momento em que se traça um paralelo entre os desportos e aquela que é

considerada uma das mais importantes ordens normativas institucionais baseada em regras

constitutivas que conhecemos, o Direito. Todavia, este mesmo paralelo acaba por demonstrar,

com toda a clareza, que a hipotética objeção aos exemplos de SEARLE é improcedente. Com

efeito, e apesar de, pelo menos na atualidade, não ser controvertida a ideia de que o Direito é

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um facto institucional, ainda que as opiniões se dividam quanto a classificá-lo como uma

instituição, há autores que defendem que, nas suas origens, o Direito não é institucional, ou

seja, já havia Direito mesmo antes de surgirem instituições que o criassem e aplicassem. Como

nota JOHN GILISEN,

[n]umerosos juristas contestaram mesmo que os povos sem escrita possam ter um sistema

jurídico porque eles não encontram aí instituições tais como são definidas nos sistemas

romanistas ou de common law, por exemplo a noção de justiça, de regra de direito (rule of law),

de lei imperativa de responsabilidade individual. Marx e Engels consideram, sob influência do

pensamento de Hegel, que o direito está ligado ao Estado e afirmam que não há direito nos

grupos sociais que não atingiram o estádio de organização estatal.51

Se o critério de ligação entre Direito e Estado fosse operativo, isto implicaria que o

Direito, tal como o Estado, apenas surgiu na época moderna.52 Mas o Direito, em bom rigor,

não se encontra especificamente dependente da instituição «Estado», mas sim de um sistema

institucional que permita a sua aplicação. Quanto à criação de fontes do Direito, a questão não

é assim tão linear. Como o exemplo de MACCORMICK demonstra, há práticas normativas que,

hoje em dia, são institucionais, mas que, na sua génese, são costumeiras, e, por isso, têm uma

origem não-institucional. O verdadeiro teste que permite verificar se um sistema jurídico existe,

se se encontra em vigor, defende RAZ, não passa por analisar a prática de instituições criadoras

de normas. Por um lado, não é condição necessária de pertença a um sistema jurídico que as

normas que o compõem tenham uma origem comum, precisamente porque há regras

consuetudinárias que não são fruto de intervenção legislativa. Por outro lado, as instituições

criadoras de normas apenas são capazes de assegurar o cumprimento das normas que se lhes

aplicam (e.g., as normas do Regimento da Assembleia da República), e isto não é, de todo,

suficiente para garantir a manutenção do sistema jurídico. O teste, argumenta RAZ, consiste em

verificar que consequências recaem sobre os destinatários das normas do sistema na sua

globalidade, e, para isso, é necessário examinar o comportamento de instituições aplicadoras

de normas. Em suma, o sistema jurídico encontra-se em vigor se as instituições aplicadoras de

normas tiverem a capacidade de, precisamente, aplicar regularmente as normas do sistema,

produzindo consequências na esfera jurídica daqueles que as desrespeitem. RAZ conclui o seu

raciocínio observando, de forma polémica, que um sistema institucional configurado nestes

moldes permite asseverar a existência de um sistema jurídico mesmo que a maior parte dos

destinatários não se abstenha de infringir as normas do mesmo. O que é importante é que as

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instituições aplicadoras de normas consigam efetivamente aplicá-las, dado que, se o

cumprimento não for voluntário, os destinatários poderão ser sempre compelidos a segui-las

pela polícia e pelos tribunais. Ao reconhecer que esta é uma forma imprecisa e crua de

descrever a efetividade de um sistema jurídico, RAZ parece dar a entender que está a par de que

a desobediência constante e concertada às normas do sistema acabará por fazê-lo entrar em

colapso, impedindo-o de funcionar, o que fará com que o mesmo deixe de continuar em vigor.53

Em todo o caso, o que nos interessa realçar é a ênfase que, quanto a nós corretamente,

o autor coloca sobre a institucionalização de órgãos aplicadores de normas, por contraposição

a órgãos criadores de normas; com efeito, as regras podem surgir mesmo sem estas últimas

instituições, mas é inconcebível decidir casos concretos e chamar a estes atos de decisão

conclusões de Direito precisamente sem que exista, no mínimo, uma regra constitutiva que

atribua poder a órgãos, bem como aos titulares dos mesmos, para emitir e garantir a execução

dessas mesmas decisões. Uma decisão materialmente idêntica à de uma conclusão de Direito

fora de um sistema institucional, e, portanto, carecendo de possibilidade de implementação

coerciva, é um juízo moral. Há diferença de espécie entre o juízo moral e a conclusão de Direito

porque a última, ao contrário da primeira, não pode existir independentemente de

institucionalização. Isto significa que não é a existência de atos de decisão, em geral, que

depende de uma regra que os constitua, mas sim os atos de decisão que são conclusões de

Direito; outros tipos de atos de decisão, como os juízos morais, poderão ser substancialmente

idênticos a conclusões de Direito, mas há uma diferença de base quanto à sua forma, bem como

quanto à sua execução coerciva, e é isto que faz com que haja uma diferença de espécie entre

estes dois tipos de atos de decisão. Ambos podem ser materialmente idênticos e formulados

com a mesma intenção teleológica, e.g., administrar a Justiça, mas ao juízo moral falta-lhe um

grau de coercividade equivalente ao da decisão jurídica, grau esse que é proporcionado

precisamente pela institucionalização.

Ao observar que, na atualidade, se admite «em geral que os costumes dos povos sem

escrita têm um carácter jurídico porque existem aí meios de constrangimento para assegurar o

respeito das regras de conduta»,54 GILISEN corrobora, por um lado, o que acaba de ser dito,

mas, por outro lado, a sua afirmação causa uma certa perplexidade. GILISEN corrobora as

considerações supra porque reconhece a importância que a aplicação do Direito tem para que

se considere uma ordem normativa como sendo, precisamente, Direito, e não, como vimos,

Moral, que, independentemente de todos os aspetos que a aproxima e afasta do Direito, tem

como traço diferenciador em relação a este último o facto de as suas regras não serem aplicadas

institucionalmente. Quanto à perplexidade suscitada pela citação de GILISEN, a mesma surge

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principalmente por causa da terminologia usada pelo autor. GILISEN diz, repetimos, «os

costumes dos povos sem escrita têm um carácter jurídico porque existem aí meios de

constrangimento para assegurar o respeito das regras de conduta.» Ora, se há meios de

constrangimento (i.e., sanções), é porque existe, por um lado, alguém que decide que os

mesmos se devem aplicar, e, por outro lado, alguém (é indiferente se se trata, ou não, do mesmo

indivíduo) que leva a cabo a aplicação da sanção em questão. Há, portanto, atos de decisão que

são conclusões de Direito, e não juízos morais, bem como atos de execução dessas mesmas

decisões; no entanto, diz GILISEN, os mesmos são costumeiros. Há um certo sentido do termo

que permite que se conclua que GILISEN não está errado ao utilizá-lo. Recorde-se que o autor

está a falar de povos sem escrita, sendo que há uma relação não despicienda entre a escrita e a

institucionalização, na medida em que o documento escrito, como observa ERIC A. HAVELOCK,

providencia uma espécie de «tribunal da Relação», funcionando como uma fonte de referência,

visto que a palavra escrita não pode ser modificada ou substituída sem que se modifique ou

substitua o respetivo suporte material, o que faz com que o documento seja capaz de preservar

informação porque preserva as palavras através das quais a informação é relatada.55 A

capacidade de preservar informação de forma exata encontra-se proporcionalmente ligada à

sofisticação do grau de institucionalização de um sistema. Quanto maior for esta capacidade,

mais sofisticado será o sistema. Um sistema institucional altamente complexo como o do

Direito contemporâneo em contexto estatal requer uma capacidade de armazenamento de

informação muito grande. A capacidade de armazenamento de informação dos povos sem

escrita é, como o demonstram as considerações de HAVELOCK a propósito da tradição oral da

Grécia pré-clássica, surpreendentemente grande,56 mas, numa escala em que, num dos

extremos do espectro, se encontram mecanismos de armazenamento da informação como o da

computação em nuvem,57 e, no outro, mecanismos como o da memorização rítmica, próprios

da tradição oral, é por demais evidente que o fosso entre a capacidade de armazenamento de

informação exata proporcionada pela computação em nuvem, bem como por outros

mecanismos considerados, sob o ponto de vista contemporâneo, tradicionais, como o da escrita

impressa, quando comparados com a capacidade fornecida pela memorização rítmica, é muito

grande, o que se reflete no grau de sofisticação de todas as instituições de uma sociedade.

Não é, por isso, descabido qualificar o Direito do homem primitivo, que ainda tem

manifestações no mundo atual, entre, por exemplo, os Esquimós ou os Ifugao,58 como sendo

simultaneamente consuetudinário e institucional, como GILISEN o faz. Para que isto se perceba

é preciso, no entanto, destrinçar a consuetudo própria de uma ordem jurídica semelhante à do

homem primitivo da consuetudo que faz surgir a prática reiterada de formar fila, as regras de

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58

etiqueta, as regras de jogos e, inclusive, da consuetudo enquanto fonte do Direito de uma ordem

jurídica moderna em contexto estatal. A consuetudo é uma das formas possíveis da criação de

regras, e, em princípio, nada opõe a que as regras consuetudinariamente formadas sejam regras

constitutivas. Dito por outras palavras, não há uma correlação entre regras regulativas,

logicamente formadas a partir de práticas reiteradas, e o costume, bem como outra correlação

entre regras constitutivas, fundadoras de factos institucionais, e a legislação, ou atos

prescritivos que lhes sejam análogos. Práticas informais como a de formar fila podem ser

«legisladas», se se tomar o termo metaforicamente, i.e., como designando um ato prescritivo

efetuado por um indivíduo em cumprimento da sua vontade, fora de qualquer sistema

institucional, o que sucederia na eventualidade de, tendo surgido pela primeira vez a

necessidade de estabelecer uma ordem pela qual determinados indivíduos pudessem usufruir

de um serviço, alguém, prestador desse mesmo serviço ou interessado na aquisição do mesmo,

dissesse explicitamente, de forma audível e compreensível para todos os interessados, algo

como «quem chegou em primeiro lugar adquirirá o serviço X antes da pessoa que chegou em

segundo lugar, e assim sucessivamente para quem chegou em terceiro, em quarto, etc., devendo

os interessados esperar ordeiramente pela sua vez». Ora, mesmo não sendo institucional,

porque não se fundaria numa regra constitutiva que lhe conferisse autoridade, um ato deste

cariz é um ato de «legislação», no sentido de ato prescritivo. Do mesmo modo, as regras

constitutivas não têm necessariamente que ser prescritas, ou legisladas; podem surgir

consuetudinariamente. É neste aspeto, estamos em crer, que se encontra a chave para se

perceber a razão pela qual a hipotética refutação aos exemplos de SEARLE falha: os factos

institucionais são fundados a partir de regras constitutivas, mas estas podem surgir através de

um costume. É precisamente isto que acontece com os desportos. As regras que constituem o

futebol de onze, por exemplo, são consuetudinárias, tal como as regras constitutivas dos

sistemas jurídicos primitivos.

Pergunta-se, no entanto, se resulta destas considerações que todo o Direito é

institucional. A dúvida tem razão de ser porque, a partir do que foi acima dito, apenas se pode

concluir que a aplicação do Direito é necessariamente institucional, mas o mesmo não pode

ser dito acerca da criação das suas fontes. Não é descabida a posição que defende que, na

medida em que o Direito se revela no caso concreto, uma conclusão de Direito é

simultaneamente aplicação de fontes preexistentes e criação de Direito novo. Esta posição,

elaborada em detalhe no Capítulo 5, apenas pretende transmitir que a norma jurídica, enquanto

facto institucional que, tomando em consideração uma determinada factualidade (que incluirá

factos brutos e outros factos institucionais), prescreve, consoante o caso em questão, os direitos,

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59

os deveres, as permissões ou as competências das partes em litígio, surge no momento em que

a decisão é tornada pública por parte do decisor. A norma jurídica distingue-se, assim, de regras

legais, consuetudinárias ou jurisprudenciais na medida em que as regras, que são criadas antes

de uma decisão concreta, não têm a capacidade de prescrever, a partes que se encontrem em

litígio, os seus direitos, deveres, permissões ou competências no âmbito da relação jurídica que

as une. Recorde-se, neste contexto, a analogia que traçámos supra entre a linguagem e o

Direito. O caso concreto está para o Direito como o ato de fala está para a linguagem. Todos

os atos de fala são linguagem em contexto, do mesmo modo que todas as conclusões de Direito

são Direito em contexto. Tal como a linguagem, o Direito não pode ser usado em abstrato, sem

embargo de ambos poderem pensados e teorizados em abstrato, e os especialistas das

respetivas áreas do conhecimento poderem dissertar abstratamente sobre regras que visam

regular e constituir estas ordens normativas. Isto significa que a linguagem não se esgota no

ato de fala, do mesmo modo que o Direito não se esgota em atos de decisão de questões

jurídicas.*

Não é, contudo, neste sentido de «criação» através da aplicação de fontes jurídicas

preexistentes a uma dada questão concreta que o termo é utilizado em referência à constatação

de que a criação do Direito não é necessariamente institucional. Em bom rigor, a referência é

feita em relação às próprias fontes. A lei e a jurisprudência são tradicionalmente tidas por fontes

institucionais, os costumes, os valores, os princípios, o ius cogens, etc. são tradicionalmente

encarados como fontes não-institucionais, e é a este conjunto de fontes que se aplica o termo

«Direito», que funciona como abreviatura das mesmas; a expressão «criação do Direito» deve

ser lida como «criação das fontes que revelam regras passíveis de aplicação na resolução de

um litígio jurídico».

Ora, partindo do pressuposto de que há fontes institucionais e fontes não-institucionais

do Direito, este, por conter regras não-institucionais, não pode ser uma instituição. É

precisamente este ponto que MACCORMICK tenta estabelecer ao chamar a atenção para o facto

de que, mesmo que se aceite que as instituições sociais que se dedicam à feitura, declaração,

elaboração e aplicação do Direito são, e devem ser, governadas por normas jurídicas, não se

pode assumir que todas as normas em questão são como leis, isto é, que podem ser concebidas

como existindo validamente em virtude de existirem regras constitutivas que as fundam. As

* Note-se, todavia, que atos de decisão de litígios não exaustam todas as possibilidades de usar o Direito.

Atos como celebrar um contrato, por exemplo, também são atos de utilização do Direito, e as obrigações

contratuais daí emergentes são normas jurídicas.

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regras do Direito consuetudinário inglês (common law) são exemplo disso mesmo, i.e., de

normas jurídicas cuja existência não se funda em regras constitutivas que as tornem factos

institucionais. Isto leva a que o Direito exista ao nível dos factos institucionais, mas é

insuscetível de ser classificado, em toda a sua extensão, como uma instituição.59 É uma ordem

normativa formada por institutos, instituições e regras regulativas, na medida em que se

considere que o Direito vai para além da decisão concreta, esta sim necessariamente

institucional. É precisamente por razões desta ordem que o exemplo de SEARLE quanto aos

jogos é correto. Os jogos, tal como o Direito, são uma mistura de regras regulativas e

constitutivas. Se se prescindir das últimas, mover objetos sobre uma tábua de madeira não conta

como jogar xadrez, tal como pontapear uma bola não conta como jogar futebol ou prender A

num dado local não conta como pena de prisão; no entanto, há certas regras regulativas

igualmente indispensáveis quer para a existência de um desporto, quer para a existência do

Direito, e que são tão ou mais fundamentais do que qualquer regra constitutiva, como a regra

do futebol segundo a qual não se pode jogar a bola com as mãos ou os braços deliberadamente,

ou as regras jurídicas que regulam os delicta in se.

A institucionalização do Direito existe, por conseguinte, necessariamente ao nível da

aplicação, mas apenas incidentalmente ao nível da criação das fontes. Há, no entanto, um

aspeto da conceção de MACCORMICK que, quanto a nós, é falso, a saber, o de fazer corresponder

Direito consuetudinário a Direito não-institucional e Direito legislado a Direito institucional.

Como arguimos supra, não há nada, em princípio, que impeça regras constitutivas de se

formarem consuetudinariamente. Como SEARLE observa, o processo de criação de factos

institucionais pode decorrer sem que os participantes tenham consciência do mesmo. No caso

do dinheiro, basta que os participantes pensem que o mesmo é valioso, que podem adquirir

coisas através do mesmo, não sendo necessário que pensem «estamos a impor coletivamente

um valor sobre uma coisa, e.g., pedaços de papel ou de plástico, que não consideramos valiosa

por causa das suas características físicas», sem embargo de ser precisamente isso que estão a

fazer ao fomentar o sistema de trocas de serviços ou produtos por dinheiro. O facto de a

esmagadora maioria dos seres humanos terem nascido em sociedades institucionalizadas onde

as regras constitutivas de factos institucionais como, por exemplo, o dinheiro, são legisladas

por uma assembleia legislativa esconde, em certa medida, o facto de que, na sua génese, o facto

institucional «dinheiro», como muitos outros factos institucionais, não se apoiam em regras

constitutivas específica e especialmente criadas para o efeito por legisladores. Muitas das

regras constitutivas de factos institucionais com que sempre nos deparámos enquanto membros

de uma sociedade que inclui instituições são consuetudinárias na sua origem, o que contribui,

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como nota SEARLE, para que todos nós encaremos os factos institucionais como «naturais»

(taken for granted) no seio da cultura em que crescemos.60

Assim sendo, MACCORMICK está errado na correspondência que procura efetuar, mas

esta circunstância, por si só, não afeta a conclusão a que o autor chega segundo a qual o Direito

não é uma instituição. Com efeito, não se pode dizer que todas as regras consuetudinárias são

não-institucionais porque, como acabámos de ver, há vários exemplos de factos institucionais

cujas regras constitutivas, que estão na base da instituição, são costumeiras. No entanto, é por

demais evidente que há muitas regras consuetudinárias não-institucionais, porventura em larga

maioria em relação às regras consuetudinárias que formam factos institucionais. Isto é

suficiente para demonstrar que o Direito é composto tanto por regras institucionais como por

regras não-institucionais e, na medida em que nem todas as regras jurídicas são factos

institucionais o Direito não pode ser considerado, no seu todo, uma instituição.

Contra esta tese, FERNANDO ATRIA propõe, ao invés, que se qualifique o Direito como

uma instituição regulativa, visto que o seu objetivo é regular formas de comportamento que

existem independentemente da constituição do sistema jurídico, sendo o Direito penal,

nomeadamente as matérias que incidem sobre os delicta in se, porventura a melhor ilustração,

ou o expoente máximo, desta ideia. ATRIA argumenta que as regras regulativas do Direito são

institucionais porque, tal como as regras constitutivas, permitem igualmente que se criem

factos institucionais como, por exemplo, crimes, o que permite que se considere o Direito como

sendo, no seu todo, uma instituição, ainda que composta, ou fundada sobre, regras de cariz

muito diverso, algumas das quais operativas mesmo que a ordem jurídica nunca chegasse a ser

instituída.61

Esta ideia de ATRIA só não é totalmente satisfatória porque descura a existência de

regras jurídicas constitutivas, dado que certas áreas do Direito não são regulativas, como, por

exemplo, o Direito dos seguros, que, ao contrário do que sucede com o Direito penal, não regula

comportamentos anteriores e independentes das regras que fazem parte deste ramo do Direito,

regras estas que são constitutivas, visto que determinados factos brutos como pegar numa

caneta e efetuar uns riscos numa folha de papel só contam como celebração de um contrato de

seguro se o facto institucional «seguro» for instituído através de regras que o constituam, ao

passo que matar uma pessoa conta como matar uma pessoa mesmo que a regra que regula o

homicídio, proibindo-o, nunca tivesse sido formulada. Por outro lado, mesmo dentro do Direito

penal, e no âmbito dos crimes contra a vida, é notório que nem todas as regras que fazem parte

desta área do Direito são regulativas. Matar uma pessoa conta sempre como matar uma pessoa,

e pode-se admitir que contaria sempre como homicídio simples, e, por isso, o mesmo trata-se

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de uma regra regulativa, mas matar uma pessoa só conta como homicídio qualificado ou

privilegiado a partir do momento em que certas regras constitutivas formem estes factos

institucionais. Por isso, ao invés de classificar o Direito como uma instituição regulativa, ATRIA

deveria ter referido que o Direito é uma instituição que engloba tanto regras regulativas como

regras constitutivas, e, por isso, é simultaneamente uma instituição regulativa e constitutiva.

Em todo o caso, concordamos com o autor quando este diz que tanto regras regulativas como

constitutivas possibilitam a criação de factos institucionais, o que demonstra que o Direito é,

no seu todo, institucional.

A hipótese de ATRIA permite igualmente enquadrar o Direito natural dentro do esquema

concetual do Direito enquanto instituição. À primeira vista, o Direito natural parece cair fora

do âmbito da institucionalização precisamente por a sua aplicação não ser condição necessária

da sua validade enquanto Direito. Os jusnaturalistas diriam que o Direito natural, ínsito na

razão humana, vale por si, ao passo que os positivistas argumentariam que a sua não-

institucionalização o aproxima da Moral ao ponto de mais não ser do que uma subespécie desta.

Daqui decorrem duas teses familiares, defendidas pelos autores que perfilham cada uma destas

duas posições: a tese jusnaturalista é a de que o Direito natural vincula o Direito positivo, e,

por isso, os órgãos institucionais criadores e aplicadores de normas não o podem infringir. A

tese positivista, pelo contrário, não reconhece vinculatividade ao Direito natural, e, por isso, as

instituições responsáveis pela aplicação do Direito não se conformam com os seus ditames,

mas apenas com os do Direito positivo. A inaplicabilidade remete o Direito natural à condição

de não-Direito, dado que ordens normativas insuscetíveis de aplicação por carecerem de um

aparelho institucional coercivo não são ordens jurídicas.

Em defesa do jusnaturalismo, poder-se-ia arguir que o Direito natural é institucional

porque, se se reconhecer a sua vinculatividade e superioridade sobre o Direito positivo, as

instituições responsáveis pela aplicação do Direito estariam a aplicar Direito natural, quer

diretamente a casos concretos, quer para invalidar normas positivas que o infrinjam. O

argumento é tentador, mas incorre numa falácia, dado que a sua aceitabilidade dependeria de

prescindir de algo que o jusnaturalista não está disposto a prescindir, na medida em que se trata

de um dogma da doutrina do Direito natural, a saber, o de que o Direito natural vale por si.

Com efeito, se se aceitar que o Direito natural cai no escopo da institucionalização porque os

órgãos aplicadores do Direito o aplicam, isto equivale a dizer que o Direito natural, para ser

Direito, depende de institucionalização, o que contraria a sua operatividade no estado de

natureza clássico, que se caracteriza, precisamente, por ser um estado onde não há instituições.

ROBERT NOZICK demonstra que tal não é o caso, apontando tipos de instituições que poderiam

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concebivelmente surgir em estado de natureza,62 tal como este é imaginado por autores como

THOMAS HOBBES63 ou JOHN LOCKE.64 Em todo o caso, a hipótese de NOZICK modifica o estado

de natureza clássico criado pelos autores aqui mencionados, e a única implicação que se poderia

retirar a partir desta hipótese seria a de que o Direito natural seria Direito no estado de natureza

que contivesse as instituições mencionadas por NOZICK, mas no estado de natureza clássico,

tal como imaginado por autores como HOBBES ou LOCKE, onde há uma ausência total de

institucionalização, o Direito natural não seria Direito, cumprindo-lhe exercer uma função

análoga à que, em contexto estatal, reconhecemos competir à Moral.* Ora, isto contraria o

dogma segundo o qual o Direito natural vale por si, e, por isso, proponentes da tese

jusnaturalista não podem argumentar que o Direito natural é Direito em virtude de as

instituições responsáveis pela aplicação de normas jurídicas o respeitarem, aplicando-o

diretamente ou anulando certas normas de Direito positivo tidas por inválidas à luz do padrão

jusnaturalista.

Uma forma aceitável de argumentar que o Direito natural vale por si é simplesmente

constatar que o mesmo não pode deixar de ser aplicável, em quaisquer circunstâncias, pelas

instituições que têm a ser cargo aplicar normas jurídicas. Para tal, é necessário separá-lo do

Direito divino e da lei eterna. Esta separação é encetada por S. AGOSTINHO, mas a verdade é

que a mesma por vezes não se reflete claramente nos escritos de certos filósofos jusnaturalistas,

que incluem as prescrições de Direito divino e da lei eterna entre aquelas que, juntamente com

as do Direito natural, implicam a anulação de normas jurídico-positivas que as infrinjam. Há,

sem dúvida, certas normas de Direito divino e da lei eterna que têm a capacidade de anular

normas jurídico-positivas que as contrariem, mas isto só acontece em casos em que as normas

em questão também são normas de Direito natural, como acontece com a proibição do

homicídio, bem como de outros delicta in se. Normas exclusivamente de Direito divino ou da

lei eterna, i.e., que se debrucem sobre aspetos marcadamente religiosos, não devem ser

integradas em ordens normativas seculares. Constata-se, por conseguinte, que o Direito natural,

quando claramente separado destes outros tipos de Direito, é um Direito secular, ínsito na razão

humana e, por isso mesmo, criado pelo pensamento humano. Daqui decorre que o Direito

natural vale por si mesmo porque, ao aplicarem o Direito, as instituições responsáveis por fazê-

lo têm que seguir um núcleo impostergável de Direito natural, que se prende com a

administração da Justiça. Dito por outras palavras, o Direito natural deve ser encarado como

uma fonte suprapositiva do Direito, que é irrevogável, e à qual as fontes positivas se encontram

* A implicação é nossa, não de NOZICK.

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subjugadas. É neste sentido que se deve entender a expressão segundo a qual «o Direito natural

vale por si»; vale por si porque é válido independentemente da vontade de órgãos criadores e

aplicadores de normas que funcionam em contexto institucional. Estes órgãos não têm a opção

de postergar o núcleo essencial do Direito natural, que se prende com a administração da

Justiça. É, por conseguinte, um erro pensar que o Direito natural vale por si porque é

autoexequível; o Direito natural é uma parte do Direito, tal como o Direito positivo. Todo o

Direito, para o ser, precisa de institucionalização. Deste modo, dizer que o Direito natural vale

por si apenas significa que o mesmo contém um núcleo impostergável de regras que, a ser

abandonado, modificaria a essência do Direito ao ponto de o mesmo passar a ser uma realidade

diferente, uma instituição distinta daquela que existe tal como a conhecemos.

Na terminologia de SEARLE, o Direito natural seria composto por regras regulativas.

Parte de valer por si mesmo implica precisamente isto, ou seja, o Direito natural não se pode

fundar em regras que o constituam. Ora, na ótica de SEARLE, a mudança de X, facto bruto, para

Y, função atribuída ao facto bruto, que cria factos institucionais é um movimento de um nível

bruto para um nível institucional, o que confirma a continuidade relacional entre factos brutos

e institucionais notada por ANSCOMBE. Assim, a prática de formar fila, que é um facto bruto da

ordem do ser, faz surgir regras regulativas, que são, em relação às concretas situações em que

se deve formar fila, do domínio do dever-ser. Posteriormente, com a passagem do tempo,

atribui-se uma função a estes factos brutos, surgindo regras constitutivas da atividade de formar

fila, que, assim, passa a ser um facto institucional, tal como se verifica atualmente. A prática

informal de formar fila terá começado em termos semelhantes aos descritos por MACCORMICK,

o que ilustra a possibilidade de as regras, regulativas ou constitutivas, serem consuetudinárias,

mas, tal como a conhecemos atualmente, esta prática é um facto institucional. Os desportos

sofreram uma evolução semelhante. Dos factos brutos de se pontapearem bolas com o intuito

de as introduzir numa qualquer espécie de baliza surgiram as regras regulativas do futebol de

onze. Posteriormente, foram estabelecidas regras constitutivas (atualmente distribuídas ao

longo de dezassete leis) que incidem sobre o terreno de jogo, o número de jogadores, o tempo

de jogo, etc. O futebol de onze começou como uma prática normativa informal e transformou-

se numa atividade normativa institucional. No Direito, verifica-se uma evolução semelhante.

As regras regulativas de Direito natural, que têm uma forma linguística imperativa (e.g., é

proibido matar, furtar, ofender a integridade física das pessoas, etc.), acabaram por ser

desenvolvidas e aprofundadas ao longo do tempo. Estão na base do Direito positivo.

Gradualmente, foram-se institucionalizando, o que só foi possível com o surgimento de regras

constitutivas da ordem jurídica. Todo este processo é relativamente lento e, acima de tudo, é

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essencial perceber que é contínuo. Não há um momento histórico definido onde seja possível

afirmar «a partir deste momento as regras regulativas do Direito são substituídas por regras

constitutivas da ordem jurídica». Esta substituição foi sendo feita por fases.

Assim sendo, a regra que proíbe o homicídio, por exemplo, é uma regra de Direito

natural, cujo surgimento é prévio à institucionalização, e uma regra regulativa, dado que a

prática (neste caso de omissão) que visa regular existiria, seria obrigatória, mesmo sem a

formulação da regra. No entanto, os atos que compõem o processo de investigação do

homicídio, a detenção do suspeito, o seu julgamento e eventual condenação só fazem sentido

num contexto institucional. São necessárias regras constitutivas que tornem possível que se

classifique os factos brutos de olhar para um cadáver como uma investigação forense, o facto

bruto de colocar um indivíduo, mesmo contra a sua vontade, num determinado local, como

detenção de um suspeito, etc.

A institucionalização pode, contudo, ser rudimentar. Esta é uma ressalva importante

porque, no mundo ocidental, mas também em grande parte do mundo oriental, estamos

habituados a encarar a ordem jurídica interna de um Estado como um produto da sua

Constituição. Ora, o constitucionalismo em sentido formal é um fenómeno relativamente

recente. A primeira Constituição escrita é a dos Estados Unidos da América, que data de 1789,

sendo que na Europa o fenómeno começou a intensificar-se após a Revolução Francesa. Todas

as ordens jurídicas baseadas numa Constituição escrita são ordens normativas altamente

institucionais, ou seja, são ordens normativas com um grau muito sofisticado de

institucionalização. Naturalmente, a Constituição em sentido formal não é conditio sine qua

non de sofisticação da ordem institucional, como o demonstra o exemplo contemporâneo do

Reino Unido,65 mas é notório que há uma certa correlação, até porque uma Constituição é um

instrumento jurídico que, em si mesmo, é institucionalmente sofisticado. O Reino Unido terá

que ser visto como uma exceção a esta regra estatística, i.e., a regra segundo a qual, na

atualidade, ordens jurídicas institucionais com um grau elevado de sofisticação dependem da

existência prévia de uma Constituição em sentido formal, ela própria altamente sofisticada de

um ponto de vista institucional.

É tentador pensar que este raciocínio não tem razão de ser porque, no passado, foram

erigidos grandes impérios cuja subsistência dependia em grande medida de ordens jurídicas

que contivessem um grau de institucionalização altamente sofisticado, sem apoio numa

Constituição formal. Isto é verdade, mas tem que ser relativizado. O grau de institucionalização

da ordem jurídica do Império Romano era altamente sofisticado para a sua era, mas, como se

acabou por descobrir com o advento do humanismo jurídico na era do Renascimento, seria

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totalmente desadequado para regular as sociedades do século XVI, tornando-se a desadequação

ainda maior com a passagem do tempo e a constante mudança da realidade. Isto significa que

a sofisticação, pelo menos de uma perspetiva histórica, tem que ser medida pelos padrões da

atualidade. Aquilo que os Esquimós ou os Ifugao consideram Direito é institucional e, da sua

perspetiva, altamente sofisticado. O Direito das tribos nómadas que existiam no limiar da

Civilização, ou das primeiras tribos sedentárias era, do ponto de vista dos indivíduos que

formavam essas sociedades, institucional e do mais sofisticado que, à época, se poderia

imaginar. Quando comparado com a realidade contemporânea, no entanto, o grau de

sofisticação da institucionalização dessas ordens jurídicas é muitíssimo reduzido, mas esta

constatação não afasta, de todo, a consideração de que, mesmo nas tribos primitivas, o Direito

era uma ordem normativa (rudimentar, do ponto de vista contemporâneo) institucional.

Estas considerações permitem-nos, assim, delinear o seguinte esquema conceptual:

certas práticas normativas, como, por exemplo, a que consiste em não assassinar pessoas,

surgem cronologicamente antes das respetivas regras regulativas, e, por isso, são independentes

destas, dado que a existência da prática é independente da existência das regras que a regulem.

A regra que regula a proibição do homicídio faz, por sua vez, parte de uma ordem normativa

institucional, o Direito. Não é, contudo, uma regra constitutiva do Direito. Se se perguntar que

regras são constitutivas do Direito, a resposta depende do prisma que se tenha sobre o que é o

Direito. Por razões que ficarão claras no final do Capítulo 4, o Direito é indefinível, mas é

nossa contenção que é composto pelo Direito natural e pelo Direito positivo. Por este prisma,

não se pode identificar um conjunto definido, fechado, de regras constitutivas do Direito, até

porque algumas, como as do Direito natural, não são constitutivas, mas sim regulativas. A

resposta crua à questão de saber que regras são constitutivas do Direito, é, portanto,

«nenhumas», porque o Direito não se institui, é algo que existe desde que haja seres humanos

a viver em sociedade, e, por conseguinte, não é passível de institucionalização. Esta resposta,

no entanto, não é satisfatória porque não se pode divorciar a existência do Direito da sua

aplicação, ou, melhor: separar a existência do Direito da sua aplicação é conceptualmente

exequível, dado que é sempre possível pensar que condutas são racionalmente proibidas ou

permissíveis, isto é, que regras regulativas emanam da própria razão humana e, por isso, são

regras de Direito natural, sem se refletir acerca da forma como as mesmas podem ser postas

em prática, ser aplicadas. Dito por outras palavras, o homicídio é sempre um ato ilícito, mesmo

que não se possam, por qualquer motivo, usar instrumentos jurídicos quer para reprimir a

conduta do putativo homicida, quer para sancioná-lo pela sua conduta ilícita quando

consumada. No entanto, esta descrição do Direito mais parece, como vimos supra, uma

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descrição de uma outrem ordem normativa, que não é institucional, a saber, a Moral. Um dos

aspetos que diferencia a Moral do Direito é o facto de o segundo ser institucional, ao contrário

da primeira. Assim, a separação conceptual entre existência e aplicação do Direito, a ser

mantida na prática, redunda na formulação de um sistema normativo de Moral. Direito sem

aplicação institucional é, grosso modo, Moral, e não Direito.

Ora, como o Direito pressupõe a sua própria aplicação, sem, no entanto, ter a

capacidade de ser autoexequível, é necessário instituir um sistema, por muito rudimentar que

este seja. Por isso, ao contrário do que muitos historiadores, do Direito ou em geral, assumem,

a delegação da resolução de conflitos em chefes de tribos ou em conselhos de anciãos que

utilizam a posição das estrelas ou o voo dos pássaros como meios de prova para apurarem

questões de facto surgidas no âmbito de um litígio jurídico não é uma manifestação de

informalidade, mas sim de institucionalização, rudimentar aos nossos olhos, altamente

sofisticada a partir do prisma dos indivíduos que compõem a comunidade em questão. O

Direito é inexoravelmente institucional porque pressupõe a sua própria aplicação sem, contudo,

ser autoexequível, e, por isso, é preciso instituir cargos cujos titulares desempenham as funções

de aplicação do Direito que lhes sejam incumbidas. A única exceção a esta caracterização do

Direito como precisando de ser institucional surge no chamado estado de natureza, visto que,

nestas circunstâncias, não havendo institucionalização, torna-se necessário, como diz LOCKE,

que cada um tome a Justiça nas suas próprias mãos e puna outros pelas injustiças por si

cometidas, precisamente porque o Direito requer aplicação.66 No entanto, se levarmos em linha

de conta a tese de ATRIA, o Direito natural operativo no estado de natureza clássico é

institucional porque as suas regras regulativas permitem a criação de factos institucionais, o

que se verificaria a partir da altura, que só surgiria com o passar do tempo e nunca num

momento único, fundador e bem definido, em que a resposta à pergunta «por que é que bateste

em/mataste/prendeste A?» deixasse de ser «porque ele bateu em/matou/roubou B, membro da

minha família» e passasse a ser «porque ele cometeu um crime». A noção de «crime» é um

facto institucional que surge a partir de regras regulativas de Direito natural, que regulam

formas de comportamento que lhes são anteriores, como os atos de matar, prender ou roubar.

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3

O Pensamento Humano

1. Ciências naturais, ciências sociais e humanas, indústria e tecnologia

É a partir da Filosofia (φίλος [filos] + σοφίᾱ [sofia] = amor pelo conhecimento) que as áreas

do conhecimento com as quais hodiernamente nos encontramos familiarizados se foram

paulatinamente desenvolvendo no decurso de um processo natural de especialização da

investigação filosófica. Pretendemos desenvolver esta ideia ao longo deste Capítulo com o

intuito, por um lado, de chamar a atenção para o facto de que a especialização da investigação

filosófica foi sendo feita tendo como critério definidor o objeto de estudo de determinada

disciplina filosófica, e, por outro lado, para estabelecer que distinções em razão do objeto de

estudo não implicam distinções quanto à forma de pensar acerca desse mesmo objeto de estudo.

Dito por outras palavras, a divisão da Filosofia entre as chamadas «ciências naturais», ou

«exatas», e as denominadas «ciências sociais e humanas», que se justifica em virtude da

diferença quanto ao objeto de estudo das várias disciplinas que compõem ambos os lados desta

summa divisio, não estabelece uma divisão epistemológica, e, por isso, o modo de pensar acerca

de factos brutos e de factos mentais é em tudo idêntico. Esta é uma constatação importante para

o Direito, que é uma disciplina filosófica composta tanto por factos brutos como por factos

mentais, onde, de entre os últimos, os factos institucionais ocupam uma posição de destaque.

Este Capítulo é, por conseguinte, dedicado ao desenvolvimento da ideia aqui avançada, que é

crucial para que o Direito possa ser entendido em toda a sua extensão, isto é, tanto ao nível dos

factos brutos como dos factos mentais que compõem a ordem jurídica, e que permitem a

produção de normas através de decisões concretas.

Antes, todavia, de elaborarmos este ponto, convém esclarecer que a summa divisio não

se adequa à realidade contemporânea (com efeito, há boas razões para arguir que a mesma

nunca foi adequada). Como é sabido, as ciências naturais têm como objeto do seu estudo factos

brutos físicos, como montanhas ou moléculas, ou seja, matéria, isto é, a realidade física

apreensível pelos sentidos, bem como os processos inerentes à mesma, que incluem, mas não

se circunscrevem, a relações de causalidade. Isto significa somente que há uma diferença entre

estudar, por exemplo, o fenómeno da senescência nos seres vivos e estudar quais são as causas

que produzem este efeito. Quanto ao objeto de estudo das ciências sociais e humanas, o mesmo

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incide sobre factos mentais, isto é, sobre a realidade que é criada através do pensamento

humano, o que abarca fenómenos de causalidade mas não se restringe aos mesmos em termos

análogos aos referidos a propósito das ciências naturais.

No seio de cada um destes dois grandes grupos que integram a summa divisio podem-

se estabelecer divisões mais finas. A medicina, a veterinária e a física quântica inserem-se no

grande grupo das ciências naturais, mas as temáticas próprias de cada uma destas disciplinas

são suficientemente distintas para justificar, em obediência ao princípio da divisão do trabalho,

o reconhecimento de que as mesmas são autónomas. O mesmo sucede no campo das ciências

sociais e humanas, onde é notória a diferença de competências entre o jurista, o psicólogo ou

o economista, por exemplo. Há, contudo, casos especiais deveras interessantes que não podem

aqui ser analisados com a profundidade devida, mas que podem pelo menos ser mencionados.

A Geografia, por exemplo, é uma área do conhecimento que engloba aspetos das ciências

naturais e das ciências sociais e humanas. Subdisciplinas como a meteorologia ou a cartografia

(pelo menos a variante que versa sobre o mapeamento de território) caem claramente do lado

das ciências naturais, mas a geografia humana enquadra-se no âmbito das ciências sociais e

humanas.

A summa divisio é, em todo o caso, inadequada para etiquetar as divisões das várias

áreas do conhecimento porque há algumas como, por exemplo, a indústria e a tecnologia, tanto

a nova como a tradicional, que não estudam, pelo menos exclusivamente, fenómenos da

natureza, mas também não se limitam a estudar conceitos abstratos; com efeito, no domínio da

indústria e da tecnologia usa-se o pensamento abstrato para se criar coisas corpóreas. A

indústria e a tecnologia acham-se, com efeito, na situação peculiar de estudarem factos brutos

físicos, isto é, realidades empíricas apreensíveis pelos sentidos, que têm a sua origem no

pensamento humano, e isto diferencia-as, por exemplo, do estudo da física e da química, no

âmbito do qual o pensamento humano apenas descobre algo que, com efeito, é criado pela

natureza. Por outro lado, também as descobertas efetuadas pelos cientistas naturais têm

aplicação industrial e podem levar ao surgimento de novas tecnologias. É por isso que é difícil

colocar a indústria e a tecnologia, de forma estanque, num dos lados da summa divisio, dado

que, por vezes, surgem aplicações industriais e tecnológicas de inventos, i.e., de produtos

criados de raiz pelo pensamento humano, mas, noutras ocasiões, também surgem aplicações

industriais e tecnológicas de descobertas, i.e., de produtos que não são criados de raiz pelo

pensamento humano, mas sim pela natureza, sendo que o ser humano somente os aproveita,

dando-lhes, aí sim, um uso industrial ou tecnológico em grande medida fruto do seu próprio

pensamento. Por estes motivos, não se considera habitualmente a indústria ou a tecnologia

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como possíveis integradoras de um tertium genus entre as ciências naturais e as ciências sociais

e humanas, havendo, ao invés, uma tendência para as integrar numa subdivisão das ciências

naturais, a saber, a que é normalmente designada através da expressão «ciência aplicada», e

que é a contraparte da «ciência pura», onde a investigação é feita sem que se pense em fins

práticos e em que os resultados que produz são conhecimento geral e compreensão da natureza

e das suas leis.1 Esta subdivisão não abarca, no entanto, os casos em que a aplicação industrial

ou tecnológica tem por base uma criação do pensamento humano, e não uma criação da

natureza.

Ao falar da distinção entre características do mundo que são intrínsecas e características

do mundo que são relacionadas-com-o-observador, ou seja, entre aquelas características do

mundo que existem independentemente de nós e aquelas que dependem de nós para a sua

existência, SEARLE observa que montanhas e moléculas existem independentemente das nossas

representações das mesmas. Contudo, quando começamos a especificar outras características

do mundo descobrimos que há uma distinção entre aquelas características que podemos chamar

intrínsecas à natureza e aquelas características que existem relativamente à intencionalidade

de observadores, utilizadores, etc. É, por exemplo, uma característica intrínseca do objeto que

está à frente do observador que o mesmo tem uma certa massa e uma certa composição química.

É feito parcialmente de madeira, cujas células são compostas por fibras de celulose, e também

parcialmente de metal, que é em si mesmo composto por moléculas de liga metálica. Todas

estas características são intrínsecas. Mas também é verdade dizer desse mesmo objeto que é

uma chave de fendas. Quando o objeto é descrito através desta expressão, está-se a especificar

uma característica do mesmo que é relativa ao observador ou ao utilizador. O objeto em questão

é uma chave de fendas apenas porque as pessoas o usam como (ou fizeram-no para o propósito

de, ou vêem-no como) uma chave de fendas.

O ponto onde SEARLE quer chegar é o de que objetos físicos têm características

independentes do pensamento humano bem como características dependentes desse mesmo

pensamento, sendo que todas essas características fazem parte da realidade. Dito por outras

palavras, o físico e o mental são igualmente reais. Ambos são factos. SEARLE postula isto com

o intuito de chamar a atenção para o facto de que a existência de características do mundo

relativas-ao-observador não adiciona quaisquer objetos materiais novos à realidade, mas pode

adicionar características epistemicamente objetivas à realidade.2 Assim, os objetos físicos têm

características físicas, que lhes são intrínsecas, e características epistémicas, cuja existência

depende do pensamento humano, isto é, do pensamento de observadores e/ou utilizadores do

objeto em questão.

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No esquema epistemológico de SEARLE, acaba por ser irrelevante a proveniência do

objeto físico, ou seja, é indiferente se o mesmo ocorre naturalmente ou se é produzido pelo

pensamento humano em utilização de processos industriais ou tecnológicos. Não nos parece,

contudo, que esta circunstância seja suficiente para amalgamar as ciências naturais com a

indústria e a tecnologia, nem sequer que SEARLE postule estas ideias com essa intenção, mas

sim que a mesma é reveladora de algo que iremos explorar ao longo deste Capítulo: objetos

físicos têm características que surgem em razão do pensamento humano que é efetuado sobre

eles, sendo que estas mesmas características se encontram igualmente presentes em objetos

mentais. Antes, todavia, de entrarmos nessa discussão, as considerações de SEARLE inclinam-

nos a pensar que o lugar mais adequado para a indústria e a tecnologia é, de facto, o de um

tertium genus entre as ciências naturais e as ciências sociais e humanas. Objetos como a chave

de fendas, o avião ou o computador, por exemplo, são concretizações de ideias, de

manifestações do pensamento humano, e não descobertas a partir de algo previamente existente

na natureza, embora a sua realização dependa da utilização de materiais que ocorrem

naturalmente. Assim, a concretização destes pedaços do mundo inteligível, como o são as

ideias de chave de fendas, de avião ou de computador, no mundo sensível só é possível através

da utilização de materiais que existem na natureza e que são independentes do pensamento

humano, o que faz com que seja necessário o apoio da ciência natural, que é a área do

conhecimento que se dedica ao estudo de objetos físicos naturais.

2. Conceitos

As reflexões encetadas na secção anterior tornam igualmente evidente algo muito importante

para o argumento segundo o qual a forma de pensar sobre factos brutos e factos mentais é a

mesma, a saber, a circunstância de conceitos abstratos se poderem vir a tornar conceitos

concretos. Antes, contudo, de explicarmos em que medida tal é possível, afigura-se-nos

conveniente analisar brevemente o que são conceitos, e a que é que se referem os termos

«abstrato» e «concreto».

Segundo ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, «conceitos» são «resultado(s) da actividade pura

do pensamento», visto que um conceito, «[d]o ponto de vista lógico», é «uma apreensão do

objecto pela consciência.» Isto significa que «[t]odo o conceito se reporta a um objecto, é

sempre conceito de um objecto, com o qual, no entanto, se não identifica nem confunde.»3 O

conceito é, por conseguinte, uma abstração de um objeto «sem, contudo, dele afirmar ou negar

qualquer coisa», dado que «o conceito não se confunde nem coincide com ele, como é também

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distinto da palavra ou do termo que o diz, que não é mais do que a sua expressão convencional

e simbólica».4 Um conceito é, portanto, algo distinto de uma palavra ou de um termo, visto

que, como RAZ observa, os conceitos são a forma como concebemos aspetos do mundo,

encontrando-se entre, de um lado, as palavras e os seus significados, nas quais são expressados,

e, de outro lado, a natureza das coisas às quais se aplicam.5

As coisas às quais os conceitos se aplicam podem ser corpóreas ou incorpóreas e, por

isso, os conceitos são, respetivamente, concretos e abstratos. Os termos que designam os

conceitos concretos são termos concretos, ao passo que os termos que aludem a conceitos

abstratos são termos abstratos.

O que diferencia termos abstratos de termos concretos é, portanto, o facto de os

primeiros não terem referentes físicos, ao contrário dos segundos. Isto não significa que não

seja possível pensar em referentes inexistentes no mundo físico que são designados através de

termos concretos, como sucede, por exemplo, se pensarmos num cão com quatro olhos. No

entanto, isto apenas demonstra que o termo «cão» pode ser utilizado em referência tanto a uma

realidade fisicamente existente como a uma realidade fisicamente inexistente, ou, pelo menos,

inexistente quanto a algumas das características presentes na realidade corpórea existente;

quando assim se procede, a inteligibilidade do termo depende, todavia, de se acrescentar a

diferença específica inexistente. No exemplo dado, não nos queremos referir a um cão, mas

sim a um «cão com quatro olhos». A diferença específica inexistente tem que ser mencionada

juntamente com o termo concreto de forma a que se perceba que o termo «cão» está a ser

utilizado em alusão a uma realidade fisicamente inexistente. Termos abstratos, por seu turno,

nunca têm, em quaisquer circunstâncias, referentes físicos. Conforme veremos na próxima

secção, se passarem a ter referentes físicos é porque deixaram de ser expressões de conceitos

abstratos, ou seja, transformaram-se em termos concretos. Enquanto permanecerem termos

abstratos, quer pela sua natureza, quer por impossibilidade tecnológica de concretização no

mundo sensível, não terão referentes físicos. É o que sucede com o termo «direito», visto que,

independentemente do que queiramos dizer ao utilizá-lo, é óbvio que o mesmo nunca tem como

referente uma realidade física, ainda que possa ser utilizado em relação a uma realidade

corpórea, como, por exemplo, na frase «A tem o direito de propriedade sobre o imóvel X».

3. A passagem do abstrato para o concreto

Se o avião é, na sua origem, uma ideia filosófica, um conceito abstrato cuja essência é a de uma

máquina que possibilite ao ser humano deslocar-se aereamente, a concretização dessa ideia em

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objetos físicos encontra-se dependente da investigação científica, das descobertas

proporcionadas pelas ciências naturais. Deste modo, salvo alguns casos pontuais, a indústria e

a tecnologia são uma síntese entre o pensamento especulativo e a investigação empírica, e, por

conseguinte, configuram o exemplo mais completo de como o pensamento humano é idêntico

no âmbito de todas as disciplinas filosóficas, transpondo o golfo tradicionalmente criado pela

constatação de que há disciplinas filosóficas que estudam objetos empíricos e disciplinas

filosóficas que estudam o pensamento humano. A indústria e a tecnologia estudam os dois tipos

de objetos, ou seja, debruçam-se sobre um objeto criado pelo pensamento humano com o

intuito de o transformar num objeto físico com o apoio dos dados obtidos através da

investigação científica. É, por isso, possível a certos conceitos abstratos tornarem-se, com a

ajuda da investigação científica, em conceitos concretos. Com efeito, antes de se tornar num

conceito concreto, o conceito de «máquina voadora», por exemplo, era inicialmente abstrato.

A este respeito, CHARLES VIVIAN observa que a mistura de facto com imaginação à qual se

chama lenda alcançou a sua mais completa e rica expressão na era dourada da Grécia, pelo que

é na mitologia grega que encontramos a melhor forma de qualquer lenda que pressagie a

história. Contudo, a prevalência de lendas respeitantes ao voo, existentes nos registos de

praticamente todas as raças, mostra que esta forma de trânsito era um sonho de muitos povos,

dado que o homem sempre quis voar, e sempre imaginou meios de voo.6 Deste modo, os

conceitos concretos designados através de termos como «balão», «dirigível», ou «avião», por

exemplo, que podem ser globalmente designados através do termo «aeronave», têm como

antepassado um conceito abstrato, cuja essência se encontra na ideia de voar, e cuja existência

não dependia, à época em que ainda não havia tecnologia para o transformar num conceito

concreto, da visualização, através da imaginação, de um tipo específico de máquina voadora.

Na atualidade, um dos conceitos abstratos mais famosos do pensamento filosófico (tanto

científico como especulativo) é o de «máquina do tempo», sendo que a existência deste

conceito não tem por condição necessária a visualização, através do olho da mente, desta

hipotética máquina. O conceito de máquina do tempo trata-se de uma ideia que é tão real quanto

a ideia de aeronave; o que as separa é o facto de a segunda ter concretização no mundo sensível,

ao passo que a primeira ainda se encontra confinada ao mundo inteligível. Não pretendemos,

naturalmente, especular sobre se algum dia o conceito de máquina do tempo encontrará

concretização no mundo sensível; o ponto onde queremos chegar é somente o de que o conceito

de aeronave começou, inicialmente, por originar no mesmo lugar onde o conceito de máquina

do tempo ainda se mantém, isto é, no pensamento humano.

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Em suma, as ciências naturais estudam factos brutos produzidos pela natureza, as

ciências sociais e humanas estudam factos mentais, e a indústria e a tecnologia tornam possível

converter certos produtos do pensamento humano em objetos físicos através da utilização de

materiais produzidos pela natureza. Há, por conseguinte, uma diferença quanto ao objeto de

estudo e/ou de trabalho entre factos brutos e factos mentais, sendo que, como os argumentos

de SEARLE parecem indiciar, essa mesma diferença quanto ao objeto de estudo não se repercute

na forma de pensar sobre o mesmo, que é igual em todas as disciplinas filosóficas. Entender

isto é importante porque ajuda a esclarecer as razões pelas quais o processo de elucidação, que

analisaremos no próximo Capítulo, é aplicável a todas as disciplinas filosóficas, o que leva à

conclusão de que a apreensão, por parte dos seres humanos, do conteúdo e significado de

conceitos abstratos como «direito» ou «dever» é efetuada da mesma forma que a apreensão do

conteúdo e significado de conceitos concretos como «mesa» ou «árvore». Dito por outras

palavras, a maneira como uma pessoa aprende o que é um cão é em tudo idêntica à maneira

como aprende o que é o princípio da legalidade ou a Justiça. Há, sem dúvida, uma diferença

quanto ao grau de complexidade, a que não é alheio o facto de, ao contrário do que acontece

com princípios e valores, coisas e animais terem características físicas que são apreensíveis

através da visão, da audição ou do tacto. Conceitos abstratos, por seu turno, têm uma existência

incorpórea, não física, e, por isso, tanto as suas características como, efetivamente, a sua

própria existência dependem de factos mentais, criados pelo, e acessíveis ao, pensamento, e

não aos sentidos, o que, naturalmente, leva a uma incerteza maior quanto ao estabelecimento

dessas mesmas características, o que não implica que as mesmas sejam inexistentes, ou

ficcionais, dado que, tal como o demonstram os argumentos de SEARLE, características

pensadas pelos seres humanos são tão reais quanto as características de factos brutos que são

independentes do pensamento humano.

4. A unidade do pensamento – a Alegoria da Caverna

Desde há muito que PLATÃO, no Livro VII de República, demonstrou, através de um mito que

ficou conhecido por «Alegoria da Caverna», entre outras coisas, que a diferença entre um

conceito abstrato e um conceito concreto é de grau, e não de espécie:

[Sócrates] – (…) Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna,

com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá

dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado

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permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos

grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás

deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se

construiu um pequeno muro (…).

[Gláucon] – Estou a ver – disse ele.

[Sócrates] – Visiona também ao longo deste muro, homens que transportam toda a espécie de

objectos, que o ultrapassam (…); como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros

seguem calados.

[Gláucon] – Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas – observou ele.

[Sócrates] – Semelhantes a nós – continuei –. Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições,

eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projectadas pelo fogo

na parede oposta da caverna?

[Gláucon] – Como não – respondeu ele –, se são forçados a manter a cabeça imóvel toda a vida?

[Sócrates] – E os objectos transportados? Não se passa o mesmo com eles?

[Gláucon] – Sem dúvida.

[Sócrates] – Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que

eles julgariam estar a nomear objectos reais, quando designavam o que viam?

[Gláucon] – É forçoso.

[Sócrates] – E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos

transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da

sombra que passava?

[Gláucon] – Por Zeus, que sim!

[Sócrates] – De qualquer modo – afirmei – pessoas nessas condições não pensavam que a

realidade fosse senão a sombra dos objectos.

[Gláucon] – É absolutamente forçoso – disse ele.7

Até este momento do diálogo com Gláucon, Sócrates apenas se refere a conceitos

concretos, a realidades empíricas, apreensíveis através dos sentidos, como pessoas que

transportam objetos, as respetivas sombras e as vozes dos transportadores. A passagem aqui

citada visa, no diálogo República, abrir caminho para a discussão de dois tópicos, um

metafísico, a Teoria das Ideias, e outro político, o argumento segundo o qual a cidade-estado

ideal deve ser governada por um rei-filósofo. Para os propósitos do presente trabalho, o que

nos interessa destacar é o facto de o mito de PLATÃO demonstrar que é muito provável que não

saibamos tudo o que há a saber acerca de conceitos concretos. Se, por um lado, aquilo que

percecionamos através dos sentidos dificilmente será exclusivamente sombras, por outro lado

é indubitável que todos os conceitos concretos, incluindo conceitos relativamente simples

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como os de «mesa», «cadeira» ou «árvore», conservam no estádio atual do pensamento

filosófico uma penumbra metafórica que nos impede de afirmar categoricamente que tudo

aquilo que há a saber acerca de um determinado conceito concreto em particular já foi

descoberto. É um facto que temos ideias mais claras e menos polémicas acerca do que é uma

mesa do que acerca do que é a Justiça, o que resulta num maior consenso quanto à determinação

do conceito de mesa do que sucede quanto à determinação do conceito de Justiça, mas, tal

como não sabemos tudo o que há a saber acerca do conceito de Justiça, também não sabemos

tudo o que há a saber acerca do conceito de mesa, visto que parte daquilo que julgamos

conhecer sobre mesas e Justiça encontra-se envolto em sombras, que, de resto, não só são

indiscerníveis das características reais do objeto em causa como parece haver uma certa

renitência por parte do ser humano em abandonar as sombras tomadas pela realidade quando,

por qualquer motivo, se torna possível destrinçar sombra de realidade:

[Sócrates] – Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e

curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste

modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o

pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento

impedi-lo-ia de fixar os objectos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se

alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto

da realidade e via de verdade, voltado para objectos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada

um desse objectos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece

que ele se veria em dificuldades e suporia que os objectos vistos outrora eram mais reais do que

os que agora lhe mostravam?

[Gláucon] – Muito mais – afirmou.

[Sócrates] – Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e

voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objectos para os quais podia olhar, e julgaria ainda

que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam?

[Gláucon] – Seria assim – disse ele.8

Esta passagem não deve, no entanto, ser encarada como uma crítica de PLATÃO ao facto

de as pessoas exercerem, como referimos, uma certa resistência à mudança. Com efeito, essa

mesma resistência é natural visto que não há, no mundo tal como (sempre) o conhecemos, uma

«luz» capaz de afastar por completo as «sombras» que nos induzem em erro e nos levam a

viver na ilusão. Na ausência de algo análogo à luz de que Sócrates fala na passagem citada toda

e qualquer mudança é passível de trazer consigo não só partes da realidade, mas também mais

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sombras; não há, por conseguinte, garantias de que a mudança no pensamento filosófico seja

para melhor, seja um passo em direção à verdade. Isto é parte da condição humana, e é por isso

que, para Sócrates, «o verdadeiro alvo da filosofia» é «um treino de morrer e de estar morto»,9

na medida em que apenas a morte, por ser um estado no qual «o corpo, uma vez separado da

alma, passa a ficar em si e por si mesmo, à parte dela[,] tal como a alma, uma vez separada do

corpo, passa a ficar em si e por si mesma, à parte dele»,10 possibilita a prossecução da filosofia

visto que a alma se encontra «nas melhores condições para raciocinar: quando nada disto,

ouvido, vista, sofrimento ou prazeres de qualquer espécie a perturbam, quando se isola o mais

possível em si e por si mesma, mandando o corpo passear, e se abstém, na medida das suas

forças, de todo o contacto e comércio com ele para aspirar unicamente ao real».11 O ponto onde

PLATÃO quer chegar, na passagem da Alegoria da Caverna citada supra, é o de que os sentidos

são enganadores, deturpam a verdade e induzem as pessoas em erro, e isto acontece tanto numa

situação inicial como quando são fornecidos indícios novos suscetíveis de alterar uma qualquer

conceção da verdade. Na ausência de uma luz que possibilite, em vida, aquilo que, segundo

PLATÃO, só é possível com a morte, a saber, o acesso incondicionado ao real, às Formas, a

experiência humana será, na melhor das hipóteses, um misto de realidade e falsidade. Parte

daquilo que apreendemos através dos sentidos é verdadeiro, mas encontra-se desfigurado por

sombras, sendo que indícios ou provas novas tendentes a provocar uma mudança de paradigma

no pensamento filosófico abrirão uma parte da realidade até então inacessível, mas trarão

igualmente consigo outras sombras até então desconhecidas.

Deste modo, as sombras permanecerão sempre misturadas com a realidade,

independentemente da direção que o pensamento filosófico assuma a partir de indícios e provas

novas, e de as mudanças proporcionadas por estes últimos serem, ou não, aceites com maior

ou menor resistência. Note-se que, se isto é assim quanto a conceitos concretos, designados por

termos que têm como referentes objetos empíricos, factos brutos físicos, onde a distinção entre

aquilo que é real e aquilo que é sombra é comprovável fisicamente, ainda que não cabalmente,

será, por maioria de razão, igualmente assim, embora num grau de intensidade muito mais

forte, no respeitante a conceitos abstratos, designados por termos e expressões que não têm

como referentes objetos empíricos, o que retira a possibilidade de comprovação física no

processo de destrinça entre a realidade e a sombra. É isto mesmo que se retira da seguinte

passagem da Alegoria, formulada após PLATÃO fazer com que Sócrates exponha a parte do

mito onde o prisioneiro é levado ao «mundo superior»,12 isto é, ao mundo onde a verdade se

encontra disponível totalmente separada das sombras:

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[Sócrates] – Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares

como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu

desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do

cognoscível é que se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que

ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a

luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência,

e que é preciso vê-la para se ser sentado na vida particular e pública.13

Seguidamente, PLATÃO elabora o seu conhecido argumento acerca do dever que

incumbe sobre aqueles que conhecem a verdade em prestar os seus serviços à causa pública,

aceitando governar todos os outros que, por nunca terem visto a luz nem visitado o mundo

superior, ignoram a verdade.14 Quanto ao ponto epistemológico que temos vindo a desenvolver,

parece-nos claro que as implicações das ideias de PLATÃO para o mesmo consistem no facto

de que tanto a realidade empírica como a realidade inteligível, a realidade do pensamento, se

encontram tingidas por sombras, e, por isso, o acesso completo à realidade é inatingível. Para

PLATÃO, este problema resolve-se com a separação entre o corpo e a alma, ou seja, com a

morte. É trivial constatar que esta tese de PLATÃO é indemonstrável, ainda que seja logicamente

inatacável dentro dos seus pressupostos. O que nos interessa realçar é que o caminho que os

seres humanos fazem em vida para compreender a verdade, para destrinçar entre a realidade e

a sombra, é o mesmo independentemente de o problema sobre o qual um indivíduo se debruce

diga respeito à realidade empírica ou à realidade inteligível. Assim, e sem embargo das

diferenças óbvias ao nível da comprovação da veracidade de teorias ou de hipóteses entre

disciplinas filosóficas que estudam a natureza e disciplinas filosóficas que estudam o

pensamento humano, as considerações de PLATÃO indiciam que o processo de elucidação de

todos estes conceitos é o mesmo, sendo a definição o seu culminar, e não o seu início. O facto

de PLATÃO não seguir a dicotomia por nós proposta entre realidade empírica e realidade criada

pelo pensamento humano, mas sim uma dicotomia entre realidade empírica e realidade

inteligível, encontrando-se a diferença entre os dois pares de expressões na circunstância de

PLATÃO entender que a realidade inteligível tem uma existência independente do pensamento

humano, ideia que não acompanhamos, não afeta as implicações por nós atribuídas às

considerações de PLATÃO para o processo de elucidação de que temos vindo a falar, na medida

em que a forma como aprendemos cabalmente a substância de um conceito, independentemente

de o mesmo ser abstrato ou concreto, ou de a sua origem se encontrar no pensamento humano

ou não, é algo que, como teremos oportunidade de ver, se processa sempre da mesma maneira.

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5. A unidade do pensamento – a «teoria das ideias» de Hume

Antes, contudo, de falarmos sobre o processo de elucidação, é necessário estabelecer de forma

segura a aplicabilidade do mesmo tanto no campo das ciências naturais como no das demais

disciplinas filosóficas. O remanescente deste Capítulo é dedicado a esta tarefa. Com efeito,

PLATÃO fornece indícios seguros de que tal é o caso, mas os seus argumentos não foram

elaborados tendo como pano de fundo esta questão, e, por isso, funcionam somente como

indícios, fortes no seu mérito, mas insuficientes por si só para estabelecer que a diferença entre

estudar manifestações da natureza e manifestações do pensamento humano não implica uma

distinção quanto à maneira de pensar acerca de conceitos abstratos e de conceitos concretos. O

autor que, no nosso entender, demonstra de forma mais completa, sem embargo de as suas

ideias se encontrarem, ao tempo em que foram formuladas, longe de serem originais, as razões

pelas quais a formulação do pensamento humano é sempre feita nos mesmos moldes

independentemente de nos debruçarmos sobre a realidade material ou sobre a realidade

produzida pelo próprio pensamento é HUME, que observa que

[t]odas as percepções do espírito humano reduzem-se a duas espécies distintas que denominarei

impressões e ideias. A diferença entre estas reside nos graus de força e vivacidade com que elas

afectam a mente e abrem caminho para o nosso pensamento ou consciência. Às percepções que

penetram com mais força e violência, podemos chamar-lhes impressões; e nesta designação

incluo todas as nossas sensações, paixões e emoções, quando fazem o seu primeiro

aparecimento na alma. Por ideias entendo as imagens ténues das impressões nos nossos

pensamentos e raciocínio.15

Segundo BARRY STROUD, a citação supra é o começo de um argumento que desenvolve

a «teoria das ideias», não no sentido platónico da expressão, mas sim para designar a teoria da

mente que HUME adota acriticamente dos seus antecessores.16 No entanto, diz STROUD, é

porventura inexato descrevê-la como uma «teoria» para HUME. A mesma representa o que,

para ele, era a verdade inquestionável acerca da mente humana. Ele nunca se interroga se a

teoria das ideias é correta, e nunca oferece quaisquer argumentos que a apoiem, estando

somente interessado em explanar apenas aqueles detalhes que ele pensa que lhe serão úteis no

decurso do seu argumento.17

Existem boas razões, de resto identificadas pelo próprio STROUD, para se aceitar a

conceção que HUME tem da mente humana sem que seja necessário aferir da sua correção ou

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inclusive apresentar argumentos a favor da mesma, e que se prendem fundamentalmente com

o facto de estarmos perante uma conceção atrativa que parece surgir naturalmente na mente

quando pensamos acerca de perceção, conhecimento, pensamento e linguagem em certas

maneiras plausíveis. A circunstância de ser extremamente difícil formular a teoria de forma

precisa e inteligível não constitui obstáculo à enorme influência histórica de que tem gozado.18

Isto encontra-se em linha com o empirismo de HUME, dado que o autor tem como ponto de

referência da investigação filosófica os dados da experiência, e não os dados obtidos única e

exclusivamente através da razão. Ao passo que o racionalismo procura derivar conhecimento

em geral a partir de certos axiomas primários (cuja verdade é indubitável) através de

procedimentos estritamente dedutivos, o empirismo procura cimentar ou construir

conhecimento a partir de certos elementos básicos que são, igualmente, indubitáveis.19 A

divergência entre o racionalismo e o empirismo é, basicamente, uma divergência quanto às

fontes do conhecimento e quanto ao método de o derivar a partir de algo sobre o qual estas

duas doutrinas filosóficas concordam, a saber, a existência de certezas, o que é essencial para

refutar o ceticismo.20 Para HUME, é uma certeza, por exemplo, que as impressões podem ser

divididas em dois tipos, a saber, sensação e reflexão, sendo que o primeiro surge na alma a

partir de causas desconhecidas.21 Assim, a partir do momento em que HUME se mostra

interessado em aderir aos ditames da experiência constante ao mesmo tempo que admite a

existência de causas desconhecidas, que, naturalmente, não podem ser investigadas através da

experiência, acaba por ter que aplicar a máxima aristotélica, debatida na secção 7 do presente

Capítulo, segundo a qual «de facto, não tem de se procurar um mesmo grau de rigor para todas

as áreas científicas»,22 o que, no âmbito da questão que estamos a debater, significa

simplesmente que, não sendo possível indagar acerca da proveniência de certos fenómenos, a

mesma terá de ser deixada por explicar. Parece-nos ser isto que HUME faz, em parte, em relação

à conceção da mente humana que STROUD designa por teoria das ideias: no quadro conceptual

pelo qual HUME se rege, ou a mesma é comprovável através do apelo à experiência constante

e, se o é, tal acarreta a refutação de todas as putativas teorias rivais sem necessidade de se

apresentar argumentos racionais, ou, se não o é em virtude de assentar sobre causas

desconhecidas, não há maneira de apresentar quaisquer argumentos sem ir para além de toda a

experiência, método que HUME rejeita. Não nos parece que HUME demonstre, ao longo da sua

obra, ser totalmente avesso à metafísica, mas é claro que, para ele, a base de toda a investigação

filosófica, rectius, de todo o pensamento humano é a experiência, e, por isso, é fútil discutir

questões que não tenham qualquer apoio na experiência constante.

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Sem embargo de haver impressões de sensação cujas causas de surgimento na alma são

desconhecidas, o que preclui a sua investigação através da experiência constante, parece-nos

que a principal razão pela qual HUME se abstém quer de apresentar argumentos a favor da sua

conceção da mente humana, quer de discutir a sua correção, é a primeira das acima

mencionadas, ou seja, para HUME estamos perante uma conceção da mente humana que é

demonstrável através do recurso à experiência constante, e, por isso, a mesma é autoevidente.

A questão de também haver causas desconhecidas desempenha, como referimos supra, um

papel não negligenciável na decisão por parte de HUME de nem sequer discutir a correção da

sua conceção da mente humana, mas cremos que o principal fator que o levou a tal é o facto de

HUME considerar esta teoria das ideias de tal forma autoevidente que a validade da mesma não

é suscetível de ser posta em causa. Na medida em que nos identificamos com o essencial das

ideias de HUME acerca do funcionamento da mente humana, sem, contudo, pretendermos tomar

qualquer posição sobre o lugar que a metafísica deve ocupar no método de investigação

filosófica, e, especialmente, sem nos comprometermos com as ilações que HUME daqui retira

quanto aos conceitos de Moral e de Justiça,23 passamos a analisar a posição filosófica de HUME

quanto a esta questão, sem apresentarmos qualquer outro argumento a seu favor para além

daquele que o próprio HUME tacitamente fornece, a saber, o de que a validade da sua conceção

da mente humana é corroborada pela experiência constante.

Retomando, assim, a passagem de HUME citada supra, a relação que o autor estabelece

entre impressões e ideias é de tal forma forte que este chega ao ponto de afirmar que todas as

perceções do espírito são duplas e aparecem quer como impressões, quer como ideias.24 Assim,

a perceção segundo a qual a água ferve a uma temperatura de 100 graus centígrados é, em

primeira instância, uma impressão, dado que é uma observação sensível, i.e., efetuada pelo

órgão que detém o sentido da visão, mas, posteriormente, de cada vez que nos recordarmos que

a água ferve a 100 graus centígrados estamos a ter uma ideia. Entre impressão e ideia existe

apenas uma diferença de grau, e não de espécie, na medida em que, como referido na citação

supra, as impressões são fortes e violentas, ao passo que as ideias são «imagens ténues das

impressões nos nossos pensamentos e raciocínio.» Desta forma, os estudos elaborados pelos

cientistas sob as formas de «tratado», «monografia», «artigo» ou «ensaio» são reduções a

escrito de ideias que têm a sua génese nas impressões proporcionadas pela realização das

experiências que o cientista vise relatar.

Contudo, tal como o próprio HUME não deixa de notar, um exame mais cuidadoso

mostra que é preciso empregar a distinção das perceções em simples e complexas, para limitar

a asserção geral de que todas as nossas ideias e impressões se assemelham. Assim sendo,

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HUME refere que muitas das nossas ideias complexas nunca tiveram impressões complexas que

lhes correspondessem, e que muitas das nossas impressões complexas jamais são exatamente

copiadas em ideias.25 HUME admite, por conseguinte, que há ideias que não surgem a partir de

impressões, e que há impressões cujas correspondentes ideias são distorcidas em relação às

impressões em que são fundadas, o que configura uma exceção à regra segundo a qual as ideias

e as impressões parecem corresponder-se sempre.26

Repare-se que HUME não está incorreto ao estabelecer uma relação de regra/exceção ao

invés de defender que há duas regras distintas, uma que se aplicaria às impressões e ideias

simples, e outra que cobriria as impressões e ideias complexas. À primeira vista, este raciocínio

pareceria encaixar-se melhor na filosofia de HUME, para quem as perceções ou impressões e

ideias simples são as que não admitem distinção nem separação, ao passo que as complexas

são o contrário destas, podendo dividir-se em partes.27 Deste modo, as impressões simples, por

serem indivisíveis, dariam sempre origem a ideias simples, ao passo que impressões

complexas, por serem compostas por várias impressões simples, nunca dariam azo a ideias

complexas. A cada impressão simples corresponde uma ideia simples. Se se juntarem várias

impressões simples para formar uma impressão complexa, a mesma não será suscetível de vir

a produzir uma ideia complexa, mas apenas várias ideias simples que, por serem impressões

de segundo grau (visto que uma ideia só se distingue de uma impressão por ser mais ténue),

não seriam aptas a juntarem-se e a produzirem uma única ideia complexa que, necessariamente,

teria que ser coerente, ou seja, não poderia ser composta por ideias simples contraditórias entre

si. Estas considerações seriam implicações necessárias do estabelecimento de duas regras

distintas, uma para o caso em que uma impressão simples leva sempre à correspondente ideia

simples, e outra para dizer que impressões complexas nunca fazem surgir ideias complexas

que se lhes assemelhem.

Todavia, este não é o argumento de HUME, razão pela qual o autor é obrigado a postular

uma única regra que, admitindo exceções, tem a vantagem de afastar as implicações oriundas

do estabelecimento de duas regras distintas, e que foram notadas no parágrafo precedente, o

que lhe permite defender somente que certas ideias complexas não têm impressões

correspondentes, e vice-versa. Assim, o que HUME defende é que, por vezes, as ideias

complexas não se fundam em quaisquer impressões complexas, e não que as impressões

complexas são sempre inaptas a produzir ideias complexas. Com efeito, há impressões

complexas que dão azo a ideias complexas que se lhes assemelham, sendo que também há

impressões complexas que não são suscetíveis de produzir mais do que ideias que distorcem a

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impressão em que se fundam. Tudo isto equivale a dizer que as ideias complexas podem surgir

de impressões complexas, embora isto não se verifique sempre.

O ponto a reter a partir destas considerações é o de que não existe uma forma de

raciocínio específica para se pensar acerca de matéria e uma forma de raciocínio específica

para se refletir acerca das realidades produzidas pelo pensamento humano. Com efeito, diz

HUME, não há impressão ou ideia de qualquer tipo, da qual não tenhamos consciência ou

memória, que não seja concebida como existente, sendo que, na ótica do autor, é evidente que

é a partir desta consciência que se deriva a mais perfeita ideia do ser. Assim, tanto conceitos

abstratos como conceitos concretos, na medida em que ambos são ideias derivadas de

impressões, são igualmente existentes. Isto provoca um dilema, a saber, o de que, visto que

nunca nos lembramos de uma ideia ou impressão sem lhe atribuirmos uma existência, então a

ideia de existência tem que ser derivada ou a partir de uma impressão diferente, à qual se juntam

todas as perceções ou objetos do nosso pensamento, ou, em alternativa, a ideia de existência é

idêntica à própria ideia da perceção ou objeto.28 Independentemente de qual seja a melhor

solução para este dilema, o mesmo aplica-se tanto ao conceito de «árvore» como ao conceito

de «Justiça». A única diferença que porventura se poderá estabelecer entre o estudo da matéria

e o estudo da realidade produzida pelo pensamento humano dentro do sistema de HUME é a de

que as impressões simples que dão azo a ideias simples são sempre impressões oriundas da

matéria, tal como sucede, por exemplo, quando uma ideia de «pedra» é suscitada pela

visualização (impressão simples) do objeto ao qual a palavra se refere. Note-se, no entanto, que

a classificação empreendida por HUME tem por objetivo compartimentalizar, através de

designações, a origem das ideias. As ideias simples proveem sempre de impressões simples,

mas as ideias complexas não originam necessariamente em impressões complexas. Sem

embargo, ideias complexas como aquelas que são designadas por termos como «Justiça» ou

por expressões como «princípio da legalidade», «segurança jurídica» ou «Estado de Direito»

surgem a partir dos mesmos pressupostos, e são analisáveis da mesma forma, que ideias

complexas designadas pelas expressões «teoria da relatividade», «sistema solar» ou «corpo

celeste», ou por termos como «fotossíntese». HUME distingue entre ideias e impressões simples

e complexas, mas não entre realidades materiais e ideacionais, ou factos brutos e factos

mentais. Esta distinção, com efeito, não pode ser feita porque, apesar de as ideias e impressões

simples surgirem exclusivamente a propósito da realidade material, dos factos brutos físicos,

as suas contrapartes complexas versam tanto sobre a realidade inteligível como sobre a

realidade sensível, ou seja, tanto sobre factos mentais como sobre factos brutos. «Simples» e

«complexo» são, portanto, adjetivos que caracterizam impressões e ideias, mas que não têm

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como intuito dividi-las em «impressões e ideias sobre factos brutos» e «impressões e ideias

sobre factos mentais», até porque, como HUME diz na primeira linha do Tratado, ambas são

perceções do espírito humano, e uma perceção tanto pode surgir a partir de um facto bruto

físico como de um facto mental.

6. Os critérios de verdade apresentados por S. Tomás

Assim, não há nada que distinga o pensamento do físico do do jurista, por exemplo. O que os

distingue na sua atividade é, como S. TOMÁS DE AQUINO observa, «a diversidade de razões no

conhecer», que «determina a diversidade das ciências». É por isso que

[t]anto o astrônomo como o físico chegam à mesma conclusão: a terra é redonda. Mas o

primeiro se utiliza de um raciocínio matemático, que prescinde da matéria; ao passo que o físico

por um raciocínio que tem em conta a matéria. Nada impede que os mesmos objetos de que as

disciplinas filosóficas tratam, enquanto são conhecíveis à luz da razão natural, sejam tratados

por outra ciência.29

PHILIPP FRANK nota que esta passagem de S. TOMÁS é uma formulação de dois critérios

de verdade, isto é, de duas razões para acreditar na veracidade de uma declaração: a primeira

consiste no facto de podermos derivar resultados a partir de uma declaração que podem ser

verificados através de observação; dito por outras palavras, acreditamos numa declaração por

causa das suas consequências. Isto corresponde à formulação de conclusões efetuada a partir

da perspetiva do físico, que usa um raciocínio que tem em conta a matéria. FRANK exemplifica

dizendo que acreditamos nas leis de NEWTON porque podemos calcular a partir delas os

movimentos dos corpos celestes. Repare-se, por conseguinte, que, como afirmámos, estamos

perante um raciocínio filosófico especulativo que visa explicar o funcionamento de uma dada

realidade empírica, de um pedaço de matéria, de factos brutos.

Quanto ao segundo critério de verdade, a segunda razão para acreditarmos na

veracidade de uma declaração, a mesma prende-se com a circunstância de podermos acreditar

numa declaração porque esta pode ser derivada logicamente a partir de princípios inteligíveis.30

Isto corresponde à operação do matemático, que prescinde da matéria, mas que é igualmente

aplicável ao lógico, ao crítico literário, ao jurista, e, em suma, a todos os pensadores que

laboram não a partir de matéria, ou de factos brutos, mas sim a partir de princípios inteligíveis

criados e desenvolvidos pelo pensamento humano, ou seja, de factos mentais.

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Cada um destes critérios de verdade encontra aplicação num dos lados da summa divisio

da Filosofia. Assim, o primeiro critério de verdade é operativo nas ciências naturais, ao passo

que o segundo é aplicável nas denominadas ciências sociais e humanas. É um facto, como S.

TOMÁS refere, que o raciocínio empregue pelos cientistas naturais tem em linha de conta a

matéria, ao passo que o dos restantes filósofos prescinde da mesma. É, no entanto, necessário

que não nos deixemos impressionar demasiado pelo uso do termo «raciocínio» nesta instância,

que não tem em vista estabelecer uma distinção entre a forma de pensar dos cientistas naturais

e a dos demais filósofos. No caso dos cientistas naturais, o raciocínio tem em conta a matéria

porque esta é o seu objeto de estudo, e é precisamente por isso que os restantes filósofos

prescindem da mesma, dado que o seu objeto de estudo é imaterial. A distinção estabelecida

por S. TOMÁS, e realçada por FRANK, prende-se, na realidade, com a forma de verificação das

proposições avançadas por filósofos na elaboração das suas doutrinas e teorias, que varia

consoante o facto de o objeto de estudo ser empiricamente verificável ou não. Assim sendo, é

em virtude de o objeto de estudo das disciplinas que compõem as ciências exatas ser matéria

que as teorias formuladas pelos cientistas podem ser provadas ou afastadas através de

verificação empírica, ao contrário do que sucede nas disciplinas que formam as atualmente

chamadas ciências sociais e humanas, onde a demonstração das conclusões formuladas pelos

especialistas das várias áreas do saber não é feita através de qualquer tipo de verificação

empírica porque o objeto de estudo destas mesmas disciplinas é o pensamento humano, uma

realidade que não é material, mas sim ideacional. Assim, o objeto de estudo das ciências

naturais é externo à própria ciência, e, por isso mesmo, empiricamente verificável. Isto significa

que as ciências naturais são ciências de observação que registam a ocorrência de eventos sobre

a matéria, sem que, contudo, essas mesmas ocorrências e matéria estejam dependentes da

existência de uma ciência que as observe, registe e estude. Nas ditas ciências sociais e humanas,

por seu turno, o objeto de estudo das mesmas consiste em realidades originadas pelo

pensamento humano, em ideias, ou seja, é a própria disciplina social ou humana em questão

que cria aquilo que visa estudar, o que faz com que o objeto de estudo seja interno à própria,

e, por conseguinte, não seja empiricamente verificável, para além de que não pode existir sem

que a disciplina que o cria e estuda exista simultaneamente.

O tertium genus composto por áreas com características semelhantes às da indústria e

da tecnologia encontra-se, como seria de esperar, entre os dois polos acima mencionados, visto

que, aqui, os especialistas trabalham simultaneamente sobre factos brutos e mentais, sem

embargo de haver, consoante a situação em concreto, preponderância quer de um, quer de outro

tipo de facto.

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7. O «rigor» científico

Isto não significa, todavia, que as disciplinas filosóficas atualmente conhecidas como ciências

sociais e humanas não sejam, tal como as ciências naturais, igualmente passíveis de observação

e registo. O conselho fornecido por JOHN STUART MILL ao Estado no sentido de que os exames

sobre religião, política, ou outros assuntos controversos não devem estar dependentes da

verdade ou falsidade da opinião, mas sim do facto de que tal e tal opinião é defendida, por tais

razões, por tais autores, escolas ou igrejas31 demonstra que os objetos de estudo criados pelo

pensamento humano são, tais como os objetos de estudo criados pela natureza, passíveis de

observação e registo. Contudo, ao passo que os fenómenos naturais evoluem

independentemente do estudo que deles se faça, tanto no sentido de que a existência do objeto

estudado não se encontra relacionada com a existência da disciplina que o estude, como no de

que a observação não afeta aquilo que é observado, o fruto do pensamento humano, por seu

turno, não é passível de ser somente observado e registado; dito por outras palavras, a

manutenção do pensamento humano implica necessária e simultaneamente a sua modificação

porque, se uma realidade do domínio das ideias for encarada pura e simplesmente como um

facto histórico, a mesma estará condenada a desaparecer. Desta forma, estudar, por exemplo, o

conceito de Justiça, em virtude precisamente de este ser formulado por seres humanos, implica

ir muito além da mera observação e registo, sendo necessário desenvolvimento, reformulação

e, porventura, modificação do objeto original do estudo. A Justiça não é, deste modo, um objeto

de estudo extrínseco às disciplinas que a abordam, visto que não tem uma existência

independente da dessas mesmas disciplinas. A Justiça é criada e desenvolvida pela Ética, não

sendo indiferentes, para o seu estudo, as contribuições da Teologia ou do Direito, por exemplo.

Este estado de coisas conduz, por vezes, a uma conclusão a todos os títulos errada, e

que deriva de uma confusão precisamente entre o objeto de estudo de uma disciplina filosófica

e a forma de pensar sobre o mesmo. Com efeito, constatando-se que há disciplinas filosóficas

que tratam de factos brutos, e disciplinas filosóficas que incidem sobre factos mentais, certos

autores defendem que as primeiras são mais rigorosas do que as segundas, usando como

argumento para sustentar a distinção a possibilidade de verificação através de demonstração

empírica existente nas ciências naturais. Na medida em que não cremos que os defensores desta

posição ignoram que o rigor é uma característica do pensamento humano, e não de fenómenos

e eventos da natureza, a única explicação possível para sustentar a admissibilidade desta

hipótese encontra-se na assunção de que o pensamento científico é mais rigoroso do que o dos

demais filósofos na medida em que apenas os cientistas naturais poderão alcançar a verdade,

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dado que apenas na ciência da natureza as várias teorias e hipóteses postuladas podem ser

refutadas ou confirmadas não através de argumento, mas sim de verificação empírica. Isto

implica que se faça uma outra assunção, a saber, a de que a verdade só é cognoscível através

dos sentidos, e não do intelecto, o que revela ignorância da lição que acima extraímos da

Alegoria da Caverna, segundo a qual toda a realidade, tanto física como intelectual, se encontra

obscurecida por sombras. Como vimos, esta metáfora pretende significar que é impossível ao

pensamento humano chegar a um estado de elucidação que atinja a verdade objetiva e que

acarrete consigo o fim da Filosofia, i.e., a desnecessidade de prosseguir com a investigação

filosófica, e isto tanto no âmbito das ciências sociais e humanas como no das ciências naturais.

Contudo, ao fazerem-se estas duas assunções, chega-se à conclusão, manifestamente errada, de

que se pensa de uma forma rigorosa no âmbito das ciências naturais porque só aí é possível

apurar a verdade; no domínio das demais disciplinas filosóficas, todo o pensamento é

especulativo, e, por não ser empiricamente demonstrável, não é possível apurar a verdade; logo,

é um pensamento menos rigoroso.

Ao se fazer derivar o grau de rigor do pensamento da possibilidade de verificação

empírica das teses postuladas está-se a confundir o objeto de estudo com a forma de se pensar

acerca dele, e, de uma forma indevida, transpõe-se o rigor, que é uma característica do

pensamento, para o objeto de estudo. Segundo este prisma, uma área do saber é tão mais

rigorosa quanto a sua capacidade de demonstração empírica da veracidade das doutrinas,

hipóteses e teorias formuladas pelos peritos em questão.

Contudo, a partir do momento em que se entenda que o rigor, que é uma qualidade do

pensamento humano, não é comunicável ao objeto de estudo sobre o qual o pensamento incide

porque, pelas razões avançadas por HUME e S. TOMÁS, não se pensa de forma diferente quanto

à matéria e quanto à realidade ideacional, chega-se à conclusão de que uma investigação

filosófica acerca do significado de, por exemplo, termos e expressões como «Justiça»,

«princípio da legalidade», «segurança jurídica» ou «Estado de Direito», poderá ser mais, menos

ou tão rigorosa quanto uma investigação científica acerca do comportamento das células nos

corpos ou do funcionamento de placas tectónicas, mas isto depende exclusivamente do

empenho do investigador em questão, e não do assunto que é investigado.

Uma das razões para esta forma errada de atribuição às ciências naturais de um «rigor

científico» que supostamente se encontra ausente da restante investigação filosófica, e que

acaba por conduzir à conclusão de que a forma de pensar varia consoante o objeto de estudo

seja a matéria ou o pensamento humano, resulta possivelmente de uma interpretação incorreta

de algo que ARISTÓTELES diz, a saber, «que, de facto, não tem de se procurar um mesmo grau

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de rigor para todas as áreas científicas».32 À primeira vista, Aristóteles parece estar a conceder

que há disciplinas filosóficas mais rigorosas do que outras; a ser assim, não nos restaria outra

alternativa senão afirmar que o autor, nesta instância, diz algo incorreto. Contudo, parece-nos

que se trata de um mero lapso linguístico, visto que, posteriormente, ARISTÓTELES esclarece

que

[d]amo-nos (...) por satisfeitos se, ao tratarmos destes assuntos, a partir de pressupostos que admitem

margem de erro, indicarmos a verdade grosso modo, segundo uma sua caracterização apenas nos traços

essenciais. Pois, para o que acontece apenas o mais das vezes, com pressupostos compreendidos apenas

grosso modo e segundo uma sua caracterização nos seus traços essenciais, basta que as conclusões a que

chegarmos tenham o mesmo grau de rigor. Do mesmo modo, é preciso pedir que cada uma das coisas

tratadas seja aceite a partir dessa mesma base de entendimento.33

Ora, o exemplo porventura mais claro de assuntos cujos «pressupostos admitem

margem de erro» encontra-se nos assuntos criados pelo pensamento humano, e, por isso, na

medida em que há uma margem de erro, a verdade só pode ser indicada grosso modo. Assim,

não é por uma questão de rigor, ou de falta dele, que é mais controvertido apurar o pensamento

de Shakespeare manifestado em Hamlet do que chegar ao entendimento verdadeiro do processo

de fotossíntese nas plantas. Tanto críticos literários como cientistas que se empenhem em

descobrir as verdades encerradas nos seus respetivos objetos de estudo usam o mesmo rigor na

investigação, ainda que aos primeiros apenas lhes seja possível indicar a verdade grosso modo

(o que, em todo o caso, também é válido para os segundos, tendo em atenção o que foi dito a

propósito da Alegoria da Caverna); o que os diferencia é a maneira como a crítica literária e a

ciência natural tentam descobrir as verdades daquilo sobre que se debruçam, dado que essa

maneira tem que se ajustar às características do objeto estudado. Assim, apurar a verdade acerca

do funcionamento da fotossíntese nas plantas implica observação, que, no caso, se traduz em

efetuar experiências laboratoriais e registar os resultados das mesmas, ao passo que apurar o

verdadeiro pensamento de Shakespeare manifestado em Hamlet não implica observar reações

biológicas mas sim ler Hamlet, porventura as demais obras de Shakespeare, crítica literária

shakespeariana bem como outros textos que se revelem importantes durante a investigação, e,

a partir daqui, tentar perceber as alusões feitas pelo autor no texto. Tanto experiências

científicas como críticas literárias podem ser feitas com maior ou menor rigor, mas isso

depende exclusivamente do investigador em questão e não da área do conhecimento em que a

investigação se processa. O maior grau de consenso que indubitavelmente existe entre

cientistas quando se compara o grau de consenso presente entre especialistas das áreas do

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Direito, da ciência política, da literatura ou da psicologia, por exemplo, não deriva, por

conseguinte, de um suposto rigor inerente às ciências da natureza que faz empalidecer por

comparação o rigor das demais áreas do saber. Esse maior consenso deriva da circunstância de

haver muitos factos brutos sobre os quais os cientistas especulam que permitem a comprovação

ou refutação dessas mesmas especulações através de observação empírica. Nas áreas do saber

que se debruçam sobre realidades não apreensíveis pelos sentidos não há verificação empírica

possível porque o objeto da investigação, o pensamento especulativo, é simultaneamente

criação humana, e, por isso, é interno à disciplina que o estude. Nas ciências naturais, o

pensamento especulativo serve para entender o funcionamento da matéria. Nas demais áreas

do conhecimento, o próprio pensamento especulativo é constitutivo das mesmas.

Desta forma, aquilo a que se pretende aplicar a expressão «rigor científico» nada mais

é do que a constatação trivial de que as ciências naturais estudam matéria e fenómenos que não

são criados pelo ser humano e que não estão sob o seu controlo. Seria tentador aproveitar este

fio argumentativo para arguir que, na realidade, as ciências naturais nem sequer são «rigorosas»

no sentido erróneo que temos vindo a discutir, dado que não faltam exemplos históricos de

paradigmas «científicos», «rigorosos», que acabaram por se revelar totalmente falsos, como,

por exemplo, a conceção de que a Terra é o centro do Universo e que todos os restantes corpos

celestes giram à sua volta. Mas tal argumentação seria falsa porque implicaria confundir o

objeto de estudo das ciências naturais com a forma de entender esse mesmo objeto de estudo,

o que entraria em contradição com o que temos vindo a defender até aqui. É perfeitamente

possível, e seguramente provável, que o entendimento que os seres humanos têm de certos

fenómenos naturais seja falso, e que essa falsidade não tenha sido até agora detetada por ainda

não existir tecnologia adequada para se proceder à verificação empírica da veracidade de

determinadas teorias científicas. Note-se, portanto, que, nestes casos, as ciências naturais

encontram-se exatamente na mesma situação das demais disciplinas filosóficas, ou seja, os

cientistas não têm alternativa ao método que consiste em tentar explicar o funcionamento de

determinado fenómeno natural através da postulação de teorias especulativas insuscetíveis de

verificação empírica, do mesmo modo que os filósofos não podem demonstrar a veracidade

das suas doutrinas acerca do «Justo», do «Belo» ou do «Bom» apontando para um pedaço de

matéria e verificando se aquilo que eles defendem é verdade. Assim, também os cientistas

partem, por vezes, de «pressupostos que admitem margem de erro». Daqui conclui-se que o

raciocínio científico é filosófico, especulativo, e, portanto, assenta exatamente sobre as mesmas

bases que o raciocínio das chamadas ciências sociais e humanas.

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8. Conclusão

Cremos que os argumentos aduzidos ao longo deste Capítulo fornecem provas suficientes de

que o raciocínio do ser humano é em tudo idêntico no âmbito das ciências naturais, no das

ciências sociais e humanas, e no do tertium genus onde se inserem a indústria e a tecnologia.

O objeto de estudo diverge em cada um destes genera, dedicando-se as ciências naturais ao

estudo de objetos físicos, as ciências sociais e humanas ao de ideias formuladas pelo

pensamento humano, e o tertium genus à concretização de ideias em objetos físicos. Considerar

que existe um tertium genus parece-nos ser conceptualmente útil na medida em que, por um

lado, há ideias que não são passíveis de concretização física, como é o caso dos conceitos

designados pelas expressões «princípio da legalidade», «Estado de Direito» e «segurança

jurídica», ou pelo termo «Justiça», e, por outro lado, há ideias, as quais HUME adjetivaria de

«simples», como as designadas através dos termos «cão», «árvore» ou «mesa», que

manifestamente têm a sua origem na realidade física, externa ao pensamento humano. As áreas

do conhecimento que fazem parte do tertium genus não se compatibilizam integralmente com

nenhum dos dois lados da summa divisio tradicional, e, por isso, ao invés de estar a distorcer

conceitos para que os mesmos se encaixem num esquema conceptual que parece algo

desajustado ao estádio do pensamento atual, será preferível adaptar o esquema conceptual

àquilo que os conceitos parecem pedir.

Para além disso, as considerações efetuadas ao longo deste Capítulo demonstram que,

por terem a mesma estrutura conceptual, certos conceitos abstratos podem vir a ser

transformados em conceitos concretos. Há, no entanto, casos em que isto não é possível, como

acontece com os conceitos de «Justiça» e de «Estado de Direito», o que se deve à natureza da

essência do conceito e não a uma qualquer diferença na forma de se pensar sobre o mesmo. Ao

contrário do que acontece com o conceito de Justiça, foi possível concretizar o conceito abstrato

de aeronave num conceito concreto; no entanto, a maneira como pensamos acerca do conceito

de aeronave é em tudo idêntica à forma como pensamos sobre a Justiça. Se assim não fosse,

não seria possível transformar conceitos inicialmente abstratos em conceitos concretos; a forma

como a mente humana funciona não faz, contudo, com que seja possível estender esta

possibilidade de concretização a todos os conceitos abstratos, mas isto prende-se, como

referimos, com diferenças ao nível da natureza da essência de cada conceito, e não com

diferenças que operem ao nível do funcionamento da mente humana. Dito por outras palavras,

a discussão filosófica é encetada sempre nos mesmos moldes, independentemente de o objeto

de estudo ser um conceito abstrato ou um conceito concreto. Por isso, os problemas que se

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põem quanto à definição de termos e expressões que visam designar conceitos, que passaremos

desde já a analisar, são problemas que abrangem tanto termos abstratos como termos concretos.

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4

O Processo de Elucidação

1. Introdução

O argumento que desenvolveremos na parte final deste Capítulo, na secção 8, é o de que a

definição de um termo ou de uma expressão que vise designar um dado conceito, concreto ou

abstrato, é o culminar de um processo de elucidação que começa sempre a partir da postulação

das condições necessárias para que frases do tipo «A tem um direito» sejam verdadeiras. Isto

significa que a definição é o fim, não o começo, da elucidação de um conceito, e que o começo

passa sempre por analisar o funcionamento do termo ou expressão a definir em contextos onde

o termo ou expressão em questão são utilizados paradigmaticamente. Numa primeira fase desta

análise, verificam-se as condições necessárias para a veracidade, ou existência, da frase, que

contém o termo ou expressão tida por paradigmática. Numa segunda fase, pode surgir uma

particularidade que é inerente ao processo de elucidação de termos e expressões que façam

parte de ordens normativas, como por exemplo as ordens jurídicas ou morais, a saber, a de que

o termo ou expressão em questão desempenha uma função característica numa conclusão de

Direito, ou de Moral. Se isto se verificar, o processo de elucidação tem que tomar em conta

esta circunstância. No entanto, isto apenas sucede, como referimos, quando o processo de

elucidação incide sobre termos ou expressões que façam parte do vocabulário de ordens

normativas. Nos demais casos, a segunda fase, antes da possibilidade de se tentar formular uma

definição, passa por traduzir os termos ou expressões a definir por termos ou expressões que

aludam a realidades factuais, quer as mesmas sejam factos brutos ou um tipo de factos mentais,

como, por exemplo, factos institucionais. Como ficará claro após o final da exposição, quando

se trata de elucidar termos ou expressões jurídicos haverá, muitas vezes, que optar, na segunda

fase, por traduzir os termos ou expressões em questão através de outros termos ou expressões

que aludam a factos, ou, ao invés, por tentar compreender o seu papel no ato de decisão, jurídico

ou moral. Esta opção tem por base um juízo do intérprete, a saber, o de decidir se o termo ou

expressão a elucidar desempenha um papel característico numa conclusão normativa, ou se é

utilizado para descrever uma determinada factualidade. A expressão «direito de propriedade»

pode ser utilizada para ilustrar o ponto onde pretendemos chegar. Numa frase como «A tem

direito de propriedade sobre o imóvel X», a expressão que pretendemos ver elucidada, «direito

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de propriedade», desempenha o seu papel característico numa conclusão de Direito, isto é, a

conclusão segundo a qual determinado indivíduo tem direito de propriedade sobre o imóvel X.

De forma a que se elucide o significado da expressão, não se pode tentar traduzi-la em termos

factuais; tem que se ver qual o papel característico que desempenha nesta conclusão de Direito.

Contudo, numa frase como «o direito de propriedade é essencial para a defesa e realização do

Estado de Direito», a expressão «direito de propriedade» não está a ser usada com o intuito de

se poder vir a extrair dela uma conclusão de Direito, mas sim com a intenção de descrever uma

certa realidade, que, no exemplo fornecido, é institucional. Deste modo, elucidar o significado

da expressão neste contexto passa por tentar traduzi-la em termos factuais. Esta descrição do

processo de elucidação é muito geral, e, por isso, tem que ser ligeiramente modificada quando

nos deparamos com certos tipos de expressões cuja possibilidade de tradução para termos

factuais advém do surgimento de uma tradição formada por conclusões de Direito iguais ou

semelhantes entre si. Conforme desenvolveremos na secção 8, a expressão «direito subjetivo»

é um exemplo de expressões desse género.

Como demonstrámos no Capítulo 3, não há nenhuma forma específica de pensar sobre

termos concretos ou termos abstratos e, por isso, o processo de elucidação é idêntico para

ambos. No entanto, há que observar se esta operação, inerente e exclusiva de termos que

desempenham a sua função característica em atos de decisão, ocorre ou não. Em princípio, não

ocorre em relação a termos concretos, mas não se pode ver, nesta circunstância, uma

oportunidade de refutar a hipótese desenvolvida ao longo do Capítulo 3, dado que não há uma

oposição entre termos concretos e abstratos na medida em que muitos termos abstratos nunca

desempenham uma função característica num ato de decisão, e, por esse motivo, o seu processo

de elucidação não sofre quaisquer desvios em relação ao processo de elucidação de termos

concretos. A opção que há que tomar na segunda fase do processo de elucidação não é, por

conseguinte, baseada numa distinção entre termos concretos e abstratos, mas sim numa

distinção entre termos que, na frase paradigmática em análise, estão a desempenhar um papel

característico numa conclusão de Direito ou de Moral e termos que não o estão a fazer. A

descrição do processo de elucidação encetada na secção 8 apenas se preocupa com a elucidação

de termos e expressões jurídicos, pelo que não entraremos, aí, em comparações com o processo

de elucidação de termos concretos.

Começaremos este Capítulo por analisar o trabalho relevante para o tema em apreço de

dois jurisfilósofos cujos argumentos formam a base dos nossos, a saber, JEREMY BENTHAM e

H.L.A. HART, sem embargo de o nosso próprio argumento colidir, pelo menos parcialmente,

com os destes autores em virtude de ser uma tentativa de superação das suas deficiências e

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incongruências. BENTHAM opõe a definição à paráfrase, ou seja, argui que definir é algo

substancialmente diferente de explicar em contexto. HART, ao criticar a posição de BENTHAM,

releva algumas das suas inadequações, e propõe um método de elucidação alternativo à

paráfrase que, nominalmente, pode ser designado através do termo «definição», mas que,

substantivamente, não corresponde ao conceito de definição contra o qual BENTHAM se insurge.

Estes três prismas, que tanto BENTHAM como HART consideram como métodos distintos de

elucidação, são, ao invés, no nosso entender, partes integrantes de um único processo de

elucidação.

Para além de considerarem cada um destes três prismas como métodos de elucidação

distintos, BENTHAM argumenta que a definição é um método inadequado para definir termos

abstratos em geral, e termos jurídicos em particular, ao passo que HART, por seu turno, alega

que não se pode começar a elucidação de um termo jurídico através de definição, ainda que a

mesma possa, eventualmente, vir a ser possível para certos termos mediante certas

circunstâncias. Ambos os autores concordam, todavia, que a definição é apropriada para

elucidar termos concretos. Depreende-se do pensamento de BENTHAM que termos concretos

são passíveis de elucidação por definição e termos abstratos de elucidação por paráfrase; HART

não parece ser tão radical, extraindo-se das suas ideias que o autor considera que se podem

elucidar termos concretos e abstratos através de definição, mas que só é viável começar pela

definição quando se procura elucidar termos concretos, sendo necessário utilizar um outro

método para elucidar termos abstratos antes de se tentar formular uma definição.

Apesar de as teses de BENTHAM e de HART conterem algumas nuances entre si, no seu

conjunto as mesmas podem ser descritas sucintamente do seguinte modo: há três métodos de

elucidação, a saber, a definição per genus et differentiam, a paráfrase, e um terceiro método

inominado tanto por HART como por BENTHAM, mas que, por razões que ficarão claras a partir

do que é dito na secção 7, denominaremos, para facilidade de exposição, através da expressão

«método condicional». Segundo os autores, consoante as situações, quer a paráfrase, quer o

método condicional, devem ser usados para elucidar termos abstratos, reservando-se a

definição (pelo menos num primeiro momento) para a elucidação de termos concretos.

As hipóteses avançadas por BENTHAM e por HART são incompatíveis com alguns dos

argumentos apresentados ao longo do Capítulo 3 deste ensaio, desde logo por implicarem que

há uma diferença no modo de pensar acerca de conceitos concretos e de conceitos abstratos.

Segundo BENTHAM, a definição apenas é apta para elucidar o significado dos primeiros, mas

não o dos segundos. Para HART, os primeiros são imediatamente definíveis, enquanto que os

segundos só são eventualmente definíveis após aplicação do método condicional. Resulta, por

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conseguinte, das ideias de BENTHAM e de HART que, para estes autores, há qualquer coisa no

pensamento humano que faz com que a forma de perceber o que é uma mesa seja diferente da

maneira de perceber o que é um direito, por exemplo. No nosso entender, as dificuldades

inerentes à definição de conceitos abstratos, porventura maiores do que aquelas que se

verificam a propósito de conceitos concretos, encontram-se nas essências respetivas de cada

conceito, e não na forma de se pensar sobre eles. BENTHAM e HART arguem expressamente

que, com efeito, existe uma diferença que se pode localizar na própria essência dos conceitos

em questão, e, neste ponto, concordamos com os autores. O que, no nosso entender, é

manifestamente errado, e, por isso, de rejeitar, é a implicação de que a definição é o domínio

por excelência da elucidação de conceitos concretos, necessitando os conceitos abstratos de

outros métodos mais sofisticados. Ora, defender isto é ignorar que a elucidação é um processo

do pensamento humano, e não algo determinado e determinável pela essência dos conceitos;

todos os conceitos, concretos e abstratos, são, em tese, passíveis de definição, mas, antes de a

mesma ser formulada, é preciso começar pelo início, sendo que a etapa inicial do processo de

elucidação corresponde ao método condicional.

De forma a que se perceba melhor o que está em jogo, começamos este Capítulo por

expor acriticamente as ideias de BENTHAM e de HART entre as secções 2 e a primeira metade

da secção 7, adotando um discurso baseado na ideia, que visamos refutar, de que há três

métodos distintos de elucidação; seguidamente, encetaremos a análise crítica das propostas de

BENTHAM e de HART, o que é feito essencialmente na parte final da secção 7, formulando,

como começámos por referir, a nossa própria conceção do processo de elucidação a partir da

secção 8.

2. O método per genus et differentiam e a paráfrase de BENTHAM

O método de definição mais comum que existe, e que acabou por ficar conhecido como

«método tradicional», denomina-se, em lógica, através da expressão latina «per genus et

differentiam». Atente-se na seguinte explicação do esquema que permite a aplicação deste

método:

Qualquer classe de coisas que tenha membros pode ver esses mesmos membros divididos em

subclasses. Por exemplo, a classe de todos os triângulos pode ser dividida em três subclasses

não-vazias: triângulos equiláteros, triângulos isósceles e triângulos escalenos. A classe cujos

membros se encontram assim divididos em subclasses denomina-se por genus, e as várias

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subclasses são as suas espécies. Da forma como aqui são usados, os termos «genus» e «espécie»

são termos relativos, tais como «ascendente» e «descendente». As mesmas pessoas podem ser

ascendentes em relação aos seus filhos, mas também descendentes em relação aos seus pais.

Da mesma forma, uma classe pode ser um genus em relação às suas próprias subclasses, mas

também uma espécie em relação a uma classe mais ampla da qual é uma subclasse. Assim, a

classe de todos os triângulos é um genus relativo à espécie triângulo escaleno e uma espécie

em relação ao genus polígono. (…)

Uma classe é um conjunto de entidades que têm características comuns. Portanto, todos os

membros de um dado genus têm algumas características em comum. Todos os membros do

genus polígono (…) partilham a característica de serem figuras planas fechadas delimitadas por

segmentos de linha reta. (…)

Todos os membros de todas as espécies de um dado genus partilham algum atributo que os

torna membros do genus, mas os membros de qualquer uma das espécies partilham um outro

atributo que os diferencia dos membros de todas as outras espécies do genus em questão. A

característica que serve para os distinguir chama-se diferença específica. Ter seis lados é a

diferença específica entre a espécie hexágono e todas as outras espécies do genus polígono.1

O uso deste método na definição quer de termos abstratos quer de termos concretos,

isto é, tanto na definição dos termos que têm como referentes factos mentais como na dos

termos que se referem a factos brutos, decorre, e acaba por funcionar como mais uma

demonstração do, facto de que a forma de pensar sobre todas as disciplinas filosóficas é

idêntica.* No entanto, não faltam vozes que se manifestam contra a adequação deste método

para definir termos e expressões abstratos, nomeadamente os jurídicos. Um dos primeiros

autores, se não mesmo o primeiro, a argumentar neste sentido é BENTHAM. Conforme HART

observa, há muito que BENTHAM advertiu que os termos jurídicos exigem um método especial

de elucidação, tendo enunciado um princípio que é o começo da sabedoria nesta questão,

embora não seja o fim. Ele disse que nunca devemos tomar estas palavras por si sós, mas

considerar frases completas nas quais elas desempenham o seu papel característico. Não

devemos analisar a palavra «direito», mas sim a frase «Você tem um direito», não a palavra

* Contudo, o facto de a forma de pensar ser idêntica não garante, por si só, a correção de qualquer

argumento. Tal como referimos anteriormente, e justificaremos na secção 8, o método per genus et

differentiam não é um método em si mesmo, mas parte de um processo de elucidação. Fica, em todo o

caso, registado que há unidade no pensamento humano mesmo quando as ideias são incorretas.

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«Estado», mas sim a frase «Ele é membro ou oficial do Estado». O aviso de BENTHAM, conclui

HART, foi largamente ignorado e os juristas continuam a martelar em palavras individuais.2

Com efeito, o método de definição per genus et differentiam caracteriza-se por se apoiar

diretamente na intensão (com «s») dos termos definidos,3 ou seja, atribui o termo definido a

uma classe mais geral e, seguidamente, dá conta das características específicas que o separam

de outros membros da classe.4 Ora, BENTHAM opõe-se abertamente a este método porque o

mesmo não consegue, em muitos casos, satisfazer o propósito de definir, dado que no seio de

termos abstratos deparamo-nos rapidamente com termos que não têm genus superior. Quando

aplicada a estes termos, é manifesto que uma definição per genus et differentiam não consegue

produzir avanços: ou fica aquém do seu objetivo, ou revolve sobre si mesma, como numa

dízima periódica.5

Assim, diz BENTHAM, o método tradicional de definição é insuscetível de elucidar

termos abstratos, entre os quais se incluem as expressões «princípio da legalidade» e

«segurança jurídica», bem como os termos «Justiça» e «Direito», porque é redundante em

virtude de não haver um genus que seja superior ao nível onde o termo abstrato a definir se

situa. Desta forma, e uma vez que, para explicar as palavras dever, direito (right), poder, título,

e aqueles outros termos da mesma estampa que, segundo BENTHAM, proliferam tanto na ética

como na teoria do Direito,6 o método per genus et differentiam não é adequado, o autor sugere

um método alternativo, que o próprio designa por «paráfrase», e que descreve nos seguintes

moldes: pode-se dizer que uma palavra é explicada através de paráfrase quando não é essa

palavra sozinha que é traduzida por outras palavras, mas sim quando uma frase inteira, da qual

a palavra é parte, é traduzida por outra frase; as palavras da última expressam ideias simples,

ou são de forma mais imediata convertíveis em ideias mais simples do que aquelas da frase

original. Este é o único método, de acordo com BENTHAM, pelo qual quaisquer termos abstratos

podem ser explicados com propósitos instrutivos, isto é, em termos calculados para criar

imagens quer de substâncias percecionadas, quer de emoções, que são fontes a partir das quais

todas as ideias têm que proceder de forma a serem claras.7

BENTHAM opõe, portanto, paráfrase a definição, defendendo que a primeira é a única

forma apta a elucidar o significado de termos e expressões jurídicos na medida em que se trata

de uma explicação que opera, para usar o termo empregue pelo próprio autor, uma «tradução»

de termos característicos da ética e do Direito tendo em atenção não a palavra isoladamente,

em abstrato, tal como acontece quando se tenta defini-la, mas sim o contexto, a frase inteira,

ou, usando terminologia contemporânea, o ato de fala do qual a palavra faz parte, com o intuito

de simplificar as ideias aí contidas.

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Em suma, BENTHAM afirma que o método per genus et differentiam não é adequado

para definir os termos abstratos comumente utilizados na ética e no Direito em virtude de

muitos desses termos, alguns deles fundamentais para o funcionamento destas disciplinas, não

terem um genus superior, dado que os próprios, por natureza, se incluem em summa genera.

Assim, não é, pura e simplesmente, possível atribuir termos como «direito» ou «dever» a uma

classe superior àquela onde os mesmos originalmente se encontram e, através do contraste com

outros membros integrantes dessa hipotética classe superior, apontar as características

identificadoras, especificamente próprias de um direito ou de um dever simplesmente porque

não há quaisquer classes superiores às quais estes termos possam ser atribuídos.

3. O método per genus et differentiam: dificuldades identificadas por HART

HART, ao discutir este assunto, identifica, por seu turno, um outro fator que demonstra a

inadequação do método per genus et differentiam para definir certos termos jurídicos, fator

esse que, apesar de também se encontrar implícito no pensamento de BENTHAM, não é por este

formulado de forma clara e expressa, e que se prende com a circunstância de muitos termos

jurídicos se referirem a realidades cujas características não são tão claras, ou unívocas, como

sucede com as características de realidades corpóreas. Assim, o principal mérito do método

tradicional é, segundo HART, o de nos dar um grupo de palavras que podem ser sempre

substituídas pela palavra definida quando esta é usada, visto que a definição dá-nos um

sinónimo ou tradução abrangente para a palavra que nos intriga. Esta forma de proceder é

peculiarmente apropriada nos casos em que as palavras têm a função direta de representarem

uma coisa, ou qualidade, pessoa, processo ou evento, ou seja, quando as palavras se referem a

factos brutos. O método per genus et differentiam é, de acordo com HART, particularmente

apropriado para definir o tipo de palavras que desempenham a função aqui mencionada porque,

nestas situações, não nos encontramos mistificados ou baralhados em relação às características

gerais do assunto sobre o qual nos debruçamos, razão pela qual pedimos uma definição

simplesmente para localizarmos dentro deste tipo ou classe geral que nos é familiar um outro

tipo ou classe subordinado.8 A definição per genus et differentiam é, por conseguinte, útil para

ordenar conceptualmente termos cujos referentes não colocam quaisquer dificuldades ao

entendimento porque se trata de referentes físicos portadores de «características objectivas que

podem ser reconhecidas por todos os indivíduos»; assim, sendo «a realidade física (…)

partilhável através dos sentidos», o facto de só ser «cognoscível através do pensamento»9 não

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coloca dificuldades de monta, visto que as características próprias dos factos brutos que são

referentes dos termos concretos funcionam como limites ao pensamento, impedindo-o, na sua

tarefa de definição per genus et differentiam, de ultrapassar a fronteira da definição, i.e., da

enumeração das características que fazem parte do objeto que o termo concreto visa designar,

e entrar no domínio da especulação pura, isto é, do pensamento criador de factos mentais.

Ora, quando a tentativa de definição incide sobre termos jurídicos o método em análise

falha porque deparamo-nos com situações onde nos encontramos confundidos acerca da

categoria geral à qual qualquer coisa pertence e acerca de como é que um determinado tipo de

expressão geral se relaciona para com o facto, e não somente acerca da localização dentro dessa

categoria.10 Assim, ao passo que não temos dificuldade em integrar o termo «cadeira» no genus

mobília, ou o termo «cão» no genus «animal», precisamente por não nos encontrarmos

confundidos acerca das noções gerais de mobília ou de animais,11 temos imensa dificuldade

em definir o que é um «direito», um «dever», a «legalidade» ou a «Justiça» através do método

per genus et differentiam porque não sabemos exatamente a que classe é que estes termos

poderiam ser atribuídos. A dificuldade não se encontra, por conseguinte, apenas no facto de

que, conforme BENTHAM argumenta, termos como «direito» ou «dever» possivelmente já

serem, à partida, summa genera e, por isso, não poderem ser atribuídos a uma classe superior;

como HART observa, a dificuldade é muito mais profunda dado que, por vezes, não é sequer

possível apurar a que classe é que determinados termos poderiam ser atribuídos.

4. O erro esconde-se nas generalidades

As duas dificuldades acima identificadas com que a definição per genus et differentiam se

depara não se circunscrevem ao Direito; com efeito, nas considerações de BENTHAM que temos

vindo a discutir o autor refere que dificuldades idênticas ocorrem na ética. De facto, um olhar

abrangente sobre a obra de BENTHAM não só confirma, como alarga o escopo das áreas do saber

onde, segundo o próprio, as mesmas dificuldades se verificam. Não é, por isso, surpreendente

que a solução proposta por BENTHAM, o método de definição de termos jurídicos por paráfrase,

seja, na realidade, uma solução que tem em vista superar estas dificuldades no tocante à

investigação filosófica in toto. Não estamos perante uma sugestão que se configura meramente

como um método de definição jurídica alternativo ao método per genus et differentiam, mas

sim diante de uma proposta que tem o intuito de ajudar a esclarecer o que é que os filósofos

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querem dizer ao utilizar os termos abstratos próprios da área do saber sobre a qual exercem a

sua atividade.

Ora, BENTHAM encontra-se convencido de que o método de definição por si designado

por «paráfrase» é necessário e aplicável a todas as áreas do conhecimento que lidem com

termos abstratos porque o seu pensamento é fruto, como nota MILL, de uma máxima segura,

isto é, de uma máxima que todos aqueles que pensam as questões de perto sempre sentiram,

mas que ninguém antes de BENTHAM aplicou tão consistentemente, e que consiste no facto de

que o erro se esconde nas generalidades.12 MILL dá conta de dois fatores que fundamentam a

veracidade desta máxima: o primeiro é o de que a mente humana não é capaz de abraçar um

todo completo até ter sondado e catalogado as partes que compõem esse todo.13 É, por

conseguinte, erróneo partir do geral para o particular, do todo para a parte, na medida em que

a mente humana, de forma a poder vir a compreender o todo, tem que fazer o percurso inverso,

ou seja, tem que começar na parte e entender bem o seu funcionamento precisamente no

contexto próprio, particular, da parte em questão; é o entendimento das várias partes que

compõem um todo que permite que, através da apreensão correta do particular, se venha a ter

uma visão adequada do geral. Tentar proceder de modo oposto levará invariavelmente ao erro.

O segundo fator apontado por MILL é o de que abstrações não são realidades per se, mas sim

um modo abreviado de expressar factos, e o único modo prático de lidar com elas é ligá-las aos

factos (quer estes sejam da experiência ou da consciência) dos quais elas são a expressão.14

Neste sentido, aquilo que MILL designa por abstrações são, tal como vimos supra, na secção 2

do Capítulo 3, conceitos. O conceito é, por conseguinte, uma abstração de um objeto, daquilo

a que MILL se refere como «realidades per se», ou «factos», que podem ser «da experiência»

(brutos) ou «da consciência» (mentais). Ora, o que MILL está aqui a dizer é que, para BENTHAM,

a única forma de entender uma abstração, um conceito, é perceber os factos que a abstração em

causa visa expressar. Assim, se se quiser entender qual o sentido e alcance de um determinado

conceito é necessário, tendo em atenção a forma como a mente humana funciona, perceber os

factos que o conceito visa expressar, isto porque os factos são sempre uma instância do

particular, ou seja, cada facto em si mesmo é uma parte, ao passo que o conceito, por ser uma

abstração aglutinadora de vários factos diferentes, é geral, é um todo.

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5. Abstrações e realidades per se

As considerações da secção antecedente não tornam, no entanto, evidente algo que é importante

deixar claro. À primeira vista, MILL parece estar simplesmente a dizer que abstrações são uma

forma utilizada pelos seres humanos para se referirem a factos, o que implicitamente nos pode

levar a concluir, numa leitura apressada, que há uma relação de identidade entre abstrações e

factos, isto é, que uma abstração e um facto são a mesma coisa, e que a única diferença entre

ambos se prende com a circunstância de a abstração ser uma forma do discurso elaborada com

o intuito de se fazer referência a realidades factuais. A ser assim, isto teria a consequência,

entre outras, de deitar por terra a tese de que os factos são partes de um todo aglutinador, os

conceitos. Uma análise mais cuidadosa das palavras de MILL revela, contudo, que esta não é a

ideia que o autor pretende transmitir. Com efeito, MILL refere que abstrações não são realidades

per se, mas sim um modo abreviado de expressar factos, ou seja, abstrações, ou conceitos,

funcionam, em relação aos factos, como as notações da matemática funcionam em relação à

realidade que visam descrever. Assim, tal como as notações «a», «b» e «c» são utilizadas em

referência a constantes, e as notações «x», «y» e «z» em referência a variáveis, sem que,

contudo, se saiba, em abstrato, a que constante ou a que variável é que «a» e «x»,

respetivamente, se referirão, abstrações, ou conceitos, denotados por palavras como «direito»,

«dever», «legalidade», «Estado», «Justiça», etc. também se referem a determinadas realidades,

a factos (institucionais), sem que, todavia, seja possível, ao nível da abstração, apurar o que é

as palavras visam significar. É por isso que se pode dizer, sem se cair em qualquer paradoxo

ou contradição, que as abstrações são um modo abreviado de expressar factos; «abreviado»

não significa, neste contexto, «reduzido», i.e., que falta algo. Significa, isso sim, «compacto»,

ou seja, todos os factos estão contidos na abstração, no conceito, mas, por estarem

compactados, não são imediatamente discerníveis. Perceber o alcance de uma abstração

implica um trabalho interpretativo que é efetuado com o intuito de descompactar os factos que

a abstração visa expressar, e, precisamente por se tratar de uma interpretação, encontra-se

sujeita à possibilidade de erro que é inerente à atividade interpretativa.

A forma como MILL exprime as suas ideias é, todavia, um pouco elíptica, o que a torna

imprecisa, dado que, ao explicar que abstrações não são realidades per se, mas sim uma forma

abreviada de nos referirmos a factos, MILL aproxima simultaneamente o entendimento do que

é uma abstração ao entendimento do que é um conceito, tal como o mesmo é explanado por

BRAZ TEIXEIRA,15 mas também ao entendimento do que são «palavras» e «termos». Dito por

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outras palavras, a maneira como MILL usa e caracteriza o termo «abstração» identifica-o tanto

com a noção de «conceito» como com a noção de «termos» e de «palavras». No entanto, e

recordando a advertência de BRAZ TEIXEIRA, «[r]eferindo-se, embora, sempre a um objecto,

sem, contudo, dele afirmar ou negar qualquer coisa, o conceito não se confunde nem coincide

com ele, como é também distinto da palavra ou do termo que o diz, que não é mais do que a

sua expressão convencional e simbólica».16 Um conceito é, portanto, algo distinto de uma

palavra ou de um termo, visto que, recordando igualmente RAZ, os conceitos são a forma como

concebemos aspetos do mundo, encontrando-se entre, de um lado, as palavras e os seus

significados, nas quais são expressados, e, de outro lado, a natureza das coisas às quais se

aplicam.17 Por serem mais detalhadas, as explicações de BRAZ TEIXEIRA e de RAZ são mais

claras e conceptualmente mais corretas quando comparadas com a de MILL, que, apesar de

tudo, não é totalmente errada, pecando apenas por condensar, sob o termo «abstração», aquilo

que se entende tanto por «conceito» como por «palavra».

Esta pequena imprecisão da parte de MILL não afeta, contudo, o seu argumento em

relação a BENTHAM, dado que a operatividade do mesmo não depende da adequada destrinça

entre um conceito e a palavra usada para o exprimir, visto que o ponto onde MILL quer chegar

é somente o de que, para BENTHAM, os argumentos nos quais as questões de maior importância

no domínio da moral e da decisão política assentavam não eram razões, mas sim alusões a

razões, expressões sacramentais, através das quais era feito um apelo sumário a um qualquer

sentimento geral da humanidade, ou a alguma máxima de uso familiar, que poderia ser

verdadeira ou não, mas cujas limitações nunca tinham sido criticamente examinadas por

ninguém.18 MILL refere-se a expressões como «liberdade», «ordem social», «constituição», «lei

da natureza» ou contrato social,19 no domínio da política, não deixando de advertir que a ética

tinha expressões análogas.20 Em suma, MILL observa que BENTHAM notou que, no seu tempo,

as discussões no domínio da política e da ética redundavam invariavelmente em abstrações,

independentemente de as mesmas serem conceitos ou palavras (distinção que, como vimos,

não preocupa MILL), mas nunca em objetos, ou em factos (que, no âmbito dos temas em apreço,

seriam institucionais). Ora, diz MILL, isto satisfazia outras pessoas, mas não BENTHAM. Ele

exigia algo mais do que uma opinião enquanto razão para uma opinião. Quando ele se deparava

com uma expressão usada enquanto argumento a favor ou contra o que quer que fosse, ele

insistia em saber o que é que a mesma significava; se fazia apelo a algum padrão, ou se intimava

uma qualquer questão de facto relevante para o assunto em discussão; e se ele não descobrisse

que a expressão fazia uma destas coisas, tratava-a como uma tentativa da parte do disputante

em impor o seu sentimento individual a outras pessoas, sem lhes dar uma razão para tal.21

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Assim, segundo MILL, e tal como referimos supra, para BENTHAM a única forma de

descobrir o significado de uma expressão, se a mesma fazia apelo a algum padrão, ou se

intimava uma qualquer questão de facto relevante para a discussão em apreço, é explicar essa

mesma expressão através de paráfrase, e não pura e simplesmente defini-la através do método

per genus et differentiam, visto que, pelos motivos apontados por MILL, a chamada definição

tradicional tem sempre, em função da sua generalidade, o intuito de se manter válida, operativa

e verdadeira independentemente do contexto em que o termo ou expressão em questão sejam

utilizados, ao passo que a experiência demonstra que proceder desta forma é contraproducente

porque termos como «direito», «dever», «Justiça», etc. não têm o mesmo significado em todos

os contextos em que a sua utilização é possível. Na medida em que a paráfrase opera ao nível

do concreto, visto que toma em consideração o contexto em que o termo ou expressão a

parafrasear se encontra inserido, a mesma tem, ao nível da compreensão conceptual, a

vantagem, em relação à definição tradicional, de ser mais clara, dado que não tem uma

pretensão de generalidade. Todo o argumento de MILL, aqui exposto, demonstra que esta forma

de pensar não era exclusiva da metodologia jurídica de BENTHAM, mas sim uma característica

da sua metodologia filosófica em geral.

6. Refutação da tese do terceiro Capítulo?

Os argumentos de BENTHAM, bem como os comentários de MILL e de HART sobre os mesmos,

parecem refutar a tese por nós avançada ao longo do terceiro Capítulo deste trabalho, segundo

a qual não há uma forma específica de pensar no âmbito das ciências naturais distinta do que

sucede nas demais disciplinas filosóficas. Se, de facto, BENTHAM tiver razão, e o método de

elucidação dos termos abstratos em geral, bem como dos termos jurídicos em particular, passar

por uma negação da aplicação do método de definição per genus et differentiam, que é um

método que aparenta ser perfeitamente adequado para definir termos concretos mas inapto para

definir termos abstratos, a favor da aplicação do método parafrástico, esse sim apropriado para

elucidar termos abstratos, então há uma diferença na forma de pensar entre as ciências naturais

e as demais disciplinas filosóficas que advém do próprio objeto de estudo, na medida em que

os termos concretos têm um método de definição que lhes é apropriado em virtude de se

referirem a realidades empíricas, que, por serem sensorialmente verificáveis, impedem que

entremos numa situação onde nos encontramos confundidos acerca da categoria geral à qual

qualquer coisa pertence e acerca de como é que um determinado tipo de expressão geral se

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relaciona para com o facto,22 que parece ser a situação típica das demais áreas filosóficas do

saber, provocada pela ausência de demonstração empírica das teorias desenvolvidas no seu

seio.

Todavia, a oposição estabelecida por BENTHAM entre o método por si designado por

paráfrase e o método per genus et differentiam não esgota tudo o que há a dizer sobre o assunto.

Recorde-se que, como mencionámos supra, ao observar que há muito que BENTHAM advertiu

que os termos jurídicos exigem um método especial de elucidação, HART menciona que a

solução apresentada por BENTHAM enuncia um princípio que é o começo da sabedoria nesta

questão, embora não seja o fim.23 Esse princípio, estamos em crer, é o de que, com efeito, a

elucidação dos termos e expressões jurídicos deve começar através de uma análise ao contexto

em que os mesmos são utilizados. Assim, como já tivemos ocasião de referir, perante uma

palavra como «direito» ou «dever» ou «Estado» a mesma deve ser inserida numa frase como

«você tem um direito», na qual desempenha um papel característico, e, seguidamente, deve-se

traduzir a palavra para aquilo a que, diz HART, chamamos termos factuais,24 ou seja, termos

que se referem quer a factos brutos, quer a factos institucionais.25 Deste modo, ao invés de se

traduzir palavra a palavra, traduz-se frase a frase. A diferença, portanto, entre este método de

entender termos jurídicos, a que BENTHAM dá o nome de «paráfrase», e o método de definição

per genus et differentiam é a seguinte: o método tradicional é útil para arrumar

conceptualmente termos unívocos, cujo significado não oferece dúvidas. O método

parafrástico, na medida em que tenta traduzir palavras para termos factuais, é um método que

visa tornar os termos abstratos unívocos.

A inferência que se pode retirar a partir destas considerações de HART é a de que, para

o autor, na medida em que termos concretos têm um referente físico, é possível observar e

verificar empiricamente as características do referente, e, por isso, não é preciso começar o

processo de definição através da análise do ato de fala em que o termo ou expressão se insere.

HART observa, de passagem, que o método de definição per genus et differentiam seria

operativo no Direito se os termos jurídicos abstratos se pudessem tornar unívocos, ou seja, seria

útil numa fase em que as preocupações dos juristas apenas incidiriam na arrumação conceptual

de termos e expressões que não ofereceriam quaisquer dúvidas. Caso contrário, o método

tradicional seria, como, de resto, é, extremamente enganador.26 O que acontece é que a

linguagem das ciências naturais é composta quase exclusivamente por termos unívocos, o que

faz com que a expressão «Canis Lupus» seja imediatamente entendível e discernível da

expressão «Canis familiaris» independentemente do contexto que envolva o ato de fala onde

as expressões sejam utilizadas. Isto demonstra, incidentalmente, que não há razão para se

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manter que existe uma diferença na forma de pensar no âmbito das ciências naturais e no das

demais disciplinas filosóficas. A única implicação que se pode extrair, em relação a este

assunto, dos argumentos de BENTHAM e de HART é a de que a inexistência de demonstração

empírica nas chamadas ciências sociais e humanas faz com que o percurso que permite a

aplicação da definição per genus et differentiam a termos e expressões abstratos seja mais

difícil e que tenha que começar numa etapa, a da análise em contexto, que, para HART, é

dispensável no âmbito das ciências naturais.

No entanto, se nos interrogarmos acerca de como é que um termo adquire a sua

univocidade, verificamos que não há termos unívocos ab initio, e, por isso, também no âmbito

das ciências naturais, cuja linguagem é composta, em grande medida, por termos concretos, é

necessário, num momento inicial, perceber o seu sentido em contexto. A grande diferença que

existe entre termos concretos e abstratos, que não é uma diferença ao nível da forma de os

pensar ou do processo de elucidação dos mesmos, prende-se com o facto de termos que

designam conceitos abstratos estarem muito mais vulneráveis a uma perda, ou mudança, de

sentido, do que acontece com termos que designam conceitos concretos. O termo concreto que

visa designar o conceito concreto «árvore», por exemplo, não será imutável, mas é duradouro

ao ponto de conferir uma ilusão de imutabilidade. Para que o sentido de um termo que designa

um conceito concreto mude, as características do seu referente físico têm que mudar; o grau de

mudança do sentido do termo em questão acompanha o grau de mudança do objeto ao qual se

refere. Assim, se, por hipótese, os cães, no seu processo de evolução, adquirissem asas e a

capacidade de voar, o conceito concreto «cão» sofreria uma modificação que provocaria uma

alteração do mesmo grau no termo concreto «cão». Na medida em que, por regra, os conceitos

concretos não são atingidos por mudanças radicais num curto espaço de tempo, os termos

concretos que os visam designar, ao sofrerem alterações mínimas, conferem a ilusão de

imutabilidade.

Isto deve-se, em parte, ao facto de objetos físicos não serem, pela sua natureza,

suscetíveis de modificações profundas num curto espaço de tempo. Com conceitos abstratos,

no entanto, existe uma maior maleabilidade. O conceito de Justiça, por exemplo, é de tal forma

equívoco que os autores, ao procurarem defini-lo, independentemente de respeitarem, ou não,

o processo de elucidação começando pela sua análise em contexto, veem-se invariavelmente

forçados a discuti-lo nos seus fundamentos. Ora, quando uma coisa corpórea, um objeto físico,

sofre uma alteração, esta, por ser necessariamente mínima, não requere que se analisem de

novo os fundamentos do conceito concreto em questão. Na medida em que os conceitos

abstratos sofrem alterações de alguma monta regularmente, os seus fundamentos são analisados

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amiúde. Note-se, todavia, que alterações substanciais que provoquem um reexame dos

fundamentos não equivalem a alterações de paradigma que tornem o conceito abstrato

irreconhecível. As várias teorias da Justiça que foram sendo elaboradas ao longo da História

das Ideias não prescindem, por exemplo, da característica da proporcionalidade. Assim, poder-

se-á considerar a vingança, por exemplo, como sendo justa ou injusta, mas nenhuma teoria da

Justiça que considerasse o ato de vingança como justo em abstrato defenderia que o mesmo

manter-se-ia justo se, na sua aplicação concreta, fosse desproporcionado. Por seu turno, teorias

da Justiça que proscrevem a vingança privada a favor da penalização através do Direito tendem

a considerar o princípio da proporcionalidade ainda com mais acuidade.

7. O método condicional

Tendo em atenção tudo aquilo que foi dito ao longo deste capítulo até ao momento, poder-se-

ia pensar que a metodologia mais apropriada para se elucidar o sentido de termos e expressões

jurídicas seria composta por duas fases: numa primeira instância, através da paráfrase, apurar-

se-ia o que é que os termos e expressões jurídicos significam no contexto das frases em que

são utilizados; na medida em que se pudesse identificar um conjunto paradigmático de frases,

reunir-se-iam as características principais das realidades incorpóreas «direito», «dever»,

«legalidade», «Justiça», «Estado», etc. Dito por outras palavras, os termos jurídicos deixariam

de ser equívocos para passarem a ser unívocos. Ao contrário do que sucede com o método

tradicional, a univocidade não emanaria de palavras individuais, mas sim dos contextos que

proporcionariam o surgimento das frases paradigmáticas das quais os termos e expressões

jurídicas fazem parte. Desta forma, frases como «A tem o direito de propriedade sobre o imóvel

X» ou «B tem direito a que lhe seja paga a quantia Y» tornariam o termo «direito» unívoco,

dado que este tipo de frases permitiria identificar quais as características da coisa abstrata à

qual nos queremos referir através do termo «direito». Seguidamente, já em posse destas

características, seria possível arrumar conceptualmente os termos «direito», «dever», etc.

através do método per genus et differentiam, pelo menos nos casos em que os termos abstratos

em questão não fossem summa genera.

Há, no entanto, uma objeção que HART levanta a BENTHAM e, inerentemente, ao

raciocínio aqui exposto, e que demonstra por que razão HART considera que o princípio

enunciado por BENTHAM é o começo, mas não o fim, da sabedoria nesta questão. A objeção

consiste na observação de que a paráfrase distorce muitas palavras jurídicas como «direito» ou

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«dever» cujo papel característico não é desempenhado em declarações de facto mas em

conclusões de Direito, o que faz com que, para HART, não seja possível parafrasear estas

palavras jurídicas traduzindo-as em termos factuais, e, por isso, conclui o autor, quando

BENTHAM oferece uma paráfrase deste género verifica-se que a mesma não é, de todo, uma

paráfrase.27

Cremos que este argumento tem uma implicação com a qual HART não concordaria se

tivesse pensado na mesma, e que consiste no seguinte: ao defender que termos e expressões

jurídicos desempenham o seu papel característico em conclusões de Direito, e não em

declarações de facto, que seriam declarações a propósito de factos institucionais, HART não

reconhece a importância que os termos e expressões jurídicos têm para manifestar ideias

através de proposições como, por exemplo, «o direito de propriedade é uma das principais

conquistas civilizacionais da democracia e do Estado de Direito», que é uma declaração de

facto na qual se faz referência a um facto institucional, o direito de propriedade. Em frases

como esta, não se vislumbra qualquer conclusão de Direito, visto que, enquanto subespécie dos

atos de decisão, uma conclusão de Direito teria, por exemplo, que atribuir o direito de

propriedade sobre qualquer coisa a uma das partes de um litígio jurídico. A frase em questão

fala, no entanto, apenas do direito de propriedade e da sua importância enquanto facto

institucional nas sociedades contemporâneas, e, contudo, «direito de propriedade» é uma

expressão jurídica, não dependendo esta classificação da mesma do facto de um falante a usar

num ato de fala que seja uma declaração de facto, ou de um ato de fala que sirva para manifestar

uma conclusão de Direito.

Há, portanto, circunstâncias em que os termos e expressões jurídicos desempenham um

papel característico em declarações de facto, e circunstâncias em que os termos e expressões

jurídicos desempenham um papel característico em conclusões de Direito. Na medida em que

BENTHAM porventura nunca se apercebeu da distinção, nunca tentou limitar a sua teoria da

paráfrase a termos e expressões jurídicos cujo papel característico se insere em declarações de

facto, e HART estaria correto se a sua crítica consistisse apenas numa chamada de atenção para

a inadequação de parafrasear termos e expressões jurídicos cujo papel característico é

desempenhado no âmbito de conclusões de Direito. HART, no entanto, vai, quanto a nós

erradamente, mais longe ao asseverar que termos e expressões jurídicos desempenham o seu

papel característico em conclusões de Direito, não reconhecendo que os mesmos também têm

um papel a desempenhar em declarações de facto institucional.

É, no entanto, necessário entender que os termos e expressões jurídicas em questão não

desempenham simultaneamente o seu papel característico em declarações de facto e em

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conclusões de Direito. Podem desempenhar ora um, ora outro papel, mas não os dois ao mesmo

tempo. O contexto que envolve o ato de fala onde o termo ou expressão seja usado distingue

qual o papel que o mesmo desempenhará. É o que acontece, por exemplo, com a expressão

«direito de propriedade» quando inserida nas frases «o direito de propriedade é uma das

principais conquistas civilizacionais da democracia e do Estado de Direito» e «A tem o direito

de propriedade sobre o imóvel X». Tal como é usada na primeira destas frases, a expressão

«direito de propriedade» visa aludir à instituição social «propriedade», ou seja, a um facto

institucional, e, por isso, desempenha o seu papel característico numa declaração de facto.

Todavia, na segunda frase aqui mencionada, a expressão «direito de propriedade» refere-se a

uma realidade que desempenha um papel característico numa conclusão de Direito. Este ato de

decisão seria o resultado de um raciocínio que, no exemplo apresentado, poderia ser exposto

do seguinte modo: tendo em atenção a existência (física) de coisas corpóreas às quais damos o

nome de «imóvel» em virtude de se encontrarem fixas, de forma permanente, no solo, a

existência (mental) de uma instituição social denominada pelo termo «propriedade», e de regras

(cuja existência é igualmente mental) que prescrevem as condições sob as quais determinadas

pessoas são detentoras de um «direito de propriedade» sobre bens imóveis, conclui-se que, em

termos jurídicos, «A» tem um «direito de propriedade» sobre o imóvel «X» em virtude de

terem acontecido os factos necessários à aquisição, por parte de «A», desse direito sobre o

imóvel em questão, tal como previsto pelas regras jurídicas aplicáveis que, por seu turno, só

são possíveis porque existe uma instituição social denominada «propriedade». A mesma

expressão, por conseguinte, pode ser usada tanto a propósito de declarações de facto como para

obter conclusões de Direito, sendo que o contexto da utilização torna claro qual dos usos é que

o autor da frase em questão tem em mente.

Em todo o caso, a observação feita por HART, segundo a qual BENTHAM ignora, na

sua explicação do método parafrástico, a diferença entre declarações de facto e conclusões de

Direito é pertinente porque demonstra que tentar fazer aquilo que BENTHAM aconselha, isto

é, traduzir os termos abstratos de forma a chegar aos factos «da experiência ou da

consciência» que, como MILL observa, BENTHAM julga que os termos abstratos têm sempre

por função aludir, não é indicado quando o que se visa é alcançar uma conclusão de Direito.

No entanto, HART chama a atenção para uma discrepância entre aquilo que BENTHAM

habitualmente faz e o método por si sugerido, começando por observar que, se se entender

por «definição» a atividade de fornecer um sinónimo que não nos confunda igualmente,

então palavras como «direito», «dever» ou «Estado» não podem ser definidas. HART

assevera, todavia, que há um método de elucidação de aplicação bastante geral ao qual

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podemos, diz o autor, chamar definição, se assim o desejarmos, e que era praticado por

BENTHAM e por outros autores, embora o mesmo não fosse anunciado por nenhum deles.28

O método de que HART fala pode ser retirado de várias passagens da obra de Bentham.

Atente-se, a título de exemplo, no seguinte trecho, que visa explicar os termos «poder» e

«direito» bem como a correlação entre ambos:

Os poderes, embora não sejam uma espécie de direitos (visto que os dois tipos de entidades fictícias,

designadas pelos termos poder e direito, são totalmente díspares), ainda assim encontram-se de tal forma

sob os direitos, que onde quer que seja que a palavra poder possa ser empregue, a palavra direito também

pode ser empregue: A razão é a de que, onde quer que se possa falar de uma pessoa como tendo um

poder, pode-se igualmente falar dela como tendo um direito a esse mesmo poder: mas a proposição

inversa não é verdadeira: há casos em que, apesar de se poder falar de um homem como tendo um direito,

não se pode falar dele como tendo um poder, nem fazer qualquer menção à palavra [direito]. (…)

Em relação a estas palavras, portanto, e a várias outras, tais como posse, título, e outras do género, que

em termos de significado se encontram inseparavelmente ligadas a elas, em vez de demonstrar a

exposição em si mesma, contentar-me-ei em dar uma ideia geral do plano que prossegui ao construir [a

exposição]. Poder e direito, bem como a tribo completa de entidades fictícias desta estampa, são todas,

no sentido que lhes pertence num livro doutrinário, os resultados de uma determinada manifestação da

vontade do legislador em relação a um dado ato. Ora, cada uma destas manifestações ou é uma proibição,

ou um comando, ou as respetivas negações. (…) Assim, para volver a expressão da regra mais concisa,

o comando de um ato positivo pode ser representado através da proibição do ato negativo que se lhe

opõe. Assim, para saber como explicar um direito, observe-se o ato que, nas circunstâncias em questão,

seria uma violação desse direito: a lei cria o direito proibindo esse ato. O poder, quer seja sobre a própria

pessoa de um homem, quer sobre outras pessoas, ou sobre coisas, é constituído, em primeira instância,

pela permissão: mas, tanto quanto a lei toma uma parte ativa na corroboração [desse poder], o mesmo é

criado pela proibição, e pelo comando: através da proibição dos atos (da parte de outras pessoas) que se

julguem incompatíveis com o exercício [do poder]; e, em certas ocasiões, através do comando dos atos

que se julguem necessários para remover os obstáculos que impedem o seu exercício.29

Esta passagem corrobora as razões pelas quais BENTHAM se manifesta contra o método

de definição per genus et differentiam, o que o leva a procurar um método alternativo de

elucidação de termos abstratos. Parece-nos, por outro lado, que a passagem esclarece os

motivos que levam BENTHAM a anunciar, ainda que erradamente, que esse método alternativo

é o parafrástico. Tal como acontece na paráfrase, o método exemplificado por BENTHAM na

descrição do que é um «poder» e um «direito» também analisa o funcionamento dos termos no

seio de determinado contexto, embora não seja uma paráfrase porque não se traduz os termos

abstratos em questão, no caso «poder» e «direito», em termos factuais. O que acontece, isso

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sim, é que explicações deste género especificam algumas das condições necessárias para a

verdade de uma frase da forma «Você tem um direito». BENTHAM mostra-nos como essas

condições incluem a existência de uma lei que impõe um dever sobre outra pessoa; e, para além

disso, que essa lei deve estatuir que a violação do dever tem como consequência uma sanção

se assim for requerido pelo titular do direito ou por alguém em sua representação.30

Assim, este método de definição, denominado (erradamente) por BENTHAM como

sendo uma paráfrase, e para o qual HART não propõe qualquer designação especial, distingue-

se dos outros dois que têm vindo a ser discutidos ao longo deste Capítulo porque, por um lado,

não se preocupa em identificar qualquer diferença específica que permita caracterizar o termo

abstrato em questão, distinguindo-o dos demais termos do mesmo genus, nem, por outro lado,

procura traduzir os termos abstratos controversos em termos factuais. O que este método

inominado faz é chamar a atenção para as condições que são necessárias para que o «direito»,

o «dever», o «poder», a «legalidade», a «Justiça» ou o «Estado» possam existir (ser

verdadeiros, na terminologia de HART), e, por isso mesmo, propomos que este método passe a

ser designado por «método condicional». O método condicional não faz qualquer uso do

método per genus et differentiam e aproveita, do método parafrástico, a análise do contexto.

Esta forma de proceder não proporciona, tal como sucede com a paráfrase, qualquer definição

dos termos ou expressões em questão, visto que não oferece quaisquer sinónimos para os

mesmos, mas elucida, de uma maneira que a paráfrase não consegue por faltarem os termos

factuais que possibilitem a tradução, o significado de termos e expressões jurídicos que

desempenham o seu papel característico em conclusões de Direito.

Se nos contentarmos, contudo, com o método condicional e considerarmos que o

mesmo é o único método adequado de elucidação de termos e expressões jurídicos estaremos

a ignorar injustificadamente as paráfrases e as definições que conseguem, com efeito, elucidar

cabalmente certos termos e expressões abstratos. É que, ao contrário do que BENTHAM e HART

assumem, este não é um método de elucidação de termos abstratos alternativo à paráfrase e ao

método per genus et differentiam; os três métodos são, como passaremos a demonstrar, degraus

de um percurso metodológico de elucidação de termos e expressões abstratos e concretos que

tem por finalidade culminar numa definição. Todos os argumentos de BENTHAM e de HART

opõem-se às metodologias filosóficas em geral, e jurídicas em particular, que partem de

definições, precisamente porque, como os autores intuem, e bem, a definição de um termo ou

expressão abstrato não é o ponto de partida de nenhuma investigação filosófica. O erro que

BENTHAM e HART cometem, no entanto, é o de não perceber que a definição é, isso sim, o

ponto de chegada, na medida em que, para ambos os autores, o importante era retirar ao método

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per genus et differentiam a importância que, de facto, detinha, e que, em larga medida, continua

a deter, apresentando um método de elucidação alternativo que conseguisse fazer aquilo que o

método tradicional, o método da definição, nunca conseguiu: esclarecer de uma forma clara e

completa o que é um direito, um dever, um poder, etc. BENTHAM e HART, contudo, não

oferecem qualquer justificação que explique por que é que há, na realidade, certas definições

de termos abstratos obtidas através do método per genus et differentiam, e de entre as quais se

encontram definições de termos e expressões jurídicos, que são claras e completas e, por isso,

elucidam completamente o significado do termo ou expressão em questão. Uma expressão

como «direito subjetivo» é disso exemplo, dado que a sua definição através da fórmula

«permissão normativa específica de aproveitamento de um bem»31 não oferece quaisquer

dúvidas conceptuais.

Mais interessante, por conseguinte, do que constatar (corretamente) que as definições

da maior parte dos termos e expressões jurídicos, obtidas através do método per genus et

differentiam, são conceptualmente pobres porque não elucidam satisfatoriamente o significado

dos termos e expressões em questão, é perceber o que distingue as definições insípidas das

definições que, com efeito, logram o seu objetivo. O que as distingue não pode, de facto, ser

aquilo que distingue termos concretos de termos abstratos porque, a ser assim, nenhuma

definição de termos abstratos seria satisfatória; assim, manter que nenhuma definição per genus

et differentiam elucida cabalmente o significado do termo ou expressão assim definido é

manifestamente falso.

8. O processo de elucidação

A partir do momento em que se constate que a paráfrase e o método condicional não se

encontram numa relação de alternativa nem entre si, nem para com a definição per genus et

differentiam, mas sim numa relação de continuidade e contiguidade lógica, e se perceba que

cada método corresponde a estádios diferentes do mesmo processo de elucidação, percebe-se

igualmente que a razão pela qual tantas definições per genus et differentiam de termos abstratos

são inadequadas prende-se com o facto de se ter tentado formular uma definição sem,

previamente, se terem apurado as condições necessárias para a existência do conceito que o

termo ou expressão visam designar. Mencionámos supra que HART observa, de passagem, que

o método per genus et differentiam seria operativo no Direito se, antes da sua aplicação, se

pudessem apurar as características próprias dos conceitos que os termos ou expressões jurídicos

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visam designar, já que, apenas se não nos encontrássemos confundidos acerca do que são

direitos e deveres, por exemplo, é que conseguiríamos apurar a diferença específica que permite

a formulação da definição. Ora, as definições per genus et differentiam de termos e expressões

jurídicos cujas características não constituem qualquer mistério para os juristas são operativas

precisamente porque é possível obter a diferença específica. Estas características são, por seu

turno, reconhecíveis porque, no passado, se conseguiu, com sucesso, apurar as condições

necessárias para a sua existência, num primeiro momento, e, num segundo momento, se

conseguiu traduzir, em termos factuais, o sentido que esses termos ou expressões adquirem em

atos de fala paradigmáticos. Ao nos debruçarmos sobre termos e expressões jurídicos cujo

papel característico seja desempenhado numa conclusão de Direito, não se pode começar a

análise do significado desses mesmos termos e expressões nem através de uma definição, nem

recorrendo a uma paráfrase. Tem que se começar por entender quais as condições necessárias

para que o termo ou expressão em questão exista, ou seja verdadeiro. Assim, a análise, sempre

contextual, das condições necessárias para a existência do conceito que o termo visa designar,

num primeiro momento, proporciona a sua tradução para termos factuais através da paráfrase,

num segundo momento. Este segundo momento é irrelevante para se extrair conclusões de

Direito a partir do termo ou expressão em questão, mas é o segundo passo para se vir a alcançar

uma definição. Após este segundo passo, será possível, mais tarde ou mais cedo, que se

proceda, num terceiro momento, à formulação de uma definição através do método per genus

et differentiam que se imponha e torne desnecessário repetir todo o processo cada vez que nos

deparamos com um termo ou expressão jurídico. Aqui chegados, pode-se definir com a mesma

clareza termos abstratos e termos concretos. O que acontece é que há termos abstratos que, hoje

em dia, ainda não passaram do primeiro ou do segundo momento, e, por isso, ainda não são

suscetíveis de definição.

A correção de uma definição é verificável, desta forma, através de um raciocínio,

naturalmente a posteriori, que indague se a definição em questão é, ou não, o resultado deste

percurso metodológico. A fórmula que define a expressão «direito subjetivo», por exemplo,

parece sê-lo, como, aliás, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO implicitamente o demonstra, dado que

a definição da expressão «direito subjetivo» aparece no final de uma secção da sua obra que

começa com a explicação das condições necessárias para que a conclusão de Direito «A tem

um direito subjetivo» seja verdadeira, condições essas que, de resto, já se verificavam na Roma

antiga:

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O direito subjetivo era, enquanto tal, desconhecido no Direito romano. A pessoa que, nesse ordenamento,

detivesse uma posição favorável que lhe conferisse uma particular proteção do Estado, dispunha de uma

ação, isto é, da possibilidade de, junto de um magistrado, obter uma injunção que, caso se verificassem

os competentes e alegado factos, habilitasse o juiz a determinar medidas concretas.32

As condições necessárias, na Roma antiga, para que alguém fosse detentor do

antepassado do conceito que hoje em dia designamos por «direito subjetivo» eram,

basicamente, a existência de um «Estado»,33 de uma posição favorável resultante de

determinadas regras jurídicas que incumbisse ao «Estado» proteger, de uma ação que

possibilitasse essa mesma proteção, e de um magistrado que tivesse o poder de determinar

medidas concretas. A tomada de medidas concretas resulta de uma conclusão de Direito

formulada num caso concreto. A multiplicação de conclusões de Direito, que são factos

institucionais, deu, com o tempo, origem a outros factos institucionais que permitiram uma

tradução, através de paráfrase, das expressões entretanto usadas para designar o conceito de

direito subjetivo. Com efeito, o sistema romano, «de base processual, foi objeto de ponderação,

durante a Idade Média, por gerações de juristas os quais, num esforço de abstração,

conseguiram isolar a posição substantiva correspondente à ação processual: o direito do sujeito

– ou direito subjetivo.»34 A expressão «direito do sujeito» surge em referência a um facto

institucional, a saber, o do direito da pessoa enquanto sujeito de Direito, distinguível tanto do

conceito filosófico como do conceito biológico expressos através do termo «pessoa», facto

institucional que é fundamental para, num terceiro momento, se conseguir elaborar definições

per genus et differentiam, como a de MENEZES CORDEIRO acima citada.

Note-se que o facto de o processo envolver uma continuidade e contiguidade lógicas

entre explicitação de condições necessárias, paráfrase e definição não faz com que o mesmo se

encontre encerrado a partir do momento em que uma definição é formulada. É precisamente

por se cometer este erro que muitas das definições per genus et differentiam são inadequadas

para elucidar o significado de termos e expressões jurídicos. Com efeito, pode acontecer, a

qualquer momento, uma modificação das condições necessárias para que se possa extrair uma

conclusão de Direito verdadeira de determinada expressão jurídica incluída numa frase

paradigmática que inquine as paráfrases efetuadas e as definições entretanto obtidas no

culminar do processo. Quando tal modificação aconteça, as antigas paráfrases e definições

tornam-se, em maior ou menor grau, inadequadas, e, por isso, há que voltar ao início e perceber

quais são as novas condições necessárias para que um termo ou expressão jurídico seja

verdadeiro. Um dos exemplos mais claros de uma tal modificação é o do conceito que, por

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vezes, é expresso através da expressão «princípio da legalidade», mas que, outras vezes, é

aludido através das expressões «bloco de legalidade» ou «bloco de constitucionalidade». A

mudança linguística da expressão que visa designar o mesmo conceito de base deve-se, em

parte, à alteração das condições necessárias para a existência, ou verdade, do princípio da

legalidade. Estas condições necessárias eram de tal modo diferentes antes da Revolução

Francesa que o próprio princípio não encontrava, até à ocorrência desta Revolução, qualquer

expressão linguística, sendo que, após a Revolução Francesa, outros eventos histórico-políticos

bem conhecidos alteraram as condições necessárias para a existência do princípio da

legalidade, o que, em parte, justifica, como dissemos, a mudança das expressões linguísticas

que o visam designar.

É por estas razões que, conforme referimos supra, há certos termos e expressões

jurídicos que só são compreensíveis, hoje em dia, quer no contexto em que são utilizados e

através de uma análise das suas condições de veracidade, ou existência, que permite que se

extraiam conclusões de Direito, quer através da sua tradução por paráfrase, mas que não são

(ainda) suscetíveis de serem definidos per genus et differentiam. Como temos vindo a afirmar,

deparamo-nos com exemplos óbvios do que acaba de ser dito quando pensamos nos conceitos

designados pelos termos e expressões «Justiça», «segurança jurídica», «legalidade» ou «Estado

de Direito», dado que, apesar de estes conceitos não serem ininteligíveis, ainda não sabemos o

suficiente acerca deles para os definir per genus et differentiam.

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Regras e Normas

Em Teoria Pura do Direito, KELSEN diz, de passagem, o seguinte:

Se por «interpretação» se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objecto a

interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura

que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias

possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não

deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a correcta, mas possivelmente

a várias soluções que – na medida em que apenas sejam afectadas pela lei a aplicar – têm igual

valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no acto do órgão aplicador do

Direito – no acto do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é «fundada» na

lei, não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei

representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas

individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral.1

O que nos interessa destacar desta passagem não é as implicações que a mesma tem

para a noção de interpretação jurídica, o que, de resto, foi feito por nós noutra ocasião,2 mas

sim a conclusão a que KELSEN chega, a saber, a de que há normas individuais que são

«produzidas dentro da moldura da norma geral.» Como dissemos, não discutiremos, aqui, a

correção da ideia de que há várias normas individuais que se podem extrair de normas gerais.

O tema sobre o qual este Capítulo se debruçará prende-se, isso sim, com a questão de apurar o

que significa retirar uma norma individual de uma norma geral, ou seja, se estamos, ou não,

perante normas em ambos os casos, i.e., se faz sentido, tendo em atenção uma certa definição

de «norma», da autoria do próprio KELSEN, que analisaremos ao longo desde capítulo, usar o

termo tanto ao lado do adjetivo «geral» como do adjetivo «individual», na medida em que se

nos afigura que «norma geral» e «norma individual» são, na realidade, dois conceitos distintos

que o uso e a tradição linguística do código jurídico linguístico ditaram que deveriam partilhar,

como termo de expressão, o vocábulo «norma».

De forma a passarmos à análise da mencionada definição, comecemos por observar a

evolução do pensamento de KELSEN em relação a esta matéria, que pode ser designada através

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da expressão «individuação de normas», usada por RAZ.3 Em Teoria Geral do Direito e do

Estado, KELSEN,4 após discutir brevemente a distinção que JOHN AUSTIN faz entre «leis» e

«comandos», nos termos da qual um comando, quando produz uma obrigação geral, é uma lei

ou uma regra, ao passo que, quando produz uma obrigação cujo efeito vinculativo se

circunscreve a um ato ou omissão específicos, é um comando ocasional ou particular,5 afirma

o seguinte:

Tendo identificado «lei» e «regra», podemos, é claro, reconhecer como Direito apenas as

normas gerais. Mas não há dúvida de que o Direito não consiste apenas em normas gerais. O

Direito inclui normas individuais, i.e., normas que determinam a conduta de um indivíduo em

uma situação irrepetível e que, portanto, são válidas apenas para um caso particular e podem

ser aplicadas apenas uma vez. Tais normas são «Direito» porque são partes de uma ordem

jurídica como um todo, exatamente no mesmo sentido das normas gerais com base nas quais

elas foram criadas. Exemplos de tais normas particulares são as decisões dos tribunais, na

medida em que sua força de obrigatoriedade seja limitada ao caso particular em questão. (…)

A decisão do juiz é uma norma jurídica no mesmo sentido e pela mesma razão que o princípio

geral de que, se alguém não devolve um empréstimo, então uma sanção civil deve lhe ser

infligida por ação do credor. A «força de obrigatoriedade» ou «validade» de Direito está

intrinsecamente relacionada, não ao seu caráter possivelmente geral, mas apenas ao seu caráter

como norma. Já que, por sua natureza, o Direito é norma, não há razão alguma para que apenas

as normas gerais sejam consideradas como Direito. Se, em outros aspectos, as normas

individuais apresentam as características essenciais de Direito, elas também devem ser

reconhecidas como tal.6

Ao refletir sobre estas considerações é essencial ter-se presente que, por «norma»,

KELSEN entende «que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve

conduzir de determinada maneira.»7 No nosso entender, esta definição é correta, apesar de não

elucidar, de todo, o significado de muitos dos factos mentais, alguns institucionais, outros não,

aos quais a comunidade jurídica, KELSEN incluído, tem o hábito de se referir através do termo

«norma», em virtude de se pretender abarcar sob o conceito de norma realidades que, pura e

simplesmente, não lhe são subsumíveis. Este capítulo será dedicado a fundamentar a asserção

aqui lançada.

A definição de «norma» avançada por KELSEN só é correta à luz de alguns dos contextos

paradigmáticos onde o termo é habitualmente usado, verificando-se aí que, com efeito, uma

norma é algo que deve acontecer em resultado da conduta que um indivíduo racional deve

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seguir, como se pode ver em frases como, por exemplo, «a norma conjugada dos artigos X, Y

e Z do Código P prescreve que o indivíduo I, que se encontra nas condições C, deve fazer (ou

não fazer) F.» As decisões judiciais contêm frases cujo conteúdo é idêntico ao da aqui

apresentada, ainda que normalmente a sua estrutura linguística seja diferente, e que equivalem

a uma injunção da forma «I deve fazer F quando se verifiquem as condições C», ou seja,

determinado estado de coisas deve acontecer em resultado da conduta que I deve adotar, tendo

em conta a situação factual em que se encontre. A doutrina jurídica pode formular distinções

mais finas. A doutrina civilística, por exemplo, distingue entre prestações de facere, non-

facere, dare e pati,8 que se enquadram na definição kelseniana de «norma», e cuja distinção é

útil no âmbito do sistema de Direito das Obrigações de matriz romano-germânica, mas o facto

é que distinções como estas, bem como outras provenientes de diferentes ramos do Direito, se

reconduzem sempre a injunções sobre algo que um indivíduo deve, ou não deve, fazer. O facto

de não termos por hábito referirmo-nos a obrigações emergentes de relações de Direito privado

através do vocábulo «norma» é imaterial para o argumento de KELSEN, que propõe uma

definição substantiva, e não formal, do conceito de norma. Substantivamente, as obrigações

emergentes da celebração de um contrato de compra e venda são, para as partes, «normas» no

mesmo sentido em que uma decisão judicial cível fixa as condutas que as partes devem encetar

em resultado dessa mesma decisão, o que inclui não só o acatamento da decisão de Direito

substantivo, mas também aspetos como a condenação ao pagamento das custas processuais ou

por litigância de má fé, por exemplo. Em processos criminais, para além do próprio arguido

condenado, o Estado é o destinatário da norma que surge em resultado de uma condenação a

pena de prisão efetiva, dado que é o responsável por velar pela sua execução.*

As condições necessárias para que frases do tipo «a norma conjugada dos artigos X, Y

e Z do Código P prescreve que o indivíduo I, que se encontra nas condições C, deve fazer (ou

não fazer) F» sejam verdadeiras são a existência de factos, brutos e/ou institucionais, que

coloquem o indivíduo I sob a alçada do prescrito pelos artigos X, Y e Z do Código P, cuja

existência (dos artigos e do Código) é, por sua vez, também uma condição necessária da

veracidade da norma. Por isso, para que uma norma exista, ou seja verdadeira, são necessários

que se verifiquem certos factos e que existam determinadas regras. Note-se que uma elucidação

completa da veracidade de frases como a aqui avançada a título de exemplo implicaria apurar

as condições necessárias para a existência das regras e dos factos que são condições necessárias

* Esta asserção tem que ser qualificada, dado que, formalmente, cláusulas contratuais não são,

obviamente, normas jurídicas. Falaremos sobre isto na Conclusão.

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da existência da norma, o que, por sua vez, implicaria apurar as condições necessárias para a

existência das condições necessárias para a existência da norma, e assim sucessivamente até se

chegar a um momento fundacional. Exemplificando (e saltando alguns passos na cadeia lógica

para efeitos de simplificação), a existência de uma norma tem como condição necessária a

existência de factos e de regras, as regras têm como condição necessária de existência fontes

de onde as mesmas se possam extrair, as fontes uma Constituição que prescreva o modo da sua

criação, a Constituição, por sua vez, tem como condição necessária da sua existência uma

entidade política (paradigmaticamente, mas não necessariamente, o Estado), as entidades

políticas têm como condição necessária de existência o surgimento de uma comunidade política

que lhe subjaza, que por sua vez é composta por comunidades mais pequenas (e.g., tribos e clãs

maioritariamente no passado, famílias e, eventualmente, associações no presente, sem, claro,

nos esquecermos do indivíduo em si mesmo, etc.), até que se chega a um momento em que

determinada comunidade existe porque existem pelo menos dois indivíduos cuja sobrevivência

depende de uma certa medida de cooperação mútua. A investigação acerca de condições

necessárias torna-se, se se pretender ir para além de momentos fundacionais como o do

surgimento de uma comunidade de pelo menos dois indivíduos, numa investigação sobre factos

brutos da natureza que se prendem com a evolução biológica do ser humano. Investigações

deste género são muito úteis para se perceber as origens de certos factos mentais, como os

factos institucionais, mas, em bom rigor, caem fora do seu esquema conceptual. As condições

necessárias para a existência de uma norma reconduzem-se, em última análise, e após se

percorrerem os passos de toda uma cadeia lógica com uma extensão apreciável, à necessidade

de existirem pessoas humanas. Continuar a investigar, tentando perceber as condições

necessárias para a existência de pessoas humanas, é uma tarefa para as ciências naturais, dado

que são estas que se dedicam ao estudo de factos brutos físicos oriundos da natureza.

Note-se que, ao descrevermos sucintamente a cadeia lógica de condições necessárias

de existência, fizemos uma distinção entre normas, regras e fontes. Como notámos no início

deste trabalho, normas e regras são termos utilizados, à luz do código linguístico do Direito,

sinonimicamente. Por seu turno, a distinção entre fontes e regras/normas é clássica,

encontrando-se bem estabelecida. KELSEN chama, contudo, a atenção para o facto de que

«fontes do Direito» é uma expressão figurativa que tem mais do que um sentido, e que é um

erro reservar a expressão para designar a legislação e o costume, dado que estas são somente

fontes de normas gerais do Direito estadual, o que deixa de fora as normas individuais, que são

igualmente parte do Direito. Assim, as normas gerais também seriam fontes do Direito, dado

que é a partir das mesmas que se formulam normas individuais.9

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Na medida em que nada temos a opor à expressão «fontes do Direito», dado que não

vemos por que razão é que o facto de a mesma ser figurativa deve funcionar contra si, iremos

mantê-la, embora defendamos que a mesma deve abarcar não só leis e costumes, mas também

constituições, acordos e tratados internacionais, o ius cogens, os regulamentos e diretivas da

União Europeia, contratos, testamentos, e decisões judiciais vinculativas para decisores de

futuros casos concretos iguais ou suficientemente parecidos que justifiquem a aplicação de uma

decisão conforme à decisão vinculante prévia. Naturalmente, nem todas estas fontes do Direito

existem em todas as ordens jurídicas, mas tal não se configura como condição necessária da

sua classificação enquanto fonte do Direito. Basta que a fonte em questão exista numa ordem

jurídica para que seja considerada como tal. Não é necessário que o seu reconhecimento

enquanto fonte seja universal.

Por uma questão de clareza conceptual, para a qual se pode contribuir evitando a

utilização das mesmas palavras para designar conceitos distintos, propomos designar aquilo a

que KELSEN se refere por «normas jurídicas gerais» através da expressão «regras jurídicas»,

podendo-se agrupar as mesmas, por exemplo, em regras legais, sempre que as mesmas tenham

por fonte a lei, regras consuetudinárias, quando a sua fonte seja o costume, regras

jurisprudenciais, quando esteja em causa a contemplação de uma regra surgida através da

resolução de uma questão de Direito do passado que forme precedente vinculativo para o

futuro, e assim sucessivamente para as demais regras oriundas de determinadas fontes do

Direito. Para aquilo que KELSEN designa através da proposição «normas jurídicas individuais»

propomos utilizar a expressão «normas jurídicas», deixando cair em ambos os casos o adjetivo,

geral(is) e individual(is), respetivamente, por ser pleonástico, dado que, como pretendemos

demonstrar através do argumento que se segue, todas as normas jurídicas são necessariamente

individuais e concretas, por oposição a regras jurídicas, que seriam gerais e abstratas.

É preciso deixar desde já claro que esta «reformulação», ou «arranjo» da terminologia

corrente não é feita só com o intuito de dar nomes diferentes a coisas substancialmente iguais,

que apenas diferem na sua proveniência. Pelo contrário, é nossa contenção que o conceito que

propomos designar através da expressão «norma jurídica» é um facto mental distinto, na sua

essência, do conceito que sugerimos seja referido através da expressão «regra jurídica», e, por

isso, deve-se usar termos diferentes para designar realidades que, não obstante terem pontos de

contacto entre si, não se confundem. Entre a norma jurídica e a regra legal, por exemplo, há

uma relação análoga à que existe entre regra legal e diploma legislativo: o último termo de cada

um dos pares de expressões é fonte do primeiro. O diploma legislativo é fonte da regra legal,

ao passo que a regra legal é fonte da norma jurídica. Há, no entanto, uma nuance: ao passo que

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a regra legal é somente oriunda de «leis» (incluindo-se, sob o termo, leis, leis orgânicas,

decretos-lei, regulamentos administrativos, etc.), a norma jurídica pode ter como fonte toda e

qualquer fonte de Direito que se considere admissível. O debate sobre saber que fontes do

Direito se consideram admissíveis redunda na querela entre positivistas e jusnaturalistas, mas,

para os propósitos da presente discussão, não é necessário resolver esse assunto. Pode-se dizer

que uma norma jurídica é formulada a partir de toda e qualquer fonte admissível em Direito,

mesmo sem se saber, a priori, se a Moral, o Direito natural, o Direito divino, etc. são, ou não,

fontes admissíveis do Direito.

Há duas objeções hipotéticas à reconceptualização proposta. A primeira, de resposta

mais simples do que a segunda, embora, paradoxalmente, com uma formulação mais longa,

prende-se com inquirir se a terminologia não será, no fundo, arbitrária, dado que, e

parafraseando argumentos de SEARLE, os falantes de uma língua sabem, em virtude de o serem,

que «norma» e «regra» querem dizer a mesma coisa, e, por isso, usam-nas como sinónimos.

Para além disso, referiria o nosso putativo objetor, estamos a contradizer-nos ao propor uma

classificação terminológica nestes moldes, dado que nos manifestamos ser da opinião de que

as palavras querem dizer o que quer que seja que o autor que as use num ato de fala quer dizer.

Nesta medida, não importa se se usa o termo «regra» ou o termo «norma», dado que o que

conta é a intenção do autor, e, para além disso, finalizaria o objetor, não podemos argumentar

que, se a intenção não respeitar a convenção linguística há uma falha de comunicação. Isso

aconteceria se designássemos a norma/regra através de um termo arbitrário como «agulha»,

dado que, ainda que a intenção do autor fosse dizer «norma jurídica» através da expressão

«agulha jurídica», o que significaria que «agulha», neste caso em concreto, significa «norma»,

a comunicação seria impossível, a menos que o interlocutor tivesse conhecimento, de alguma

forma, de que o falante em questão usa, por vezes, o termo «agulha» para se referir ao conceito

que, segundo o código linguístico, deve ser designado através da palavra «norma». Semelhante

problema não se põe entre os termos «regra» e «norma», dado que, mal ou bem, o código

linguístico permite que ambos sejam usados sinonimicamente. A segunda objeção disputa a

noção segundo a qual o conceito de «norma geral» é, na sua essência, distinto do de «norma

individual».

Quanto à primeira objeção, há que dizer que reformulações linguísticas são não-

coercivas, dado que nenhum membro de uma comunidade linguística consegue, isoladamente,

alterar uma tradição linguística. «Norma» e «regra» permanecerão sinónimos durante bastante

tempo, independentemente do que seja dito neste trabalho, havendo inclusive a possibilidade

de nunca virem a deixar de o ser. Por esta razão, a classificação que propomos é heurística, e

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arbitrária no sentido em que os termos poderiam perfeitamente ser invertidos de forma a que

se designasse a «norma individual» de KELSEN através do termo «regra» e a sua «norma geral»

através do termo «norma». No entanto, esta classificação tem a vantagem de simplificar o

argumento, a saber, o de que estamos perante dois conceitos distintos, algo que, como tivemos

oportunidade de demonstrar noutra ocasião,10 é obscurecido sempre que conceitos distintos

partilham a mesma palavra na sua designação, e é por isso que, apesar de a intenção do autor

ser o fator relevante para se estabelecer o significado de um ato de fala, usar «regra» e «norma»

indistintamente não contribui para o estabelecimento claro dessa mesma intenção. Os autores

podem, sem dúvida nenhuma, utilizar o vocabulário que quiserem para transmitir as suas ideias,

mas, se a sua intenção for a de seguir terminologia que não confunda conceitos díspares, a

tarefa de apurar a intenção dos mesmos através das palavras do seu texto fica muito mais

facilitada, e, inversamente, muito mais dificultada quando as regras do código linguístico dão

a entender que dois conceitos diferentes podem ser usados sinonimicamente.

A validade deste raciocínio depende, naturalmente, da demonstração de que «normas

gerais» e «normas individuais» são, com efeito, dois conceitos tão distintos entre si ao ponto

de justificar que se reserve o termo «regras» para um, e «normas» para outro, o que nos leva à

segunda objeção, que passamos desde já a analisar.

Começa-se a notar que a definição de «norma» como «algo que deve ser ou acontecer,

especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira», que elucida

cabalmente o que acontece quando um tribunal resolve uma questão de Direito, é inadequada

quando aplicada às chamadas «normas gerais» quando se analisa uma frase paradigmática onde

o termo «norma» é usado neste sentido de «norma geral», como, por exemplo, «a norma

conjugada dos artigos X, Y e Z do Código P prescreve que todos os indivíduos que se

encontrem nas condições C devem fazer (ou não fazer) F». De forma a demonstrar o ponto

onde queremos chegar recorrendo a um exemplo real, atente-se no enunciado normativo do

artigo 798.º do Código Civil, segundo o qual «[o] devedor que falta culposamente ao

cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.» Se se

adicionar a esta disposição o trecho inicial do nº 1 do artigo 406.º do Código Civil, segundo o

qual «[o] contrato deve ser pontualmente cumprido», podemos extrair, a partir destas

disposições conjugadas, que há uma regra legal que prescreve que «todos aqueles que

celebrem contratos e que, por via disso, se encontrem na posição de devedores devem cumprir

as suas obrigações dentro do prazo estabelecido, sob pena de terem que indemnizar o respetivo

credor dos prejuízos que o incumprimento culposo do prazo acarrete.» É tentador pensar que

estamos perante uma norma geral porque, à primeira vista, parece que «algo deve ser ou

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acontecer», isto é, devem-se cumprir contratos, «especialmente que um homem se deve

conduzir de determinada maneira», ou seja, ou cumpre o contrato ou, se o incumprimento

resultar de culpa sua, paga uma indemnização por danos causados, cujo alcance se estende por

todos os destinatários desta chamada norma geral.

No entanto, uma reflexão mais atenta sobre este assunto leva-nos inevitavelmente a

concluir que uma frase como «a norma conjugada a partir do número 1 do artigo 406.º e do

artigo 798.º do Código Civil prescreve que “todos aqueles que celebrem contratos e que, por

via disso, se encontrem na posição de devedores devem cumprir as suas obrigações dentro do

prazo estabelecido, sob pena de terem que indemnizar o respetivo credor dos prejuízos que o

incumprimento culposo do prazo acarrete”» é ininteligível porque, ao não especificar uma das

condições factuais em que o devedor tem que se encontrar de forma a que a estatuição desta

regra se lhe aplique, a saber, o que é um «incumprimento culposo», a regra legal, não obstante

referir, de forma genérica, que «algo deve ser ou acontecer» (i.e., indemnizar o credor pelos

prejuízos resultantes do incumprimento culposo), não diz a um indivíduo, neste caso o devedor,

de que maneira é que se deve conduzir, quais as condutas que deve encetar, ou abster-se de

efetuar, de forma a que o seu comportamento não seja considerado culposo. Poder-se-á dizer

que isto é assim porque «culpa» é um conceito indeterminado, para cuja indeterminação

contribui, embora não o explique totalmente, o facto de haver distintas noções de «culpa» em

diferentes ramos do Direito (e.g., o Direito penal ou o Direito civil), e cujo preenchimento

compete à doutrina e à jurisprudência, não devendo o legislador densificar o conceito por via

legislativa para que o mesmo se mantenha maleável, ou seja, adaptável às circunstâncias de

cada caso concreto. Parece ser este, de resto, o espírito que preside ao nº 2 do artigo 487.º do

Código Civil, que refere que, na ausência de outro critério legal, a culpa é apreciada pela

diligência de um bom pai de família consoante as circunstâncias de cada caso. Há algumas

críticas que se podem apresentar a este preceito, sendo que gostaríamos de destacar duas.

A primeira prende-se com a questão da palavra «outro» indiciar que a diligência de um

bom pai de família é um critério legal, mas, com efeito, só o é no sentido trivial segundo o qual

se encontra inscrito na lei. Noções como as designadas por expressões como «bom pai de

família» ou «homem-médio» são, na sua substância, conceitos filosóficos de senso comum,

acessíveis a todos os membros da comunidade que avalie a conduta dos seus membros através

deste tipo de critério. São pré-legais, regras regulativas que não precisam de ser positivadas

pelo Direito para serem operativas, ainda que a sua positivação jurídica corte pela raiz qualquer

discussão encetada com o intuito de apurar se as mesmas são juridicamente vinculantes. A

crítica não se prende, no entanto, com a sua incorporação no Direito positivo através da lei,

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mas sim com o facto de a formulação do enunciado normativo dar a entender que um

determinado conjunto de padrões medidores de conduta, que são regras regulativas, serem

critérios legais para além de um sentido muito trivial da expressão, segundo o qual tudo quanto

se insere na lei é legal.

A segunda objeção, mais pertinente para o tema que estamos a discutir, tem a ver com

o seguinte: como notámos, é intenção do legislador não densificar o conceito de culpa em

demasia, deixando-o indeterminado de forma a que a doutrina e a jurisprudência, ao

comentarem/decidirem questões específicas, o vão densificando mantendo-o maleável às

situações concretas da vida. É precisamente por isto que a culpa é apreciável «em face das

circunstâncias de cada caso». Gostaríamos de deixar bem claro que, em termos de teleologia

jurídica, que se prende com a administração da Justiça, a política jurídica de usar conceitos

indeterminados e cláusulas gerais na redação de enunciados normativos de fonte legal é uma

opção admirável, consentânea com a regra do Estado de Direito, e que demonstra que o Estado,

ao exercer o seu poder legislativo, encontra-se de facto empenhado em administrar a Justiça

através do Direito, o que inclui não só as leis, mas também as decisões judiciais. É, no entanto,

contraintuitivo admitir, como o fazem a esmagadora maioria dos autores, a valia desta técnica

de redação jurídica, que emprega conceitos indeterminados e cláusulas gerais com o intuito de

deixar ao julgador, mas também à doutrina, a densificação dos mesmos, de forma a alcançar

Justiça no caso concreto, e, simultaneamente, dizer que estamos perante normas jurídicas,

diante de injunções que prescrevem que «um homem se deve conduzir de determinada

maneira». Ora, o disposto nos artigos 406.º e 798.º do Código Civil apenas dizem aos

destinatários da ordem jurídica que estes devem cumprir os seus contratos, e que, caso os

incumpram com culpa, devem indemnizar os seus credores dos prejuízos causados pelo

incumprimento, mas não lhes diz o que é um comportamento culposo. O próprio artigo 487.º,

onde se esperaria encontrar a resposta, é igualmente omisso, remetendo para conceitos

filosóficos de senso comum. Significa isto, perguntar-se-á, se o nosso argumento vai no sentido

de defender que o Direito de fonte legal é, no fundo, uma anarquia, dado que, através de um

uso maleável, ou habilidoso, de conceitos indeterminados e de cláusulas gerais o juiz poderá

atingir qualquer resultado que deseje, sendo detentor de «discrição», no sentido forte do termo

postulado por RONALD DWORKIN?11 A resposta é não, de todo, dado que este é um perigo

virtualmente impossível de ocorrer em sistemas jurisdicionais institucionais altamente

complexos que admitem possibilidade de recurso, o que permite, com a passagem do tempo,

que os tribunais superiores de uma ordem jurídica formem uma tradição jurisprudencial que se

reflete no facto de haver uma tendência para decidir casos semelhantes de maneira parecida,

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sendo que isto ocorre mesmo na ausência da regra do precedente vinculativo. O ponto onde

queremos chegar, isso sim, é o de que é impossível formular uma norma, i.e., uma proposição

de dever-ser* que diga a um indivíduo como é que este se deve comportar se não se tiver em

atenção precisamente as circunstâncias factuais em que se encontre. O que quer que seja que

se entenda por «incumprimento culposo», o mesmo só é determinável em concreto, e não em

abstrato. Se um indivíduo estiver adstrito, por contrato, a efetuar o facto bruto de depositar

batatas num determinado sítio e não o fizer, incumprindo uma cláusula do facto institucional

que é o contrato de compra e venda de batatas, não se pode classificar o seu comportamento

como sendo, ou não, culposo, sem se perceber quais as circunstâncias que levaram ao

incumprimento. Dado o vasto corpo de comentários doutrinais e decisões jurisprudenciais que

foram, ao longo do tempo, densificando o conceito de culpa da civilística, será virtualmente

impossível, na atualidade, que o julgador, perante um caso concreto, se encontre

impossibilitado de decidir se o devedor teve, ou não, culpa no incumprimento, mas o facto de

que, para se aferir se um comportamento é culposo, bem como, em geral, para se resolver uma

questão de Direito, é preciso ter em atenção um conjunto de factos brutos e institucionais leva-

nos a arguir que a norma é uma realidade factual. O surgimento da norma depende do

estabelecimento dos factos brutos e institucionais relevantes para a situação concreta e do seu

relacionamento para com regras jurídicas, de fonte legal, costumeira, jurisprudencial, etc., bem

como de valores e princípios do ordenamento jurídico. É este conjunto de factos, uns brutos,

outros mentais (institucionais ou não) que faz surgir a norma, que só assim é capaz de

prescrever que «algo deve ser ou acontecer, que um homem se deve conduzir de determinada

maneira».

* Recorde-se a conceção de «dever-ser» por nós avançada na parte final da subsecção B da secção 3 do

Capítulo 1, segundo a qual a norma jurídica é um dever-ser em relação à conduta do seu destinatário; é

neste sentido que a expressão é utilizada no texto.

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CONCLUSÃO

Os vários argumentos oferecidos e desenvolvidos ao longo dos cinco capítulos deste trabalho

têm o intuito de chamar a atenção para a seguinte conclusão: o Direito é uma realidade factual

em todas as suas valências, desde as suas fontes, passando pelos princípios e valores

orientadores de uma ordem jurídica, às decisões judiciais produtoras de normas, que só surgem

em resultado do apuramento do que tradicionalmente se designa através da expressão «matéria

de facto» e da sua conjugação com o que, também tradicionalmente, se designa através da

expressão «questão de Direito».

Ora, no sentido em que a expressão foi empregue ao longo deste estudo, resolver uma

«questão de Direito» envolve analisar todo um conjunto de factos, brutos e mentais,

destacando-se, de entre estes últimos, os factos institucionais, não sendo possível conferir uma

maior ou menor importância a cada um dos tipos de factos em questão. Como observa ANTÓNIO

CASTANHEIRA NEVES, «[n]ão é “o direito” que se distingue de “o facto”, pois o direito é a

síntese normativo-material em que o “facto” é também elemento, aquela síntese que justamente

a distinção problemática criticamente prepara e fundamenta.»1 A intuição de CASTANHEIRA

NEVES é, claro, correta. O presente estudo torna-se, à luz da mesma, um contributo para se

entender, contudo, que o Direito não só é indistinguível de factos brutos, sendo esta uma das

principais implicações da tese de CASTANHEIRA NEVES, como, também e fundamentalmente,

que o Direito, na sua essência, é facto, bruto e mental. Entre um e outro tipo de factos não há

diferenças, de espécie ou de grau, quanto ao seu nível de realidade, embora factos brutos e

factos mentais sejam, em si mesmos, de espécies distintas. Contudo, factos mentais são tão

reais quanto factos brutos, e a importância de ambos para o Direito é incontornável. Esta

conclusão parece-nos, com efeito, reforçar o argumento de CASTANHEIRA NEVES, não o

contrariando, pelo menos, em nenhum dos seus pontos fundamentais.

Todavia, argumentar que todo o Direito é facto, que o Direito, tomado em si mesmo, é

uma realidade da ordem do ser, sendo que apenas a sua concretização, ao nível da norma

jurídica, pode ser vista como pertencendo ao domínio do dever-ser e isto não em si mesma,

mas apenas em relação à conduta concreta dos destinatários que visa regular, apesar de

contribuir para um melhor entendimento filosófico do que é o Direito, chamando a atenção

para o facto de esta disciplina filosófica ser composta por um conjunto de factos brutos e de

factos mentais que se entrelaçam e que contribuem, em igual medida, para a vida do Direito,

não tem, necessariamente, que ter quaisquer consequências práticas. O único tipo de norma

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que existe, sempre existiu, e continuará a existir é aquele que resulta da análise de uma

factualidade que inclui factos brutos, institucionais, e, porventura, outros factos mentais, o que

se verifica somente ao nível do concreto. Ora, aceitar ou rejeitar semelhante tese não produz,

por si só, quaisquer alterações práticas. Em caso de rejeição, tudo continuará como está, mas

em caso de aceitação também, porque os tribunais continuarão a decidir segundo as leges artis

jurídicas, a aplicar e a desenvolver doutrinas, metodologias, etc. independentemente de cada

juiz, em particular, concordar, ou discordar, de uma conceção filosófica sobre a natureza do

Direito semelhante à apresentada neste ensaio. A única consequência prática que, à primeira

vista, uma conceção do Direito como sendo uma realidade integralmente factual poderia

produzir seria a nível processual, nomeadamente esbatendo a tradicional distinção traçada nos

códigos processuais entre matéria de facto e matéria de Direito. No entanto, se se refletir

cuidadosamente acerca do assunto, chega-se à conclusão de que este é um tema de política

jurídica que é insuscetível de ser, pelo menos diretamente, afetado por uma tese filosófica. A

distinção tradicionalmente traçada entre questão de facto e questão de Direito não entra em

colapso ao se descobrir que o Direito, em toda a sua extensão, é uma realidade factual; apenas

torna as designações dos conceitos por trás das expressões «questão de facto» e «questão de

Direito» inadequadas, dado que, em bom rigor, uma «questão de Direito» também é uma

questão de facto.

Contudo, e como este ensaio também pretendeu demonstrar, os factos do Direito, apesar

de fazerem todos parte da realidade, não pertencem à mesma espécie. Os argumentos

oferecidos ao longo do Capítulo 3 revelam que a nossa forma de pensar sobre todo o tipo de

factos é idêntica, e os do Capítulo 4 que o processo que eventualmente leva à sua definição

também, mas os dois primeiros Capítulos provam claramente que há dois grandes géneros de

factos, brutos e mentais. No nosso entender, o objetivo que a distinção tradicional entre matéria

de facto e matéria de Direito visa alcançar é o de rotular os tipos de factos que não são

exclusivamente preocupação do Direito dos tipos de factos que interessam, apenas e só, ao

Direito. A inadequação da terminologia que acabou por ser consagrada dever-se-á, porventura,

à circunstância de estes últimos factos não terem, pelo menos até recentemente, sido encarados,

precisamente, como factos. Ao confinarem o Direito ao domínio do dever-ser, o pensamento

de filósofos precursores de autores como KELSEN levou à necessidade de arranjar uma

terminologia que se afastasse da usada para designar realidades do domínio do ser, isto é,

«factuais», sem, no entanto, se rotular o Direito como pertencendo ao domínio da ficção. O

Direito é, assim, habitualmente entendido como fazendo parte da ordem do dever-ser, e,

portanto, apurar matéria de Direito é apurar questões de dever-ser, ao passo que apurar matéria

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de facto é apurar questões da ordem do ser. Para além disso, a importância que a doutrina do

positivismo jurídico adquiriu ao longo de grande parte do século XX tornou a busca pelo

jurídico ainda mais específica, dado que, para além de se procurar inserir questões da ordem

do dever-ser sob o rótulo «questão de Direito», tentou-se limitar a etiquetagem a realidades do

domínio do dever-ser exclusivamente jurídicas.

A definição de «questão de facto em processo civil» avançada por ANA PRATA, que é,

de resto, um exemplo claro de uma definição per genus et differentiam que não segue os passos

do processo de elucidação descrito no Capítulo 4, é uma tentativa de alcançar o propósito acima

referido, a saber, o de afastar o que é exclusivo do Direito do que não é:

Considera-se questão de facto, em processo civil, toda a matéria que se resolve no apuramento

da verificação de que um certo facto ocorreu ou das circunstâncias em que se verificou. É ainda

matéria de facto e não de Direito toda a afirmação que envolve conceitos não jurídicos, isto é,

dotados de sentido que têm na linguagem corrente ou na de outras áreas científicas, diversas da

do Direito.2

A primeira parte da definição é inteligível, e tem razão de ser, dado que, aqui, é

manifesto que se alude quer a factos brutos, quer a certos factos institucionais que não sejam

regras, leis, costumes, etc. A segunda parte da definição parece-nos, contudo, totalmente

desadequada, a todos os títulos, ao estádio do pensamento atual, onde cada vez mais se vai

descobrindo que nenhuma área do pensamento é detentora exclusiva de determinados

conceitos. Pense-se, por exemplo, no conceito designado através do termo «contrato». Se o

critério para classificar este conceito como sendo, ou não, jurídico, passar por indagar se o

mesmo é, ou não, dotado de sentido quer na linguagem corrente, quer na de outras áreas

científicas, então «contrato» não é um conceito jurídico, dado que também é usado na Ciência

Política (e.g., contrato social). O mesmo pode ser dito virtualmente de todos os termos e

expressões que designam conceitos jurídicos. Dito por outras palavras, não há, ou pelo menos

haverá muito poucos, conceitos exclusivamente jurídicos, que também não tenham expressão

na Ética, na Sociologia, na Ciência Política, etc. É um facto que, se, ao invés de se apresentar

uma definição, se começasse a elucidação de um dado conceito através da sua análise em frases

paradigmáticas, poder-se-ia chegar à conclusão de que há certos conceitos exclusivamente

jurídicos que, não obstante, partilham a sua designação linguística com outros conceitos de

outras áreas filosóficas. Este não parece, contudo, ser o argumento de PRATA.

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Não obstante a definição ser desadequada para o propósito que visa estabelecer, dado

que, a ser tomada à letra, conclui-se que virtualmente não há conceitos jurídicos, dado o

requisito de exclusividade pedido aos mesmos, a verdade é que o referido propósito é claro:

separar o que é jurídico daquilo que não é. Se se deixasse cair o requisito de exclusividade,

poder-se-ia tentar encetar uma divisão entre conceitos também, mas não exclusivamente,

relevantes para o Direito, como «contrato», «obrigação», «direito», etc., e conceitos que não

são, de todo, jurídicos. Note-se que, apesar da distinção tradicional entre «questão de facto» e

«questão de Direito» ser artificial e desadequada, não conhecemos nenhum argumento que

defenda que questões de facto, no sentido tradicional da expressão, sejam totalmente

irrelevantes para se resolver questões de Direito. Nem mesmo KELSEN, porventura o autor que

mais perto esteve de defender semelhante ideia, o chega a fazer, dado que, para este, a

verificação da conduta fáctica que se opõe ao prescrito pela norma é condição necessária da

sanção que a mesma prevê, o que significa que, ainda que os factos, no sentido tradicional,

possam ser dispensáveis para a elaboração de uma teoria pura do Direito, não são irrelevantes

para a resolução de questões de Direito concretas, mas sim essenciais, dado que, sem factos,

no sentido tradicional, as normas individuais de KELSEN nunca seriam criadas.

Cremos que estas considerações demonstram que, ainda que a hipótese desenvolvida

ao longo deste ensaio possa ser inédita quanto à circunstância de indicar expressamente que

todo o Direito é composto por dados de facto e que pertence, quando considerado em si mesmo,

completamente à ordem do ser, na sua substância estamos muito longe de poder reclamar

qualquer tipo de originalidade, dado que, ainda que alguns juristas, académicos ou praticantes,

não se apercebam que todo o seu trabalho incide sobre realidades factuais, não restam dúvidas

de que o executam da única forma possível, a saber, tratando toda a realidade jurídica como

uma realidade de facto. Repare-se que, ao longo deste trabalho, colocámos a ênfase das nossas

considerações sobre as decisões judiciais, mas há outras instâncias de utilização do Direito que,

não obstante não serem decisões judiciais, são produtoras de normas porque levam em linha de

conta todo o espetro da factualidade, ou seja, não se limitam a ponderar sobre enunciados

normativos, estendendo o escopo da sua análise a factos brutos e institucionais que, na

conceção tradicional, não seriam considerados como «matéria de Direito», mas sim «matéria

de facto». Assim, decisões para-judiciais como as resultantes do processo de arbitragem, tanto

voluntária como necessária, incluem-se no elenco de instâncias de utilização do Direito, o que,

de resto, não é surpreendente, visto que, também aqui, estamos perante atos de decisão. A

proveniência do árbitro é distinta da do juiz, as regras processuais, na arbitragem voluntária,

estão na disponibilidade das partes, bem como a possibilidade de escolher entre o Direito

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constituído ou a equidade, mas na medida em que o Estado empreste o seu poder coercivo à

decisão arbitral, tornando a norma daí resultante obrigatória para as partes em litígio, a conduta

das mesmas estará adstrita a normas jurídicas. Para além disso, há ainda que levar em linha de

conta que pareceres e consultas jurídicas também são atos de decisão que resultam da

consideração de toda a factualidade relevante, que engloba factos brutos e institucionais, onde,

de resto, se inserem as regras provenientes das fontes do Direito aplicáveis ao caso, e, por isso,

qualquer jurisconsulto pode criar factos mentais que, na sua essência, são idênticos aos factos

mentais «normas jurídicas», apenas se diferenciando destas por uma questão formal, mas muito

importante, a saber, a de não se encontrarem dotadas do poder coercivo do Estado. O mesmo

tipo de raciocínio é, de resto, aplicável aos contratos, na medida em que as partes, ao regularem

a sua conduta segundo o disposto nas cláusulas contratuais, fazem-no tendo em atenção toda a

realidade de facto relevante, que, voltamos a reiterar, engloba factos brutos e institucionais,

onde se incluem leis ou outras fontes do Direito importantes para reger o contrato.

Naturalmente, as cláusulas contratuais só não são normas pela mesma razão formal que

pareceres e consultas jurídicas não o são, mas, na sua substância, são factos mentais cuja

essência é idêntica à da norma jurídica.

Em suma, a grande consequência ao nível de política jurídica que a reconceptualização

da natureza do Direito proposta ao longo deste trabalho poderia fazer surgir seria a de evitar

que se tratasse a distinção entre «matéria de facto», expressão que, no fundo, visa designar

factos brutos e factos mentais que, tomados em si mesmos, não teriam relevância para o Direito,

adquirindo todavia essa mesma relevância na medida em que a sua realização despolete

consequências jurídicas, e «matéria de Direito», expressão que visa designar factos mentais, de

entre os quais se destacam os factos institucionais, cuja operatividade se manifesta

principalmente no Direito, como contratos, testamentos, leis, etc., da forma estanque que

atualmente se encontra consagrada nos códigos processuais. De forma a potenciar uma melhor

divisão do trabalho, impedindo-se que tribunais superiores tenham que efetuar todas as

diligências que incumbem aos tribunais inferiores, o que equivaleria a uma repetição inútil das

mesmas atividades e colocaria, de resto, em causa a legitimidade do sistema de recursos, dado

que decisões de instâncias inferiores e superiores seriam formal e materialmente indistinguíveis

(com exceção do facto de a decisão da instância superior ser a que prevalece), o que esbateria

as vantagens de haver uma instância de apelo, é correto que se exija a presença de certos

requisitos, como os constantes do artigo 712.º do Código de Processo Civil, para que se possa

modificar a decisão de facto. No entanto, artigos como o aqui mencionado são elaborados no

pressuposto de que há decisões de facto independentes de decisões de Direito, ou seja, que

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ambos os tipos de decisão são possíveis de elaborar autonomamente. Pode-se dizer, de resto,

que, como a possibilidade de modificar a decisão de facto, no sentido em que a expressão é

utilizada no artigo 712.º do Código do Processo Civil, é excecional, sendo que a regra geral é

a de que a decisão de facto é inalterável pelas instâncias superiores, todo o raciocínio que

preside à lógica dos recursos é o de que é possível a juízes de instâncias superiores elaborarem

conclusões de Direito parcial ou totalmente diferentes das conclusões elaboradas por juízes de

instâncias inferiores a partir dos mesmos dados de facto. Aquilo que urge mudar no sistema

jurisdicional em matéria de recursos não é, por conseguinte, a imposição de condições para que

os tribunais superiores possam eles próprios investigar os factos brutos e mentais que, não

sendo, em si mesmos, jurídicos, fazem parte da norma a criar, dado que têm que haver sempre

condições que restrinjam semelhante empreendimento, sob pena de as instâncias superiores

passarem a fazer, integralmente, o trabalho das instâncias inferiores; o que urge, isso sim,

modificar, é a conceção de que resolver uma questão de Direito é aplicar o Direito aos factos,

é subsumir os factos às «normas», no sentido tradicional do termo. Isto não é possível fazer

porque, tanto do lado da «matéria de facto» como da «matéria de Direito» só há factos. Assim,

se se puder dispensar a produção de prova testemunhal ou pericial (oral) no âmbito de um

recurso, o mesmo deve ser feito, de forma a evitar duplicar o trabalho da primeira instância,

mas o conhecimento dessa mesma produção de prova deve ser sempre disponibilizado, sob o

suporte tecnológico que se achar mais conveniente, aos juízes desembargadores ou

conselheiros para que estes possam decidir sobre todos os factos, evitando-se, assim, situações

em que o ato de decisão da instância superior é, na realidade, um meio ato de decisão: a metade

dos factos que corresponde a factos brutos e mentais que, tomados em si mesmos, não são

jurídicos, já vem decidida, cabendo a desembargadores e conselheiros decidir apenas sobre os

factos mentais em si mesmos relevantes para o Direito. Isto parece-nos uma mutilação do

processo de pensamento que conduzirá ao ato de decisão jurídico, dado que, de todos os factos

relevantes para essa mesma decisão, os juízes dos tribunais superiores só podem formular

decisões sobre um género de factos, incumbindo-lhes posteriormente enquadrá-las com as

decisões que lhes chegam das instâncias inferiores. Isto leva-nos à conclusão paradoxal de que

a melhor decisão jurídica, por ser a única que é completa, é a da primeira instância, dado que

as das instâncias superiores, por, regra geral, não poderem investigar autonomamente os factos

brutos importantes para a conclusão de Direito, encontram-se de certa forma mutiladas,

amputadas, e, por isso, o seu valor enquanto decisão de Direito é menor porque não levam em

linha de conta todos os factos relevantes para a decisão, e isto subverte toda a lógica de um

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sistema jurisdicional assente na possibilidade de instâncias superiores revogarem decisões de

instâncias inferiores.

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NOTAS

INTRODUÇÃO

1Múrias, 100.

CAPÍTULO 1

1 Colomb, 12.

2 [S]peech acts, acts such as making statements, giving commands, asking questions, making promises,

and so on; and more abstractly, acts such as referring and predicating. (Searle, Speech Acts, 16)

3 Intentionality is that property of many mental states and events by which they are directed at or about

or of objects and states of affairs in the world. (Searle, Intentionality, 1)

4 [I]f I have an intention, it must be an intention to do something. (Idem)

5 Intentionality is not the same as consciousness. Many conscious states ate not Intentional, e.g., a

sudden sense of elation, and many Intentional states are not conscious, e.g., I have many beliefs that I

am not thinking about at present and I may never have thought of. (Idem, 2)

6 [I]ntending to do something is just one form of Intentionality along with belief, hope, fear, desire, and

lots of others. (Idem, 3)

7 Beliefs and desires are Intentional states, but they do not intend anything. (Idem)

8 Drinking beer and writing books can be described as acts or actions or even activities, and doing

arithmetic in your head or forming mental images of the Golden Gate Bridge are mental acts; but

believing, hoping, fearing, and desiring are not acts nor mental acts at all. Acts are things one does, but

there is no answer to the question, “What are you now doing?” which goes, “I am now believing it will

rain”, or “hoping that taxes will be lowered”, or “fearing a fall in the interest rate”, or “desiring to go to

the movies”. (Idem)

9 When people act intentionally, they display more than one intention. They intend to examine the

contents of the fridge, to get to the kitchen, to leave the living-room, to walk, to traverse a certain

distance, etc. (Raz, Intention in Interpretation, 281)

10 A member of the legislature voting for a Bill may intend to curry favour with the electorate, to appear

courageous and resolute to his children, to alleviate the distress caused to single parents (I am assuming

that the Bill protects them in some way), etc. Which of all these intentions matters to the interpretation

of the legislation? (Idem)

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11 We find no problem in attributing intentions to corporations, groups, and institutions in ordinary life,

and the law assumes that corporations and some other legal subjects who are not human beings can act

intentionally. (Idem, 280)

12 Only acts undertaken with the intention to legislate can be legislative acts. The reason is that the

notion of legislation imports the idea of entrusting power over the law into the hands of a person or an

institution, and this imports entrusting voluntary control over the development of the law, or an aspect

of it, into the hands of the legislator. This is inconsistent with the idea of unintentional legislation.

(Idem, 282)

13 Ascensão, 9.

14 Idem, 20.

15 Para uma discussão acerca de alguns desses conceitos no âmbito do Direito penal cf. Segre, 54-6.

16 Idem, 51.

17 [I]s there any description which is the description of an intentional action, given that an intentional

action occurs? (Anscombe, Intention, 37)

18 [I]f a description of some future state of affairs makes sense just by itself as an answer to the question,

then it is an expression of intention. (Idem, 34)

19 [O]ur enquiries into the question ‘Why?’ enable us to narrow down our consideration of descriptions

of what he is doing to a range covering all and only his intentional actions. (Idem, 37-8)

20 [I]f he is being improbably confidential and is asked ‘Why did you replenish the house water-supply

with poisoned water?’, his reply is, not ‘To polish them off’, but ‘I didn’t care about that, I wanted my

pay and just did my usual job’. In that case, although he knows concerning an intentional act of his –

for it, namely replenishing the house water-supply, is intentional by our criteria – that it is also an act

of replenishing the house water-supply with poisoned water, it would be incorrect, by our criteria, to

say that his act of replenishing the house supply with poisoned water was intentional. (Idem, 42)

21 The future state of affairs mentioned must be such that we can understand the agent’s thinking it will

or may be brought about by the action about which he is being questioned. (Idem, 35)

22 In order to make sense of “I do P with a view to Q”, we must see how the future state of affairs Q is

supposed to be a possible later stage in proceedings of which the action P is an earlier stage. (Idem, 36)

23 [I]t should be his usual job if his answer is to be acceptable; and he must not do anything, out of the

usual course of his job, that assists the poisoning and of which he cannot give an acceptable account.

(Idem, 43)

24 A ser verdade que interpretar é buscar a intenção do autor, manifestada através das palavras do texto,

a conclusão que se retira é óbvia: não existe conduta alternativa e, por isso mesmo, a regra do artigo 9º

CC não é uma norma, dado que é insusceptível de pautar uma conduta. Ainda que se opere sob a ilusão

de se estar a interpretar o texto e a ignorar o autor, ou vice-versa, o intérprete, na realidade, não está a

ignorar nada, porque tal é impossível. (Ferreira, Contra as teorias, 1850)

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25 Following Hume I might say to my grocer: “Truth consists in agreement either to relations of ideas,

as that twenty shillings make a pound, or to matters of fact, as that you have delivered me a quarter of

potatoes; from this you can see that the term does not apply to such a proposition as that I owe you so

much for the potatoes. You really must not jump from an ‘is’ – as, that it really is the case that I asked

for the potatoes and that you delivered them and sent me a bill – to an ‘owes’”. (Anscombe, Brute Facts,

69)

26 For the statement that I owe the grocer does not contain a description of our institutions, any more

than the statement that I gave someone a shilling contains a description of the institution of money and

of the currency of this country. In the other hand, it requires these or very similar institutions as

background in order so much as to be the kind of statement that it is. (Idem)

27 Idem, 69-70.

28 Idem, 70.

29 As compared with supplying me with a quarter of potatoes we might call carting a quarter of potatoes

to my house and leaving them there a “brute fact”. But as compared with the fact that I owe the grocer

such-and-such a sum of money, that he supplied me with a quarter of potatoes is itself a brute fact. In

relation to many descriptions of events or states of affairs which are asserted to hold, we can as what

the “brute facts” were; and this will mean the facts which held, and in virtue of which, in a proper

context, such-and-such a description is true or false, and which are more “brute” than the alleged fact

answering to the description. (…) On the other hand, one could think of facts in relation to which my

owing the grocer such-and-such a sum of money is “brute” – e.g. the fact that I am solvent. (Idem, 71)

30 In every system of morality, which I have hitherto met with, I have always remark’d, that the author

proceeds for some time in the ordinary way of reasoning, and establishes the being of a God, or makes

observations concerning human affairs; when of a sudden I am surpriz’d to find, that instead of the

usual copulations of propositions, is, and is not, I meet with no proposition that is not connected with

an ought, or an ought not. This change is imperceptible; but is, however, of the last consequence. For

as this ought, or ought not, expresses some new relation or affirmation, ‘tis necessary that it shou’d be

observ’d and explain’d; and at the same time that a reason should be given, for what seems altogether

inconceivable, how this new relation can be a deduction from others, which are entirely different from

it. But as authors do not commonly use this precaution, I shall presume to recommend it to the readers;

and am persuaded, that this small attention wou’d subvert all the vulgar systems of morality, and let us

see, that the distinction of vice and virtue is not founded merely on the relations of objects, nor is

perceiv’d by reason. (Hume, 483-4)

31 Whoever considers the history of the several nations of the world; their revolutions, conquests,

increase, and diminution; the manner in which their particular governments are establish’d, and the

successive right transmitted from one person to another, will soon learn to treat very lightly all disputes

concerning the rights of princes, and will be convinc’d, that a strict adherence to any general rules, and

the rigid loyalty to particular persons and families, on which some people set so high a value, are virtues

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that hold less of reason, than of bigotry and superstition. In this particular, the study of history confirms

the reasonings of true philosophy; which, shewing us the original qualities of human nature, teaches us

to regard the controversies in politics as incapable of any decision in most cases, and as entirely

subordinate to the interests of peace and liberty. Where the public good does not evidently demand a

change; ‘tis certain, that the concurrence of all those titles, original contract, long possession, present

possession, succession, and positive laws, forms the strongest title to sovereignty, and is justly regarded

as sacred and inviolable. But when these titles are mingled and oppos’d in different degrees, they often

occasion perplexity; and are less capable of solution from the arguments of lawyers and philosophers,

than from the swords of the soldiery. (Idem, 562)

32 [I]f it is not the case that ‘good’ denotes something simple and indefinable, only two alternatives are

possible: either it is a complex, a given whole, about the correct analysis of which there may be

disagreement; or else it means nothing at all, and there is no such subject as Ethics. (Moore, 66)

33 [B]oth may be dismissed by a simple appeal to facts. (Idem, 67)

34 Moore propose une méthode analytique qui consiste à poser « la question la plus fondamentale de

toute l’éthique », à savoir : comment définir le « bien » ? Or, il conclut de son analyse de « bien » que

toute définition de cette notion, qu’elle soit naturaliste ou métaphysique, procède d’un sophisme : «

bien » est un terme indéfinissable, aucun synonyme ne peut en être trouvé. (Leyens, 83)

35 The hypothesis that disagreement about the meaning of good is disagreement with regard to the

correct analysis of a given whole, may be most plainly seen to be incorrect by consideration of the fact

that, whatever definition be offered, it may be always asked, with significance, of the complex so

defined, whether it is itself good. To take, for instance, one of the more plausible, because one of the

more complicated, of such proposed definitions, it may easily be thought, at first sight, that to be good

may mean to be that which we desire to desire. Thus if we apply this definition to a particular instance

and say ‘When we think that A is good, we are thinking that A is one of the things which we desire to

desire,’ our proposition may seem quite plausible. But, if we carry the investigation further, and ask

ourselves ‘Is it good to desire to desire A?’ it is apparent, on a little reflection, that this question is itself

as intelligible, as the original question ‘Is A good?’ (…) Moreover any one can easily convince himself

by inspection that the predicate of this proposition – ‘good’ – is positively different from the notion of

‘desiring to desire’ which enters into its subject: ‘That we should desire to desire A is good’ is not

merely equivalent to ‘That A should be good is good.’ (Moore, 67-8)

36 Ferreira, O princípio da legalidade, 4203.

37 [E]ven if we have determined that something is what we desire to desire or is more evolved, the

question whether it is good remains “open,” in the sense that it is not settled by the meaning of the word

“good.” (Hurka, pp. n.d.)

38 [I]t is very easy to conclude that what seems to be a universal ethical principle is in fact an identical

proposition; that, if, for example, whatever is called ‘good’ seems to be pleasant, the proposition

‘Pleasure is the good’ does not assert a connection between two different notions, but involves only

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one, that of pleasure, which is easily recognised as a distinct entity. But whoever will attentively

consider with himself what is actually before his mind when he asks the question ‘Is pleasure (or

whatever it may be) after all good?’ can easily satisfy himself that he is not merely wondering whether

pleasure is pleasant. (…) Every one does in fact understand the question ‘Is this good?’ When he thinks

of it, his state of mind is different from what it would be, were he asked ‘Is this pleasant, or desired, or

approved?’ It has a distinct meaning for him, even though he may not recognise in what respect it is

distinct. Whenever he thinks of ‘intrinsic value,’ or ‘intrinsic worth,’ or says that a thing ‘ought to exist,’

he has before his mind the unique object – the unique property of things – which I mean by ‘good.’

(Moore, 68)

39 [B]eing good cannot be identified with any one member of the plurality of intrinsic goods. (Sosa, 46)

40 [C]oncerning any natural property X proposed as identical with the property of being good, there is

always some such “open question” as: “Is having X inevitably necessary and sufficient for being good?”

Even if we answer such a question in the affirmative, once our answer is disputed (…) that will show

the property X and the property of being good not to be one and the same property. For if these were

the same, then our question would be tantamount to the question “Is having X inevitably necessary and

sufficient for having X?” (Idem)

41 Cf. nota 39.

42 [D]ie Norm als der spezifische Sinn eines intentional auf das Verhalten anderer gerichteten Aktes

etwas anderes ist als der Willensakt, dessen Sinn sie ist. Denn die Norm ist ein Sollen, der Willensakt,

dessen Sinn sie ist, ein Sein, Darum muβ der Sachverhalt, der im Falle eines solchen Aktes vorliegt, in

der Aussage beschrieben werden: der eine will, daβ sich der andere in bestimmter Weise verhalten soll.

Der erste Teil bezieht sich auf ein Sein, die Seins-Tatsache des Willensaktes, der zweite Teil auf ein

Sollen, auf eine Norm als den Sinn des Aktes. Darum trifft nicht zu — wie vielfach behauptet wird —

die Aussage: ein Individuum soll etwas, bedeute nichts anderes als: ein anderes Individuum will etwas;

das heiβt, daβ sich die Aussage eines Sollens auf die Aussage eines Seins reduzieren lasse.

Der Unterschied zwischen Sein und Sollen kann nicht näher erklärt werden. Er ist unserem Bewuβtsein

unmittelbar gegeben. Niemand kann leugnen, daβ die Aussage: etwas ist — das ist die Aussage, mit

dem eine Seins-Tatsache beschrieben wird — wesentlich verschieden ist von der Aussage: daβ etwas

sein soll — das ist die Aussage, mit der eine Norm beschrieben wird; und daβ daraus, daβ etwas ist,

nicht folgen kann, daβ etwas sein soll, so wie daraus, daβ etwas sein soll, nicht folgen kann, daβ etwas

ist. (Kelsen, Reine Rechtslehere, 5)

43 Dieser Dualismus von Sein und Sollen bedeutet jedoch nicht, daβ Sein und Sollen beziehungslos

nebeneinander stehe. (Idem, 6)

44 Aber das in der Norm, als Inhalt der Norm, als gesollt statuierte Verhalten kann mit dem tatsächlichen

Verhalten verglichen werden und demnach als der Norm (und das heiβt: dem Inhalt der Norm)

entsprechend oder nicht entsprechend beurteilt werden. Das als Inhalt der Norm gesollte Verhalten kann

jedoch nicht das tatsächliche, der Norm entsprechende Verhalten sein. (Idem)

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45 Sofern der von der Rechtsordnung statuierte Zwangsakt als Reaktion auf ein von der Rechtsordnung

bestimmtes Verhalten eines Menschen auftritt, hat dieser Zwangsakt den Charakter einer Sanktion, und

das menschliche Verhalten, gegen das der Zwangsakt gerichtet ist, den Charakter eines verbotenen,

rechtswidrigen Verhaltens, eines Unrechts oder Deliktes; es ist das Gegenteil jenes Verhaltens, das als

geboten oder rechtmäßig anzusehen ist, ein Verhalten, durch das die Anwendung der Sanktion

vermieden wird. Daβ das Recht eine Zwangsordnung ist, bedeutet nicht — wie dies mitunter behauptet

wird —, daβ es zum Wesen des Rechtes gehört, das rechtmäßige, von der Rechtsordnung gebotene

Verhalten zu „erzwingen“. Dieses Verhalten wird nicht durch die Setzung des Zwangsaktes erzwungen,

denn der Zwangsakt ist gerade dann zu setzen, wenn nicht das gebotene, sondern das verbotene, das

rechtswidrige Verhalten erfolgt. Gerade für diesen Fall ist ja der als Sanktion fungierende Zwangsakt

statuiert. (Idem, 36)

46 Kelsen, Teoria Pura, 6, nota 2. O original é o seguinte: Von dem Begriff des Sollens gilt dasselbe,

was George Edward Moore, Principia Ethica, Cambridge, 1922, S. 7 ff. von dem Begriff „gut” sagt:

„’good‘ is a simple notion just as ,yellow‘ is a simple notion.“ Ein einfacher Begriff ist nicht definierbar

und — was auf dasselbe hinausläuft – nicht analysierbar. (Idem, 5)

47 Searle, How to derive, 43, nota 2.

48 It is often said that one cannot derive an “ought” from an “is.” This thesis, which comes from a famous

passage in Hume's Treatise, while not as clear as it might be, is at least clear in broad outline: there is a

class of statements of fact which is logically distinct from a class of statements of value. No set of

statements of fact by themselves entails any statement of value. Put in more contemporary terminology,

no set of descriptive statements can entail an evaluative statement without the addition of at least one

evaluative premise. To believe otherwise is to commit what has been called the naturalistic fallacy.

(Idem, 43)

49 [T]here is a class of statements of fact which is logically distinct from a class of statements of value.

No set of statements of fact by themselves entails any statement of value. Put in more contemporary

terminology, no set of descriptive statements can entail an evaluative statement without the addition of

at least one evaluative premise. To believe otherwise is to commit what has been called the naturalistic

fallacy. (Idem)

50 It is not of course to be supposed that a single counterexample can refute a philosophical thesis, but

in the present instance if we can present a plausible counterexample and can in addition give some

account or explanation of how and why it is a counterexample, and if we can further offer a theory to

back up our counterexample-a theory which will generate an indefinite number of counterexamples –

we may at the very least cast considerable light on the original thesis; and possibly, if we can do all

these things, we may even incline ourselves to the view that the scope of that thesis was more restricted

than we had originally supposed. (Idem)

51 A counterexample must proceed by taking a statement or statements which any proponent of the

thesis would grant were purely factual or “descriptive” (they need not actually contain the word “is”)

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and show how they are logically related to a statement which a proponent of the thesis would regard as

clearly “evaluative.” (Idem, 43-4)

52 (1) Jones uttered the words “I hereby promise to pay you, Smith, five dollars.”

(2) Jones promised to pay Smith five dollars.

(3) Jones placed himself under (undertook) an obligation to pay Smith five dollars.

(4) Jones is under an obligation to pay Smith five dollars.

(5) Jones ought to pay Smith five dollars. (Idem, 44)

53 The conditions will include such things as that the speaker is in the presence of the hearer Smith, they

are both conscious, both speakers of English, speaking seriously. The speaker knows what he is doing,

is not under the influence of drugs, not hypnotized or acting in a play, not telling a joke or reporting an

event, and so forth. (Idem, 45)

54 In certain circumstances, uttering the words in quotation marks in (1) is the act of making a promise.

And it is a part of or a consequence of the meaning of the words in (1) that in those circumstances

uttering them is promising. (Idem, 44)

55 (1a) Under certain conditions C anyone who utters the words (sentence) “I hereby promise to pay

you, Smith, five dollars” promises to pay Smith five dollars. (Idem)

56 From (1), (1a), and (1b) we derive (2). The argument is of the form: If C then (if U then P): C for

conditions, U for utterance, P for promise. Adding the premises U and C to this hypothetical we derive

(2). And as far as I can see, no moral premises are lurking in the logical woodpile. (Idem, 45)

57 I take it that promising is, by definition, an act of placing oneself under an obligation. No analysis of

the concept of promising will be complete which does not include the feature of the promiser placing

himself under or undertaking or accepting or recognizing an obligation to the promisee, to perform

some future course of action, normally for the benefit of the promisee. (Idem)

58 (2a) All promises are acts of placing oneself under (undertaking) an obligation to do the thing

promised. (Idem, 46)

59 If one has placed oneself under an obligation, then, other things being equal, one is under an

obligation. That I take it also is a tautology. Of course it is possible for all sorts of things to happen

which will release one from obligations one has undertaken and hence the need for the ceteris paribus

rider. To get an entailment between (3) and (4) we therefore need a qualifying statement to the effect

that:

(3a) Other things are equal. (Idem)

60 (3b) All those who place themselves under an obligation are, other things being equal, under an

obligation. (Idem)

61 What is the relation between (4) and (5)? Analogous to the tautology which explicates the relation of

(3) and (4) there is here the tautology that, other things being equal, one ought to do what one is under

an obligation to do. (Idem)

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62 We need the ceteris paribus clause to eliminate the possibility that something extraneous to the

relation of “obligation” to “ought” might interfere. (Idem, 47)

63 The force of the expression “other things being equal” in the present instance is roughly this. Unless

we have some reason (that is, unless we are actually prepared to give some reason) for supposing the

obligation is void (step 4) or the agent ought not to keep the promise (step 5), then the obligation holds

and he ought to keep the promise. It is not part of the force of the phrase “other things being equal” that

in order to satisfy it we need to establish a universal negative proposition to the effect that no reason

could ever be given by anyone for supposing the agent is not under an obligation or ought not to keep

the promise. That would be impossible and would render the phrase useless. It is sufficient to satisfy

the condition that no reason to the contrary can in fact be given.

If a reason is given for supposing the obligation is void or that the promiser ought not to keep a promise,

then characteristically a situation calling for an evaluation arises. Suppose, for example, we consider a

promised act wrong, but we grant that the promiser did undertake an obligation. Ought he to keep the

promise? There is no established procedure for objectively deciding such cases in advance, and an

evaluation (if that is really the right word) is in order. But unless we have some reason to the contrary,

the ceteris paribus condition is satisfied, no evaluation is necessary, and the question whether he ought

to do it is settled by saying “he promised.” It is always an open possibility that we may have to make

an evaluation in order to derive “he ought” from “he promised,” for we may have to evaluate a

counterargument. But an evaluation is not logically necessary in every case, for there may as a matter

of fact be no counterarguments. I am therefore inclined to think that there is nothing necessarily

evaluative about the ceteris paribus condition, even though deciding whether it is satisfied will

frequently involve evaluations. (Idem, 47-8)

64 But suppose I am wrong about this: would that salvage the belief in an unbridgeable logical gulf

between “is” and “ought”? I think not, for we can always rewrite my steps (4) and (5) so that they

include the ceteris paribus clause as part of the conclusion. Thus from our premises we would then have

derived “Other things being equal Jones ought to pay Smith five dollars,” and that would still be

sufficient to refute the tradition, for we would still have shown a relation of entailment between

descriptive and evaluative statements. It was not the fact that extenuating circumstances can void

obligations that drove philosophers to the naturalistic fallacy fallacy; it was rather a theory of language.

(Idem, 48)

CAPÍTULO 2

1 In historical or fictional narrative there occur reports, not only of what human beings overtly said and

did, but also of what they thought, how they felt, what they saw and heard, and so on; I shall call the

latter kind of reports “reports of mental acts”. (Geach, 1)

2 Idem, 7.

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3 [O]n the face of it if somebody puts his belief into words, not parrotwise but with consideration, then

there occurs a mental act, of the sort that I call an act of judgment. Anybody performs an act of judgment

at least as often as he makes up his mind how to answer a question. (Idem, 9)

4 Sobre os problemas e princípios da validação de uma interpretação de um texto cf. Hirsch, Validity in

Interpretation, 164-207.

5 Acts of judgment in this sense are plainly episodic – have a position in a time-series. (Geach, 9)

6 Cf. Ferreira, Contra as teorias, e Ferreira, O princípio da legalidade.

7 Brest, 69-85.

8 Para uma discussão acerca do uso e função dos «quatro grandes tropos», a saber, a metáfora, a

metonímia, a sinédoque e a ironia, cf. Burke, 503-17.

9 Besides the uttering of the words of the so called performative, a good many other things have as a

general rule to be right and to go right if we are to be said to have happily brought off our action. What

these are we may hope to discover by looking at and classifying types of case in which something goes

wrong and the act – marrying, betting, bequeathing, christening, or what not – is therefore at least to

some extent a failure: the utterance is then, we may say, not indeed false but in general unhappy. And

for this reason we call the doctrine of the things that can be and go wrong on the occasion of such

utterances, the doctrine of the Infelicities. (J.L. Austin, 14)

10 There must exist an accepted conventional procedure having a certain conventional effect, that

procedure to include the uttering of certain words by certain persons in certain circumstances. (Idem)

11 If I shall then be helping the grass to grow, I shall have no time for reading. (Grice, 88)

12 Idem, 89.

13 Idem.

14 Starting with the assumption that the notion of an utterer’s occasion-meaning can be explicated, in a

certain way, in terms of an utterer’s intentions, I argue in support of the thesis that timeless meaning

and applied timeless meaning can be explicated in terms of the notion of utterer’s occasion-meaning

(together with other notions), and so ultimately in terms of the notion of intention. (Idem, 91. O

argumento de GRICE é desenvolvido por este nas pp. 117-37.)

15 Para uma análise profunda do pensamento de GRICE, cf. Rolf, especialmente pp. 30-102.

16 [T]he design or intention of the author is neither available nor desirable as a standard for judging the

success of a work of literary art. (Wimsatt e Beardsley, 3)

17 [I]s not a critic (kritikos) a judge, who does not explore his own consciousness, but determines the

author’s meaning or intention, as if the poem were a will, a contract, or the constitution? The poem is

not the critic’s own. (Stoll, 703)

18 The poem is not the critic’s own and not the author’s (it is detached from the author at birth and goes

about the world beyond his power to intend about it or control it). The poem belongs to the public. It is

embodied in language the peculiar possession of the public, and it is about the human being, an object

of public knowledge. (Wimsatt e Beardsley, 5)

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19 Cf. nomeadamente Validity in Interpretation e The Aims of Interpretation.

20 Cf. Juhl, especialmente pp. 45-65.

21 Cf. Ferreira, Contra as teorias, especialmente pp. 1818-40.

22 Para uma visão abrangente destas posições teóricas cf. Larenz, 11-249 e 312-65, e Andrade.

23 As a native speaker of English I know that “oculist” is exactly synonymous with “eye doctor”, that

“bank” has (at least) two meaning, that “cat” is a noun, that “oxygen” is unambiguous (…). Yet I have

no operational criteria for synonymy, ambiguity (…). Furthermore, any criterion for any one of these

concepts has to be consistent with my (our) knowledge or must be abandoned as inadequate.

Any appeal to a criterion presupposes the adequacy of the criterion and that adequacy can only be

established by testing the criterion against examples such as these. The point is not that the claims made

in linguistic characterizations cannot be justified in the absence of the preferred kinds of criteria, but

rather that any proposed criterion cannot be justified in the absence of antecedent knowledge expressed

by linguistic characterizations. (Searle, Speech Acts, 11)

24 What sorts of explanation, or account, or justification could I offer for the claim that such and such a

string of words is a sentence or that “oculist” means eye doctor or that it is analytically true that women

are females? (Idem, 12)

25 Speaking a language is engaging in a (highly complex) rule-governed form of behavior. To learn and

master a language is (inter alia) to learn and to have mastered these rules. (…) [W]hen I, speaking as a

native speaker, make linguistic characterizations of the kind exemplified above, I am not reporting the

behavior of a group but describing aspects of my mastery of a rule-governed skill. (Idem)

26 Cf. nota 6.

27 This would seem to be a good case of intentionless meaning: you recognize the writing as writing,

you understand what the words mean, you may even identify them as constituting a rhymed poetic

stanza – and all this without knowing anything about the author and indeed without needing to connect

the words to any notion of an author at all. You can do all these things without thinking of anyone's

intention. (Knapp e Michaels, 727).

28 One might ask whether the question of intention still seems as irrelevant as it did seconds before. You

will now, we suspect, feel compelled to explain what you have just seen. Are these marks mere

accidents, produced by the mechanical operation of the waves on the sand (through some subtle and

unprecedented process of erosion, percolation, etc.)? Or is the sea alive and striving to express its

pantheistic faith? Or has Wordsworth, since his death, become a sort of genius of the shore who inhabits

the waves and periodically inscribes on the sand his elegiac sentiments? You might go on extending the

list of explanations in-definitely, but you would find, we think, that all the explanations fall into two

categories. You will either be ascribing these marks to some agent capable of intentions (the living sea,

the haunting Wordsworth, etc.), or you will count them as nonintentional effects of mechanical

processes (erosion, percolation, etc.). (Idem, 728)

29 [W]here the marks now seem to be accidents – will they still seem to be words?

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Clearly not. They will merely seem to resemble words. (Idem)

30 Since computers are machines, the issue of whether they can speak seems to hinge on the possibility

of intentionless language. But our example shows that there is no such thing as intentionless language;

the only real issue is whether computers are capable of intentions. (Idem, 729)

31 Cf. Freud, 44-104.

32 [T]he truly radical break with other forms of life comes when humans, through collective

intentionality, impose functions on phenomena where the function cannot be achieved solely in virtue

of physics and chemistry but requires continued human cooperation in the specific forms of recognition,

acceptance, and acknowledgment of a new status to which a function is assigned. (Searle, The

Construction, 40)

33 [M]ountains and molecules exist independently of our representations of them. (Searle, The

Construction, 9)

34 [Institutional facts] are indeed facts; but their existence, unlike the existence of brute facts,

presupposes the existence of certain human institutions. (…)

These “institutions” are systems of constitutive rules. (Searle, Speech Acts, 51)

35 [R]egulative rules regulate antecendently or independently existing forms of behavior (…). But

constitutive rules do not merely regulate, they create or define new forms of behavior. (Idem, 33)

36 I do not think there is a sharp diving line between (…) the institutional and the non-institutional.

(Searle, The Construction, 71)

37 Intuitively it seems there are no institutional facts without brute facts. For example, just about any

sort of substance can be money, but money has to exist in some physical form of other. Money can be

bits of metal, slips of paper, wampum, or entries in books. (…) This suggests what I think is true, that

social facts in general, and institutional facts especially, are hierarchically structured. Institutional facts

exist, so to speak, on top of brute physical facts. (Idem, 35)

38 Many species of animals, or own especially, have a capacity for collective intentionality. By this I

mean not only that they engage in cooperative behaviour, but that they share intentional states such as

beliefs, desires, and intentions. (Idem, 23)

Para um aprofundamento da noção de intencionalidade coletiva cf. Idem, 23-6, e Searle, Collective

Intentions, 401-15.

39 “X counts as Y” or “X counts as Y in context C.” (Searle, The Construction, 28)

40 [F]or example, many rules of etiquette regulate inter-personal relationships which exist independently

of the rules. (Searle, Speech Acts, 33)

41 Regulative rules characteristically take the form of or can be paraphrased as imperatives, e.g., “When

cutting food, hold the knife in the right hand”, or “Officers must wear ties at dinner”. (Idem)

42 SEARLE tells us that institutions are systems of rules, indeed, in his very own words “systems of

constitutive rules”. But that will hardly do, for (…) that would simply involve an obvious confusion

between the law of contract and the legal institution ‘contract’ itself which is regulated by that branch

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of law. Institutions (and institutional facts) in the philosophical sense obviously have something to do

with rules, but are not identical with them. (MacCormick, Law as Institutional Fact, 51)

43 The name that will here be given to such practices is ‘informal normative practices’, and the kind of

order they constitute ‘informal normative order’. (MacCormick, Institutions of Law, 19)

44 Idem, 14.

45 There is a trivial sense in which the creation of any rule creates the possibility of new forms of

behavior, namely, behavior done in accordance with the rule. (Searle, Speech Acts, 35)

46 Where the rule is purely regulative, behaviour which is in accordance with the rule could be given

the same description or specification (the same answer to the question “What did he do?”) whether or

not the rule existed, provided the description or specification makes no explicit reference to the rule.

(Idem)

47 Turn-taking or queuing is then normative. For where there is a queue for something you want, you

ought to take your turn in it, and people who do take their turn do so because in their opinion that is

what one ought to do – that is, ought to do in the given context. Such an action-guiding ‘ought’ alerts

us to the presence of some kind of norm, and to the normative character of the opinions that people hold

in such a setting. Interestingly enough, such a normative practice and such a normative opinion can

exist and be quite viable even in the absence of any single canonically formulated or formulable rule

that everybody could cite as the rule about queuing. People know how to queue, and can tell cases of

queue-jumping, and protest about them, even if they have never articulated exactly what their governing

norm is. (MacCormick, Institutions of Law, 15)

48 Searle, Speech Acts, 33.

49 Idem, 34.

50 [C]onstitutive rules, such as those for games, provide the basis for specifications of behavior which

could not be given in the absence of the rule. (Idem, 36)

51 Gilisen, 36.

52 Cf. d’Entrèves, 28-35.

53 Having seen that a common origin is not a necessary condition for belonging to a legal system, it is

worth pointing out that having a common origin is not sufficient to explain the nature of most

institutionalized systems. We have seen that these systems can be in force even if not all their norms

are practised. In some way yet to be explained the fact that they are practised by some institutions is

crucial to establishing that the system is practised. This teste cannot turn on the practice of the norm-

creating institutions. These can at best practise those norms addressed to them and there is no reason to

regard a system as in force simply because it is acceptable to those who lay down its rules. That it is in

force must depend somehow on what happens to those who are the norm subjects of the norms of the

system. Since we have seen that if on the one hand it is not necessary that they shall practise the norms

and on the other hand it is not sufficient that they conform with them we are forced to rely on the

practice of the norm-applying institutions. If they regularly enforce the norms on those of their norm

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subjects who have not conformed with them then we can regard the system as practised even if the bulk

of the population does not practise its norms. The reason why this is a plausible step is that even if not

practised by the norm subjects the norms are applied to them by the norm-applying organs. We are

relying on facts which are relevant to the behaviour of the norm subjects with respect to the norms. If

they do not follow the norms of their own accord they are forced to do so by the police and the courts,

etc. This is, of course, a very crude and imprecise statement of the situation but it brings out the reasons

for regarding the practices of the law-applying institutions as an essential part of the test for determining

whether the system is in force. (Raz, Practical Reason, 131)

54 Gilisen, 36.

55 [A] first step toward discerning the genius of oral preservation is taken when we examine the genius

of the document: why is it “informative” in a sense in which language as it is spoken in the vernacular

is not? Why does it furnish a court of appeal and a source of reference? Surely because the statements

contained therein, being, as it were, frozen in script, are stabilized and are, as we say, “reliable”; they

cannot be changed without changing or replacing the document, and this in effect means that a document

preserves information because it preserves the words of the information. (Havelock, 16)

56 Cf. Idem, 4-54.

57 Para uma explicação detalhada sobre o que é a computação em nuvem, como surgiu, e como se opera,

cf. Rittinghouse e Ransome, xxv-xxxviii.

58 Cf. Hoebel, 67-126.

59 [E]ven if we accept the view that the social institutions concerned with making, declaring, elaborating

and enforcing the law are and ought to be governed in their action by legal norms, we cannot eo ipso

assume that all the norms in question are like statutes in tat they can be conceived as existing ‘validly’

in virtue of clearly statable institutive rules. It is at least contestable whether there are clear criteria (e.g.

as to what constitutes the ratio decidendi of a case) for the existence of rules of common law.

(MacCormick, Law as Institutional Fact, 57)

60 [T]he process of the creation of institutional facts may proceed without the participants being

conscious that it is happening according to this form. The evolution may be such that the participants

think, e.g., “I can exchange this for gold,” “This is valuable,” or even simply “This is money.” They

need not think, “We are collectively imposing a value on something that we do not regard as valuable

because of its purely physical features,” even though that is exactly what they are doing. (…) [F]or most

institutions we simply grow up in a culture where we take the institution for granted. (…) [I]n the very

evolution of the institution the participants need not be consciously aware of the form of the collective

intentionality by which they are imposing functions on objects. In the course of consciously buying,

selling, exchanging, etc., they may simply evolve institutional facts. (Searle, The Construction, 47)

61 [T]he law is a regulative institution, since its point is to regulate antecedently existing forms of

behaviour. Games, on the other hand, are constitutive institutions, that is, systems of rules whose point

is to create new possibilities of behaviour rather than to regulate antecedently existing forms of it.

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The reason why I call both of them ‘institutions’ is because both of them characteristically allow the

creation of institutional facts, like offences and goals. (Atria, pp. n.d.)

62 Cf. Nozick, 10-25.

63 Cf. Hobbes, 117-21.

64 Cf. Locke, 269-78.

65 Cf. Miranda, 31.

66 For the Law of Nature would, as all other Laws that concern Men in this World, be in vain, if there

were no body that in the State of Nature, has a Power to Execute that Law, and thereby preserve the

innocent and restrain offenders, and if any one in the State of Nature may punish another, for any evil

he has done, every one may do so. (Locke, 271-2)

CAPÍTULO 3

1 Basic research is performed without thought of practical ends. It results in general knowledge and an

understanding of nature and its laws. (Bush, 18)

2 [M]ountains and molecules exist independently of our representations of them. However, when we

begin to specify further features of the world we discover that there is a distinction between those

features that we might call intrinsic to nature and those features that exist relative to the intentionality

of observers, users, etc. It is, for example, an intrinsic feature of the object in front of me that it has a

certain mass and a certain chemical composition. It is made partly of wood, the cells of which are

composed of cellulose fibers, and also partly of metal, which is itself composed of metal alloy

molecules. All these features are intrinsic. But it is also true to say of the very same object that it is a

screwdriver. When I describe it as a screwdriver, I am specifying a feature of the object that is observer

or user relative. It is a screwdriver only because people use it as (or made it for the purpose of, or regard

it as) a screwdriver. The existence of observer-relative features of the world does not add any new

material objects to reality, but it can add epistemically objective features to reality where the features

in question exist relative to observers and users. (Searle, The Construction, 9-10)

3 Teixeira, 31.

4 Idem.

5 Concepts are how we conceive aspects of the world, and lie between words and their meanings, in

which they are expressed, on the one side, and the nature of things to which they apply, on the other.

(Raz, Can there be, 19)

6 The blending of fact and fancy which men call legend reached its fullest and richest expression in the

golden age of Greece, and thus it is to Greek mythology that one must turn for the best form of any

legend which foreshadows history. Yet the prevalence of legends regarding flight, existing in the

records of practically every race, shows that this form of transit was a dream of many peoples – man

always wanted to fly, and imagined means of flight. (Vivian, 11)

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7 República, 514a – 515c.

8 Idem, 515c-e.

9 Fédon, 64a.

10 Idem, 64c.

11 Idem, 65c.

12 República, 515e – 516e.

13 Idem, 517b-c.

14 Idem, 517c ff.

15 Hume, Tratado, 29. O original é o seguinte:

ALL the perceptions of the human mind resolve themselves into two distinct kinds, which I shall call

IMPRESSIONS and IDEAS. The difference betwixt these consists in the degrees of force and liveliness

with which they strike upon the mind, and make their way into our thought or consciousness. Those

perceptions, which enter with most force and violence, we may name impressions; and under this name

I comprehend all our sensations, passions and emotions, as they make their first appearance in the soul.

By ideas I mean the faint images of these in thinking and reasoning. (Hume, Treatise, 15)

16 [T]he theory of the mind that he adopts without criticism from his predecessors. (Stroud, 17)

17 It is perhaps inaccurate to describe it as a ‘theory’ at all for Hume. It represents what for him was the

unquestionable truth about the human mind. He never asks himself whether the theory of ideas is

correct, and he never gives any arguments in support of it; he is interested in expounding only those

details that he thinks will be useful to him later. (Idem)

18 It is an attractive conception, and seems to come naturally to mind when we think about perception,

knowledge, thought and language in certain plausible ways. But despite its appeal and its long and

illustrious career, it is extremely difficult even to state the theory precisely and intelligibly. That was

no obstacle to its having the enormous historical influence it has had. (Idem)

19 Whereas rationalism seeks to derive knowledge in general from certain primary axioms (the truth of

which is indubitable) by means of strictly deductive procedures, empiricism seeks to build up or

construct knowledge from certain basic elements that are, again, indubitable. (Hamlyn, 215)

20 Idem.

21 Impressions may be divided into two kinds, those of SENSATION and those of REFLEXION. The

first kind arises in the soul originally, from unknown causes. (Hume, 21)

22 Ética a Nicómaco, 1094b.

23 Cf. as Partes I e II do Livro III de Tratado da Natureza Humana.

24 [A]ll the perceptions of the mind are double, and appear both as impressions and ideas. (Hume, 16-

7)

25 Upon a more accurate survey I find I have been carried away too far by the first appearance, and that

I must make use of the distinction of perceptions into simple and complex, to limit this general decision,

that all our ideas and impressions are resembling. I observe, that many of our complex ideas never had

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impressions, that corresponded to them, and that many of our complex impressions never are exactly

copied in ideas. (Idem, 17)

26 Ideas and impressions appear always to correspond to each other. (Idem)

27 Simple perceptions or impressions and ideas are such as admit of no distinction nor separation. The

complex are the contrary to these, and may be distinguished into parts. (Idem, 16)

28 There is no impression nor idea of any kind, of which we have any consciousness or memory, that is

not conceiv’d as existent; and ‘tis evident, that from this consciousness the most perfect idea and

assurance of being is deriv’d. From hence we may form a dilemma, the most clear and conclusive that

can be imagin’d, – viz. that since we never remember any idea or impression without attributing

existence to it, the idea of existence must either be deriv’d from a distinct impression, conjoin’d with

every perception or object of our thought, or must be the very same with the idea of the perception or

object. (Idem, 80)

29 Ad secundum dicendum quod diversa ratio cognoscibilis diversitatem scientiarum inducit. Eandem

enim conclusionem demonstrat astrologus et naturalis, puta quod terra est rotunda, sed astrologus per

medium mathematicum, idest a materia abstractum; naturalis autem per medium circa materiam

consideratum. Unde nihil prohibet de eisdem rebus, de quibus philosophicae disciplinae tractant

secundum quod sunt cognoscibilia lumine naturalis rationis, et aliam scientiam tractare secundum quod

cognoscuntur lumine divinae revelationis. Unde theologia quae ad sacram doctrinam pertinet, differt

secundum genus ab illa theologia quae pars philosophiae ponitur. (S. Tomás, ST, P. 1., Q. 1, A. 1, resp.

obj. 2.)

30 One reason for believing a statement is that we can derive results from it which can be checked by

observation; in other words, we believe in a statement because of its consequences. For example, we

believe in Newton's laws because we can calculate from them the motions of the celestial bodies. The

second reason for belief (…) is that we can believe a statement because it can be derived logically from

intelligible principles. (Frank, 16)

31 The examinations on religion, politics, or other disputed topics, should not turn on the truth or

falsehood of opinions, but on the matter of fact that such and such an opinion is held, on such grounds,

by such authors, or schools, or churches. (Mill, On Liberty, 107)

32 Ética a Nicómaco, 1094b.

33 Idem.

CAPÍTULO 4

1 Any class of things having members may have its membership divided into subclasses. For example,

the class of all triangles can be divided into three nonempty subclasses: equilateral triangles, isosceles

triangles, and scalene triangles. The class whose membership is thus divided into subclasses is called

the genus, and the various subclasses are its species. As used here, the terms “genus” and “species” are

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relative terms, like “parent” and “offspring.” The same persons may be parents in relation to their

children, but also offspring in relation to their parents. Likewise, a class may be a genus with respect to

its own subclasses, but also a species with respect to some larger class of which it is a subclass. Thus

the class of all triangles is a genus relative to the species scalene triangle and a species relative to the

genus polygon. (…)

A class is a collection of entities having some common characteristic. Therefore all members of a given

genus have some characteristic in common. All members of the genus polygon (for example) share the

characteristic of being closed plane figures bounded by straight line segments. (…)

All members of all species of a given genus share some attribute that makes them members of the genus,

but the members of any one species share some further attribute that differentiates them from the

members of every other species of that genus. The characteristic that serves to distinguish them is called

the specific difference. Having six sides is the specific difference between the species hexagon and all

other species of the genus polygon. (Copi et al., 98-9)

2 Long ago BENTHAM issued a warning that legal words demanded a special method of elucidation, and

he enunciated a principle that is the beginning of wisdom in this matter, though it is not the end. He said

we must never take these words alone, but consider whole sentences in which they play their

characteristic role. We must take not the word ‘right’ but the sentence ‘You have a right’, not the word

‘State’, but the sentence ‘He is a member or an official of the State.’ His warning has largely been

disregarded and jurists have continued to hammer away at single words. (Hart, 26)

3 Definition by genus and difference relies directly on the intension of the terms defined. (Copi et al.,

98)

4 [A]ssigns the defined term to a more general class and then accounts for its specific features separating

it from other members of the class. (MacCormick, Institutions of Law, 282)

5 The common method of defining – the method per genus et differentiam, as logicians call it, will, in

many cases, not at all answer the purpose. Among abstract terms we soon come to such as have no

superior genus. A definition, per genus et differentiam, when applied to these, it is manifest, can make

no advance: it must either stop short, or turn back, as it were, upon itself, in a circulate or a repetend.

(Bentham, A Fragment, 108-9)

6 For expounding the words duty, right, power, title, and those other terms of the same stamp that abound

so much in ethics and jurisprudence, either I am much deceived, or the only method by which any

instruction can be conveyed, is that which is here exemplified. An exposition framed after this method

I would term paraphrasis. (Idem, 108, nota 5)

7 A word may be said to be expounded by paraphrasis, when not that word alone is translated into other

words, but some whole sentence of which it forms a part is translated into another sentence; the words

of which latter are expressive of such ideas as are simple, or are more immediately resolvable into

simple ones than those of the former. Such are those expressive of substances and simple modes, in

respect of such abstract terms as are expressive of what Locke has called mixed modes. This, in short,

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is the only method in which any abstract terms can, at the long run, be expounded to any instructive

purpose: that is in terms calculated to raise images either of substances perceived, or of emotions; –

sources, one or other of which every idea must be drawn from, to be a clear one. (Idem, nota 6)

8 [I]t gives us a set of words which can always be substituted for the word defined whenever it is used;

it gives us a comprehensible synonym or translation for the word which puzzles us. It is peculiarly

appropriate where the words have the straightforward function of standing for some kind of thing, or

quality, person, process, or event, for here we are not mystified or puzzled about the general

characteristics of our subject-matter, but we ask for a definition simply to locate within this familiar

general kind or class some special subordinate kind or class. (Hart, 31)

9 Ferreira, A teoria pessoana das Ideias, 160.

10 [W]e are puzzled about the general category to which something belongs and how some general type

of expression relates to fact, and not merely about the place within that category. (Hart, 32)

11 [W]e are not puzzled about the general notions of furniture or animals. (Idem, 31-2)

12 It is a sound maxim, and one which all close thinkers have felt, but which no one before Bentham

ever so consistently applied, that error lurks in generalities. (Mill, Bentham, 84)

13 [T]he human mind is not capable of embracing a complex whole, until it has surveyed and catalogued

the parts of which that whole is made up. (Idem)

14 [A]bstractions are not realities per se, but an abridged mode of expressing facts, and that the only

practical mode of dealing with them is to trace them back to the facts (whether of experience or of

consciousness) of which they are the expression. (Idem)

15 Cf. nota 3 do capítulo 3.

16 Cf. nota 4 do capítulo 3.

17 Cf. nota 5 do capítulo 3.

18 [T]he arguments on which the gravest questions of morality and policy were made to turn; not reasons,

but allusions to reasons; sacramental expressions, by which a summary appeal was made to some

general sentiment of mankind, or to some maxim in familiar use, which might be true or not, but the

limitations of which no one had ever critically examined. (Mill, Bentham, 84)

19 [L]iberty, social order, constitution, law of nature, social compact. (Idem)

20 [E]thics had its analogous ones. (Idem)

21 [T]his satisfied other people; but not BENTHAM. He required something more than opinion as a reason

for opinion. Whenever he found a phrase used as an argument for or against anything, he insisted upon

knowing what it meant; whether it appealed to any standard, or gave intimation of any matter of fact

relevant to the question; and if he could not find that it did either, he treated it as an attempt on the part

of the disputant to impose his own individual sentiment on other people, without giving them a reason

for it. (Idem)

22 Cf. nota 10.

23 Cf. nota 2.

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24 [Bentham tells us] to take a word like ‘right’ or ‘duty’ or ‘State’; to embody it in a sentence such as

‘you have a right’ where it plays a characteristic role, and then to find a translation of it into what we

should call factual terms. (Hart, 34)

25 Idem, nota 12 e Bentham, A Fragment, 108.

26 Hart, 32.

27 [This method] distorts many legal words like ‘right’ or ‘duty’ whose characteristic role is not played

in statements of fact but in conclusions of law. A paraphrase of these in factual terms is not possible,

and when Bentham proffers such a paraphrase it turns out not to be one at all. (Idem, 34)

28 If definition is the provision of a synonym which will not equally puzzle us, these words cannot be

defined. But I think there is a method of elucidation of quite general application and which we can call

definition, if we wish. (Idem, 33)

29 Powers, though not a species of rights (for the two sorts of fictitious entities, termed a power and a

right, are altogether disparate) are yet so far included under rights, that wherever the word power may

be employed, the word right may also be employed: The reason is, that wherever you may speak of a

person as having a power, you may also speak of him as having a right to such power: but the converse

of this proposition does not hold good: there are cases in which, though you may speak of a man as

having a right, you cannot speak of him as having a power, or in any other way make any mention of

the word. (…)

With respect to these words, therefore, and a number of others, such as possession, title, and the like,

which in point of import are inseparably connected with them, instead of exhibiting the exposition itself,

I must content myself with giving a general idea of the plan which I have pursued in framing it (…).

Power and right, and the whole tribe of fictitious entities of this stamp, are all of them, in the sense

which belongs to them in a book of jurisprudence, the results of some manifestation or other of the

legislator’s will with respect to such or such an act. Now every such manifestation is either a prohibition,

a command, or their respective negations (…). Now, to render the expression of the rule more concise,

the commanding of a positive act may be represented by the prohibition of the negative act which is

opposed to it. To know then how to expound a right, carry your eye to the act which, in the

circumstances in question, would be a violation of that right: the law creates the right by prohibiting

that act. Power, whether over a man’s own person, or over other persons, or over things, is constituted

in the first instance by permission: but in as far as the law takes an active part in corroborating it, it is

created by prohibition, and by command: by prohibition of such acts (on the part of other persons) as

are judged incompatible with the exercise of it; and upon occasion, by command of such acts as are

judged to be necessary for the removal of such or such obstacles of the number of those which may

occur to impede the exercise of it. (Bentham, An Introduction, 224, nota 1)

30 [T]hey specify some of the conditions necessary for the truth of a sentence of the form ‘You have a

right’. BENTHAM shows us how these conditions include the existence of a law imposing a duty on

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some other person; and moreover, that it must be a law which provides that the breach of the duty shall

be visited with a sanction if you or someone on your behalf so choose. (Hart, 34)

31 Cordeiro, Tratado I, 893.

32 Idem, 871.

33 O termo «Estado» não é correto porque o mesmo é um neologismo de proveniência muito mais tardia.

Cf. d’Entrèves, 28-35.

34 Cordeiro, Tratado I, 872.

CAPÍTULO 5

1 Kelsen, Teoria Pura, 382. O original é o seguinte: Versteht man unter „Interpretation" die

erkenntnismäβige Feststellung des Sinnes des zu interpretierenden Objektes, so kann das Ergebnis einer

Rechtsinterpretation nur die Feststellung des Rahmens sein, den das zu interpretierende Recht darstellt,

und damit die Erkenntnis mehrerer Möglichkeiten, die innerhalb dieses Rahmens gegeben sind. Dann

muβ die Interpretation eines Gesetzes nicht notwendig zu einer einzigen Entscheidung als der allein

richtigen, sondern möglicherweise zu mehreren führen, die alle – sofern sie nur an dem anzuwendenden

Gesetz gemessen werden – gleichwertig sind, wenn auch nur eine einzige von ihnen im Akt des

rechtsanwendenden Organs, insbesondere des Gerichtes, positives Recht wird. Daβ ein richterliches

Urteil im Gesetz begründet ist, bedeutet in Wahrheit nichts anderes, als daβ es sich innerhalb des

Rahmens hält, den das Gesetz darstellt, bedeutet nicht, daβ es die, sondern nur, daβ es eine der

individuellen Normen ist, die innerhalb des Rahmens der generellen Norm erzeugt werden können.

(Kelsen, Reine Rechtslehre 349)

2 Cf. Ferreira, O princípio da legalidade, 5562-72.

3 Cf. Raz, The Concept, 77-85.

4 Kelsen, Teoria Geral, 53. O original é o seguinte: Austin draws an explicit distinction between “laws”

and “particular commands”. (Kelsen, General Theory, 38)

5 Now where it obliges generally to acts or forbearances of a class, a command is a law or rule. But

where it obliges to a specific act or forbearance, or to acts or forbearances which it determines

specifically or individually, a command is occasional or particular. (J. Austin, 25)

6 Kelsen, Teoria Geral, 53-4. O original é o seguinte: Having identified “law” and “rule,” we can of

course recognize as law only general norms. But there is no doubt that law does not consist of general

norms only. Law includes individual norms, i.e. norms which determine the behaviour of one individual

in one non-recurring situation and which therefore are valid only for one particular case and may be

obeyed or applied only once. Such norms are “law” because they are parts of the legal order as a whole

in exactly the same sense as those general norms on the basis of which they have been created. Examples

of such particular norms are the decisions of courts as far as their binding force is limited to the

particular case at hand. (…) The decision of the judge is a legal norm in the same sense and for the same

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reasons as the general principle that if somebody does not return a loan then a civil sanction ought to

be inflicted upon him on the motion of the creditor. The “binding force” or “validity” of law is

intrinsically related, not to its possibly general character, but only to its character as a norm. Since, by

its nature, law is norm, there is no reason why only general norms should be considered law. If, in other

respects, individual norms present the essential characteristics of law, they, too, must be recognized as

law. (Kelsen, General Theory, 38)

7 Kelsen, Teoria Pura, 4. O original é o seguinte: Mit „Norm“ bezeichnet man: daβ etwas sein oder

geschehen, insbesondere daβ sich ein Mensch in bestimmter Weise verhalten soll. (Kelsen, Reine

Rechtslehre, 4)

8 Cordeiro, Tratado II, 455-63.

9 Gesetzgebung und Gewohnheit werden häufig als die beiden „Quellen“ des Rechts bezeichnet, wobei

unter „Recht“ nur die generellen Normen des staatlichen Rechts verstanden werden. Aber die

individuellen Rechtsnormen gehören ebenso zum Recht, sind ebenso Bestandteil der Rechtsordnung

wie die generellen Rechtsnormen, auf Grund deren sic erzeugt werden. Und wenn man das allgemeine

Völkerrecht in Betracht zieht, dann kann nicht Gesetzgebung, sondern nur Gewohnheit und Vertrag als

„Quelle“ dieses Rechts angesehen werden.

Rechtsquelle ist ein bildlicher Ausdruck, der mehr als eine Bedeutung hat. Man kann damit nicht nur

die eben erwähnten, sondern überhaupt alle Methoden der Rechtserzeugung, oder jede höhere Norm im

Verhältnis zu der niederen Norm bezeichnen, deren Erzeugung sie regelt. Daher kann unter

Rechtsquelle auch der Geltungsgrund und insbesondere der letzte Geltungsgrund, die Grundnorm, einer

Rechtsordnung verstanden werden. Doch wird tatsächlich nur der positivrechtliche Geltungsgrund einer

Rechtsnorm, das heiβt die höhere, ihre Erzeugung regelnde, positive Rechtsnorm als „Quelle“

bezeichnet. In diesem Sinne ist die Verfassung die Quelle der im Wege der Gesetzgebung oder

Gewohnheit erzeugten generellen Rechtsnormen, eine generelle Rechtsnorm die Quelle der sie

anwendenden, eine individuelle Norm darstellenden richterlichen Entscheidung; aber die richterliche

Entscheidung kann auch als Quelle der von ihr statuierten Pflicht und Berechtigung der Streitparteien

oder der Ermächtigung des Organes angesehen werden, das diese Entscheidung zu vollstrecken hat. In

einem positivrechtlichen Sinn kann Quelle des Rechts nur Recht sein. (Kelsen, Reine Rechtslehre, 238-

9)

10 Cf. Ferreira, Trechos e Fragmentos, 141-51.

11 We use ‘discretion’ sometimes not merely to say that an official must use judgment in applying the

standards set him by authority, or that no one will review that exercise of judgment, but to say that on

some issue he is simply not bound by standards set by the authority in question. (Dworkin, 32)

CONCLUSÃO

1 Neves, 586.

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2 Prata, 1212.

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