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XIV Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Maringá-PR, 18 a 20/11/2015 1 OS ESFORÇOS DOS SERMÕES DE CESÁRIO DE ARLES NA CRISTIANIZAÇÃO DA PROVENÇA NO SÉCULO VI THIAGO FERNANDO DIAS 1 Introdução: Os constantes fluxos migratórios dos germânicos e a recente reestruturação geopolítica do vasto território anteriormente dominado pelo Império Romano, provocaram diversas alterações na estrutura da Igreja. No século VI, a Igreja enfrentou certa dificuldade para se estabelecer, elaborar e expandir suas diretrizes de uma nova ortodoxia e combater as práticas populares, na maioria das vezes, não condizentes com seus preceitos. Essa dificuldade ficou evidente, não apenas no sul da Gália como em todo Ocidente Medível, através do combate intensivo dessas práticas pela Igreja. Na primeira Idade Média 2 , sobretudo a partir do século IV, houve uma tentativa constante de diálogo do setor eclesiástico com a população, tanto nos meios urbanos quanto rurais. Essa tentativa de dialogo ficou marcada pela produção constante de novos elementos que procuravam trazer novos fiéis. Este processo de interlocução foi longo e, para ser empreendido, a Igreja necessitou do auxilio de figuras importantes e, muitas das vezes considerados homens santos, como padres, monges e bispos. Para desenvolver suas tarefas, esses personagens do clero utilizaram vários instrumentos literários, entre eles, o sermão e as hagiografias. Segundo Hillgart (2004:21): ambos mecanismos são as principais formas de cristianização do período e começaram a ser utilizados no momento dos ritos litúrgicos. Tornando-se assim, uma profícua fonte de estudo do momento de sua produção. Embora, de modo geral, não apenas os sermões como toda literatura eclesiástica tenha relativamente poucas referências diretas sobre a realidade da comunidade, quando comparada ao que diz a temas particulares do cotidiano da vida eclesiástica como, por exemplo, a ascese, 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Assis; Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Integrante do Núcleo de Estudos Antigos e Medievais (NEAM/UNESP). 2 Utilizamos a proposta de divisão da Idade Média de Hilário Franco Júnior, o historiador demarca como “Primeira Idade Média” a fase que se estendeu de princípios do século IV a meados do século VII, reservando “Alta Idade Média” para meados do século VIII a fins do X. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Por uma outra Alta Idade Média. In: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. (org.) Relação de poder, educação e cultura na Antiguidade e Idade Média. Santana de Parnaíba: Solis, 2005. P. 28.

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XIV Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Maringá-PR, 18 a 20/11/2015 1

OS ESFORÇOS DOS SERMÕES DE CESÁRIO DE ARLES NA CRISTIANIZAÇÃO DA PROVENÇA NO SÉCULO VI

THIAGO FERNANDO DIAS1

Introdução:

Os constantes fluxos migratórios dos germânicos e a recente reestruturação geopolítica

do vasto território anteriormente dominado pelo Império Romano, provocaram diversas

alterações na estrutura da Igreja. No século VI, a Igreja enfrentou certa dificuldade para se

estabelecer, elaborar e expandir suas diretrizes de uma nova ortodoxia e combater as práticas

populares, na maioria das vezes, não condizentes com seus preceitos.

Essa dificuldade ficou evidente, não apenas no sul da Gália como em todo Ocidente

Medível, através do combate intensivo dessas práticas pela Igreja. Na primeira Idade Média2,

sobretudo a partir do século IV, houve uma tentativa constante de diálogo do setor eclesiástico

com a população, tanto nos meios urbanos quanto rurais. Essa tentativa de dialogo ficou

marcada pela produção constante de novos elementos que procuravam trazer novos fiéis.

Este processo de interlocução foi longo e, para ser empreendido, a Igreja necessitou do

auxilio de figuras importantes e, muitas das vezes considerados homens santos, como padres,

monges e bispos. Para desenvolver suas tarefas, esses personagens do clero utilizaram vários

instrumentos literários, entre eles, o sermão e as hagiografias. Segundo Hillgart (2004:21):

ambos mecanismos são as principais formas de cristianização do período e começaram a ser

utilizados no momento dos ritos litúrgicos. Tornando-se assim, uma profícua fonte de estudo do

momento de sua produção.

Embora, de modo geral, não apenas os sermões como toda literatura eclesiástica tenha

relativamente poucas referências diretas sobre a realidade da comunidade, quando comparada

ao que diz a temas particulares do cotidiano da vida eclesiástica como, por exemplo, a ascese,

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Assis; Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Integrante do Núcleo de Estudos Antigos e Medievais (NEAM/UNESP). 2 Utilizamos a proposta de divisão da Idade Média de Hilário Franco Júnior, o historiador demarca como “Primeira Idade Média” a fase que se estendeu de princípios do século IV a meados do século VII, reservando “Alta Idade Média” para meados do século VIII a fins do X. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Por uma outra Alta Idade Média. In: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. (org.) Relação de poder, educação e cultura na Antiguidade e Idade Média. Santana de Parnaíba: Solis, 2005. P. 28.

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orações e normas. Não obstante, mesmo com essa lacuna, permanece o fato de que esses textos

procuram transmitir e articular um ideal concernente às aspirações cristãs do contexto de sua

elaboração. Deste modo, enquanto os escritos eclesiásticos não podem responder e resolver

todas, ou mesmo à maioria das questões e problemas enfrentados pela comunidade cristã na

Primeira Idade Média, eles possibilitam uma compreensão de como os primeiros bispos, no

nosso caso Cesário, pensavam a vida cristã e, sobretudo, permitem observar um contexto

comum inferindo quais as dificuldades que os mesmos encontraram no momento. Assim,

partimos do pressuposto de que esses textos, aqui observados, não evidenciam apenas

elementos eclesiásticos, eles transmitem informações de um mundo cristão, portanto,

permanecem relevantes e profícuos, não tanto porque são eclesiásticos, mas, acima de tudo,

porque são cristãos.

Primeiramente apresentaremos algumas características que distinguem o sermão como

gênero literário produtor de um discurso religioso cuja finalidade didática, exegética e/ou

moralizadora que, segundo as normas do próprio gênero, buscava alcançar principalmente o

“coração do fieis e não exatamente a mente” (KLINGSHIRN, 2004: 14). Em seguida,

procuraremos abordar a trajetória de vida do prelado gaulês, seu caminho percorrido para a

obtenção de um status que o levou a ser considerado como um dos maiores defensores da

ortodoxia cristã no século VI. Por fim, mas não menos importante, a cristianização da

Provença. nesse ponto procuraremos analisar e descrever como se deu esse processo e qual a

função do bispo para se consolidar.

Os sermões como gênero literário

Antes de iniciarmos a análise sobre a religiosidade popular e a cristianização nos

sermões de Cesário, faz-se pertinente oferecer uma breve observação sobre o principal

instrumento utilizado pelo bispo, seu modo de preparo, os objetivos e o papel desempenhado

como gênero literário.

Nossa fonte principal de analise nesse trabalho, os sermões, distinguia os ad populum e

ad clericos. Eles eram redigidos pelos patronus; protetor e personagem influentes junto ao

clero e a população. Para serem escritos, a Bíblia era o grande modelo dos clérigos,

principalmente, as palavras dos profetas e dos apóstolos (HILLGARTH, 2004: 21).

Contudo, em uma sociedade de illitterati – que a partir do século V se alfabetizava cada

vez menos, devido ao fechamento da maioria das escolas públicas – os sermões foram

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previamente preparados e copiados para serem disseminados por diferentes regiões, assim, eles

ofereciam a possibilidade para o alto clero, o clero inferior e também para seus colegas menos

brilhantes (SC. 6.2), de pregarem e propagarem a doutrina niceana (HILLGARTH, 2004: 21).

Por exemplo, Cesário fornecia uma cópia de seus sermões para qualquer um que passasse por

Arles e tivesse interesse em suas prédicas (VC, I. 55).

O intuito de sua produção era a de serem lidos em público na procura de abranger um

número maior de pessoas, visto que a difícil e vagarosa disseminação da escrita ficou evidente

no período (ANDRADE apud ANDRADE FILHO, 2005: 48). Na sua elaboração, era comum o

uso do latim simples, ou mesmo as línguas vulgares, de tal modo que os sermões circulavam e

eram lidos ao pé da letra como se intencionava que fossem (HILLGARTH, 2004: 21).

Por exemplo, a fim de disseminar ainda mais seus sermões, Cesário procurou garantir a

circulação de suas palavras, não apenas de forma escrita, como também pelo boca a boca. Em

um de seus sermões, ele tenta amenizar o problema do analfabetismo argumentando que,

certamente, em qualquer grupo, haveria ao menos uma pessoa que pudesse ler para os demais

(SC. 6.2). Além, disso, ele fez o possível para que seu publico memorizasse suas predicas, se

uma pessoa não se lembrasse do sermão todo, cada um deveria lembrar-se de uma parte. Assim,

juntos seriam capazes de reconstruir o sermão por completo:

“Alguém deveria dizer: ‘Eu ouvi meu bispo falando sobre a castidade’. O outro deveria declarar: ‘Eu me recordo que ele disse que deveríamos cultivar nossas almas assim como cultivamos nossos campos'. Ainda outro deveria dizer, ‘Lembro-me que meu bispo disse que quem consegue ler deve fazer um esforço e ler a Sagrada Escritura; quem não sabe, deve encontrar alguém que possa’. Ao mesmo tempo, eles recordam um ao outro o que ouviram. Assim, eles não são capazes apenas de lembrarem as palavras do sermão, mas, com a ajuda de Cristo, cumpri-las” (SC. 6.8).

Nesse momento, os sermões tornaram-se uma espécie de folheto previamente preparado

que procuravam, de alguma forma, chagar a uma parcela da população mais diversificada, para

divulgar os preceitos cristãos e mudar os hábitos comuns que não eram condizentes com a nova

ortodoxia e, além de tudo, tornaram-se o meio básico de instrução dos leigos no período.

Contudo, o problema mais grave com o uso dos sermões de Cesário como fontes

históricas parece residir, mais precisamente, no caráter normativo do próprio gênero. Na

verdade, o bispo utilizava os sermões para instruir e convencer seu público do que eles

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deveriam ser, não para descrever o que eram (KLINGSHIRN, 2004: 14). No entanto, se é

praticamente impossível tomar o sermão pelo seu valor explicito, podemos os observá-lo,

como o próprio bispo evidencia: “como um espelho”, que revelava ao seu povo os detalhes de

seu comportamento pecaminoso (SC. 42. 6 ).

Assim sendo, é aceitável que, os sermões, em sintonia com o período, produziram um

dialogo intenso com as ações populares e revelam que nem sempre a grande parte da população

esteve passiva diante a Igreja. Portanto, essa adequação e difusão do discurso cristão de Nicéia,

presente nos sermões, revelam um conteúdo importante como dados e relatos que normalmente

fazem menção a fatos e personagens legítimos. Antes de qualquer coisa, eles evidenciam

profundamente, a sua maneira, um ponto de vista e um sentido de mundo de um determinado

momento e sociedade. Tornando-se assim uma profícua fonte de estudo.

A trajetória de Cesário:

Cesário nasceu em uma família galo-romana nobre e influente da cidade borgonhesa

de Chalons-sur-Saône por volta de 469/470 (VC, 1.3). Em 486/87, com provavelmente

dezessete anos, ingressou, em sua cidade natal, na vida clerical sob a tutela do bispo

Sylvester. Atuou, por pouco mais de dois anos, em sua cidade natal e logo se dirigiu para o

mosteiro de Lérins, onde procurou dedicar-se com mais empenho ao serviço de Deus (VC,

1.5), ficando na ilha até seus dezenove ou vinte anos (488/489).

Porcarius, abade de Lérins, ficou maravilhado com a dedicação do jovem à vida

monástica, devido a seu empenho, logo conseguiu destaque e foi nomeado responsável pela

dispensa do mosteiro (VC, 1.5). Nesse momento, em Lérins, Cesário adquiriu boa parte de

suas referências intelectuais eclesiásticas e, sobretudo, conheceu as obras de Agostinho que

viriam a orientar na elaboração de muitos de seus sermões. Porém, rapidamente ficou

conhecido por sua demasiada dedicação a vida ascética e seu rigoroso controle na distribuição

dos alimentos da dispensa a seus correligionários. Com a desculpa de que deveriam levar uma

vida ascética exemplar, traduzida na atitude de limitar a distribuição dos mantimentos,

Cesário entrou em conflito com a maioria de seus companheiros, o que ocasionou o seu

adoecimento. Para evitar o prolongamento e intensificação desses conflitos, Porcarius o

retirou-o de suas funções (VC. 1.6).

Após o ocorrido, Cesário, dedicou-se com maior intensidade à vida ascética. A leitura

dos salmos, as orações, os jejuns e as vigílias, ficaram ainda mais constantes. Tal intensidade,

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somado os diversos conflitos com outros monges, fez com que sua saúde se agravasse ainda

mais (VC, 1.6). Devido a esse suposto adoecimento (KLINGSHIRN, 20004:31), o abade

Porcarius decidiu enviar o jovem monge até Arles, a fim de recobrar a saúde (VC, 1.7).

Cesário chegou em Arles entre 495 e 499. Na cidade, deu continuidade a seus estudos

e teve seu primeiro contato com a retórica. Seu principal mestre foi Julianus Pomerius,

também seguidor dos preceitos de Agostinho e de João Cassiano. (KLINGSHIRN, 20004:

73). No bispado de Arles, pouco a pouco galgou posições eclesiásticas, foi diácono, clérigo e

abade de um pequeno monastério em Trinquetaille, no subúrbio arlesiano (VC, 1,10). Embora

tenha passado rapidamente pelos vários estágios da carreira eclesiástica, Cesário continuou

com sua fidelidade ao ofício divino através das práticas monásticas que aprendera em Lérins

(VC 1.11).

E em pouco tempo na cidade, o jovem já havia conseguido fortalecer uma aliança com

a aristocracia local e com eclesiásticos de relevância, sobretudo com o bispo Aeonio, que

viera descobrir ser seu parente. Antes de morrer, Aeonio indicou Cesário como seu sucessor

para o posto de bispo de Arles. Indicação que não foi bem-vinda, devido sua baixa idade e,

principalmente, pela indicação prévia que havia sido feita pelo atual bispo, seu parente e que

poderia influenciar a escolha dos germanos e alguns clérigos.

Mesmo com as desavenças sobre a polémica indicação ao posto de bispo, Cesário

assumiu o cargo em 502 (KLINGSHIRN, 20004: 84). Uma de suas primeiras ações como

bispo foi fazer os leigos conhecerem os salmos, hinos e antífonas, “para serem cantados em

voz alta, alguns em grego, alguns em latim” (VC, 1.19).

Ao assumir o posto, o então bispo se envolveu ainda mais na política local que estava

sendo disputada por visigodos, francos e ostrogodos. Devido a esse momento conturbado da

Provença, o prelado teve, na sua primeira década de bispado, uma administração pouco

sossegada.

O bispo foi muito contestado, por parte dos clérigos locais e de alguns aristocratas, os

quais, no momento, eram submissos aos visigodos. Um dos motivos apontado por seus rivais

era que Cesário, desde que viera da Borgonha, estava tentando, com todas suas forças, passar

o território para os burgúndios. Devido a isso, em 506, o religioso foi condenado por

acusações falsas e ilegais e foi expulso de Arles, sendo relegado a Bordeaux, como se

estivesse em exílio (HILLGARTH, 2004: 50). Na cidade, o prelado provou sua inocência e

logo voltou para Arles, porém, tais desacordos com parte dos clérigos e aristocratas locais, só

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foram superados com a ocupação da região por forças ostrogodas, em 508, que permaneceram

no comando da região até 536.

Nessa conjuntura, Cesário adquire um papel fundamental, pois além de contar com o

apoio dos novos soberanos germânicos (VC, 1.37) o bispo tornou-se o principal representante

da diocese de Roma na região, o que lhe conferiu amplos benefícios e legitimidade a seu

episcopado (VC, 1.43).

Cesário tornou-se o bispo mais proeminente da Igreja Gaulesa quando o Papa Símaco

(498-514) o nomeou como vigário Papal (vicarius) da Gália em 514, o primeiro a receber

essa honraria da Igreja Romana (KLINGSHIRN, 2004: 131). Desse modo, a vinculação com

os romanos, possibilitou ao bispo a reinvindicação e realização de uma série de exigências,

bem como a proeminência da diocese sobre os assuntos eclesiásticos por toda a Gália,

sobretudo diante da diocese de Vienne, sua grande concorrente. Por outro lado, Roma,

encontrou em Cesário um influente aliado em seu projeto de afirmação diante do paganismo e

das heresias locais (KLINGSHIRN, 2004: 127).

Sob a tutela da Santa Sé, o prelado presidiu uma série de sínodos e concílios

ecumênicos na Gália, o mais importante deles foi o Concílio de Orange, em 529, que, ao tratar

do livre-arbítrio, condenou o pelagianismo3 e defendeu a teoria agostiniana (KLINGSHIRN,

2004: 141), além disso, é atribuído a Cesário a escolha de Agostinho como o teórico

fundamental da Igreja do inicio da Idade Média.

Com sua posição estabelecida e legitimada, Cesário liderou um intenso esforço de

disciplinamento clerical e laico e, em especial, de uniformização litúrgica e ampliação da ação

predical entre os eclesiásticos por meio de seus escritos, sobretudo, pelos sermões.

Sobre seus sermões, hoje são conhecidos um total de 238 que foram organizados e

distribuídos por temas, no fim do século XIX e início do século XX, por Germain Morin, um

grande estudioso beneditino que os dividiu em cinco partes, sendo elas: 1- (s. 1-80)

3 Teoria teológica cristã atribuída ao monge bretão Pelágio (360-435). Segundo esse religioso, a vontade humana e completamente livre, capaz do bem e do mal. A graça divina é extremamente concedida de acordo com os méritos de cada um, sendo seu propósito facilitar meramente aquilo que o livre-arbítrio pode fazer por si mesmo; assim, o pecado de Adão foi puramente pessoal e não teve qualquer efeito sobre o resto da humanidade. Segundo a doutrina pelagiana, a morte não é uma punição por pecados mas uma necessidade da natureza humana. As idéias desenvolvidas por Pelágio levaram-no a atacar certas práticas: como nascemos todos sem pecados, não há necessidade de batismo de crianças pequenas. Além disso, a oração pela conversão de outros é inútil, visto que não pode ajudá-los; a redenção do Cristo só tem efeito como exemplo. Veja sobre este assunto entre outros: LOYN, H. R. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 293.

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denominada de diversis admonitiones; 2- (s. 81-186) de Scriptura; 3- (s. 187-213) de

Tempore; 4- (s. 214-32) de Sanctis; 5- (s. 233-8) ad monachos (MORIN, 1953).

Seus sermões foram produzidos ao longo de todo seu bispado, e sua dispersão foi

facilitada devido à importância adquiria pela diocese de Arles durante seu governo. Seu

empenho na elaboração, compilação e disseminação de seus sermões, confronta, por um lado,

à inquietação em fornecer aos eclesiásticos ferramentas apropriadas à cristianização dos fiéis,

e, por outro, à difusão da mensagem e preceitos religiosos de Nicéia.

Em alguns de seus sermões, Cesário procura combater e contrapor os cultos pagãos, o

complexo mitológico greco-romano, cultos orientais, superstições, entre outras práticas

religiosas da população. Além de buscar elaborar modelos para que futuros pregadores os

utilizassem em suas prédicas. Cesário morreu em 27 de agosto de 542. Sua hagiografia (Vita

Cæsarii) foi escrita sete anos após sua morte, elaborada por cinco clérigos que o conheceram

pessoalmente, além de contar com o auxílio de outros (HILLGARTH, 2004: 34).

A cristianização da Provença

Embora Germain Morin tenha exaltado veementemente o trabalho de Cesário, o bispo

não teve sua imagem de grande prelado da Igreja crista no século VI criada pelo estudioso

beneditino. O próprio prelado e seus biógrafos esforçaram-se para promover uma imagem

edificante de Cesário. Suas diversas obras, sobretudo os sermões, atestam o esforço

empregado pelo bispo em expandir sua imagem e influência de pregador do cristianismo.

Seus esforços não se limitavam apenas a cidade de Arles, outras cidades da região, assim

como o campo, foram locais de intensa dedicação do prelado arlesiano. Sempre incansável em

suas admoestações, defendendo e reafirmando em cada prédica o seu compromisso com a

moral cristã e seu compromisso para com os ouvintes a procura da cristianização da

população. O bispo adquiriu uma imagem icônica de cristão exemplar no século VI.

Utilizando-se desse posto adquirido, Cesário argumentava que os clérigos,

especialmente os bispos, teriam um papel central no desenvolvimento da cristianização e a

função de orientador e guardião da sociedade que estava inserido. Para ele, os bispos devem

pensar em si mesmos em termos de um exemplo moral. Não é função do bispo se preocupar

com a administração da cidade ou com os bens da Igreja, mas, utilizar-se da retórica para

cristianizar (SC. 58,1).

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O prelado arlesiano esteve sempre atento, não apenas com o que proferia a seu

rebanho, mas também, o que diziam e faziam os seus fieis, dessa forma, o bispo procurava

elaborar novos argumentos de persuasão, porém, em muitos momentos, ele acabava

contraindo em seus escritos, elementos cotidianos não condizentes com a moral cristã. Assim,

o processo de cristianização da Provença, foi marcado pelo encontro entre a fé cristã – ainda em

elaboração de Nicéia – e a religiosidade, romana e mesmo pré-romana da região. Não obstante,

este processo suscitou uma confluência de duas ou mais condutas religiosas entre suas práticas,

ou seja, da convergência entre os seus elementos surgiram outros que simultaneamente alterava

seus produtores, sendo constantemente reprimidas, rejeitadas e questionadas pelo prelado. A

título de exemplo, entre tantos outros, o primeiro de janeiro que se comemorava a festa das

calendas com a adoração a Jano (divindade do panteão latino) (SC. 192.1), também era o dia da

circuncisão de Jesus e o princípio do ano (BROWN, 1999: 118).

Para essa população, sobretudo rural, a maior parte dos cultos e das divindades

veneradas, não apenas na Provença, estava relacionadas com os elementos da natureza, onde a

variação errática dos elementos do cotidiano era uma realidade palpável e absolvida no mundo

essencial (BROWN, 1999: 114), especialmente a relação com a fertilidade e a produção.

Muitas vezes, essas divindades eram representadas por árvores, rios e rochas que

ganhavam altares ou até mesmo santuários para serem homenageados. Por sua vez, Cesário os

exortava-os a “destruir todos os templos, onde quer que você os encontre” (V.C. 14.1). Para o

bispo, o paganismo não era um conjunto de práticas independentes que “reluziam ainda através

do mundo físico recheado de poderes misteriosos e não cristãos. Em vez disso, apresentava o

paganismo como uma simples coleção de ‘tradições fragmentárias’ de ‘hábitos sacrílegos’,

‘costumes inertes’, ‘imundices dos gentios’ e que deveriam ser encobertos pelo cristianismo”

(BROWN, 1999: 117).

Devido à proximidade do novo credo com os fenômenos naturais, grande parte da

população ficou confuso e não os entendia como tal, a insegurança e o desejo de explica-los ou

controla-los esteve na base de seu imaginário4. Neste momento, a tênue fronteira entre o a

religião oficial (o cristianismo como um plano doutrinário em construção) e o pagão (ou

4 Por Imaginário entendemos: “um conjunto de imagens visuais e verbais gerado por uma sociedade (ou parcela desta) na sua relação consigo mesma, com os outros grupos humanos e com o universo em geral”. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: a história de um país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 16. & FRANCO JÚNIOR, Hilário. Os três dedos de Adão: Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: Edusp, 2010. p. 70.

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considerados como, com suas práticas romana ou pré-romana) não foi evidente, principalmentes

nos meios rurais, sobretudo por ambos serem tomados como sagrado. E a não distinção do

sagrado caracterizou profundamente suas atitudes, o que acarretou, sem duvida, uma difícil

percepção e distinção do que era real e o que fazia parte do imaginário a esta sociedade.

Assim sendo, é interessante se notar a dualidade do contexto de produção e pregação da

nova ortodoxia. De um lado a cultura clerical, do outro, as tradições folclóricas e seu

imaginário. A primeira condiz com o cristianismo de Nicéia e “corresponderia ao seu aspecto

público e institucionalizado, que elabora um conjunto de técnicas dirigidas, tendo como

finalidade a obtenção e conservação daquela garantia” através da produção da religião por meio

da ortodoxia cristã definida. A segunda, a religiosidade, mais como uma prática cotidiana

“implica crer na garantia sobrenatural, uma atitude religiosa fundamental e que pode ser

simplesmente interior e pessoal” (ANDRADE FILHO, 1997: 11) que é conhecida apenas

indiretamente através da análise dos documentos produzidos pela cultura clerical. Segundo Ruy

de Oliveira Andrade Filho:

“Uma religião institucionalizada como o cristianismo oficial pode, grosso modo,

responder a um conjunto de anseios e necessidades de um determinado grupo social.

Consegue assim, através de um certo número de símbolos, cerimonias, etc., exteriorizar

parte da sensibilidade espiritual de seus adeptos. Seu maior ou menor sucesso depende

da medida em que toca o inconsciente deste grupo. Sua maior ou menor duração se

encontra na sua capacidade de adaptação às transformações materiais e/ou

psicológicas, consciente ou não, do segmento a que se dirige” (ANDRADE FILHO,

1997: 135)

“a ‘religiosidade popular’ também não se apresenta enquanto uma simples redução,

um resumo ou mesmo um empobrecimento da religiosidade ‘erudita e/ou oficial’. Tinha

também as suas fontes, as suas estruturas, a sua criatividade e elasticidade” (ANDRADE FILHO, 1997: 135).

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Para uma tentativa de recusa à religiosidade popular, pela cultura eclesiástica, Cesário

insistiu em disseminar seus sermões e suas práticas. Por meio de sua retórica e de seus sermões

simples, ele exortou seus fiéis.

Estas medidas acabaram por gerar um sentido ambíguo e até mesmo equivocado do

culto ao sagrado, especialmente no mundo rural emergente no momento, pois, as velhas crenças

ancestrais de longa duração, pouco ou nada tocadas pela culturas antigas como a romana, viam-

se alheias aos avanços do cristianismo.

A Igreja, por seu turno, utilizando das medidas supracitadas encontrou dificuldades em

desenraizar os hábitos da população rural, onde “religião e magia não eram geralmente tidas

como atitudes opostas, mas complementares” (ANDRADE FILHO, 1997: 113). Cesário aborda o

equivoco de alguns fieis que muitas vezes não distinguia tais praticas, por exemplo, no 13°

sermão, ele prega:

“Vede, irmãos, aquele que recorre à Igreja em sua enfermidade obtém, se for digno, a

saúde do corpo e a remissão dos pecados. Uma vez que só na Igreja é possível, pois,

encontrar este duplo benefício. E por que há infelizes que se dedicam em causar mal a

si mesmos, procurando os mais variados sortilégios: buscando em encantos e feitiços

diabólicos em fontes e árvores, feitos por videntes e adivinhos charlatões?” (S. 13.3).

“E agora, dizei-me, que tipo de cristão é esse que veio à igreja para orar, mas se

esquece da oração e não se envergonha de proferir cânticos sacrílegos dos pagãos.

Pensei, pois, irmãos, se é justo que a boca cristã, que recebe o próprio corpo de

Cristo, profira cânticos inpudicos, uma espécie de veneno do diabo” (S. 13.4).

Verifica-se assim, com os exemplos acima citados, que a presença do considerado

“pagão” era constante entre a população. E ainda, a tentativa de embate por meio da pregação

foi insistente durante toda Primeira Idade Média. Porém, é difícil medir os efeitos da pregação,

e ainda, o período em que sua assimilação foi maior, ou menor, mas, podemos levar em conta o

que Hillgarth adverte: “levou-se alguns séculos para que o Cristianismo realmente penetrasse na

vasta massa da população da Europa Ocidental, e ainda, para a maior parte da população rural

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até o século VIII (e frequentemente muito depois), certa forma de paganismo continuava pelo

menos tão atraente quanto o Cristianismo” (HILLGARTH, 2004: 16).

Considerações finais:

Klingshirn defende que a tentativa missionária de Cesário ficou aquém de seus

objetivos, algo que dificilmente conseguiria, pois: as comunidades camponesas, literalmente

não têm tempo, nem compreensão total de seus argumentos para se dedicar ao regime

devocional pedido pelo bispo. A longo prazo, no entanto – como mostra Klingshirn – o

objetivo de Cesário foi, antes de tudo, foi legar aos futuros eclesiásticos um modelo de como

deveria ser feito, os exemplos de uma vida cristã associada com a ascese monástica. Sua

iniciativa foi inigualável até os carolíngios que apropriara-se muito de seu legado textual, ou

até mesmo os reformadores e missionários do início do período moderno (KLINGSHIRN,

2004: 242-43).

Deste modo, esta abordagem rápida e certamente inacabada sobre alguns aspectos da

religiosidade popular, deixa visível a tentativa de elaboração de uma nova realidade através da

pregação que, de fato, procurou definir os contornos da verdadeira religião diante do

paganismo e da superstição, e propor (até mesmo impor) um modelo de cristianismo (POLO

DE BEAULIEU apud LE GOFF & SCHIMITT, 2002: 367). Porém, isso não significa

fundamentalmente o desaparecimento da religião e religiosidade antes praticada, pois as práticas

consideradas pagãs continuavam arraigadas em todos os grupos, principalmente na população

rural. Como afirma Peter Brown: “O paganismo não era apenas uma superstitio, um traste velho

deitado fora da Igreja; paganismo mantinha-se no coração dos cristãos batizados, sempre pronto

a reaparecer sob a forma de ‘tradições pagãs’” (BROWN, 1999: 116).

Documentos medievais:

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