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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA
LAÍSA FERNANDES TOSSIN
OS ESPELHOS DO JAGUAR
e o que seus olhos viram na outra margem do rio. Repensando o discurso científico sobre as Línguas Indígenas
Campinas 2017
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LAÍSA FERNANDES TOSSIN
OS ESPELHOS DO JAGUAR e o que seus olhos viram na outra margem do rio.
Repensando o discurso científico sobre as Línguas Indígenas
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística, do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito para a obtenção do Título de Doutora em Linguística.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães
Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pela aluna Laísa Fernandes Tossin e orientada pelo Prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães.
Campinas 2017
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Agência(s) de fomento e no(s) de processo(s): Não se aplica.
Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: The jaguar's mirror and what his eyes saw on the other bank of the river : rethinking the scientific discourse on indigenous languages Palavras-chave em inglês: Indian languages - Discourse analysis Linguistic ideas - History Designation (Linguistics) Semantics of the event Linguistics - Research Public archives - Brazil Universities and colleges - Brazil Área de concentração: Linguística Titulação: Doutora em Linguística Banca examinadora: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães [Orientador] Lauro Baldini José Horta Nunes Gersem José dos Santos Luciano Isadora Machado Data de defesa: 20-06-2017 Programa de Pós-Graduação: Linguística
Tossin, Laísa Fernandes, 1972- T639e TosOs espelhos do jaguar e o que seus olhos viram na outra margem do rio. repensando o discurso científico sobre as línguas indígenas / Laísa Fernandes Tossin. – Campinas, SP : [s.n.], 2017. T Orientador: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães. Tos Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. 1. Línguas indígenas - Análise do discurso. 2. Ideias linguísticas - História. 3. Designação (Linguística). 4. Semântica do acontecimento. 5. Linguística - Pesquisa. 6. Arquivos públicos - Brasil. 7. Universidades e faculdades - Brasil. I. Guimarães, Eduardo,1948-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.
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Comissão Examinadora Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães Orientador (Presidente) Dra. Isadora Lima Machado – Universidade Federal da Bahia Dr. Gersem José dos Santos Luciano – Universidade Federal do Amazonas Dr. José Horta Nunes – Universidade Estadual de Campinas Dr. Lauro José Siqueira Baldini – Universidade Estadual de Campinas Suplentes Dr. Eduardo Alves Vasconcelos – Universidade Federal do Amapá Dr. Claudia Freitas Reis – Instituto Federal de São Paulo – Araraquara Dra. Alcida Rita Ramos – Universidade de Brasília
A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.
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Para Júlia, Pedro e Lucas
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Resumo Nesta tese, faço uma extensa pesquisa documental e bibliográfica referente ao
século XVI, em acervos digitais de grandes universidades e arquivos públicos. Por isso, este trabalho se posiciona na História das Ideias Linguísticas, como uma História dos Conceitos. Portanto, usei o procedimento metodológico previsto por Reinhart Koselleck. Para o corpus, foram escolhidas fontes primárias e textos clássicos. Para cada afirmação linguística presente nas fontes, foi apresentado um cenário histórico concreto. Para a interpretação dos textos, vali-me da Análise do Discurso, como proposta por Eni Orlandi. Para entender as relações entre o acontecimento histórico e as designações que se estabelecem como memórias discursivas posteriormente, usei categorias da Semântica do Acontecimento como elaboradas por Eduardo Guimarães. O que este tipo de interpretação demonstrou foi uma rigidez imperiosa de acomodar a realidade ao mesmo conjunto de categorias e conceitos. Examino a língua Tupi, ou Língua Geral, do ponto de vista da convivência multiétnica e multilíngue favorecida pelos aldeamentos e a escravidão simultânea de negros e índios, e proponho que deste convívio teria surgido uma língua criola, com influências do Quimbundo, da língua de Angola e de línguas indígenas, mas onde não havia uma língua indígena homogênea e previamente existente no litoral do Brasil. O que serve de questionamento para o estabelecimento das famílias linguísticas com base na retenção lexical.
Palavras-chave: História das ideias linguísticas; História dos conceitos; Discurso científico sobre Línguas Indígenas.
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Abstract In this thesis, I do an extensive documentary and bibliographical research of 16th century, in digital collections of great universities and public archives. Therefore, this work is positioned in the History of Linguistic Ideas, as a History of Concepts. Therefore, I used the methodological procedure provided by Reinhart Koselleck. For the corpus were chosen primary sources and classic texts. For each linguistic assertion present in the sources, a concrete historical scenario was presented. For the interpretation of the texts, I used Discourse Analysis, as proposed by Eni Orlandi. In order to understand the relations between the historical event and the descriptions that are established as discursive memories later, I have used categories of the Semantics of the Event as elaborated by Eduardo Guimarães. What this type of interpretation demonstrated was an imperious rigidity of accommodating reality to the same set of categories and concepts. I examine the Tupi language, or General Language, from the point of view of the multiethnic and multilingual coexistence favored by the settlements and the simultaneous slavery of blacks and indians, and I propose that from this coexistence have arisen a Cryola language, influenced by Quimbundo, Angola language, and indigenous languages, but where there was no indigenous language previously existing on the Brazilian coast. This is an argument against the establishment of language families based on lexical retention. Keywords: History of Linguistics ideas; History of concepts; Cientific discourse about Indigenous languages.
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SUMÁRIO 1. Introdução ...................................................................................................10
1.1 Objetivo da tese .......................................................................................17
1.2 Coleta de dados .......................................................................................18
1.2.1 Os acervos .........................................................................................19
1.3 Metodologia .............................................................................................21
1.4 Estrutura da tese ......................................................................................23
2. Palimpsestos caribenhos ..............................................................................27
2.1 Narrativas sobre a alteridade, uma longa tradição ……………………30 2.2 A história de Colombo, uma narrativa fundadora ……………….…….34 2.3 De olhos bem fechados, a narrativa da descoberta ………………..…..40
3. Caribes de Colombo, caraíbas de Cabral ..................................................53
3.1 Caribes e aruacos ...................................................................................53 3.2 Caraíbas ou canibais? ............................................................................58 3.3 Caraíbas, os falsos profetas ………………………………...………….61 3.4 O branco caraíba ……………………………………………....……....64 3.5 Um problema conceitual .........................................................................67 3.6 A origem da humanidade, uma narrativa inacabada .............................68
4. Tapuya de tembetá é tupinambá?...............................................................73
4.1 Hic et ubique.............................................................................................76
4.2 Narrativas da construção do Brasil, a miscigenação ……………...….. 82
4.3 Língua geral ............................................................................................ 88
4.4 Jês e Tupis ……………………………………………………………... 92
4.5 Gramática Tupi …………………………………………………...…….98
5. Cientificismo canibal ..................................................................................103
5.1 Scientia et sapientia ................................................................................103 5.2 Uma história social do sujeito gramatical..............................................106 5.3 A voz que serve a Deus ………………………………………..…….....120
6. A natureza pelo avesso.................................................................................123
6.1 As regras da natureza ………………………………………..………...132 6.2 O dom da linguagem ………………………………………..………….128 6.3 O dom da palavra ....................................................................................133 6.4 Natureza e linguagem ..............................................................................138 6.5 A origem da humanidade, uma narrativa ainda inacabada ....................140
7. A voz dos esquecidos......................................................................................143
7.1 A linguagem no jogo do dito e do não-dito ..............................................149
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7.2 Fósseis linguísticos ....................................................................................155 8. Epílogo .............................................................................................................168
9. Bibliografia ......................................................................................................172
10. Anexo I .............................................................................................................187
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1. INTRODUÇÃO
A história das palavras científicas não
passa unicamente pelos cientistas autênticos que as utilizaram
cientemente. Esta história passa também por aqueles que herdaram o vocabulário sem o método, buscando
nele inspiração barata, ou um meio de impressionar o público pouco apto a
discernir as diferenças. (Starobinski, 2002, p. 43)
Conta a história1 que, em um dia de muito calor, o jaguar encontrou o jacaré na
beira do rio divertindo-se em mandar seus olhos passearem na outra margem e ficou
fascinado com aquela possibilidade. Pediu, então, ao jacaré que mandasse seus olhos
à outra margem também. O jacaré concordou e mandou os olhos do jaguar passearem
do outro lado do rio, depois chamou-os de volta e os devolveu ao jaguar, mas o jaguar
queria mais. O jacaré explicou que era muito perigoso, pois o peixe-monstro poderia
comer os olhos dele, mas o jaguar insistiu e o jacaré, a contra gosto, enviou-lhe os
olhos de novo à outra margem. O peixe-monstro estava à espreita e comeu os olhos do
jaguar. Cego e triste o jaguar perambulou pela floresta até que o gavião real decidiu
ajudá-lo a recuperar a visão, derramando leite de jatobá no vazio dos olhos do jaguar.
O jaguar recuperou a visão e ganhou um par de olhos mais claros do que os anteriores
e os dois se tornaram amigos. Por isso, ainda hoje, o jaguar deixa uma parte de sua
caça para o gavião real.
O jaguar evoca o animal xamânico por excelência. Com a pele do jaguar, o
xamã cruza os limites humanos e entra no mundo metafísico, em sua jornada solitária
na busca da cura e da manutenção do mundo, iluminada pelos espelhos2 do jaguar,
como faróis na escuridão. Tomei emprestadas as lentes do jaguar para poder ver o que
havia na outra margem do rio e vesti a pele do jaguar para poder transitar entre
realidades, as várias que acompanham o desenrolar deste trabalho. Assim, protegida
sob a pele do jaguar e com seus espelhos a iluminar meu caminho, empreendi minha
jornada de cura e transformação.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 História do folclore amazônico compilada em Os animais e a psique, de Denise Gimenez Ramos, Summus Editorial, vol. 1, p. 212, 2005. 2 Os olhos dos felinos possuem uma estrutura refletora, localizada atrás da retina que espelha a luz que entra em seus olhos, seja o brilho de uma estrela ou um raio de luar, ajudando-os a enxergar com mais nitidez. Por isso, são os espelhos e não os olhos do jaguar a mostrar o caminho.!
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Inicialmente, no mestrado, a jornada me levou ao Cerrado. Foi o contato com
a descrição da língua Apinajé que me submergiu na realidade das sociedades rituais,
das metades cerimoniais, das cerimônias de nomeação e dos desacertos com o
trabalho descritivo da língua. Embora o trabalho tenha se configurado como
exclusivamente bibliográfico, os desencontros com as descrições propostas por outras
linguistas foram inevitáveis. Eu procurava entender se eram pertinentes as distinções
sujeito e verbo, sujeito e objeto, como categorias gramaticais das línguas indígenas a
priori, ou se estas eram apenas projeções de nossas categorias gramaticais ocidentais,
construídas ao longo de um processo histórico de elaboração conceitual que se
estabeleceu como científico e, portanto, universal.
Foi com a segunda etapa da jornada sob a pele do jaguar já iniciada que ouvi
de um jovem Tukano, estudante de pós-graduação em Antropologia, a pergunta mais
difícil de ser respondida: “por que os índios? Por que não ajudar os teus parentes?”
Havia na contestação dele uma raiva mal-dissimulada, ele estava inconformado com o
arrepio que o exótico provoca, profundamente chateado com a imagem de selvagem
que ele mesmo carrega. Eu não sabia o que dizer. Exausta pelo cansativo trabalho
intelectual de redação da tese me perguntei se realmente não teria sido melhor ajudar
meus parentes, mas eu escolhi estudar línguas indígenas, por quê? Para me forçar a
lidar com a alteridade de maneira maximizada. Nesta empreitada, me deparei com
uma realidade bifurcada: ou existe uma única verdade humana e a estamos revelando
constantemente ou esbarramos, ininterruptamente, na redoma de vidro de nossas
convicções conceituais. Optei pela perspectiva da redoma de vidro conceitual.
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Primeiramente, pensei em começar a pesquisa com a fundação da
Universidade de São Paulo (USP), em 1934. Conta Lucy Seki (1999, p. 236) que, no
ano seguinte à sua criação, foi incluída, nos cursos de História e Geografia, a cadeira
de Língua Tupi-Guarani e Tupinologia, ministrada por Plínio Ayrosa, com estudos de
caráter filológico, etimológico e histórico, inaugurando assim o estudo superior
dedicado ao índio. De acordo com Maria Cristina Altman (1998, p. 46-60), que
estudou a pesquisa linguística no Brasil, a princípio, a implantação dos estudos de
línguas indígenas esteve associada aos departamentos de Antropologia, ao longo do
tempo, foi deslocada aos cursos de Letras, passando a integrar a cadeia de disciplinas
de formação de professores de língua portuguesa para o ensino fundamental e médio.
Assim, tanto a Linguística quanto os estudos de línguas indígenas entraram no
currículo previsto para a formação profissionalizante do professor, não visando o
desenvolvimento de reflexões propriamente linguísticas, mas servindo como uma
ferramenta para o entendimento da complexidade da formação e do estabelecimento
da língua nacional, entendida aqui como a língua portuguesa do Brasil. Bruna
Franchetto e Ionne Leite (1983, p. 15-30), que historiografaram a pesquisa em
Línguas Indígenas no Brasil, divulgaram que, com um programa financiado pela
Fundação Ford que visava à melhoria do ensino da língua portuguesa e entendia as
línguas indígenas como um “subproduto nacional”, a pesquisa em Línguas Indígenas,
então sediada no Museu Nacional, se deslocou para o curso de Letras da UFRJ, com o
intuito de formar professores.
Ao longo da leitura de textos como Sobre a necessidade do estudo e ensino
das línguas indígenas do Brazil, de Adolfo Varnhagen e Do método de estudo das
línguas sul-americanas, de José Oiticica, de 1933, onde já vigoravam as ideias
apresentadas por Aryon Rodrigues na reunião da Associação Brasileira de
Antropologia, em 1966, em seu discurso Tarefas da Linguística no Brasil, percebi que
havia consenso sobre a extinção das línguas e a necessidade de sua documentação e
estudo. Percebi também que havia um nó no discurso científico sobre as línguas
indígenas, um conjunto de categorias linguísticas que serviam como referências
identitárias e de pertencimento. Estas categorias estavam cristalizadas como famílias
linguísticas, são elas: tupi, guarani, arawak e caribe, e representam uma geografia
nacional da nomeação do índio, intrinsecamente política, desde o descobrimento, e
que foram transpostas para o estudo científico do índio como categorias linguísticas
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específicas. O uso destas categorias se dá em decorrência do discurso gerado e
compartilhado sobre as línguas indígenas, suas origens e suas relações históricas.
Alexandra Aikhenvald e Robert Dixon (1999, p. xxvi), editores do grande
manual The Amazonian Languages, garantiram que as contribuições publicadas em
seu livro estão de acordo com a Teoria Linguística Básica (Basic Linguistic Theory),
desenvolvida a partir das descrições linguísticas acumuladas em uma única tradição
que já perdura 2.000 anos, evidenciando este arcabouço fidedigno com o exemplo da
tradição das gramáticas que foram elaboradas exatamente sob esses parâmetros. Era
exatamente este o problema que eu percebia. Se a tradição de descrição linguística
acumula dados há 2.000 anos, então ela se desenvolveu junto ao processo histórico de
elaboração conceitual científico ocidental, amalgamando os dois. Os conceitos
elaborados pelo pensamento científico se solidificaram em conceitos linguísticos e
gramaticais quase inseparáveis: sujeito, objeto, verbo, palavra, fonema e todas as suas
subformas e variações. Como isso aconteceu? Bom... escrevi esta tese para entender o
caminho histórico de elaboração conceitual científica, principalmente, sobre as
línguas indígenas faladas no Brasil.
Além da tradição da ciência e da filosofia desenvolvidas em torno das
descrições linguísticas, há a tradição de descrição linguística acumulada ao longo do
trabalho desenvolvido no Brasil que remonta ao descobrimento e passa
inevitavelmente pelas descrições e gramáticas elaboradas pelos missionários e pelos
naturalistas que estiveram aqui. Foi nestas fontes que decidi mergulhar e foi por meio
delas que refiz o trajeto de constituição do discurso científico sobre as línguas
indígenas faladas na América e suas implicações para a descrição linguística dessas
línguas. Algumas reflexões já começaram a ser divulgadas. Refiro-me precisamente à
minha dissertação de mestrado que, após os estudos iniciais do doutorado, passou por
uma revisão, da qual surgiram dois artigos, um sobre os pronomes pessoais e a noção
de pessoa Apinajé3, em que questiono a noção pronominal centrada no ‘eu’. E o outro
sobre o termo kra, recentemente publicado, em que questiono o porquê de os
classificadores em línguas indígenas sempre remeterem à esfera do concreto, da
realidade imediata, do natural.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!3 Segundo Mansur Guérios (1948, p. 9), os etnômios “são dados pelas mesmas tribos, pelas vizinhas, e pelos europeus.” O autor ressaltou a consideração de Trombetti que observou que os etnômios em geral significam “humano verdadeiro”, mas no entanto a origem ou a história deste etnômio é frequentemente desconhecida. Adotei o termo Apinajé por ser a referência bibliográfica mais comum sobre o povo e a língua falada por este povo, exatamente por se tratar de um trabalho de compilação bibliográfica sem visita a campo.
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Para o artigo sobre o termo kra, resgatei a discussão apontada por Christiane
Oliveira (2005, p. 61), em sua tese de doutorado. Ela argumentou a impossibilidade
de comprovar em campo a existência da vogal nasal [ã] em apinajé, rechaçando o
proposto por Pamela Ham (1961, p. 4), portanto, não a incluiu em seu quadro de
fonemas vogais da língua. Os pares krá/krã ou krá/kra, se usados como pares
opositores, testam a presença dos fonemas da vogal ‘a’ aberta e nasal na língua. Tanto
Pamela Ham quanto Christiane Oliveira trataram-nos como dois itens lexicais
diferentes e consideraram que krá (vogal ‘a’ aberta) significa ‘filho/criança’. Pamela
Ham (1961, p. 19) considerou que krã (vogal ‘a’ nasal) significa ‘cabeça’, e
Christiane Oliveira (2005, p. 145) que kra (vogal ‘a’ média) também significa
‘cabeça’. Em ambos os casos, a distinção lexical é definida pela existência de
oposição fonológica entre estas vogais. Talvez, krã/kra sequer signifique ‘cabeça’,
mas sim conduza ao entendimento mais amplo da compreensão de corpo e de pessoa
apinajé, assim como do mundo que os cerca. Porém, as concepções expressas por
estas palavras representam algo bem maior e mais extenso do que sua limitada
tradução para o português pôde abranger. Ao fazer uma pequena lista de palavras
relacionadas a termos de parentesco, pude perceber que o termo krã ou kra, embora
traduzido literalmente como ‘cabeça’, aparece diretamente relacionado à ‘criança’.
Um homem chamará de ikrá aos seus filhos e aos filhos de suas cunhadas, embora
faça distinção entre sua esposa e suas cunhadas em um relacionamento regido por
piam (respeito). Da mesma forma, a mulher chamará de ikrá seus filhos e os filhos de
suas irmãs, portanto, krá não é exclusivamente o filho gerado pela união sexual dos
genitores, se aproxima mais de um termo de parentesco que estabelece lugares sociais
para cada ente dentro do grupo. No sistema de nomeação apinajé, como explicitado
por Roberto da Matta (1976, p. 85-112), os genitores escolhem, entre seus amigos
formais, aquele que dará nomes à criança. Após estabelecida a formalidade, o
nomeador e o nomeado passam a se tratar pelos seguintes termos:
krã-geti ‘nomeador’ (literalmente, ‘cabeça velha’)
pakrã ‘nomeado’ (literalmente, ‘cabeça nova’)
Embora, literalmente seja ‘cabeça’, semanticamente, remete à ‘criança/filho’.
Se visualizarmos que, ao nascer, a primeira parte do corpo do bebê que desponta no
canal vaginal é a cabeça teríamos uma unidade semântica que se estende de krá/kra
alcançando krã. Jean Starobinski (2002, p. 13) nos propôs que a história de cada
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palavra seria criada no devir histórico de cada língua, tendo seus desenvolvimentos
fortemente alicerçados em sua própria história. A questão colocada aqui seria como
perceber essa história de construção de sentido, incluídas suas mudanças de sentido
que seriam tão significativas quanto o sentido original, em línguas das quais não
conhecemos a trajetória histórica de construção do sentido. Haveria possibilidade de
acessar este conhecimento? Haveria possibilidade de transpor os nossos limites
conceituais para compreender outros sentidos, construídos sob outra memória
discursiva? Tentarei, tomando algumas considerações etnográficas elaboradas por
Roberto da Matta, estabelecer uma relação de sentidos que possa apontar uma direção
histórica de construção dos sentidos implicados no conjunto semântico krá/kra/ krã.
Para Roberto da Matta (1976, p. 134), a cabeça é, das partes do corpo, a mais
significativa para os Apinajé, visto o cuidado e a relevância do corte de cabelo e dos
adornos cerimoniais identificadores de cada metade amarrados sobre o sulco criado
pelo corte de cabelo. A cabeça e o corte de cabelo em muito se assemelham ao
formato tradicional das casas que são arredondadas. Poderíamos supor, então, a
existência de um categorizador da forma “redondo”, como descrito em Kaingang por
Wilmar D’Angelis (2002, p. 215-242), aludindo à forma arredondada da cabeça e à
esfericidade de alguns frutos. A questão seria, então, interpelar sobre a escolha da
forma “redondo” como determinante do categorizador. Por que privilegiar o formato
em detrimento das relações sociais?
A resposta para esta pergunta é longa, passa inevitavelmente pelo labirinto
teórico e conceitual desenvolvido pela ciência ocidental ao longo dos últimos 2.500
anos aproximadamente. A ideia por trás da análise linguística convencional, que
percebe um classificador de forma “redondo” como explicação, baseia-se no
entendimento estruturalista de que o pensamento selvagem atua sobre o concreto e
não sobre o abstrato. Esta consideração nos remete imediatamente às origens da
linguística como disciplina científica, a Wilhelm von Humboldt, para quem povos de
pouca complexidade social desenvolveriam línguas relativas ao prático com pouca ou
nenhuma abstração, evocando a cadeia do ser do século XVI, na qual os povos seriam
classificados por seu desenvolvimento espiritual em termos de maior ou menor
humanidade, conceitos religiosos que remetem ao século XIII, e assim por diante. Há
uma longa caminhada a ser feita por esse labirinto a partir de agora. Para mim, a
descrição de línguas indígenas é uma das abordagens que se vale de conceitos
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ocidentais para operar como ferramenta de análise com pressupostos universais sobre
o funcionamento das línguas.
Nesta tese faço uma extensa pesquisa documental e bibliográfica. Grande
parte do trabalho foi fazer uma compilação com o intuito de mostrar o caminho da
construção conceitual de termos e de ideias ainda hoje adotados pela Linguística
Histórica, pela Linguística Comparada e pela Tipologia Linguística como verdadeiros
sobre as línguas indígenas. Por isso, este trabalho se posiciona na História das Ideias
Linguísticas, como uma História dos Conceitos. Procuro investigar a elaboração dos
termos de maneira ampla, abrangente, porque o fermento intelectual e criativo de uma
época não se encontra encerrado em um único texto. Em qualquer momento há
debate, questionamentos e contribuições de diversas áreas. Pois as pessoas vivem
embebidas no momento histórico ao qual pertencem.
Parto do princípio, já bastante discutido por vários historiadores, entre eles,
Jack Goody e Eric Wolf, de que a Europa era conectada por meio de rotas e alianças
comerciais que se expandiam para a África e a Ásia. Para Eric Wolf (2005, p. 40), as
redes estabelecidas entre Europa, Ásia e África são cruciais para compreender as
relações entre o mundo conhecido e o mundo desconhecido: o Novo Mundo. Pois foi
do encontro entre estes dois mundos diferentes que se estabeleceu um mundo de
relações unificadas pelas atividades humanas, geograficamente estabelecido e acima
de tudo um mundo que se relacionava entre si por meio de trocas comerciais. Entendo
porém que não eram apenas as trocas comerciais que uniam o mundo ou faziam-no
relacionar-se. As ideias científicas eram também fruto de um debate que se estendia
não apenas territorialmente, mas distendia-se no tempo.
A revitalização da produção intelectual grega funcionou como uma mão dupla
na história da Europa. Estabeleceu uma nova fronteira, chegando agora até a Grécia, e
concedeu profundidade histórica ao pensamento produzido na Europa, sugerindo uma
continuidade do saber e do poder político que justificava a ascenção comercial
europeia e sua separação territorial do restante da Eurásia. Tema já debatido e
especulado por vários gregos, eles mesmos dando-se uma posição nem cá nem lá.
Jack Goody (2008, p. 117-121) resgatou as ideias de Aristóteles sobre o tema, que
localizou a Grécia em um ponto intermediário entre Europa e Ásia, e identificou os
gregos como agregadores das qualidades de ambos os lados, acrescentando que o
clima contribuía para a falta de inteligência e indústria na Europa, e que a falta de
ânimo dos asiáticos os subjugava à escravidão perpétua em que viviam. Aristóteles
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acreditava que a situação privilegiada dos gregos lhes permitia perceber elementos de
sua própria cultura em outras culturas, como a etíope, a germânica e a persa.
De alguma forma, os europeus se apropriaram tanto da produção intelectual
quanto da visão “helenocêntrica”, fundando seus novos limites territoriais e
epistemológicos. As grandes perguntas com densa profundidade histórica precisam
ser feitas em algum momento. Dediquei-me a escavar as camadas fossilizadas das
categorias linguísticas e do pensamento ocidental. As respostas, apresento-as nesta
tese.
1.1 Objetivo da tese
Considerando a Teoria da Monogênese, seria necessário traçar a história
linguística do continente americano, em marcha ré, até a separação do grupo asiático
que empreendeu a migração pelo estreito de Behring4, para podermos estabelecer sua
posição na árvore genealógica das línguas da humanidade. Por enquanto, os troncos e
as famílias linguísticas americanas permanecem separadas do conjunto indo-euro-
asiático e africano. Embora este modelo de linguística busque as relações históricas
entre os diferentes grupos humanos e suas línguas por meio de migrações e de contato
entre os povos, entende as relações linguísticas como um dado supra-histórico. A
ideia de que a linguagem funciona como um processo mental universal de
representação do mundo subjaz à teoria da monogênese e aos métodos genealógico e
tipológico. Assim, criamos um humano genérico, uma língua genérica e uma
representação genérica da realidade que tem por base exclusivamente o pensamento
ocidental e suas teorias sobre a linguagem amparadas na ciência de base cristã
desenvolvida ao longo de séculos. Uma das representações ocidentais que discuto
nesta tese é o sujeito gramatical como categoria linguística que pressupõe uma
hierarquia sobre o objeto.
Outro objetivo desta tese, é identificar como a classificação das línguas
indígenas em troncos e famílias linguísticas foi estabelecida. Não pretendo discutir o
método em si, mas apontar as premissas ideológicas presentes nas teorias que o
amparam. Como descreveu Otto Jespersen (1964, p. 367-395), em Language, o
método que classifica as línguas em categorias chamadas de famílias linguísticas é a
identificação de membros por retenção lexical semelhante, ou seja, línguas com
palavras semelhantes pertenceriam à mesma família linguística. A mútua
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!4 Afinal esta ainda é a teoria mais aceita a respeito da chegada do humano ao continente americano.
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compreensão entre línguas aparentemente diferentes indicaria a existência de dialetos
que deveriam ser considerados como uma única língua. Este método se desenvolveu
paralelamente aos estudos do indo-europeu e tem como premissa a Teoria da
Monogênese da Linguagem. Então, se todas as línguas têm uma origem comum, por
meio da comparação entre as línguas seria possível traçar seus parentescos e especular
sobre sua origem. Por isso, a comparação entre as línguas resultou na elaboração da
gênese das línguas como uma árvore genealógica com uma língua-mãe sendo o tronco
comum do qual partem ramos que vão se dividindo uns a partir dos outros.
No que diz respeito às línguas indígenas existentes no Brasil, a língua Tupi, ou
Língua Geral, do ponto de vista da convivência multiétnica e multilíngue favorecida
pelos aldeamentos e a escravidão simultânea de negros e índios, poderia ter surgido
como uma língua criola, com influências do Quimbundo, da língua de Angola e de
outras línguas indígenas, transportando sentidos através do oceano e ancorando uma
nova língua no litoral do Brasil. Uma perspectiva com este viés, o do sentido, serve de
questionamento para o estabelecimento das famílias linguísticas com base na retenção
lexical.
Paralelamente à classificação genealógica, se desenvolveu a classificação
tipológica moderna das línguas, que distingue as línguas de acordo com suas
caraterísticas estruturais morfológicas, com línguas isolantes, aglutinantes ou
flexionais. Para esta teoria, a presença de radicais morfológicos nas palavras é uma
forma de rastreamento da retenção lexical. Como nos exemplos retirados de Aryon
Rodrigues (2002, p. 55), em Apinajé, ‘meu’ significa i-; em Xavante, ii-; em
Kaingang, iñ-; em Yatê, i-; em Boróro, i-, e em Rikbaktsá, ik-. Todas estas línguas
pertencem ao tronco Macro-Jê e, em todas elas, o prefixo possessivo vem acoplado
aos nomes, como em ikrá, ‘meu filho’, em Apinajé. Nesta lógica, nomear o mundo
define uma língua e a classifica.
1.2 Coleta de dados
Como não dispunha de financiamento para deslocar-me até as instituições que
guardam os acervos, enviei meus olhos em um longo passeio pelos acervos digitais de
grandes universidades e arquivos públicos, em sua maioria, disponíveis no Internet
Archive , da empresa Google, que gerencia as bibliotecas
virtuais de Library of Congress, Harvard Library, Boston College entre outras grandes
bibliotecas que compõem o catálogo de acervos americanos, com aproximadamente
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dois milhões de itens disponíveis para download. O sistema gerencia também mais de
500.000 acervos digitalizados de universidades europeias, que disponibilizam mapas,
livros e documentos diversos. Muitas gramáticas e dicionários históricos, assim como
livros raros e edições esgotadas foram encontrados neste sistema.
1.2.1 Os acervos
No acervo digital da Universidade de Madrid, procurei por informações sobre
as colônias espanholas na América, mapas e relatos de viagens, e acabei me
embrenhando pela resistência basca e pelo acervo escassamente digitalizado referente
à produção intelectual moçárabe da Andaluzia. Meus olhos irremediavelmente se
prenderam aí. Qual seria a influência moçárabe e islâmica na escolástica produzida
nos monastérios espanhóis do século XII? Infelizmente meus inexperientes espelhos
não possuem ainda capacidade de dissipar tão densa escuridão.
Na Universidade de Lisboa, que gerencia o arquivo digitalizado da Torre do
Tombo, procurei mapas, relatos de viagem e documentos sobre as viagens marítimas
para o Brasil, os chamados regimentos que cada navio era obrigado a fazer, neles
constam o nome de cada tripulante embarcado, idade, endereço, função e
remuneração, além do valor estimado da carga transportada e a descrição de toda a
mercadoria e dos suprimentos para a tripulação, assim como o cálculo do imposto
devido. Grande parte dos documentos digitalizados são informações mercantis,
embora muitos papéis tenham se perdido durante o terremoto de Lisboa, em 1773, e
nos incêndios que assolaram a cidade após o terremoto. Foi em um dos regimentos,
que encontrei o nome da família Anes, um dos primeiros línguas que se estabeleceu
no Brasil, mas embora exista uma infinidade de informações mercantis disponíveis
nos acervos, as documentações relativas às famílias não estão digitalizadas. É difícil
rastreá-las para entender suas relações e comprometimentos, pois são cartas guardadas
em caixas de arquivos pessoais. Este me parece ser o caso dos línguas, dos quais é
praticamente impossível saber a origem e o treinamento que receberam. Afinal, por
que se tornaram línguas? Recentemente estes arquivos vêm recebendo a atenção de
pesquisadores e historiadores que procuram outros vieses para suas pesquisas e
algumas informações sobre arquivos pessoais já podem ser encontradas em teses e
publicações. Este é o caso das relações familiares da casa de Martim Afonso
Chichorro, extensamente descritas pela historiadora Alexandra Maria Pinheiro Pelúcia
em sua tese de doutorado.
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No arquivo digital do Vaticano, após horas de pesquisa, encontrei os
manuscritos originais de Santo Tomás de Aquino da Summa Theologiae. Como não
disponho de conhecimento de leitura paleográfica do latim escrito no século XIII, me
contentei, emocionada, em admirar essa impressionante descoberta. O material
pesquisado foi uma impressão espanhola, em latim, gentilmente emprestada pelo
professor João Miguel Sautchuk, e as traduções das províncias beneditina para o
português e dominicana para o inglês.
No acervo digital do Banco da República da Colombia, gerenciadora do
arquivo da extinta Gran Colombia que abrangia os territórios atuais da Colômbia, da
Venezuela, do Equador e do Panamá, incluindo a documentação sobre o Caribe e o
porto mais disputado da América, Cartagena de Índias, encontrei cinco volumes das
Noticias Historiales de Fray Pedro Simón e a Recompilación de Leyes de Índias.
No acervo digital da Biblioteca da Câmara dos Deputados, busquei por
documentos jurídicos, regulamentações e decretos sobre os índios. Encontrei o
Diretório dos Índios e inúmeras obras raras inteiramente digitalizadas, como o De
Orbis Novo e a Corografia Brasília de Aires do Casal, além de publicações brasileiras
do século XIX.
O Arquivo Jesuítico em Roma não possui acervo digitalizado, por isso, toda a
documentação a respeito da Companhia de Jesus foi investigada na extensa
compilação do Padre Serafim Leite, História da Companhia de Jesus.
No acervo digital da Universidade de Berlim, encontrei para download todos
os livros dos irmãos Humboldt, em alemão, e algumas versões em francês.
A seção de Obras Raras da Biblioteca Central da Universidade de Brasília me
ofereceu a possibilidade de folhear o Glossaria Linguarum Brasiliensium de Martius
e Spix. Demais documentos foram encontrados em compilações editadas e publicadas
no Brasil, como História dos Índios do Brasil, Os primeiros documentos sobre a
história natural do Brasil, Brasil 1500 – quarenta documentos, e o Catálogo da
Biblioteca Nacional.
Além dos acervos digitalizados, foram muito úteis dicionários online,
aplicativos de tradução e de busca por palavras, dos quais tirei excelente proveito,
embora tenha sido educada em tempos analógicos em que imperavam a máquina de
escrever e o caderno. A web tem sido considerada uma fonte enganosa de informação,
no entanto, me demonstrou que a fase de descrédito foi superada. O que se apresenta a
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nós é uma biblioteca de letras imensurável, labiríntica e fenomenal. Me perguntei
diversas vezes se Jorge Luis Borges não a teria vislumbrado ao escrever O Aleph.
1.3 Metodologia
Esta tese se encontra no domínio da História das Ideias Linguísticas, mais
especificamente, no domínio da História dos Conceitos. Portanto, foi usado o
procedimento metodológico previsto por Reinhart Koselleck (1992, p. 134-146), em
Uma História dos Conceitos. Primeiramente, procedi à seleção do corpus, ou seja, a
escolha do material textual a ser utilizado como fonte de pesquisa para verificar em
que textos o termo escolhido ocorre, ampliando depois para um contexto mais
abrangente em que se articulam os termos para além do texto escrito. Este
procedimento exige a comparação entre diversas fontes textuais, o mais abrangentes
possíveis, pois a partir de um único texto não é possível uma visão tão ampla. Então,
foram escolhidas fontes primárias, chamadas de primárias, porque se articulam ao
cotidiano e são únicas.
Em um primeiro momento, as fontes escolhidas eram dedicadas à história da
colônia e do relacionamento entre brancos e índios. Para este trabalho, em que foram
historiografados os conceitos carib, arawak, caraíba e tupi, selecionei cartas dos
missionários à Ordem e cartas dos senhores das capitanias ao Rei; alvarás e
regimentos referentes à colônia e regimentos relativos às embarcações saídas de
Portugal; cartas de autores-referência para os estudos sobre as línguas indígenas,
como Karl von den Steinen e Theodor Koch-Grünberg.
Outro conjunto de textos foi o dos livros impressos que retém um tipo de texto
menos suscetível à mudança que as fontes primárias, os chamados textos clássicos do
descobrimento, que mantêm uma estrutura repetitiva e praticamente inalterada ao
longo de suas reimpressões e reedições. Este é o caso dos diários dos navegadores:
Novus Mundus, De Orbis Novo; Arte de grammatica da lingoa mais usada na costa
do Brasil; e os livros escritos pelos cronistas do século XVI, entre eles: Yves
D’Evreux, Claude D’Abbeville, Fernão Cardim e Pero Gândavo.
Entre as categorias estabelecidas por Reinhart Koselleck, não há a previsão
dos depoimentos diretos dos indígenas que foram pinçados da documentação oficial
da colônia e dos textos clássicos como forma de dar voz aos índios, demonstrando a
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resistência5 e a interferência dos índios que, embora silenciados, contribuíram para o
estabelecimentos dos sentidos postos em circulação durante a colonização.
Em um segundo momento, as fontes escolhidas foram aquelas dedicadas aos
estudos da linguagem, nas quais investiguei os termos: sujeito gramatical e objeto
gramatical; e linguagem e língua. As fontes primárias foram cartas trocadas entre os
irmãos Alexander e Wilhelm von Humboldt. Assim como as obras clássicas: Die
Sprache de Wilhelm von Humboldt e a Summa Theologiae de Tomás de Aquino.
Para cada afirmação linguística presente nas fontes, foi apresentado um
cenário histórico concreto no qual é possível interpelar às fontes o que elas indiciam
sobre a coprodução da história enquanto textos. Neste ponto, a semântica e a história
dos conceitos se aproximam, por isso, usei a metodologia dos domínios semânticos de
determinação, como proposto por Eduardo Guimarães (2010, p. 9-24), em O sentido
de ‘história’ em dois estruturalistas brasileiros, para determinar os predicados de
reescrituração dos termos língua e linguagem ao longo dos textos, buscando fazer
uma relação entre os termos e os textos em que foram reescriturados de forma a
acompanhar as variações ao longo do tempo. As variações não significam exatamente
mudança, mas sim, a repetição do mesmo, por meio da reescrituração. O que este tipo
de interpretação demonstrou foi uma rigidez imperiosa de acomodar a realidade ao
mesmo conjunto de categorias e conceitos.
Como metodologia para a interpretação dos textos, vali-me da Análise do
Discurso, como proposta por Eni Orlandi (1999), em Análise de discurso. Princípios e
procedimentos, e de sua forma de entender o controle dos sentidos por meio de uma
força social que se reproduz pela memória discursiva que administra os sentidos.
Tendo em vista que tratei de textos de obras clássicas, portanto consolidados
discursivamente na história da linguística, foi profícuo entender que tanto as
gramáticas quanto as obras clássicas são discursos sobre a língua e, portanto, passíveis
de representarem, em seus discursos, sentidos, alimentados por uma memória
institucional e discursiva sobre aquele saber.
Também da Análise do Discurso acatei o princípio de que a memória
discursiva especifica as condições nas quais um acontecimento histórico é suscetível
de tornar-se uma memória. Para entender as relações entre o acontecimento histórico
e as designações que se estabelecem como memórias discursivas posteriormente, usei
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!5 A Professora Isadora Machado, em sua atenciosa leitura, propôs a inclusão da resistência dos silenciados no proceso de estabelecimento e circulação de sentidos.
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categorias da Semântica do Acontecimento como elaboradas por Eduardo Guimarães
(2014, p. 49-68), em Espaço de enunciação, cena enunciativa, designação, ao tratar
das relações entre espaço de enunciação e cena enunciativa em episódios da história
da colonização brasileira.
Esta forma de análise semântica é feita levando-se em conta a distinção entre
os processos enunciativos de reescrituração e articulação. O processo de
reescrituração apresenta uma relação não reflexiva. É por meio da não reflexividade
do processo que se atribui sentido, ou seja, se uma expressão é repetida no decorrer do
texto, o que mais interessa não é a repetição em si, mas como esta repetição, em certa
medida, se torna uma outra expressão. É este aspecto que dá sentido à expressão.
Saber o que uma expressão significa num enunciado envolve saber como esta
expressão se integra num enunciado que integra um texto. Deste modo, não é possível
pensar o que é um enunciado, e o que ele significa, sem que esta unidade seja tratada
enquanto integra um texto. Isto pode ocorrer de dois modos: retomando ou
reescrevendo outra expressão, ou analisando como a expressão se articula localmente
num sintagma específico. Quanto às operações de articulação, as mais comumente
consideradas são: determinação, predicação, argumentação, narratividade, referência
etc.
A tradução exigiu também uma abordagem específica. Dada minha pouca
competência no alemão e no latim, tomei muito tempo pesquisando traduções para
outras línguas que não o português como forma de evitar equívocos e como estratégia
para desenvolver uma perspectiva própria sobre cada autor. Em geral, comparei
versões em duas ou mais línguas com o original para, depois de chegar à compreensão
do texto, elaborar minha própria tradução dos trechos que considerei mais relevantes.
1.4 Estrutura da tese
No primeiro capítulo, faço um levantamento das narrativas que territorializam
os índios e suas línguas na América, gerando uma geografia do simbólico. Há uma
vasta bibliografia escrita por cronistas dos séculos XVI e XVII que descreveram os
habitantes do Novo Mundo, levantando as bases do conhecimento sobre os índios e
suas formas de vida. Os primeiros documentos escritos sobre as viagens marítimas de
europeus para a América foram os diários de bordo de Colombo e de Pinzón, o último
redigido pelo escrivão a bordo da caravela Niña, Pedro Martire d’Anghiera. Colombo
supostamente escreveu seu próprio diário, um livro controverso cuja autoria ainda
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hoje é discutida, mas que se legitimou como o primeiro documento escrito sobre a
terra e sobre os índios que viviam nela. Durante a leitura do diário de Colombo e de
textos de seus contemporâneos, identifiquei o uso de narrativas e imagens similares.
Sorrateiramente, Marco Polo se revelou uma leitura obrigatória, dadas as
coincidências estruturais narrativas presentes no Livro das Maravilhas e as narrativas
da descoberta. Comecei a pensar que essas semelhanças pouco tinham a ver com os
nativos, mas com os europeus e sua forma de ver o mundo. Ficou claro para mim, que
as categorias usadas para entender o outro são e foram projeções que os europeus
fizeram sobre os outros povos.
No segundo capítulo, trato também do estabelecimento dos grupos étnicos
caribenhos, mais especificamente os caribes e os arawaks, cuja distinção e existência
partiram da experiência de Colombo e se calcificaram como categorias étnicas e
famílias linguísticas inquestionáveis. Também traço a trajetória histórica do termo
caraíba e suas implicações canibais tanto para portugueses quanto para indígenas.
Para isso, analiso os textos dos primeiros cronistas sobre o Brasil e averiguo os termos
que designam o branco, como caraíba. Como decorrência das implicações de caraíba
como pajé, faço reflexões sobre o canibalismo tupi e a migração messiânica guarani.
A descoberta de um novo continente trouxe a necessidade de reelaborar o mito de
origem dos brancos cristãos, neste capítulo, apresento a primeira parte desta história
que ainda não chegou ao fim.
No terceiro capítulo, discuto a geografia da nomeação étnica como
estritamente política, significando quase uma delimitação territorial de concessões
portuguesas que se projetaram no discurso científico como famílias linguísticas que
partilham semelhanças lexicais. Uso, para esta discussão, as narrativas de Caramuru e
João Ramalho para estabelecer a geografia linguística e política que se desenrola a
partir delas. Examino a língua Tupi, ou Língua Geral, do ponto de vista da
convivência multiétnica e multilíngue favorecida pelos aldeamentos e a escravidão
simultânea de negros e brancos, onde teria surgido uma língua criola, com influências
do Quimbundo, da língua de Angola e de línguas indígenas, mas onde não existiria a
presença de uma língua indígena homogênea e previamente existente no litoral do
Brasil. O que serve de questionamento para o estabelecimento das famílias
linguísticas com base na retenção lexical. Procuro trazer evidências linguísticas da
dispersão ideológica causada pelos contatos históricos entre grupos indígenas na
América, em período pré-colombiano, em vez de justificar o contato histórico por
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meio da presença de retenção lexical. O pressuposto inicial é a existência de uma
conexão entre os grupos que perpassava, pelo menos, toda a parte sul do continente
americano, por onde circulavam bens, pessoas, tecnologia e, principalmente, no que
diz respeito a esta pesquisa, sentidos. A existência pré-colombiana de complexos
sistemas de integração pode ser percebida nos textos da arqueologia e da etnologia
que descrevem ritos e rituais cujos significados são partilhados por grupos que não
pertencem necessariamente à mesma família nem habitam territórios vizinhos.
No quarto capítulo, analiso o método de descrição de línguas que pressupõe a
existência de categorias universais e investigo as bases ideológicas destas categorias,
revisitando as premissas estabelecidas por Tomás de Aquino, no século XIII.
Apresento uma breve discussão a respeito do sujeito gramatical como categoria
linguística que pressupõe uma hierarquia sobre o objeto.
No quinto capítulo, abordo a passagem dos naturalistas pela América, mais
especificamente Alexander von Humboldt, e sua necessidade de classificar o mundo
de acordo com uma estrutura orgânica e natural que desvendasse seu funcionamento.
Para os naturalistas, a natureza era entendida como um caos que necessitava ser
ordenado pela ciência, a partir desta ideia o modelo científico de produzir
conhecimento se estabeleceu. O modelo científico era amplamente baseado na
classificação botânica elaborada por Linneu. Da lógica naturalista de classificação,
surgiram as listas de palavras a partir das quais as línguas dos grupos étnicos visitados
por missionários e aventureiros do século XVI foram organizadas em famílias,
consolidando assim o discurso científico sobre as línguas e suas filiações genéticas.
Discorro sobre as ideias linguísticas de Wilhelm von Humboldt e suas concepções,
resgatando discussões a respeito da natureza divina encarnada no corpo humano que
foi debatida no Concílio de Niceia realizado no século IV. Desta discussão, contemplo
a possibilidade de dar continuidade à narrativa da origem da humanidade iniciada no
segundo capítulo.
No sexto capítulo, discuto a ideia de abstração existente nas teorias sobre a
língua e a linguagem. Resgato a discussão religiosa do século IV sobre a encarnação
de Deus em Jesus Cristo e suas duas naturezas, uma divina e uma humana, presentes
no mesmo corpo, e traço comparações, ao longo do processo histórico de construção
das teorias linguísticas e dos termos, relacionados à língua e à linguagem. Discuto as
implicações desta perspectiva sobre os estudos de línguas indígenas no Brasil,
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apresentando uma breve discussão a respeito do sujeito gramatical como categoria
linguística que pressupõe uma hierarquia sobre o objeto.
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2. PALIMPSESTOS CARIBENHOS
[…] são dados tão particulares, e todos coincidentes, que não é crível possa
uma mentira ter-se difundido em tantas línguas, e em tantas nações, com tantas
cores de verdade. (Acuña, 1994, p. 153)
Içadas as velas, a epopeia inicia. Perambulando silenciosamente pela cabine
do Almirante, meus olhos passeiam por entre os instrumentos de bordo. Uma bússola
sempre apontando para o norte, a Bíblia e o diário de um navegador que passa a
eternidade em tumultuado sono. Folheio seu diário curiosa. Desentendimentos com
Pinzón, insurreições da tripulação, a constante frustração de não saber onde estava
exatamente, cálculos e projeções. Todos os elementos necessários para um poema
estavam ali. Navegar em alto mar é um poema épico. Naveguemos, pois!
Ernest Curtius (2013, p. 175) nos ensinou que as metáforas náuticas eram
recursos muito usados na literatura romana, de Ovídio a Estácio, portanto nada mais
épico que iniciar um capítulo sobre o descobrimento da América, epopeia de grandeza
igualável à de Homero, com uma bela metáfora de navegação. Para Ernest Curtius
(2013, p. 71), a educação era a portadora da tradição literária e a continuidade da
literatura europeia estava ligada à escola. Ernest Curtius entendeu que a tradição
literária começou com os gregos que viram em Homero “o reflexo ideal de seu
passado, de sua existência e do mundo de seus deuses.” Por isso, discursivamente, a
tradição grega se tornou Homero e o que os gregos fizeram os romanos replicaram. A
Odisseia foi traduzida por Lívio Andrônico para as escolas romanas, mas foi somente
com Virgílio e sua Eneida que os autores romanos conseguiram atingir o lugar de
epopeia nacional e filiar-se à tradição de Homero. A escolástica da Idade Média teria
adotado de gregos e romanos a ligação entre epopeia e escola e transformado a Eneida
no pilar do ensino de latim.
Ernest Curtius fez exatamente esse trajeto argumentativo, passou de gregos a
romanos e depois à Idade Média. Os saltos temporais ainda são facilmente
naturalizados por nós, pois à Antiguidade se sucede a Idade Média, e a Antiguidade é
o apogeu de Grécia e Roma. Dada a lacuna temporal entre os períodos, percebo que a
estratégia educativa medieval funcionou. Para Ernest Curtius (2013, p. 71), a
estratégia medieval de fundar seu método no passado áureo das grandes civilizações
resgatou os princípios gregos da educação baseada nas sete artes liberais, descritas por
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Marciano Capela no De Nuptiis Philogiae et Mercur6, do século V, e entronizou o
latim como língua de conhecimento fomentada pela literatura clássica. A Europa
velejava.
Tendo em vista o período das navegações ibéricas que me proponho a estudar,
cabe lembrar que Portugal produziu sua epopeia nacional. Luis de Camões cantou em
Os Lusíadas a saga das viagens em busca do caminho para a Índia, mas não as
viagens à América. Os espanhóis sequer fizeram-na. Uma epopeia nacional
significava a fundação de uma tradição, assim como a tradição fundada por Homero
representava um ideal de vida e um método escolar. Para os portugueses, esse ideal
estava associado à Índia, mas não à América. As narrativas da descoberta da América
não foram poemas épicos destinados à grandeza nacional, em geral, foram relatos de
navegadores e de navegações. Apesar de serem temas clássicos das epopeias e de
terem se convertido em compêndios do conhecimento da época sob o qual as
novidades do Novo Mundo eram discutidas, não alcançaram o status literário
concedido às viagens à Índia. Mais do que narrativas aventurescas para noticiar o
Novo Mundo, os diários dos navegadores serviram para fazer o conhecimento circular
na Europa. A língua escrita7 estabeleceu, então, um modo de gerar conhecimento e
verdades por meio dos livros, que assim cumpriam sua função didática e intelectual.
Navegando pelos diários dos viajantes e pelas narrativas criadas por eles para
hospedar os seres encontrados no Novo Mundo pude perceber a formação de uma
intrincada rede de espaços de enunciação8 que uniam a Europa ao Novo Mundo e
vice-versa. Havia um espaço de enunciação escolar, em que predominava o latim
como língua de circulação do conhecimento. Este espaço estava centrado nas
universidades e voltado para os escolásticos que produziam textos de alto nível
intelectual para o pensamento cristão. Nesse espaço de enunciação, estão as
gramáticas das línguas indígenas e os diários dos primeiros viajantes. Havia também
um espaço de enunciação literário em que predominava a língua portuguesa. Nesse
espaço de enunciação, estão a gramática do Português, Os Lusíadas, os diários dos
viajantes, as cartas de Caminha e dos jesuítas que estiveram no Brasil. Em muitos
sentidos, o corpus é o mesmo, havia um Novus Mundus, de Américo Vespúcio em
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!6 O casamento de Filologia e Mercúrio (o deus do conhecimento), quando Filologia ganhou de presente de casamento sete servas, as sete artes liberais, entre elas a Gramática. 7 Sobre a hierarquia entre língua falada e língua escrita ver: GUIMARÃES, Eduardo. “Enunciação e política de línguas do Brasil.” Santa Maria, Revista Letras, n. 27, p. 47-53, dez. 2003. 8 Entendo o espaço de enunciação como proposto por Eduardo Guimarães em Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. 2002, p. 18.
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latim e uma versão posterior para o português. A diferença estava no meio de
circulação. A literatura produzida em latim se destinava ao meio escolar, possuía um
valor de civilização e tinha um caráter predominantemente científico, gerava portanto,
um discurso científico9 de base cristã. Santo Tomás de Aquino (1951, p. 16) já havia
debatido com Santo Agostinho essa questão na Suma Teológica quando afirmou que
“a santa doutrina é uma ciência10” em contraposição à ideia de Santo Agostinho de
que a ciência deveria servir para o estudo e o conhecimento das escrituras sagradas.
Assim, o latim era politicamente dominante na produção de conhecimento, mesmo
sendo uma língua exclusivamente escrita.
Historicamente reconhecida, a tradição escolástica se fundamentava em seus
autores, no entanto, tomo a liberdade de observar esse fato histórico pelas lentes da
teoria da enunciação e me atrevo a dizer que, da perspectiva das cenas enunciativas
como elaborado por Eduardo Guimarães (2002, p. 23), temos um lugar constituído
pelos dizeres sucessivos de uma linhagem de pensadores associados à escola de
Alexandria que se prolongou no tempo e se dispersou no espaço. Segundo o autor, “na
cena enunciativa ‘aquele que fala’ ou ‘para quem se fala’ não são pessoas mas uma
configuração do agenciamento enunciativo. São lugares constituídos pelos dizeres e
não pessoas donas de seu dizer.” Então, não eram os autores escolásticos donos de
seus dizeres, eles ocupavam lugares constituídos pelos dizeres de uma linhagem de
pensadores associados a uma escola. Da escola de Alexandria11, que propagava a
didática alegórica de interpretação das escrituras sagradas em oposição à literalidade
dos textos sagrados, falam Aristóteles, Orígenes, Santo Agostinho, Pico de la
Mirândola, Tomás de Aquino, Francisco de Vitória e Lutero. Nas escolas catedrais
fundadas em torno de alguns desses autores, se estabeleceram lugares cristãos e
europeus constituídos pelos seus dizeres, a exemplo das universidades de Paris, de
Salamanca e de Bolonha, lugares dos quais falam Nebrija, Vespúcio e Tomás de
Aquino. Desta perspectiva, a cronologia estabelecida pelos escolásticos e desvendada
por Ernest Curtius mostra-se perfeitamente conectada. Não exatamente por ser um
continuum no tempo, mas porque as condições de produção do discurso científico
ocidental, ou como eu prefiro dizer, de base cristã, produziram seus sentidos, que vem
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!9 Uso a definição de discurso de acordo com Eni Orlandi em Análise de discurso. Princípios e procedimentos. 12 ed. Campinas: Pontes, 1999. 10 Sacram doctrinam unam scientiam esse. 11 MALATY, Fr. Trados. The school of Alexandria. Livros I e II. St. Mark’s Coptic Orthodox Church: Jersey City, 1995.
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sendo replicados ao longo dos séculos, desde a escola de Alexandria, antes mesmo do
surgimento mítico do cristianismo.
Se os autores fundavam escolas que se constituíam como cenas de enunciação,
as narrativas da descoberta de um novo mundo faziam circular o conhecimento
elaborado de acordo com o ponto de vista dessas escolas. Dando ao conhecimento do
Novo Mundo um lugar constituído pelos dizeres fundados mais remotamente na
escola de Alexandria e propagados até o novo continente. Ao fazer circular o
conhecimento, as narrativas geravam verdades. Uma das formas de gerar verdades por
meio das narrativas é localizar geograficamente os lugares onde os fatos ou as
histórias narradas aconteceram. Ao serem localizadas, as narrativas dão lugar e
concedem veracidade ao espaço enunciativo no qual palavras, conceitos e categorias
significarão. Jacques Rancière (2014, p. 101), ao traçar as relações entre o solo e os
reis sepultados em Os nomes da História, se referiu à relação entre eles como a de
“corpos territorializados e, ao mesmo tempo, enterrados, de corpos moldados pelo
caráter de uma terra.” Foram esses corpos moldados pelo caráter europeu, corpos
europeus territorializados na Europa que, por meio de suas narrativas,
territorializaram outros corpos e suas vozes. Territorializaram os corpos ameríndios e
suas línguas. É nesse espaço narrado e geografizado que se desenrolaram as relações
simbólicas a respeito dos povos e das línguas indígenas, onde se estabeleceu uma
geografia do simbólico. O mesmo espaço simbólico que deu às línguas indígenas um
lugar, deu aos povos indígenas um lugar, deu a seus corpos um lugar e um
significado.
2.1 Narrativas sobre a alteridade, uma longa tradição
Antes de embarcarmos no estudo das narrativas sobre o Novo Mundo é
preciso fazer uma breve apreciação do lugar das narrativas sobre a alteridade no
espaço de enunciação europeu do século XVI. A trajetória dessas narrativas é longa e
constituiu um lugar em terra firme para “aquele que fala” a partir delas, pois elas
significam uma história de enunciações sobre a alteridade. Por isso remontamos a
Plínio, o Velho12, e sua Naturalis Historia, um enorme “inventário do mundo”,
segundo suas próprias palavras, que inaugurou o gênero enciclopédico ao compilar
mais de dois mil autores da época, elaborando verbetes sobre cosmologia, zoologia e
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!12 Francesco Maspero (Org.) Storie naturali (libri VIII-XI). Milão: Biblioteca Universitaria Rizzoli, 2011. Coleção Classici greci e latini. p. 21
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mineralogia nos quais sereias, gigantes e centauros receberam igual tratamento
descritivo que as pedras valiosas e a arte que a partir delas surgia.
De acordo com Francesco Maspero (2011, p. 16), curador da obra reeditada
em italiano, Plínio, supondo que o universo era governado por uma lei divina natural,
fruto de seu pensamento estoico, entendia que a natureza era a derivação direta e
inalienável do homem. Para ele, o progresso, que inevitavelmente afastaria o homem
da natureza, aumentaria o desequilíbrio, gerando “o montruoso”. Roger Bartra (2011,
p. 81), em El mito del salvaje, discorreu sobre a ideia de progresso para os gregos
(que, no século XVIII, foi atualizada para a ideia de civilização), que se expressava
por meio da polis, que significa ‘cidade’, ou seja, urbanidade e civilidade andam
juntas. A palavra hemeros, que significa domesticado, era usada com o sentido de
urbanizado. A ideia grega então era que os seres ditos naturais, centauros, amazonas,
cíclopes e agrios, viviam o equilíbrio divino que regia o universo e, ao mesmo tempo,
eram aqueles que não haviam sido domesticados nem urbanizados, portanto não
obedeciam às leis humanas. Os homens que ainda viviam na natureza eram os agrios
que existiam em oposição aos hemeros, selvagens em oposição a domesticados. Para
os gregos, a ideia de selvagem não se aplicava aos bárbaros, pois os bárbaros eram os
estrangeiros, aqueles que não falavam grego. Os selvagens tiveram que ser inventados
como construto cultural interior, grego, antes de serem encontrados os bárbaros fora
dos limites da sociedade grega.
Jean Starobinski (2001, p. 56), em As máscaras da civilização, tomou o
sentido atual de barbárie que designa “a crueldade e a agressividade” como oposto de
civilização. Civilização, termo cunhado no século XVIII, teria assumido um sentido
de processo de progresso da humanidade, não somente de adequação aos modos
urbanos, como em ‘domesticado’ hemeros. Em ‘civilizado’, a origem da humanidade,
sua infância por assim dizer, seria a barbárie e sua etapa polida (ou educada nos
termos nacionais atuais) assumiria o significado de ‘domesticado’. Ambas valeriam
como definidoras de uma mesma história, a história do passado, quando civilizados e
selvagens se construíram um ao outro nas eras míticas que só existe em nossa
memória literária; e a história do presente, a da humanidade civilizada.
Para Roger Bartra (2011, p. 83), o selvagem legitimou a posição do civilizado,
sendo central na construção da identidade do civilizado e criou fundamentalmente a
noção ocidental de alteridade inseparável de sua contraparte, a de civilidade. Eduardo
Guimarães (2004, p. 128) apontou que civilização e barbárie são opostos inseparáveis
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e mutuamente significantes. Philippe Descola (2013, p. 61) referiu-se à natureza como
um produto inventado pela cultura, para estabelecer uma rede de significados
supostamente externos e opostos à sociedade. A natureza teria se tornado então o
espaço simbólico e artificial onde centauros, amazonas, cíclopes e homens selvagens
significariam em contraposição à cidade, espaço simbólico e social, onde significaria
o civilizado. Para ele, não foi a ciência que explicou o mito, mas o contrário, o mito
nos forneceu as pistas da maneira como a ciência moderna tem constituído suas bases
conceituais mais profundas, a lógica que oferece o modelo para pensar a oposição
entre natureza e cultura. Embora os conceitos selvagem e bárbaro não fossem
similares, o selvagem e o bárbaro, por fim, perfilaram-se juntos em oposição a
civilizado, tornando-se um no outro e assumindo sentidos iguais. A partir desta
confluência de sentidos, podemos dizer que “todo selvagem é um bárbaro”, que
funciona também na outra via, “todo bárbaro é um selvagem”. Os sentidos, por meio
dos quais os conceitos de civilizado e de bárbaro/selvagem foram historicamente
construídos, carregam um saber discursivo acumulado que determina uma oposição
entre eles. Uma oposição determinante e classificatória ou se é civilizado ou se é
selvagem/bárbaro.
As ideias historicamente replicadas a respeito do selvagem, do índio, nos
colocam a pertinente questão de quem somos nós neste jogo de papéis. Se os índios
são os selvagens, nós somos os civilizados. Só é possível ser civilizado em oposição
ao selvagem. Estabelecer papéis é também atribuir um espaço e um lugar social, no
caso tratado nesta tese, ao determinar aos habitantes da América o papel de selvagens,
os europeus validaram para si mesmos um espaço de enunciação e um lugar social, o
mesmo que já ocupavam na Europa, recriando, assim, a oposição sobre a qual foram
construídas as identidades do selvagem e do civilizado europeus. Para Norbert Elias
(1994, p. 36), o binômio selvagem/civilizado permeou a colonização europeia no
mundo, sustentou a elaboração dos modos e das maneiras de comportamento que
diferenciaram os nobres dos plebeus na Europa, organizando as classes sociais dentro
dos Estados. Para validá-la, adotou-se a massificação, todo não-europeu é selvagem,
porque ser europeu pressupõe comportar-se de determinada forma, aprender de
determinada forma, comer de determinada forma, ser limpo de determinada forma.
Segundo Alcida Rita Ramos (1988, p. 93), atribuir uma identidade de massa a
todos os povos considerados selvagens, negando suas configurações políticas
preexistentes e suas diferenças étnicas, conduziu à hegemonia do ‘humano genérico’
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que é o pressuposto básico para o universalismo. O universalismo alcançado às custas
da existência de um humano genérico estabeleceu uma série de abordagens analíticas
que, em grande medida, respaldam o entendimento que os ocidentais têm sobre si
mesmos. Só é possível existir uma língua com conceitos abstratos em comparação
com outra língua de conceitos concretos. Evidentemente o que atribui concretude ou
abstração a um conceito é determinado mediante uma escolha legitimada teoricamente
por premissas claramente hierárquicas de quem detêm o conhecimento e as
ferramentas para usá-lo.
Roger Bartra (2011, p. 18) considerou que o fio condutor da história do
homem selvagem ocidental permeia toda a mitologia greco-latina, a judaico-cristã-
islâmica e a celta. Ao fazer o resgate histórico do surgimento dos mitos do homem
selvagem, encontrou-os em tempos babilônicos. Enkidu foi personagem lendário e
literário da mitologia mesopotâmica, uma das figuras centrais da Epopeia de
Gilgamesh, compilada no segundo milênio antes de Cristo. Ele era um homem
selvagem, tinha o corpo coberto de pelos, foi modelado por Aruru a partir do barro e
cresceu longe da humanidade. Criado por animais, permaneceu ignorante dos
costumes humanos até o dia em que foi levado para lutar contra Gilgamesh. Enkidu
evoca a imagem do homem peludo, vivendo na natureza, lascivo, sem fogo, sem lei
nem governo, sem alma nem razão, que povoou a imaginação da sociedade ocidental
antiga e medieval. Roger Bartra (2011, p. 93) contou que esse selvagem peludo
chegou ao medievo com características visivelmente europeias, pele clara, nariz
alongado, lábios estreitos, com uma espessa pelagem por todo o corpo. Para as
mulheres selvagens, a presença de uma vasta cabeleira muito longa e encaracolada era
marcante.
Sem dúvida, o selvagem medieval não era um reflexo etnocêntrico diante das
características físicas de povos exóticos do Oriente. Afinal, antes mesmo do início das
navegações portuguesas, no final da segunda metade do século XIII, os comerciantes
europeus já empreendiam longas viagens terrestres com o intuito de estabelecer
relações políticas e identificar rotas mercantis. As rotas estabelecidas durante estas
viagens conectaram a Europa a Pequim, Mali e Delhi, por terra. Surgiram neste
período as fantásticas narrativas de Marco Polo. Afonso Arinos (2004, p. 32), ao
recompilar a produção bibliográfica sobre o imaginário medieval, resgatou o Imago
Mundi de Pierre d’Ailly, escritor medieval que elaborou a cosmografia mais completa
das terras desconhecidas, apoiado nas informações de Plínio, Homero, Plutão,
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Plutarco, Santo Isidoro de Sevilha, Roger Bacon, Marco Polo e Mandeville. Assim as
sereias, os gigantes de um olho só e os grandes monstros marinhos capazes de engolir
um navio foram localizados e geografizados. A pátria desses seres tão medonhos era a
Índia, considerado por Afonso Arinos como um país distante e vago o suficiente para
hospedá-los e atormentarem as mentes dos europeus durante a Idade Média com toda
a sorte de estranhezas e coisas duvidosas inexistentes em terras mais conhecidas.
Colombo, como qualquer outro homem embarcado nas caravelas que vieram
ao Novo Mundo, trazia consigo um rol de crenças cristãs e o inestimável bestiário de
Pierre d’Ailly, ambos amparados nas mais longínquas heranças culturais ocidentais.
Foram esses seres e essa ideia de homem selvagem que cruzaram o oceano Atlântico,
ancorando nas terras do Novo Mundo, para onde foram transplantados.
2.2 A história de Colombo, uma narrativa fundadora
A história imprecisa e tumultuada da vida de Colombo possui inúmeros
episódios pitorescos narrados por seus vários biógrafos. Um deles é a história de seu
sogro, Bartolomeu Perestrelo, que participou da conquista de Ceuta, em 1415, e por
seus serviços recebeu a ilha de Porto Santo, a segunda maior ilha do arquipélago da
Madeira. Na perspectiva de Alfred Crosby (2011, p. 86), em Imperialismo ecológico,
a guerra contra os mouros e sua consequente expulsão do território português gerou
um sistema de benesses reais que implicava a doação de feudos (terras) e títulos
nobiliárquicos aos cavaleiros que lutassem e vencessem a favor do rei. Com o
prolongamento das Cruzadas, já não havia feudos disponíveis para doação e o
caminho encontrado pela casa Real portuguesa para cumprir com suas obrigações foi
destinar, às fidalguias de segunda linha, terras nas ilhas próximas ao continente.
Perestrelo, então, foi um dos primeiros portugueses a colonizar as novas terras de
Portugal. Ao tornar-se proprietário de um feudo, Perestrelo poderia tornar-se nobre,
mas para fundar uma casa nobiliárquica na Europa medieval exigia-se, além da
propriedade rural ou feudo, uma relíquia13 em posse da família, um brasão conferido
pelo rei e uma linhagem sucessória, como explicou Alexandra Maria Pelúcia (2007, p.
117) em sua tese de doutorado. Perestrelo possuía, como relíquia de sua recém-
fundada casa nobiliárquica, os mapas de navegação de Toscanelli14 que, mais tarde,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!13 Para compreender o papel das relíquias na sociedade medieval ver: BLOCH, Marc. Los reyes taumaturgos. México: Fondo de Cultura Economica, 1988. Trad. Marcos Lara 14 Quanto à história, verídica ou não, sobre a morte de um marinheiro que deixou o misterioso mapa do Novo Mundo, ver: A Conquista do Paraíso de Kirkpatrick Sale, 1992, p. 229.
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foram entregues a Colombo pela viúva de Perestrelo. Mapas com os quais ele
começou sua empreeitada pelo financiamento da viagem à Índia. Como contou
Marcos Faerman (1998, p. 23), com a morte de Perestrelo, a família perdeu a ilha de
Porto Santo, e tanto a viúva quanto sua filha (com quem Colombo se casou) foram
viver em um convento. Colombo teve apenas um filho desta união e o chamou Diego.
A família só conseguiu recuperar a ilha quando Fernando, filho ilegítimo de Colombo,
após a morte do pai, escreveu sua biografia para recuperar-lhe a honra e moveu, com
a ajuda da casa Real portuguesa, ações para reaver as terras do avô de seu meio-
irmão, recuperando assim seu título nobiliárquico e a ilha de Porto Santo. A relíquia
familiar passou a ser o testamento de Colombo, o legado histórico deste estrangeiro
que se intrometeu na nobiliarquia portuguesa com uma única finalidade, conseguir os
mapas de Toscanelli.
Existem diversas suposições a respeito da origem de Colombo. Há os que
creem que ele era galego e que escreveu seu diário em galego. Há os que creem em
sua origem genovesa, porque seu castelhano era sofrível. O dominicano Bartolomeo
de las Casas comentou esse detalhe várias vezes em seus escritos. O diário original se
perdeu e possivelmente só retornou a público, quase cinquenta anos depois do
descobrimento, pelas mãos de Bartolomeo de las Casas, que além de traduzi-lo do
latim também inseriu algumas anotações e inclusive julgamentos morais ao texto
original. De qualquer forma, o próprio Bartolomeo de las Casas advertiu em sua curta
introdução15 que não se tratava da tradução do original, nem de uma cópia, mas de um
resumo, uma seleção de trechos. A impossibilidade de recuperar a versão original do
diário e a intromissão de Bartolomeo de las Casas deixaram perguntas inevitáveis e
sem resposta. Se o diário foi escrito pelo próprio Colombo porque ele se referiria e si
mesmo como “o Almirante”? Por que o diário de bordo de Pinzón, escrito por Pietro
Martire d'Anghiera, em latim, permaneceu restrito à Coroa espanhola por três séculos
até ser divulgado por Alexander von Humboldt, em 1832, quando esteve visitando a
América? A origem das informações divulgadas na carta de Humboldt, segundo
Nelson Papavero e Dante Teixeira (2002, p. I), seriam provenientes do diário
d’Anghiera, mas como Humboldt obteve acesso ao diário é um mistério. Haveria um
diário de Colombo? Ou o diário d’Anghiera fora resumido, com as informações
consideradas “interessantes” divulgadas e as “importantes” guardadas em sigilo?
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!15 COLÓN, Cristóbal. Diario de a bordo. Alpignano: ed. de J. Arce y J. Gil Esteve, 1971. p. 31
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Quaisquer que sejam as respostas para essas perguntas, a viagem de Colombo
e seu diário fomentaram a imaginação europeia a respeito da existência de selvagens,
de animais exóticos e de terras paradisíacas. Sua narrativa seguia uma tradição havia
muito consolidada como literatura sobre o desconhecido. Seguia a ordem cronológica
de um diário, o que dava veracidade e profundidade temporal à narrativa. Também
alimentava as expectativas medievais de encontrar, nos novos territórios, os monstros
previamente elencadas no bestário de Pierre d’Ailly. E traçava uma inegável relação
com o diário de viagem de Marco Polo, que embora tenha sido escrito três séculos
antes, fazia parte do arcabouço da tradição descritiva da alteridade. A distância
temporal entre os dois livros não impede a aproximação gerada por uma rede
complexa de ordem linguística, socio-cognitiva e interacional entre o texto e seus
leitores16. O Livro das Maravilhas, de Marco Polo, era considerado uma grande
referência narrativa, uma espécie de inconsciente coletivo que fornecia informações
sobre as terras distantes, em especial, sobre as terras onde Colombo queria chegar. A
Índia já havia sido descrita por Marco Polo que também discorreu sobre os ventos e a
localização de algumas ilhas, entre elas Cipango.
As dúvidas a respeito da autenticidade do trabalho de Marco Polo são tão
instigantes quanto as de Colombo. Marco Polo (1985, p. 35) ditou suas memórias de
viagem a Rusticiano de Pisa, na prisão em que ambos se encontravam em Gênova, no
ano de 1298, não relatou tudo o que viu, a propósito, “algumas não viu, mas escutou-
as de outros homens sinceros e verdadeiros.” Por isso, alertou aos leitores que
deveriam acreditar em tudo o que leriam, pois se tratava da verdade contada por um
cidadão de espírito justo e bom. Rusticiano lembrou ao leitor que Marco Polo, por
conhecer tão bem o Grande Khan, a quem serviu como embaixador durante sua
permanência no Oriente, e saber de seu gosto por novidades, não relatou apenas o
resultado das missões que o rei confiara a ele, mas sim todo o tipo de coisas estranhas,
novidades e curiosidades que, no decorrer de sua viagem, havia visto. O peculiar,
então, se tornou mais importante que os resultados da missão? Certamente não para
Gengis Khan, mas para o leitor europeu, sim.
Colombo se preocupou mais com o impacto que seu relato causaria nos reis de
Espanha e em seus financiadores, por isso se empenhou muito em conferir resultados
para a expedição, que são sempre as notícias sobre o ouro. As semelhanças existentes
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!16 KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Introdução à lingüística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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entre as narrativas de ambos os autores em seus livros não costumam ser mencionadas
pelos críticos de Colombo. Há um silenciamento sobre isso, em parte, porque
Colombo costuma ser considerado um autor renascentista. Apesar de
cronologicamente assentado no período ilustrado europeu, o texto de Colombo remete
constantemente às crenças e ao contexto medieval. Não apenas por tomar Marco Polo
como referência da rota para as ilha de Cipango, afinal, supostamente, ele tinha o
mapa de Toscanelli com as rotas traçadas, mas por estar imerso no mundo medieval.
Colombo, em uma de suas cartas anteriores à viagem para o Novo Mundo, extraídas
do livro História do medo no Ocidente de Jean Delumeau (1989, p. 233),
demonstrava-se seguro da proximidade do fim dos tempos: Desde a criação do mundo ou de Adão até o advento de Nosso Senhor Jesus Cristo houve 5.343 anos com 318 dias, segundo o cálculo do rei dom Afonso que parece ser o mais seguro (...) se a isso se acrescentarem 1.501, com um pouco menos, isso dá 6.845 anos menos alguns meses. Por essa conta não faltam mais que 155 anos até o cumprimento dos 7 mil anos, no curso dos quais (...) o mundo deverá acabar.
Além de explorar as imagens de paraíso terrestre e do homem selvagem, usou
também os recentes conflitos com os mouros, na Andaluzia, para ilustrar sua
narrativa, fazendo um apelo às imagens evocadas pelas Cruzadas em busca do reino
cristão do Oriente, do fim do mundo17 evocado pela existência dos homens selvagens
e da redenção eterna por meio do juízo final.
Stéphane Yerasimos (1985, p. 21), historiador que escreveu a Introdução à
versão brasileira do Livro das Maravilhas explicou-nos que, nos tempos de Marco
Polo, surgiu na Terra Santa, a história de que um rei vindo do Oriente, descendente de
um dos reis magos, havia lutado e derrotado o rei dos Persas e dos Medas. Esse rei
vitorioso era Prestes João. Marco Polo, em suas andanças não procurou recontar o
mito, mas tentou sim encontrar as posições geográficas mais pertinentes que
respaldassem o mito. As conqu