Os exercícios do ver - Prefácio - María Immacolata V. de Lopes

6
w w w . m e d i a c i o n e s . n e t Os exercícios do ver Hegemonia audiovisual e ficção televisiva Maria Immacolata Vassallo de Lopes Prefácio (J. Martín-Barbero e Germán Rey, trad. Jacob Gorender, São Paulo, Senac, 2001) « Jesús Martín-Barbero, um dos maiores teóricos da comunicação na América Latina, espanhol residente desde 1963 na Colombia, une se neste livro ao psicólogo e professor colombiano Germán Rey para a análise de um fenômeno social e cultural de crescente importância também no Brasil: o poder da televisão sobre o imaginário das pessoas. Um destaque nesse tema é a telenovela, principal produto cultural latino-americano destinado ao grande público, da qual o Brasil se afirma como um dos mais ativos e criativos produtores. Lanva-se este livro traduzido pelo cientista social Jacob Gorender como nova contribuição do SENAC de São Paulo ao debate da cultura popular, que hoje tem na televisão a mídia hegemônica. »

description

« Jesús Martín-Barbero, um dos maiores teóricos dacomunicação na América Latina, espanhol residentedesde 1963 na Colombia, une se neste livro ao psicólogoe professor colombiano Germán Rey para a análise de umfenômeno social e cultural de crescente importânciatambém no Brasil: o poder da televisão sobre oimaginário das pessoas. Um destaque nesse tema é atelenovela, principal produto cultural latino-americanodestinado ao grande público, da qual o Brasil se afirmacomo um dos mais ativos e criativos produtores.Lanva-se este livro traduzido pelo cientista social JacobGorender como nova contribuição do SENAC de São Pauloao debate da cultura popular, que hoje tem na televisãoa mídia hegemônica. »

Transcript of Os exercícios do ver - Prefácio - María Immacolata V. de Lopes

Page 1: Os exercícios do ver - Prefácio - María Immacolata V. de Lopes

w w w . m e d i a c i o n e s . n e t

Os exercícios do ver

Hegemonia audiovisual e

ficção televisiva

Maria Immacolata Vassallo de Lopes

Prefácio

(J. Martín-Barbero e Germán Rey,

trad. Jacob Gorender, São Paulo, Senac, 2001)

« Jesús Martín-Barbero, um dos maiores teóricos da comunicação na América Latina, espanhol residente desde 1963 na Colombia, une se neste livro ao psicólogo e professor colombiano Germán Rey para a análise de um fenômeno social e cultural de crescente importância também no Brasil: o poder da televisão sobre o imaginário das pessoas. Um destaque nesse tema é a telenovela, principal produto cultural latino-americano destinado ao grande público, da qual o Brasil se afirma como um dos mais ativos e criativos produtores. Lanva-se este livro traduzido pelo cientista social Jacob Gorender como nova contribuição do SENAC de São Paulo ao debate da cultura popular, que hoje tem na televisão a mídia hegemônica. »

Page 2: Os exercícios do ver - Prefácio - María Immacolata V. de Lopes

Os exercícios do ver - Prefácio.

2

I. Deslocamentos e rupturas

Clássico é, segundo Bobbio, um intérprete de seu tempo.

Por isso, é capaz de nos oferecer categorias de análise para compreendermos o nosso tempo, além de ter a capacidade

de provocar releituras constantes de seus escritos. Se assim

é, Jesús Martín-Barbero é um clássico. E para situá-lo como um autor no auge de sua produção intelectual, melhor é

defini-lo como um clássico contemporâneo.

Seguramente, Martín-Barbero é hoje o mais importante

teórico da comunicação e da cultura na América Latina. Autor de uma obra que circula desde fins dos anos 70, sua

importância está marcada pela análise renovadora dos fe-

nômenos comunicacionais e culturais da contempora-neidade. Essa análise caracteriza-se fundamentalmente co-mo transdisciplinar por dialogar com autores clássicos e

contemporâneos dos mais diversos domínios – comunica-

ção, filosofia, epistemologia, antropologia, estética, semió-tica, etc.

A obra de Martín-Barbero é conhecida por realizar deslo-

camentos e rupturas. Deslocamentos dos lugares tradicionais de onde são feitas as perguntas. Rupturas com as respostas

reducionistas e maniqueístas "à direita e à esquerda". O

resultado pode ser sintetizado num trabalho de construção teórico-metodológica conhecido como mapa noturno, uma

cartografia para explorar as mediações que é um marco a

partir do qual estudar as novas complexidades nas relações entre comunicação, cultura e política. Por ser a sociedade

Page 3: Os exercícios do ver - Prefácio - María Immacolata V. de Lopes

www.mediaciones.net

3

contemporânea uma sociedade da comunicação (Vattimo), são os processos comunicacionais enquanto operadores de sentido e o mercado como operador de valor, que movem,

através de suas contradições e ambivalências, os vínculos

societais entre os sujeitos. Daí a proposta do autor em se-guir e explorar ao mediações que se dão entre as lógicas de

produção e as lógicas de recepção, entre as matrizes culturais e os

formatos industriais.

Como todos sabem, a primeira grande síntese dessa pro-

posta foi formulada pelo autor no livro Dos meios à

mediações, lançado em 1987. Entretanto, a despeito da notá-

vel repercussão desse livro, algumas vozes têm incitado o

autor a escrever outro livro que respondesse à inversão

desse título, isto é, Das mediações aos meios, a fim de "reequi-

librar", no binômio, o peso da comunicação que teria sido

subsumida pela cultura. Apesar de não concordarmos com

o reducionismo que subjaz a essa proposta, talvez o autor

tenha, de fato, aceito a incitação, pois o que temos visto, nos seus escritos dos últimos anos, é um notável esforço em

oferecer pistas para elucidar ("entre-ver", como diz ele) cada

vez mais, as relações entre meios e mediações. O presente livro traduz claramente essa percuciente traje-

tória de iluminações em que se constitui a obra barberiana.

Trata-se de um escrito sobre televisão, ou melhor, de escri-turas de televisão, realizado em colaboração com o psi-cólogo e professor colombiano Germán Rey . Foi concebi-

do, e assim requer ser lido, no marco das pistas para entre-ver

meios e mediações.

Nele reaparece a centralidade ocupada pela mediação da

cultura popular, verdadeira marca registrada do autor. E a novidade fica por conta da análise do meio televisão como

mediação tecno-lógica e cultural, pela qual a televisão é tra-

tada através das hibridações entre tecnicidade e visualidade.

Page 4: Os exercícios do ver - Prefácio - María Immacolata V. de Lopes

Os exercícios do ver - Prefácio.

4

Nos marcos dessas duas categorias a televisão torna-se experiência comunicativa e cultural nos processos de des-construção e re-construção das identidades coletivas, lugar

onde se trava a estratégica batalha cultural do nosso tempo.

Desse referencial teórico desenvolvido ao longo dos capítu-los I e II resulta, no capítulo III, uma pesquisa empírica na

forma de um notável estudo de caso da ficção televisiva na

Colômbia.

II. Tecnicidade e Visualidade

Devido ao adensamento teórico dado às noções de tecni-

cidade e visualidade no presente livro, vale a pena fazermos

algumas reflexões sobre a sua importância para o alarga-

mento do estatuto teórico e metodológico da pesquisa de

comunicação nos países latino-americanos.

A chave metodológica que se abre para a pesquisa empí-

rica diz respeito ao trabalho analítico das conexões entre

campos usualmente vistos em separado, das novas percep-ções e sensibilidades, da dimensão cultural e antropológica das interações sociais . Assim, fazer avançar metodologi-

camente a pesquisa das mediações (até agora referida como

sinônimo de pesquisa de recepção) é fazer do cotidiano media-

tizado a seu "locus" preferencial de estudo porém mais

ampliado, tal como aqui sugerimos, através da incorpora-

ção das noções de tecnicidade e de visualidade como novos "lugares metodológicos".

Através da noção de tecnicidade é possível entender a téc-

nica como constitutiva, como dimensão imanente de uma visão antropológica de comunicação. Tomamos esta ex-pressão não no sentido habitual de imputar essa visão à disciplina antropologia, mas no sentido do elementarmente

humano (Gramsci). A necessidade dessa categoria tecnicidade

Page 5: Os exercícios do ver - Prefácio - María Immacolata V. de Lopes

www.mediaciones.net

5

se justifica, pois no que ocorre hoje com a comunicação

não se dá a devida conta à noção grega de tecné que remetia

à destreza, à habilidade de fazer, mas também de argumen-tar, de expressar, de criar e de comunicar. No entanto,

caminhou-se para a noção de técnica como aparato, objeti-

vação da tecné nas máquinas ou nos produtos. Nem uma nem outra dessas noções parecem ser suficientes, hoje.

Porque na técnica há novos modos de perceber, ver, ouvir,

ler, aprender, novas linguagens, novos modos de expressão,

de textualidades e escrituras. Haveria uma espécie de inter-

medialidade como experiência comunicativa (Herlinghaus), ou

seja, de muitas interfaces entre os diferentes meios e destes

nos diferentes espaços comunicativos do consumo e da

criação. O que está aí implícito é a recusa do sentido ins-trumental de tecnologia tão desenvolvida nos estudos de

comunicação. Pois, no dizer de Martín-Barbero, na tecno-

logia está uma nova alegação entre cérebro e informação.

Enfim, trata-se da noção de tecnicidade como novo regime

de visualidade que introduz alterações no estatuto epistemo-

lógico do saber, através do qual o "ver" foi desqualificado.

Quem sabe não estamos aqui no âmago da especificidade

da comunicação, especificidade sem dúvida histórica, mas

que retoma a separação entre ver e saber presente no mito da caverna e a pergunta pela técnica feita por Heidegger e pela

qual passamos da época das imagens do mundo para o mundo constituído pela imagem. Vattimo define, sintoma-

ticamente, a sociedade atual não como sociedade da informa-

ção mas como sociedade da comunicação, cuja especificidade

são as tecnologias de produção do mundo como imagem. A técnica, portanto, está recolocando o lugar da imagem tanto na ciência (imagem não mais como obstáculo, mas parte de

um novo modo de conhecer e de construir o conhecimento) como na prática cotidiana. Aqui cabe a "iluminada" previ-são de Benjamin a respeito dos novos meios e a constituição de um novo sensorium.

Page 6: Os exercícios do ver - Prefácio - María Immacolata V. de Lopes

Os exercícios do ver - Prefácio.

6

Reconhecer a envergadura que a tecnicidade tem hoje, não

mais como instrumento, mas incrustada na estrutura mes-

ma do conhecimento e da vida cotidiana. Acreditamos que

aqui está a uma pista metodológica forte que nos dá Martín-

Barbero. Encaminha para que se pesquise a partir do reco-

nhecimento da presença central da cultura oral como

oralidade secundária (Ong), formada por aquelas complexas

relações que hoje se produz na América Latina entre a oralidade que perdura como experiência cultural primária

das maiorias e a visualidade tecnológica, tecidas e organi-

zadas pelas gramáticas tecnoperceptivas do rádio, cinema, vídeo, música, computador . Essa cumplicidade entre orali-

dade e visualidade que não remete a exotismos de um

analfabetismo terceiromundista, nem à cultura dos analfa-

betos, senão à persistência de estratos profundos da memória e da mentalidade coletiva trazidos à superfície por bruscas alterações do

tecido tradicional que a própria aceleração modernizadora compor-

ta (Marramao). A cultura oral secundária traduz, enfim, a

densidade dos imaginários por que tem passado a batalha

cultural entre dominadores e dominados na América Lati-

na.

São Paulo, fevereiro de 2001.