OS EFEITOS DO DIAGNÓSTICO E O FRACASSO ESCOLAR - III Congresso Internacional “Educação...
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Parte II |Pág. 1198 Lima-Rodrigues, L. & Rodrigues, D. (orgs.). Atas do III Congresso Internacional “Educação Inclusiva e Equidade”. Almada, Portugal, de 31 de outubro a 2 de novembro de 2013, Pró -Inclusão: Associação Nacional de Docentes de Educação Especial.
OS EFEITOS DO DIAGNÓSTICO E O FRACASSO ESCOLAR
DETERMINADO PELO RÓTULO NOS ESTUDANTES COM AUTISMO
Autora: Silva, Virgínia74, Universidade de Brasília Co-autora: Orrú, Sílvia Ester75, Universidade de Brasília Co-autora: Alvarenga76, Ana Luiza Sá, Universidade de Brasília.
Resumo:
O trabalho se insere na modalidade Comunicação oral. Apresenta a problemática dos efeitos iatrogênicos do diagnóstico nas aprendizagens dos estudantes com autismo discutido com base na teoria histórico-cultural de Vygotsky (1998). O cenário utilizado para a discussão teórica foi a organização das salas de aula das escolas públicas de Brasília, capital do Brasil. Os objetivos do trabalho são: 1) Discutir teoricamente os efeitos iatrogênicos para os estudantes com autismo; 2) Analisar a relação da medicalização da sociedade e da educação e os desdobramentos iatrogênicos do diagnóstico nos processos de ensinar e de aprender dos estudantes com autismo. A metodologia utilizada foi a pesquisa qualitativa com base nos princípios da construção do conhecimento da epistemologia qualitativa. A epistemologia qualitativa definida por González Rey (2005) tem como princípios o caráter construtivo interpretativo do conhecimento; a legitimação do singular como instância de produção do conhecimento científico e a compreensão da pesquisa como um processo de comunicação. Como instrumento para a produção de informações utilizou-se a pesquisa bibliográfica a partir da Teoria Histórico-Cultural de Vygotsky (1998, 2009); as reflexões a respeito dos processos de aprendizagem dos estudantes com autismo histórico da utilização do termo e critérios de diagnóstico com Orrú (2009a, 2009b, 2012), Camargos Jr. (2010) e Baptista e Bosa (2002); o histórico da medicalização da sociedade e da educação com Moysés (2001) e o conceito de iatrogenia e seus efeitos na educação com Raad e Tunes (2011). A discussão aprofunda o estudo acerca das consequências do diagnóstico no processo de aprendizagem dos estudantes e possibilita um novo olhar para os mesmos, suas singularidades e seus modos de aprender. O estudo identificou que o olhar docente direcionado ao estudante facilita seu processo de aprendizagem e seu processo de desenvolvimento. Estudantes com autismo compartilham da visão dos que não aprendem e não se desenvolvem no contexto escolar. São concebidos, em muitas ocasiões, como sujeitos incapazes de aprender e de se desenvolverem nesse contexto, sendo, portanto, marginalizados à sombra do curso de desenvolvimento da humanidade. A relevância da discussão traz esse sujeito social para o protagonismo do seu processo de aprendizagem contrapondo-se à visão cristalizada de que o sujeito seja determinado pelo fator biológico e necessita da sociedade apenas para efeitos de sobrevivência. 74Mestranda do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil. Contato: [email protected] 75 Docente do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília,
Brasil. Contato: [email protected] 76 Mestranda do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil. Contato: [email protected]
Parte II |Pág. 1199 Lima-Rodrigues, L. & Rodrigues, D. (orgs.). Atas do III Congresso Internacional “Educação Inclusiva e Equidade”. Almada, Portugal, de 31 de outubro a 2 de novembro de 2013, Pró -Inclusão: Associação Nacional de Docentes de Educação Especial.
Palavras chave: autismo, iatrogênese, singularidade, diagnóstico, medicalização.
Abstract:
This work comes under the Oral Communication modality. It presents the problem of iatrogenic effects of diagnosis on the learning of students with autism based on the historical-cultural theory of Vygotsky (1998). The scenario used to the theoretical discussion was the classrooms organization of the public schools in Brasília, capital of Brazil. The objectives of the work are: 1) To discuss, theoretically, the iatrogenic effects on students with autism; 2) To analyze the relation between society and education medicalization and the iatrogenic consequences in the processes of teaching and learning of students with autism. The methodology used was the qualitative research based on the principles of knowledge construction from qualitative epistemology. The principles of qualitative epistemology defined by González Rey (2005) are the constructive and interpretative nature of knowledge; the legitimation of the singular as an instance of scientific knowledge production, and the understanding of research as a communication process. As instruments to produce information, the bibliographical research from the Historical-Cultural Theory of Vygotsky (1998, 2009); the reflections about the learning processes of the students with autism, history of the utilization of the term and diagnosis criteria with Orrú (2009a, 2009b, 2012), Camargos Jr. (2010) and Baptista and Bosa (2002); the history of society and education medicalization with Moysés (2001), and the concept of iatrogeny and its effects in education with Raad and Tunes (2011) were used. The discussion strengthens the research on the consequences of the diagnosis in the learning process of the students and allows a new way to look at them, their singularities and their way to learn. The study identified that the teacher’s eye directed to the student makes his/her learning and development processes easier. Students with autism are seen as the ones who do not learn and do not develop in the school environment. They are considered, in many occasions, as individuals who are unable to learn and to develop in this context, being, then, marginalized in the shadow of the humankind development course. The relevance of this discussion brings this social individual to the center of his/her learning process, oppositte to the crystallized view that the individual is determined by the biological factor and needs society only for survival matters.
Keywords: autism, iatrogenesis, singularity, diagnosis, medicalization.
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INTRODUÇÃO
Pessoas diagnosticadas com autismo vivenciam o fracasso escolar e estão passando anos
confinados em classes especiais onde convivem com pessoas que receberam o mesmo
diagnóstico. No Brasil, especificamente, na capital federal, Brasília, as escolas são
denominadas Centro de Ensino Fundamental (CEF), Centro Educacional (CED),
Escolas Classe (EC), Centro de Educação Infantil (CEI) e Centros de Ensino Especial
(CEE). As escolas organizam-se em classes denominadas comuns e classes especiais.
As classes comuns atendem estudantes sem diagnósticos e alguns que, com diagnóstico,
são matriculados por apresentarem requisitos que os habilitam para as turmas. O
encaminhamento é feito por uma equipe multidisciplinar composta por uma Pedagoga e
uma Psicóloga por meio de estudo de caso, avaliação pedagógica e análise dos relatórios
médicos. Nas classes especiais são atendidos estudantes vindos dos Centros de Ensino
Especial, que não se qualificam no estudo de caso para frequentarem as classes
regulares. Os estudantes com autismo estão matriculados, em sua maioria, em Centros
de Ensino Especial e/ou nas Classes Especiais das escolas. Nas classes especiais
convivem apenas com um ou, no máximo, três estudantes com o mesmo diagnóstico.
Quando nas classes comuns, convivem com todos os estudantes. Permanecem
matriculados nas classes especiais até uma avaliação feita pela equipe multidisciplinar
que, juntamente com seu professor, o qualifica para as turmas comuns.
O trabalho aborda o efeito que o diagnóstico provoca no contexto escolar e sua relação
com o fracasso escolar dos estudantes que o recebem. Os aspectos iatrogênicos
consequentes do diagnóstico conduzem e determinam o caminho dos estudantes com
autismo nos contextos escolares. A iatrogênese é uma doença que se expressa de forma
clínica, social e estrutural (RAAD e TUNES, 2011, p. 21). As consequências
iatrogênicas do diagnóstico nas práticas escolares tem comprometido a aprendizagem de
estudantes e promovido o fracasso escolar daqueles com alguma deficiência. A
compreensão da relação desenvolvimento/aprendizagem se reflete nas concepções de
educação que acreditam nas possibilidades de aprendizagem dos estudantes. Estudantes
que são diferentes enquanto seres humanos. Unificam-se pela cultura diferenciando-se
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de outras espécies. Porém, socialmente, estão sendo classificados e homogeneizados
pela tentativa de normalização da sociedade. A medicalização da sociedade que se
constituiu historicamente como um paradigma norteador de ações do Estado e da
Educação consolidou o diagnóstico como rótulo que coloca as pessoas, que não se
enquadram na organização social dominante, à sombra da sociedade e invisíveis em
suas singularidades.
São objetivos do trabalho discutir teoricamente os efeitos iatrogênicos para os
estudantes com autismo e analisar a relação da medicalização da sociedade e da
educação e os desdobramentos iatrogênicos do diagnóstico nos processos de ensinar e
de aprender dos estudantes com autismo.
Na contextualização teórica aborda-se o histórico do autismo e seus critérios de
diagnóstico, os processos de desenvolvimento humano e aprendizagem o conceito de
iatrogênese social e suas consequências no contexto escolar e as singularidades ocultas
pelo diagnóstico.
A metodologia utilizada foi a pesquisa qualitativa fundamentada na epistemologia
qualitativa. Como instrumento de pesquisa para produção de informações, optou-se pela
pesquisa bibliográfica por ser, o trabalho, uma discussão teórica.
Investigar e discutir os efeitos que o diagnóstico tem nas situações de fracasso torna-se
importante por destacar as possibilidades de avanço dos estudantes com o diagnóstico
de autismo, que se beneficiarão com o estudo por discutir a importância de suas
singularidades e das interações sociais para suas aprendizagens.
CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA
Compreendendo um pouco a história do autismo
Os primeiros relatos sobre autismo foram descritos por Leo Kanner em 1943, e Hans
Asperger em 1944. Ambos em momentos e lugares diferentes descreveram
características sobre o quadro com base em observações feitas em grupos de crianças
por eles observadas. Não foram os primeiros a utilizarem o termo. CAMARGOS Jr,
(2010, p. 11) informa que Bleuler (1911) referiu-se originalmente ao autismo como
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transtorno básico da esquizofrenia. Kanner distinguiu o autismo de outras psicoses
graves da infância, constatou nas crianças observadas a presença da inabilidade nos
relacionamentos interpessoais, o atraso na aquisição da fala, seu uso não comunicativo e
a insistência na invariância. Asperger também observou dificuldades em estabelecer
relações sociais, porém as crianças por ele observadas não apresentavam essa
dificuldade de modo extremo, elas demonstr avam “uma forma ingênua e inapropriada
de aproximar-se das pessoas” (BAPTISTA & ROSA, 2002, p.25) e não apresentavam
um atraso significativo no período de aquisição da fala. Kanner e Asperger observaram
semelhanças e diferenças em relação às crianças observadas, ambos utilizaram o termo
autismo para nomear as descrições realizadas.
O autismo atualmente é definido como uma “síndrome comportamental com etiologias
múltiplas e curso de um distúrbio de desenvolvimento” (GILLBERG, 1990 apud Orrú
2012, p. 181). No Brasil os critérios para a classificação oficial do autismo levam em
consideração os critérios constantes na CID 10 - Classificação Internacional de Doenças
e no DSM-IV - Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais. (ORRÚ
2009b, p. 27).
O autismo no DSM – IV está na categoria Transtorno Invasivo do Desenvolvimento
onde suas características são “ anormalidades qualitativas na interação social recíproca e
nos padrões de comunicação, por repertório de interesses e atividades restritas,
repetitivas e estereotipadas” (ORRÚ, 2009a, p. 26). Para a CID – 10 o autismo está na
categoria Transtorno Global do Desenvolvimento e é descrito como
[...] grupo de transtornos caracterizados por alterações qualitativas nas interações qualitativas das interações sociais recíprocas e modalidades de comunicação e por um repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo. Estas anomalias qualitativas constituem uma característica global do funcionamento do sujeito, em todas as ocasiões. (apud CAMARGOS Jr, 2010, p. 17).
Orrú (2012, p. 183) esclarece que existem casos supostamente baseados como
proveniente de condições médicas e outros caracterizados por anormalidades na
interação social mútua e nos padrões de comunicação, assim como pelos diferentes
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aspectos ligados ao interesse e a ações, diferentemente realizadas. O diagnóstico é
clínico, realizado com base nos critérios da CID-10 e DSM- IV “além de anamnese
específica e observação comportamental” (ORRÚ, 2012, p. 183). Não existem, exa mes
que comprovem sua existência.
A análise do histórico da definição do autismo enquanto um transtorno que acomete as
pessoas em seu desenvolvimento global e em todos os momentos de suas vidas não diz
nada sobre quem são essas pessoas. O termo designa características semelhantes em
sujeitos diferentes. Entender como as características estão presentes em cada pessoa que
recebe o diagnóstico é respeitar e considerar suas singularidades. Entendendo-o
enquanto sujeito inserido em um contexto cultural que o constitui e é constituído por
ele.
Processos de desenvolvimento e aprendizagem
Direcionar o olhar para o estudante, ou não, define, nos contextos escolares, a
concepção acerca do desenvolvimento humano presente nas instituições. Os olhares,
com base exclusivamente nas características diagnósticas, referem-se a concepções
objetivas de desenvolvimento. Um exemplo é a teoria comportamental onde o
“desenvolvimento é uma reação do sujeito aos estímulos do meio ambiente, similar a
um reflexo mecânico da aprendizagem ” (ORRÚ, 2009b, p. 57). Essas abordagens
baseavam-se na estrutura estímulo-resposta. Nessa abordagem segundo Vygotsky
[...] independentemente do processo psicológico em discussão, o psicólogo procura confrontar o sujeito com algum tipo de situação-estímulo planejada para influenciá-lo de uma determinada maneira, e, então, examinar e analisar a(s) resposta(s) eliciada(s) por aquela situação estimuladora. (Vygotsky, 1998, p. 77)
Ações educativas baseadas nesses princípios preocupam-se fundamentalmente em
organizar, no ambiente, ações que provoquem reações mecânicas nos estudantes que
representem passos no percurso do seu desenvolvimento. O objetivo é que os
estudantes, com o diagnóstico de autismo, respondam positivamente às demandas de
existência contidas nos ambientes. Embora a metodologia baseada na estrutura
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estímulo-resposta mostre alguns resultados, ela se “mostra sem utilidade quando o
objetivo é descobrir os meios e os métodos utilizados pelos sujeitos para organizar o seu
próprio comportamento.” (Vygotsky, 1998, p. 98). Segundo Vygtsky:
[...] aprendizado não é desenvolvimento; entretanto, o aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento vários processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de acontecer. Assim, o aprendizado é um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas. (Vygotsky, 1998, p. 118).
Vygotsky provoca a análise dos processos de aprendizagem nos contextos escolares.
Segundo ele, a aprendizagem efetiva-se quando a criança passa do conhecimento
espontâneo para o científico. Ele localiza nos estágios inferiores os conceitos
espontâneos onde “o sistema de conceitos dispõe de meios de descrição simples da
realidade empírica” (BEZERRA, 2009, p. XIII) e localiza nos estágios superiores os
conceitos científicos onde conceitos mais amplos são formados e relacionados a uma
classe de fenômenos e não a seus aspectos particulares.
O papel do outro no desenvolvimento dos conceitos científicos é fundamental segundo a
perspectiva histórico-cultural de Vygotsky. O momento da interação com outro mais
experiente no processo de desenvolvimento permite aos sujeitos a modificação daquilo
que ainda não conseguem fazer de modo independente para imediatamente o que
conseguirão fazer de modo autônomo. Os sujeitos organizam-se internamente a partir de
questões que lhes são colocadas nos contextos culturais em que vivem e em suas
relações dentro da cultura. O movimento diz respeito ao uso dos instrumentos, como
mediadores, para solucionar questões apresentadas na cultura. Nesse contexto, quando a
solução organizada internamente é colocada em prática, e não resolve a questão, a
criança busca, no outro, o auxílio para a resolução. O movimento promove a
aprendizagem que se constitue como fator necessário ao desenvolvimento das funções
psicológicas superiores. Para Vygotsky,
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[...] as funções psicológicas superiores deveriam ser compreendidas nas relações sociais presentes na vida do indivíduo, sendo o homem participante do processo de criação de seu meio, e não determinado por ele. Ele é um ser social e cultural em uma história de desenvolvimento, que parte do interpessoal para o intrapessoal, tendo a linguagem como mediadora de todas as suas relações. (ORRÚ, 2009b, p.80).
Proporcionar aos estudantes atividades em que a interação com o outro lhes traga
possibilidades de desenvolvimento é papel da escola. É preciso ao estudante com
autismo “uma abordagem que não se reduza ao treinamento de habilidades de
comunicação, mas sim que esteja aberta à sua constituição enquanto sujeito, a partir do
desenvolvimento da linguagem, da interação social, da sua contextualização histórica.”
(ORRÚ, 2009b, p. 76).
Os estudantes diagnosticados com autismo nas escolas públicas do Distrito Federal -
Brasil, em sua maioria, estão matriculados em classes especiais dentro de escolas
regulares ou estão em Centros de Ensino Especial que são exclusivos a estudantes com
algum diagnóstico relacionado a deficiências, transtornos ou atraso significativo no
desenvolvimento.
Os estudantes estão confinados em classes especiais onde convivem com outros com o
mesmo diagnóstico. O trabalho realizado baseia-se predominantemente na estrutura
estímulo-resposta. As ações metodológicas consistem em treinos para o
desenvolvimento de habilidades denominadas de vida diária como atividades de higiene
pessoal, ensino de controle da auto ou heteroagressão (quando existente), atividades
domésticas, mobilidade no ambiente escolar, reconhecimento do ambiente nos arredores
da escola, reconhecimento de comandos básicos, ordens simples (com apenas um
comando) e ordens complexas (com mais de um comando), capacidade de alimentar-se
sozinho. As atividades são construídas para permitir aos estudantes autonomia nos
ambientes que vivem. As respostas positivas dadas pelos estudantes às proposições
docentes são mantidas por reforços, estabelecidas conjuntamente entre professores e
família. Os reforços podem ser atividades, brinquedos favoritos, imagens, sons, vídeos
ou o que a família informar à escola que funcione na emissão de respostas positivas a
proposições colocadas para o estudante.
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A organização do trabalho pedagógico nessas classes não demonstra, atualmente, o
olhar diferenciado para o estudante enquanto sujeito produtor de cultura. Sujeito que a
cria e a modifica, e, nesse mesmo processo, é modificada por ela constantemente. A
organização não demonstra preocupação em compreender os processos individuais de
aprendizagem dos estudantes com o diagnóstico de autismo. Limitam-se ao treino de
habilidades.
O confinamento em classes ou escolas especiais não permite, a esse estudante,
possibilidades de desenvolvimento mediado pelas interações sociais. O confinamento os
retira do convívio com o outro. Segundo Vygotsky,
[...] o aprendizado desperta vários processos internos de desenvolvimento, que são capazes de operar somente quando a criança interage com pessoas em seu ambiente e quando em cooperação com seus companheiros. (Vygotsky, 1998, p. 117-118).
A organização do ensino para esses estudantes não tem trazido à suas vidas a interação e
o convívio com outros da mesma idade. Em sua maioria, as classes são compostas por
dois e, no máximo, quatro estudantes com o diagnóstico de autismo. Quando a sala é
composta por quatro estudantes possui dois professores, um para cada dupla.
Alguns docentes adotam as classes especiais como única via para seus trabalhos
pedagógicos e permanecem nas classes por anos, às vezes, com o mesmo aluno. O olhar
para a deficiência, para o que o sujeito não consegue fazer tem trazido a esse trabalho
uma roupagem infantilizada. As atividades pedagógicas são direcionadas à idade de
desenvolvimento calculada através da utilização do Inventário Portage
Operacionalizado77. Esse inventário é muito utilizado nas escolas do Distrito Federal –
Brasil. É aplicado pela observação de comportamentos típicos à idade de 0 a 6 anos.
Nele, os professores preenchem o que o estudante faz e o que não faz. Ao final, um
cálculo é realizado para se obter a idade de desenvolvimento entre no intervalo de idade 77 Trata-se de um programa de ensino domiciliar que busca envolver os pais na educação de seus filhos, oferecendo-lhes treinos sobre o que ensinar, como ensinar, o que reforçar e como observar e registrar comportamentos [...] Tem sido usado no Brasil por diversos pesquisadores e profissionais, com vários tipos de população, em diferentes situações de ensino, com vários objetivos e em vários Estados. (CAMARGOS Jr, 2010, p. 154-156).
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mencionado. Não é objetivo discutir o instrumento, mas é importante observar que
ações pedagógicas planejadas, após a aplicação, não estão sendo produzidas conforme a
idade cronológica dos estudantes. Os professores as organizam com base na idade de
desenvolvimento obtida. Direcionam as atividades para o que o estudante não consegue
fazer, por isso a roupagem, muitas vezes, infantilizada.
O objetivo de manter o estudante ocupado dentro da escola não vai de encontro com
ações metodológicas organizadas que possibilitam interações, nem tão pouco que esses
estudantes possam fazer uso dos instrumentos produzidos na cultura em benefício do
próprio desenvolvimento. Os estudantes estão, diariamente, sendo treinados a
sobreviver por meio de ações que os mantenham limpos, que os capacite a ir ao
banheiro, que os permita se vestirem sozinhos, abrirem portas, obedecerem a ordens
simples, entre outras que objetivam, essencialmente, suprir necessidades biológicas e de
sobrevivência.
O contexto apresentado sobre o atual trabalho realizado com estudantes autistas em
escolas públicas do Distrito Federal - Brasil cumpre, para a sociedade, o papel de
mostrar que a pessoa que não se enquadra nos moldes culturalmente estabelecidos de
desenvolvimento humano, está sendo cuidada por ela. Pessoas que recebem da
sociedade um rótulo – o diagnóstico, para definir seu modo diferenciado de ser humano.
A iatrogênese social e suas consequências no contexto escolar
Acontecimentos sociais produzidos na humanidade configuram-se como verdades
culturalmente instituídas. A predominância de práticas culturais referentes a classes
sociais dominantes se perpetuam por meio de ações que objetivam a manutenção de seu
modo de viver, ser e estar no mundo, do seu modo produtivo e de desenvolvimento
social. O histórico do avanço da ciência e a visão médica na sociedade é um exemplo de
como ações institucionais de padronização vem se mantendo em nome do
desenvolvimento social e da regulação da vida em sociedade. A clínica trouxe o olhar
absoluto do médico, que “[...] adquire um domínio clínico com o poder de conhecer a
natureza da doença, de distinguir suas características e diferenças” (RAAD & TUNES,
2011 p. 19).
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As discussões sobre aprendizagem a partir da visão biológica de desenvolvimento
somam a esse processo, aspectos que não são exclusivos da escola. O especialista da
aprendizagem tutela à saúde o poder em decidir sua existência e os fatores que a
influenciam. O estudante em sua constituição biológica é responsável pela não
aprendizagem por, possivelmente, apresentar alguma falha intrínseca que determina sua
incapacidade de aprender.
O estudo da iatrogênese 78 (RAAD e TUNES, 2011, 15-45) representa avanço na
concepção da aprendizagem daqueles que, por trás do rótulo do diagnóstico, estão
classificados como os que não aprendem ou como deficientes. Iatrogênese social “[...] é
resultante, fundamentalmente, dos efeitos não desejados e danosos do impacto social da
medicina mais que propriamente de sua ação técnica direta” (RAAD & TUNES, 2011 p.
21).
A crença cega na medicina, construída culturalmente, coloca as pessoas na posição
passiva no desenvolvimento da própria vida. Perdem a autonomia, tutelada aos
representantes legais e à sociedade. A sombra do diagnóstico produz o efeito
iatrogênico da invisibilidade dos sujeitos enquanto produtores de cultura e gestores de
suas vidas.
A sociedade passa a olhar e nomear estudantes pelo diagnóstico. No contexto escolar
apresentado, a organização dos estudantes baseia-se no que consta em seu diagnóstico.
O portador 79 do diagnóstico, ignorado em sua singularidade, permanece a sua sombra.
Este, o nomeia, o caracteriza e o classifica. O espaço que os estudantes com autismo
ocupam nas escolas configura um dos efeitos iatrogênicos do diagnóstico, pois os retira
da interação social e cultural presentes nas relações. São mantidos nas classes e, às
vezes, não participam das atividades coletivas da escola. Como são estudantes autistas
não conseguem permanecer em locais onde existem outras pessoas porque tem
dificuldade na interação social.
78 Segunda RAAD & TUNES (2011, p. 21), a iatrogênese é uma doença que se expressa de forma clínica, social e estrutural. 79 Segundo o dicionário Aulete: portador • (por.ta.dor) [ô] 1. Que porta, conduz ou carrega consigo algo; 2. Pessoa que porta ou conduz algo.
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A iatrogenia social “provoca uma desarmonia entre o indivíduo e o grupo social ao qual
está vinculado, que se organiza sem e contra ele” (RAAD e TUNES, 2001, p. 21). A
escola compartilha com os mecanismos da medicalização social de coisificação de seus
integrantes – os estudantes. Para os deficientes e os que não aprendem, o efeito da
iatrogênese funciona “.[..] como uma ferramenta de condução do seu destino.” (RAAD
& TUNES, 2011 p. 21). Quando não se alcança a cura, ou o padrão social estabelecido,
lhe é negado o convívio com o outro, no qual as relações sociais constituintes são
fundamentais para a aprendizagem, sendo lhe negada a aprendizagem.
O sujeito oculto pelo diagnóstico
O diagnóstico é um instrumento culturalmente construído e validado socialmente. Vem
sendo utilizado para ocultar estudantes e suas singularidades.
Historicamente, as pessoas improdutivas que vivem em sociedade, são colocados à
margem do percurso criativo de seu grupo. Vivem, mas não convivem com os membros
do grupo. A medicina e sua prática clínica, ao longo de sua história, fortaleceu seu
campo de atuação e passou a ser responsável pelo cuidado dos que não estão dentro dos
padrões das sociedades em termos produtivos, sociais, econômicos e, também, de
aprendizagem.
Segundo Foucault (1977, apud ORRÚ, 2012, p. 187), a normalização dos indivíduos
visa à homogeinização dos sujeitos diferentes entre seus pares, predominando o
binômio normal e anormal em uma sociedade que almeja ser saudável e
economicamente produtiva.
Mudanças políticas e sociais significativas no final do século XVIII questionaram as
formas predominantes de organizações sociais vigentes. A crítica as fundações
hospitalares refletiram as ações de uma organização cultural dominante que procurava
dar continuidade a sua predominância. “O hospital, além de ser um espaço artificial e
prejudicial à essência da doença, é criador e multiplicador de doenças no espaço social:
a família do doente, desamparada, adoece.” (MOYSÉS, 2001, p . 147).
Nesse contexto surge a medicina das epidemias modificando o olhar médico. O olhar
particularizado e direcionado às famílias pressupõe uma organização do Estado como
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responsável pela medicina. Tal medicina dá origem a ações que procuram perceber a
causa da epidemia e não mais o essencial das doenças. Médicos e profissionais da saúde
são direcionados a acompanhar na sociedade a origem das epidemias. Para esse trabalho
é necessário a ação do Estado de modo coercitivo para acompanhar a sociedade e vigiar
o aparecimento de focos epidêmicos. A medicina passa a ter o conhecimento sobre o
que é homem saudável e o seu olhar passa a definir o homem modelo.
Com o consentimento da sociedade, que delega à medicina a tarefa de normatizar, legislar e vigiar a vida, estão colocadas as condições históricas para a medicalização da sociedade, para nosso objeto, mais especificamente, a medicalização do comportamento e da aprendizagem. (MOYSÉS, 2001, p. 171).
No cenário educacional, práticas baseadas em concepções de aprendizagem de base
biológica, encontraram o cenário perfeito para justificar a não aprendizagem dos
estudantes. Aquele que não aprende é o que não está saudável. A análise da influência
do paradigma médico na sociedade não significa deixar de lado aspectos biológicos que
constituem os seres humanos, porém, é preciso entender que
[...] as características biológicas, os atributos genéticos de um homem são o substrato a partir do qual construir-se-á uma entre infinitas possibilidades postas para esse homem, postas fundamentalmente pelos bens culturais a que ele tem acesso. (MOYSÉS, 2001, pp. 136).
A cultura é um sistema simbólico produzido historicamente pelo homem, compartilhado
por ele e seu grupo. Sendo a cultura, constituinte do homem, também constituída por
ele, é indispensável pensar seu desenvolvimento a partir da cultura. Os aspectos
culturais constituem a forma como as sociedades e os sujeitos que a compõem se
organizam, sejam em seus aspectos sociais, políticos, econômicos, educacionais ou
individuais. Aqueles que não respondem produtivamente ao seu grupo social recebem a
culpa da improdutividade.
Na esfera educacional, as crianças que não aprendem ou que possuem um percurso de
desenvolvimento ou comportamento diferente em relação à maioria produtiva, são
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excluídos dos objetivos educacionais predominantes. Objetivos que visam o
desenvolvimento de sujeitos “saudáveis” e produtivos para a sociedade.
A aprendizagem e a não-aprendizagem são tomadas conforme afirma MOYSÉS (2001)
como corpo biológico que precisa ser silenciado para que o olhar clínico efetive-se
racionalmente e objetivamente. Segunda a autora é a partir do ponto em que ocorre
ajuste no olhar clínico que as ações de classificar, pelo diagnóstico e diagnosticar, pela
classificação prévia são incorporados ao ato médico, sem conflitos.
A classificação impõe critérios aos estudantes e ocultam suas singularidades. A
classificação diagnóstica o ignora enquanto pertencente a uma sociedade e como
produtor de cultura e produto dessa cultura. Os que chegam até à escola são percebidos,
organizados e classificados apenas pelos diagnósticos. O paradigma da normalização e a
importância que o olhar clínico obteve ao longo da história, provocou, na educação, um
paradigma prático de classificação do que aprende; que está dentro do padrão de
desenvolvimento dominante e daquele que não aprende e que está à margem da
padronização. Ao receber a medicina na educação, como tutora da saúde e dos critérios
de normalidade, ocorre o que se denomina medicalização da educação. Os problemas
pedagógicos, sociais e políticos são transformados em questões biológicas, médicas.
O diagnóstico oculta o sujeito e sua singularidade e move, em sua direção, a
responsabilidade por sua improdutividade e não-aprendizagem. Ele passa a ser o que
não possui as condições para a produção e para a aprendizagem.
O paradigma da inclusão no Brasil, sistematizado em forma de políticas e ações estatais
desde a década de 90, tenta deslocar essa responsabilidade para as ações do Estado.
Porém, a existência de uma legislação inclusiva não garante a mudança do paradigma
médico na sociedade. O fracasso na aprendizagem ainda é responsabilidade do
estudante e de sua constituição biológica.
O autismo, assim como consta nos critérios de diagnóstico pode comprometer o uso da
linguagem a interação social e a imaginação. Olhar exclusivamente para os critérios
ignorando o sujeito configura um equívoco que reproduz o paradigma da normalização
instituído pelo olhar da medicina na educação. Entender que dificuldades no uso da
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linguagem podem ocorrer não significa que os sujeitos não apresentam relação com seu
uso.
O rótulo, fixado nos sujeitos pelo diagnóstico, o desloca para a sombra da produção
cultural institucionalmente avaliada. A escola o confina em classes especiais. O critério
para o ingresso nas classes é o diagnóstico. Inicialmente são inseridos em classes
especiais para desenvolver habilidades que os permita conviver com o outro em classes
regulares. Esse critério, característico do paradigma da integração onde os estudantes
precisam estar aptos para o convívio social, caminha em sentido contrário à inclusão
onde a sociedade precisa organizar-se para que as pessoas que a compõem sejam vistas
a partir de suas singularidades e subjetividade.
O diagnóstico determina o espaço que os estudantes podem ocupar nas escolas e
direcionam as ações pedagógicas, originárias de uma classificação biológica dos
sujeitos, para o trabalho que busca a normalização. Ignorando o processo de
aprendizagem individual dos estudantes, as ações os colocam à margem do currículo e
produzem a perpetuação do estado improdutivo que lhes é imputado socialmente.
Confinados, seguem de um ano para outro sendo treinados em ações cotidianas por
estarem presos ao diagnóstico.
A medicalização da educação e consequente classificação diagnóstica dos estudantes
estão presentes na sociedade historicamente. O olhar médico, que traz a solução para o
não enquadramento dos estudantes, retira da escola e do professor, a responsabilidade
de, efetivamente, planejar situações de mediação que proporcionem interações com os
outros, significação de conceitos e a significação do uso da linguagem por meio dos
signos produzidos pela cultura da qual o aluno faz parte. Prender-se ao diagnóstico
direciona o discurso dos professores para a clínica, pois é o médico que deve solucionar
o problema da não aprendizagem.
A percepção de que a educação não é responsável pela aprendizagem daqueles que, à
sombra do diagnostico, são incapazes de serem vistos ou ouvidos impede que a
organização do trabalho pedagógico seja uma prática de mediação qualitativa para a
aprendizagem. O fracasso escolar desses estudantes instala-se na sociedade
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CONTEXTUALIZAÇÃO METODOLÓGICA
O trabalho apoia-se nos princípios da Epistemologia Qualitativa discutida por González
Rey (2005). O autor destaca como princípios dessa epistemologia o caráter construtivo
interpretativo do conhecimento; a legitimação do singular como instância de produção
do conhecimento científico e a compreensão da pesquisa como um processo de
comunicação. A partir desses referentes, que constituem o processo de compreensão dos
aspectos da subjetividade 80 presentes no percurso da pesquisa, fez-se a opção pela
pesquisa qualitativa, definida por González Rey, como metodologia principal de
investigação. O autor define a pesquisa qualitativa
[...] como um processo de construção altamente dinâmico, no qual as hipóteses do pesquisador estão associadas a um modelo teórico que mantém uma constante tensão com o momento empírico e cuja legitimidade está na capacidade do modelo para ampliar tanto as alternativas de inteligibilidade sobre o estudado como seu permanente aprofundamento em compreender a realidade estudada como um sistema. González Rey (2005, p. 12).
A partir dos conceitos apresentados optou-se dentro da perspectiva qualitativa de
pesquisa por utilizar a pesquisa bibliográfica como instrumento para produzir
informações inteligíveis necessárias à reflexão e aprofundamento acerca do impacto que
o diagnóstico e seus efeitos iatrogênicos tem na vida escolar de sujeitos com diagnóstico
de autismo nas escolas.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
O estudo preliminar, essencialmente de caráter teórico, feito por meio da revisão de
bibliografia permite a apresentação de hipóteses acerca do fracasso escolar dos
estudantes com o diagnóstico de autismo a partir do estudo do histórico da
medicalização da educação e suas consequências iatrogênicas nos processos de ensino e
de aprendizagem dos estudantes com autismo. As consequências iatrogênicas dizem
respeito aos efeitos sociais causados pela coisificação dos sujeitos realizada pelo
diagnóstico, o instrumento que coloca o estudante à sombra de seus critérios de
80 Subjetividade definida por González Rei como “um sistema de sentidos subjetivos que aparecem organizados em múltiplas configurações particulares” (GONZÁLEZ REY, 2002)
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classificação. Os pontos apresentados indicam reflexões necessárias às práticas
educativas:
• A educação, no movimento da medicalização de seus processos e concepções,
tem classificado os estudantes e tem imposto práticas pedagógicas
normalizadoras em seu cotidiano na tentativa de padronização de
comportamentos e processos de aprendizagem, singulares nos processos
humanos.
• Os estudantes com o diagnóstico de autismo estão eternizando-se em
atendimentos, isolados do convívio com o outro, nas classes especiais. Fato que
promove seu fracasso escolar. Fora do contexto cultural de relações e
coisificados pelo diagnóstico não lhes são apresentadas mediações que
possibilitem a aprendizagem.
• O efeito iatrogênico causado pelo diagnóstico mantém os estudantes com
autismo à sombra da classificação. A partir do caráter biológico, são mantidos
como organismos que necessitam sobreviver. Sobrevivência que traz uma
autonomia figurativa, pois, em seu processo, os estudantes estão sendo treinados
para funcionarem sozinhos nos ambientes em que vivem não como participantes
desse ambiente, apenas como peças existentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fracasso escolar vivenciado por estudantes com autismo revela que o olhar docente,
mesmo diante de discussões frequentes sobre a inclusão, ainda direciona-se para a
dificuldade; o que falta; o que não se consegue fazer ou responder. Percebe-se que tal
olhar é influenciado pelos efeitos da medicalização social.
A medicalização trouxe à educação o diagnóstico que se tornou o conjunto de
características que chega antes do indivíduo. O estudante está à sombra do seu
diagnóstico, que o apresenta nos contextos escolares.
É preciso compreender a importância do olhar pedagógico direcionado ao sujeito e suas
singularidades, independente do rótulo social que o diagnóstico lhe impõe. A
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compreensão reflete a concepção docente acerca do desenvolvimento humano à luz da
teoria histórico-cultural onde a interação e a mediação são fundamentais e constituintes
do processo de aprendizagem e desenvolvimento dos sujeitos. Possibilita práticas
pedagógicas responsáveis e, realmente, promotoras de aprendizagens nos contextos
escolares.
Sujeitos com diagnóstico de autismo estão confinados em classes especiais e em
horários de atendimento diferenciados que os retiram, diariamente, do convívio com os
outros estudantes. Confinados, permanecem alheios ao curso do dia-a-dia da escola e à
margem da convivência com seus pares, fundamental para o seu desenvolvimento e para
o desenvolvimento do outro. É um sujeito visto com improdutivo, invisível, aquele que
não aprende. A escola como instituição responsável pela aprendizagem exclui o
estudante com autismo do curso da produção cultural. Toma para si a tutela do seu
processo de aprendizagem e determina às famílias qual o espaço seus filhos tem direito
de viver dentro e fora da escola.
O processo de atender o diagnóstico no lugar do estudante fortalece a visão social que
aceitou os requisitos da medicalização e dá continuidade ao olhar direcionado para a
falta, perpetuado na sociedade. Configurando de modo concreto o efeito iatrogênico do
papel do diagnóstico na vida dos estudantes. Ignora a diferença humana, justificada pelo
diagnóstico, instrumento que padroniza os seres humanos que se diferenciam do padrão
socialmente predominante.
A discussão é importante para a educação por destacar e aprofundar os conhecimentos
acerca dos efeitos do diagnóstico nos contextos escolares e a importância de trazer a
singularidade dos sujeitos para o centro das intervenções pedagógicas direcionadas a
ele.
A análise das informações contribui para a identificação de um fato discutido
teoricamente há algum tempo, mas que na sala de aula está longe de ser prioritário ou
está sendo, lentamente, percebido na história de seu desenvolvimento: o estudante com
autismo é, também, um sujeito social e não simplesmente a materialização de uma
síndrome.
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Historicamente mortos, segregados e/ou marginalizados esses sujeitos continuam no
mundo das sombras dentro da sociedade. Ao mesmo tempo em que cumpre o papel de
mascarar a atenção social a esses sujeitos a escola vem reafirmando o papel de
instituição que reproduz questões sociais, nesse caso, a exclusão.
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Parte II |Pág. 1217 Lima-Rodrigues, L. & Rodrigues, D. (orgs.). Atas do III Congresso Internacional “Educação Inclusiva e Equidade”. Almada, Portugal, de 31 de outubro a 2 de novembro de 2013, Pró -Inclusão: Associação Nacional de Docentes de Educação Especial.
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