OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO ...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO DECORRÊNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO AUTORAL FERNANDA MACHADO AMARANTE Salvador 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

MESTRADO

OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO DECORRÊNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO

AUTORAL

FERNANDA MACHADO AMARANTE

Salvador 2012

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FERNANDA MACHADO AMARANTE

OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO DECORRÊNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO

AUTORAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação / Mestrado da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito em Relações Sociais e Novos Direitos. Orientador: Prof. Dr. Rodolfo Pamplona Filho.

Salvador

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2012

AMARANTE, Fernanda Machado

A485 d Os direitos de acesso à cultura e à informação como decorrência da função social do direito autoral. / Fernanda Machado Amarante. – 2012.

232 f. enc. Orientador: Prof. Dr. Rodolfo Pamplona Filho Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Direito. Programa de Pós-Graduação em Direito.

Referências: f. 222-232

1. Direito autoral. 2. Função social. 3. Direitos de acesso à cultura e a informação. I. Universidade Federal da Bahia. II. Pamplona Filho, Rodolfo. III. Título CDU 347.724(043) 347.65

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TERMO DE APROVAÇÃO

FERNANDA MACHADO AMARANTE

OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO DECORRÊNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO

AUTORAL

Dissertação aprovada como requisito para obtenção do grau de Mestre em Direito em

Relações Sociais e Novos Direitos, Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia,

pela seguinte banca avaliadora:

Rodolfo Pamplona Filho ______________________________________________________ Doutor pela Universidad Castilla La Macha (UCLM), Doutor e Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)

Marília Muricy _____________________________________________________________ Doutora em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e Mestre em Ciências Humanas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Carlos Alberto Rohrmann ____________________________________________________ Doutor em Direito pela Universidade da Califórnia, Bekerley. Mestre pela Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA) e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Salvador, ___/___/2012

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Para Felipe e Letícia, com amor.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus filhos amados, Felipe e Letícia, pelo simples fato de existirem!

À Dóris, minha mãe, fortaleza sempre presente em minha vida. Seus atos de afeto e

seu apoio são fundamentais.

Ao Fernandão, meu pai, que tanto tem me auxiliado. É muito bom ser até hoje a

“coisinha tão bonitinha do pai”.

Aos meus amados, Rick e Dé, meus irmãos, melhores amigos e companheiros de uma

vida inteira.

Ao Sérgio, que muito me incentivou para que pudesse ingressar no Mestrado.

Ao meu estimado orientador Rodolfo Pamplona Filho, cujo trabalho não se limitou a

consertar, orientar e cobrar o cumprimento de prazos. Ele acreditou, demonstrando confiança

em meu trabalho. Espero que o último capítulo lhe tenha conquistado, Mestre!

À Professora Marília Muricy, pessoa que tanto admiro. Suas aulas me deixavam

encantada. É um privilégio tê-la como avaliadora em minha banca.

À Professora Roxana Cardoso Brasileiro Borges, com quem cursei disciplinas por dois

semestres consecutivos e que foi também um exemplo.

Ao Matheus Barreto, meu padrinho em Salvador, que abriu portas na minha vida

profissional e incentivou meu ingresso no mestrado.

Ao Naldão Vilhena, tio querido, interessado e sempre disponível, pelo auxílio com as

traduções dos trabalhos.

À Rê e Dany Vilhena, pelos papos duradouros, palavras de apoio, e pelo auxílio com

os livros comprados no exterior.

À Martinha, a quem conheço apenas por telefone. Agradeço por sempre estar disposta

a ajudar, com a marcação de horários de atendimento com o Professor Rodolfo.

À Thereza Junqueira e Adriana Wyzukowski, duas amigas que conquistei ao longo do

mestrado. Vocês foram meu porto-seguro. Obrigada, lindinhas!

Ao Vicente Passos, que me auxiliou com sua escuta, empréstimo de livros e artigos,

além do compartilhamento de músicas que muito me inspiraram.

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A todos meus familiares e amigos, por fazerem parte de minha vida, e acreditarem em

mim.

E como não poderia deixar de ser, faço um agradecimento especial a todos os músicos,

compositores, escritores, pintores, escultores, artesãos, fotógrafos, que tornam a minha vida

mais agradável, compartilhando suas ideias e ideais.

Enfim, um sonho realizado!

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O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem1.

Manoel de Barros

1 BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. 16. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 25

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo demonstrar que o Direito Autoral deve cumprir a sua função social de forma a promover o acesso à cultura e à informação, e, concomitantemente, incentivar a proteção às obras e aos autores e titulares dos direitos conexos. Tradicionalmente, o Direito Autoral é ramo vislumbrado como instrumento de proteção dos interesses dos autores/criadores de obras literárias, artísticas e científicas, de modo a fomentar a produção intelectual. A própria Lei de Direitos Autorais – LDA/98 – não traz regulamentação explícita sobre a função social, sendo dado ao Direito Autoral um enfoque nitidamente privatista, prevalecendo os interesses individuais do autor (direitos de primeira dimensão) e dos titulares de direitos conexos, em detrimento dos da coletividade. Face à nova leitura do Direito Privado, este ramo jurídico deve ser vislumbrado não apenas como instrumento de proteção do criador das obras intelectuais. Dentre suas funções, aponta-se neste trabalho a promoção dos direitos fundamentais de acesso à cultura e à informação, e a consequente democratização do conhecimento. Os direitos fundamentais de acesso à cultura e à informação são instrumentos de transformação da realidade social. A sua efetivação contribui para a consecução do ideário democrático, com o desenvolvimento humano nos seus mais variados enfoques. Desta forma, o Direito Autoral promoveria não só a criação e circulação de bens intelectuais, mas daria maior amplitude democrática de ingresso às obras por ele abarcadas. A despeito de não prevista expressamente na LDA/98 a função social prevista constitucionalmente como elemento da propriedade privada, e que também repercute nos demais institutos do Direito Privado, tais como o contrato, posse e família, deve ser aplicada ao Direito Autoral, fazendo com que este assuma um caráter promocional.

Palavras-chave: Direito Autoral. Função social. Direitos de acesso à cultura e à informação.

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ABSTRACT

This work aims to demonstrate that Copyright Law should fulfill its social function in order to promote access to culture and information and, at the same time, encourage the protection of works and authors and holders of related rights. Traditionally, the Copyright Law is something envisioned as a tool to protect the interests of authors/creators of literary, artistic and scientific works, to foster intellectual production. The Copyright Act istself, LDA/98, brings no explicit rules about social function, being given to Copyright an approach clearly private, whichever the individual interests of the author (Rights of first dimension) and holders of related rights in detriment of the community. Given the new reading of Private Law, this area of law should be envisaged not only as an instrument of protection of intellectual works of the creator. Among its functions, this work points to the promotion of fundamental rights of access to culture and information, and the consequent democratization of knowledge. The fundamental rights of access to culture and information are tools of transformation of social reality. Its effectiveness contributes to achieving the ideals of democracy, with human development in its various approaches. Thus, the Copyright would promote not only creation and circulation of intellectual property, but would give greater breadth democratic ticket to the works he embraced. Despite not expressly provided for in LDA/98, the social role as constitutionally provided element of private property, and that also resonates in other institutes of Private Law, such as contract, ownership and family should be applied to Copyright, doing that this assumes a promotional character.

KEYWORDS: Copyright Law, Social Function, Rights of access to culture and information

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

© Direito de cópia (em inglês, Copyright)

CC/1916 Código Civil (Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916)

CC/2002 Código Civil (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002)

CD Disco compacto (em inglês, compact disc)

CDC Código de Proteção e Defesa do Consumidor

CF/88 Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988

DVD Disco digital de vídeo (em inglês, digital video disc)

ECAD Escritório Central de Arrecadação e Distribuição

IBADIN Instituto Baiano de Propriedade Intelectual

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

LDA/73 Lei de Direitos Autorais derrogada (Lei n. 5988, de 14 de dezembro de 1973)

LDA/98 Lei de Direitos Autorais em vigor (Lei n. 9610, de 19 de fevereiro de 1998)

MinC Ministério da Cultura do Brasil

ONU Organização das Nações Unidas (em inglês, United Nations Organization)

Séc. Século

SENEPI Seminário Nordestino de Propriedade Intelectual

ss. Seguintes

TRIPS Acordo Relativo aos Aspectos do Direito da Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (em inglês, Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights)

UNESCO Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (em inglês, United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization)

v. Vide, verifique

v.g. Por exemplo (em latim, verbi gratia)

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 16

2 COMPREENSÃO DOGMÁTICA DO DIREITO AUTORAL.................................... 22 2.1 CONCEITO E DENOMINAÇÃO................................................................................. 22 2.2 BREVE ANÁLISE HISTÓRICA .................................................................................. 25 2.2.1 No âmbito internacional........................................................................................... 25 2.2.1.1 A produção no mundo antigo e a ausência de normatização específica quanto ao tema............................................................................................................................................ 26 2.2.1.2 Idade Média ............................................................................................................ 27 2.2.1.3 Os tipos móveis de Gutenberg ................................................................................. 28 2.2.1.4 O Licensing Act, de 1662 e os privilégios dos impressores....................................... 29 2.2.1.5 O Copyright act – Estatuto da Rainha Ana, de 1710 ................................................. 29 2.2.1.6 A Revolução Francesa: marco definitivo para a ruptura dos privilégios e para o surgimento dos direitos morais do autor ............................................................................... 30 2.2.1.7 O movimento pela proteção em âmbito internacional............................................... 31 2.2.2 No Brasil ................................................................................................................... 31 2.2.2.1 Brasil Colônia ......................................................................................................... 32 2.2.2.2 Brasil Império ......................................................................................................... 32 2.2.2.3 A Constituição Republicana de 1891 e a Lei Medeiros Albuquerque ....................... 33 2.2.2.4 O Código Civil de 1916: tratamento do Direito Autoral como propriedade .............. 34 2.2.2.5 A Lei 5.988, de 14 de dezembro de 1973 – LDA/73 ................................................ 35 2.2.2.6 A Constituição Federal de 1988 ............................................................................... 35 2.2.2.7 A Lei 9610, de 14 de fevereiro de 1998 ................................................................... 36 2.2.2.8 O Projeto de Lei de alteração da LDA/98, de iniciativa do Ministério da Cultura do Brasil - MinC....................................................................................................................... 36 2.3 OS SISTEMAS DO DIREITO AUTORAL................................................................... 37 2.4 NATUREZA JURÍDICA .............................................................................................. 38 2.4.1 Teoria do Privilégio .................................................................................................. 39 2.4.2 Teoria patrimonialista ou Teoria da propriedade ................................................... 40 2.4.3 Teoria personalista ou Teoria da personalidade...................................................... 41 2.4.4 Teoria dos direitos sobre bens intelectuais............................................................... 41 2.4.5 Teoria do direito da coletividade .............................................................................. 42 2.4.6 Teoria dualista........................................................................................................... 43 2.4.7 Teoria monista ou unitária....................................................................................... 44 2.5 SUJEITOS .................................................................................................................... 44 2.5.1 Noções gerais sobre a compreensão do sujeito de direito........................................ 45 2.5.2 Os sujeitos do Direito Autoral.................................................................................. 47 2.5.2.1 O autor .................................................................................................................... 47 2.5.2.2 Os titulares derivados .............................................................................................. 48 2.5.2.3 Os titulares de direitos conexos................................................................................ 49 2.6 OBJETO ....................................................................................................................... 51 2.7 DIREITOS PATRIMONIAIS........................................................................................ 56 2.7.1 Considerações iniciais .............................................................................................. 56 2.7.2 Características.......................................................................................................... 57 2.7.2.1 Exclusividade .......................................................................................................... 58 2.7.2.2 Não se sujeitam ao numerus clausus ........................................................................ 58

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2.7.2.3 Temporalidade......................................................................................................... 59 2.7.2.4 Disponibilidade ....................................................................................................... 59 2.7.2.5 Renunciabilidade..................................................................................................... 60 2.7.2.6 Possibilidade de expropriação.................................................................................. 60 2.7.3 Espécies tradicionalmente trazidas pela doutrina................................................... 61 2.8 DIREITOS MORAIS DO AUTOR ............................................................................... 62 2.8.1 Conceito e natureza jurídica .................................................................................... 64 2.8.2 Características.......................................................................................................... 65 2.8.2.1 Pessoalidade............................................................................................................ 65 2.8.2.2 Inalienabilidade ....................................................................................................... 66 2.8.2.3 Irrenunciabilidade.................................................................................................... 67 2.8.2.4 Perpetuidade............................................................................................................ 67 2.8.2.5 Imprescritibilidade.................................................................................................... 68 2.8.2.6 Impenhorabilidade................................................................................................... 68 2.8.2.7 Lista exemplificativa ............................................................................................... 69 2.8.2.8 Breves considerações sobre a impossibilidade de afetação dos direitos morais......... 70 2.8.3 Espécies..................................................................................................................... 71 2.8.3.1 Paternidade da obra e reivindicação ......................................................................... 71 2.8.3.2 Direito de inédito..................................................................................................... 72 2.8.3.3 Conservação da integridade da obra......................................................................... 72 2.8.3.4 Direito de modificar a obra...................................................................................... 72 2.8.3.5 Direito de retirada ou de arrependimento ................................................................. 73 2.8.3.6 Direito de acesso a exemplar único .......................................................................... 73 2.9 LIMITAÇÕES AO DIREITO DE AUTOR ................................................................... 74 2.9.1 As limitações aos direitos patrimoniais: previsão em listagem taxativa................. 74 2.9.2 O domínio público .................................................................................................... 76 2.9.3 O fair use norte americano....................................................................................... 78

3 O DIREITO DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO .................................. 81 3.1 DIREITO DE ACESSO À CULTURA.......................................................................... 81 3.1.1 Cultura: a multiplicidade de significados................................................................ 81 3.1.2 O Direito da Cultura ................................................................................................ 84 3.1.3 Breve panorama acerca da cultura no âmbito do Direito Internacional ............... 85 3.1.4 A cultura como direito fundamental “multidimensional” ...................................... 90 3.1.4.1 As dimensões dos direitos fundamentais.................................................................. 90 3.1.4.2 A cultura e seu caráter “multidimensional” .............................................................. 94 3.1.5 Breve exame da “ordenação constitucional da cultura” no Brasil ......................... 96 3.1.6 O direito de acesso à cultura .................................................................................. 100 3.2 DIREITO DE ACESSO À INFORMAÇÃO................................................................ 104 3.2.1 Conceito .................................................................................................................. 104 3.2.2. Breve panorama acerca da informação no âmbito do Direito Internacional...... 105 3.2.3 A informação como direito fundamental............................................................... 107 3.2.3 Breve análise da “ordenação constitucional da informação” no Brasil ............... 109 3.2.4 O direito de acesso à informação ........................................................................... 112 3.3 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO: UM ENFOQUE PROMOCIONAL .................................................................................... 113 3.3.1 A promoção da igualdade ...................................................................................... 115 3.3.2 Promoção da liberdade .......................................................................................... 116 3.4 OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO E SUA OPONIBILIDADE AOS PARTICULARES ...................................................................... 117

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3.4.1 Princípio da supremacia da Constituição.............................................................. 118 3.4.2 Princípio da dignidade da pessoa humana ............................................................ 119 3.4.3 Princípio da solidariedade...................................................................................... 120 3.4.4 A aplicação imediata dos direitos fundamentais – inclusive perante os particulares.......................................................................................................................................... 121 3.4.5 Princípio da unidade material do ordenamento jurídico...................................... 123

4 A FUNCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS ............................................................... 124 4.1 BREVES NOTAS SOBRE O POSITIVISMO JURÍDICO E A ANÁLISE ESTRUTURAL DO DIREITO .......................................................................................... 125 4.2 A DOGMÁTICA JURÍDICA E A SOCIOLOGIA DO DIREITO: RELAÇÃO DE COMPLEMENTARIDADE............................................................................................... 128 4.3 “DA ESTRUTURA À FUNÇÃO” .............................................................................. 130 4.4 FUNÇÕES DO DIREITO ........................................................................................... 133 4.4.1 O direito como instrumento de manutenção do status-quo................................... 134 4.4.2 O direito como instrumento de transformação social ........................................... 135 4.4.3 As funções repressiva e protetiva do direito.......................................................... 136 4.4.4 A função promocional do direito: a promoção de condutas socialmente desejadas.......................................................................................................................................... 137 4.5 FUNÇÃO SOCIAL..................................................................................................... 139 4.5.1 A solidariedade social de León Duguit e seus reflexos nos direitos subjetivos, em especial do direito de propriedade................................................................................... 139 4.5.2 Função social: Fundamentos.................................................................................. 143 4.5.3 Função social dos institutos do Direito Privado .................................................... 144 4.6 FUNÇÃO SOCIAL DAS PROPRIEDADES............................................................... 149 4.6.1 Propriedade ou propriedades? .............................................................................. 149 4.6.2 As propriedades têm ou são função social? ........................................................... 151 4.6.3 A previsão constitucional da função social das propriedades............................... 154

5 COMPREENDENDO A FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO AUTORAL................. 157 5.1 FUNÇÃO DO DIREITO AUTORAL SOB O PRISMA INDIVIDUAL ...................... 157 5.1.1 A PROTEÇÃO DO AUTOR.................................................................................... 157 5.1.2 A proteção dos detentores do poderio econômico ................................................. 158 5.2 FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO AUTORAL........................................................... 161 5.2.1 A solidariedade social e seus reflexos no Direito Autoral ..................................... 161 5.2.2 A interpenetração dos Direitos Privado e Público e seus reflexos no Direito Autoral: a funcionalização social..................................................................................... 163 5.2.3 Função social de promoção da produção intelectual e do desenvolvimento cultural.......................................................................................................................................... 164 5.2.4 Função social de promoção do desenvolvimento econômico................................. 166 5.2.5 Função social de inclusão digital............................................................................ 168 5.2.6 Função social de promoção dos direitos de acesso à cultura e à informação ....... 171 5.3 FUNÇÃO SOCIAL DO AUTOR ................................................................................ 172 5.4 FUNÇÃO SOCIAL DA OBRA................................................................................... 175

6 A PROMOÇÃO DO ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO DECORRÊNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO DE AUTOR ........................ 177 6.1 CONFLITO E COMPOSIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: A CONCILIAÇÃO DOS DIREITOS DO AUTOR, DOS TITULARES DERIVADOS E DOS TITULARES DE DIREITOS CONEXOS COM OS DIREITOS DA COLETIVIDADE DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO ...................................................................................... 177

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6.1.1 O DISCURSO DE QUE COMPETE APENAS AO ESTADO A PROMOÇÃO DO ACESSO À CULTURA..................................................................................................... 178 6.1.2 O conflito entre os direitos fundamentais do autor e de acesso à cultura e à informação: “derrubando” a visão patrimonialista do Direito Autoral ........................ 179 6.1.2.1 A promoção do acesso aos bens culturais............................................................... 180 6.1.2.2 Novamente o papel do autor .................................................................................. 181 6.1.2.3 A eficácia irradiante dos direitos fundamentais e o Direito Autoral........................ 182 6.1.2.4 A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais ........................................ 183 6.1.2.5 A hierarquia à partida entre os direitos de autor e de acesso à cultura e à informação.......................................................................................................................................... 184 6.1.2.6 A reconstrução do discurso.................................................................................... 185 6.2 MEDIDAS QUE JÁ VEM SENDO ADOTADAS NA PRÁTICA E QUE RESULTAM NA PROMOÇÃO DO ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO: OS SOFTWARES LIVRES E A LICENÇA CREATIVE COMMONS.............................................................. 186 6.3 LIMITAÇÕES AO DIREITO DE AUTOR E A PROMOÇÃO DO ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO ...................................................................................... 190 6.3.1.1 O domínio público e a promoção do acesso à cultura e à informação ..................... 191 6.3.1.2 O prazo de duração versus acesso à cultura e à informação .................................... 192 6.3.2 A insuficiência do rol taxativo das limitações dos direitos de autor para a promoção do acesso à cultura e à informação................................................................. 193 6.3.2.1 A título de exemplo: uma análise da situação atual da cópia reprográfica privada ... 195 6.3.2.2 A cópia privada, a reprografia e o projeto de lei do Ministério da Cultura.............. 197 6.4 OS DIREITOS MORAIS DO AUTOR E A DEMOCRATIZAÇÃO DO SABER........ 199 6.4.1 Direito de inédito .................................................................................................... 199 6.4.2 Direito de retirada ou arrependimento ................................................................. 200 6.4.3 Direitos de inédito e de retirada versus função social do Direito de Autor de promoção do acesso à cultura e à informação................................................................. 201 6.5 A LICENÇA COMPULSÓRIA................................................................................... 203 6.5.1 O descabimento da desapropriação em matéria autoral ....................................... 204 6.5.2 Licença compulsória............................................................................................... 206 6.5.3 Licença compulsória de tradução .......................................................................... 208 6.5.4 Ausência de regulamentação da matéria no Brasil: deficiência legislativa.......... 209 6.5.5 O projeto do Ministério da Cultura....................................................................... 210 6.6 O MODELO DO FAIR USE NORTE AMERICANO E DE ADOÇÃO DE CLÁUSULAS ABERTAS PARA REGULAMENTAR O USO PRIVADO .............................................. 212 6.6.1 O modelo do fair use norte americano................................................................... 213 6.6.2 A adoção de cláusulas abertas em matéria autoral ............................................... 215 6.6.3 O projeto de lei de alteração da LDA – e a previsão da função social dos direitos do autor ............................................................................................................................ 216

7 CONCLUSÕES............................................................................................................ 219

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 224

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1 INTRODUÇÃO

O Direito Autoral, abarcado pela Propriedade Intelectual, é instrumento de proteção

dos interesses dos autores/criadores de obras literárias, artísticas e científicas, objetivando

fomentar a produção intelectual. Porém, este ramo jurídico deve ser vislumbrado não apenas

como instrumento de proteção do criador das obras intelectuais.

Face à nova leitura do Direito Privado, que acaba por reduzir a dicotomia público-

privado, não se justifica mais o enfoque individualista de outrora. Certo é que o Direito

Autoral tem o papel relevante de incrementar as criações intelectuais, protegendo-as bem

como a seus criadores e titulares dos direitos patrimoniais e dos direitos conexos. Todavia, tal

não é a sua função exclusiva.

Dentre outros escopos, é imperioso anotar a necessidade de o Direito Autoral se tornar

instrumento de acesso à cultura e à informação, proporcionando-se, assim, a democratização

do conhecimento. O Direito Autoral promoveria não só a criação e circulação de bens

intelectuais, mas daria maior amplitude democrática de ingresso às obras por ele abarcadas.

Ocorre que o Direito Autoral não conta, no Brasil, com uma regulamentação

infraconstitucional explícita sobre a sua função social, a ele sendo dado um enfoque privatista,

contrário ao posicionamento atual de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais da

coletividade. Não foram considerados pela Lei 9610, de 19 de fevereiro de 1998 – LDA/98 –

muitos dos fenômenos sociais trazidos pela pós-modernidade. Dentre os pontos ignorados, a

função social, que, apesar de expressa no art. 5º. XXIII da Constituição de 1988, não restou

relacionada pelo referido diploma legal aos direitos autorais.

Em verdade, o conteúdo da LDA/98 é privatista, nela prevalecendo os interesses

individuais do autor (direitos de primeira dimensão) e dos titulares de direitos conexos, em

detrimento dos da coletividade. Daí que não houve maiores preocupações com o escopo da

produção autoral perante a sociedade – podendo-se citar, dentre tantas outras, as restrições a

serem impostas ao direito autoral em prol do acesso à cultura e da informação, também

inseridos como direitos fundamentais na vigente Carta Magna.

Os direitos fundamentais de acesso à cultura e à informação são instrumentos de

transformação da realidade social. A efetivação dos referidos direitos contribui para a

consecução do ideário democrático, com o desenvolvimento humano nos seus mais variados

enfoques.

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O acesso ao saber (cultura e informação) é, como destacado acima, direito assegurado

a todos. Trata-se de meio pelo qual é possível evidenciar o valor do homem. Através do

acesso à cultura e à informação, o indivíduo resta capacitado para as funções sociais a serem

por ele exercitadas. Assegura-se o desenvolvimento de suas aptidões e, via de consequência,

proporciona-se ao indivíduo os meios para prover as suas necessidades.

Uma vez que a LDA/98 foi sancionada após quase 10 (dez) anos de vigência da Carta

Magna, descuidou o legislador ao deixar de prever a função social das obras e do Direito

Autoral. Não observada ficou a teoria funcionalista do direito e dos institutos do Direito

Privado, ramo a que na atualidade se procede a uma releitura à luz da Constituição.

A despeito de não prevista expressamente na LDA/98 a função social prevista

constitucionalmente como elemento da propriedade privada, e que também repercute nos

demais institutos do Direito Privado, tais como o contrato, posse e família, deve ser aplicada

ao Direito Autoral, fazendo com que este assuma uma finalidade promocional.

Certo é que os arts. 46, 47 e 48 da LDA/98 enumeram, em listagem taxativa, as

limitações aos direitos do autor, buscando compatibilizar os interesses deste com os da

coletividade. Tais situações, a despeito de, de certa forma, proporcionarem o acesso ao

conteúdo das obras, são insuficientes à democratização do saber, justamente por se tratarem

de circunstâncias restritas, que não abrangem as diversas modalidades tecnológicas

disponíveis na atualidade.

Não bastasse a insuficiência das limitações aos direitos patrimoniais do autor para fins

de efetivar a função social do Direito Autoral, outros pontos devem ser destacados. O

primeiro deles diz respeito à proteção do autor não só no que é pertinente aos direitos

patrimoniais, mas também, aos direitos morais. Estes últimos são direitos inerentes à

personalidade, classificados pela doutrina como indisponíveis, irrenunciáveis e “absolutos” –

oponíveis erga omnes – além de consagradores da dignidade da pessoa humana. Questiona-se

como incidir a função social e prevalecer o interesse da coletividade – no caso do estudo

proposto, o acesso à cultura e à informação – perante os direitos morais do autor?

Ainda como óbice ao acesso à cultura e à informação, tem-se a inércia do legislador

quanto à previsão de limitações como as licenças compulsórias, permitidas pelas normas

internacionais, mas não internalizadas para o ordenamento pátrio.

E mais, os titulares derivados das obras, aqueles que, através de contrato de cessão ou

concessão, adquirem os direitos patrimoniais incidentes sobre a criação de outrem, podendo

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18

explorá-los economicamente (detentores dos direitos de exploração de determinada obra), são,

via de regra, os que acabam por prejudicar os interesses sociais e os direitos humanos.

Diante disso, é que se coloca o título do presente trabalho: Os direitos de acesso à

cultura e à informação como decorrência da função social do Direito Autoral.

Para tanto, partiu-se do seguinte problema: Como a função social pode preservar os

direitos autorais do criador da obra literária, artística e científica, fomentando a produção

intelectual, e, concomitantemente, ser um instrumento de promoção dos direitos fundamentais

de acesso à cultura e à informação?

Neste sentido, o tema proposto adequa-se à área de concentração “Relações sociais e

novos direitos” e à linha de pesquisa “Direitos das relações sociais na contemporaneidade”

justamente por buscar compatibilizar, através da função social, direitos fundamentais

assegurados no ordenamento jurídico pátrio: o Direito Autoral e os direitos de acesso à cultura

e à informação, observando-se as modificações estruturais da sociedade contemporânea e suas

necessidades atuais.

O trabalho tem por objetivo geral demonstrar que o Direito Autoral deve cumprir a sua

função social de forma a promover o acesso à cultura e à informação, e, concomitantemente,

promover a proteção às obras e aos autores e titulares dos direitos conexos.

São objetivos específicos:

a) examinar o Direito Autoral como ramo do Direito Privado inserido no sistema

jurídico atual, tomando como ponto de partida sua previsão constitucional, passando pelas

disposições legais, e apreciar seu conceito, histórico, natureza jurídica, os titulares dos direitos

subjetivos assegurados, o objeto e a dualidade do âmbito de proteção, que perpassa pelos

campos patrimonial e moral;

b) analisar os direitos fundamentais de acesso à cultura e à informação, consagrados

em âmbito internacional e no ordenamento jurídico pátrio, relacionando-os com a

democratização do saber e da tecnologia, com a promoção do bem-estar social, da liberdade e

da igualdade, e com o desenvolvimento econômico e cultural nacional;

c) demonstrar que a função social não deve ser vista apenas como um limite extrínseco

ao Direito Autoral, mas como elemento inerente aos próprios direitos do autor e dos titulares

(derivados e dos direitos conexos);

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19

d) evidenciar que as limitações aos direitos de autor são insuficientes à promoção do

acesso à cultura e informação, propondo não só a alteração e ampliação do conteúdo das

normas infraconstitucionais pertinentes ao tema, mas também a necessidade de mudança em

sua interpretação, afastando-se seu caráter exclusivamente privatista, com a releitura à luz das

normas constitucionais;

e) propor a adoção de cláusulas abertas na legislação autoralista, aptas a melhor

conformar as normas postas à realidade tecnológica atual, de modo a afastar de vez o discurso

que sustenta a inaplicabilidade da função social ao Direito Autoral;

f) examinar a aparente antinomia entre os denominados direitos do autor e o acesso à

cultura e à informação, e, apresentar as possíveis soluções para otimização de cada um deles.

As informações foram coletadas através da pesquisa bibliográfica e documental, com

consulta às principais fontes jurídicas, quais sejam, a legislação (vigente e revogada, nacional

e estrangeira, declarações internacionais no âmbito dos direitos humanos e direitos

fundamentais, mais precisamente, no que tange aos direitos do autor e acesso ao

conhecimento); doutrina nacional e estrangeira (sobretudo direito norte-americano, cuja

organização sistemática e jurídica dos direitos autorais desenvolveu-se a partir dos princípios

legais do Copyright Act, dando ênfase à expansão da cultura).

Recorreu-se, para alcançar este desiderato, a acervos públicos e particulares,

publicações periódicas, artigos científicos, dicionários, bem como textos relativos ao assunto

em sites da Internet.

Desenvolveu-se a pesquisa a partir do método indutivo, de modo a realizar a

dogmática pontual de direitos fundamentais, harmonizando os interesses legítimos do autor e

da coletividade – Direito Autoral e a democratização do saber – através de função social do

Direito Autoral.

Ainda a fim de alcançar este desiderato, foram adotados como marcos teóricos

metodológicos, primeiro, as lições de René Descartes, para quem se deve partir do

pressuposto de que tudo deve ser questionado, que não existem verdades que sejam

autossuficientes, e que o saber científico está em constante construção.

Para a desconstrução e reconstrução do discurso jurídico autoralista, utilizou-se dos

ensinamentos de Derrida e Balkin, visando a demonstrar que não há como persistir o

posicionamento no sentido de que o Direito Autoral traz as prerrogativas morais e

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20

patrimoniais apenas para o autor, sem que haja vinculação à função social destes direitos e

promoção do acesso à cultura e à informação.

A respeito da apreciação funcional do Direito, tem-se como marco a obra “Da

estrutura à função: Novos estudos de teoria do Direito”, de Norberto Bobbio, na qual resta

evidenciado o caráter promocional do Direito para as condutas desejadas pelo Estado.

Também León Duguir é referencial teórico para o presente estudo, na medida em que

nas obras “Fundamentos do Direito” e “Las transformaciones generales del derecho” propõe a

solidariedade social, com reflexos direitos nos direitos subjetivos, sendo autor que muito

contribuiu para a noção de função social hoje imperante.

Como não poderia deixar de ser, no campo autoral, apontam-se como principais

referenciais as seguintes obras: “Criador da obra intelectual”, de Antônio Chaves; “Direito de

autor”, de Carlos Alberto Bittar; “Derecho de autor e derechos conexos”, de Delia Lipszyc;

“Direito autoral”, de José de Oliveira Ascensão; “Direitos intelectuais dos autores, produtores

de fonogramas e outros”, de H. Jessen.

Já quanto aos direitos fundamentais de acesso à cultura e à informação, o principal

referencial foi a obra “Ordenação Constitucional da Cultura”, de José de Oliveira Ascensão.

Segundo a estrutura sistemática proposta, iniciar-se-á o trabalho apreciando a

dogmática do Direito Autoral, a fim de que se possa compreender o tratamento legal e

doutrinário relativo ao tema.

O capítulo seguinte tem por objeto o estudo dos direitos fundamentais de acesso à

cultura e à informação, seu tratamento no ordenamento, e a promoção à igualdade e liberdade

que decorrem do acesso ao conhecimento.

No quarto capítulo é pesquisada a funcionalização dos direitos, a passagem da análise

estrutural do ordenamento, para a concomitante apreciação funcional. Ainda nesta

oportunidade, é trazida a lume a teoria da solidariedade social, de León Duguit, a função

social e a sua repercussão nos institutos de Direito Privado.

O quinto capítulo tem por objeto o estudo da função do Direito Autoral tanto pelo

prisma individual, como pelo enfoque social. Ali serão tratadas, também, as funções

desempenhadas pelo autor e pela obra.

Finalmente, no sexto e derradeiro capítulo, é pesquisada a compatibilização entre os

direitos do autor e os da coletividade de acesso à cultura e à informação, apontando-se a

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21

proposta de releitura do Direito Autoral à luz da Constituição, bem como fazendo o exame de

falhas na legislação pátria sobre o tema, com propostas de alterações que se mostram

necessárias.

Ao defender a adstrição do Direito Autoral à função social como forma de

proporcionar o acesso à cultura e à informação, não se busca destituir o criador intelectual de

seus direitos sobre a obra. Ao contrário, pretende-se compatibilizar interesses aparentemente

antagônicos, porém igualmente legítimos.

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22

2 COMPREENSÃO DOGMÁTICA DO DIREITO AUTORAL

Este capítulo é destinado à compreensão dogmática do Direito Autoral. Passar-se-á

pela análise conceitual e por um breve escorço histórico, pelas correntes existentes acerca de

sua natureza jurídica, o conceito de autor e a apresentação dos titulares dos direitos conexos.

Será feita, ainda, a sistematização dos direitos subjetivos assegurados ao criador da

obra intelectual, com o exame dos direitos patrimoniais e morais previstos na ordenação

autoralista pátria.

Aqui, salvo exceções pontuais, em que se apresenta comentários e críticas, a

preocupação é trazer o discurso tradicional do Direito Autoral, dotando o leitor das premissas

para as partes subsequentes do trabalho, nas quais se busca dar uma nova concepção de autor,

direito subjetivo e obra.

2.1 CONCEITO E DENOMINAÇÃO

O homem é um ser pensante. É ele criativo por natureza. O homem inventa, aprimora.

Externaliza os seus pensamentos através das mais diversas manifestações, sejam elas

artísticas, literárias, científicas.

Pelo homem são criados bens intelectuais, que, por expressarem valores2, recebem

regulamentação jurídica pelo ramo nominado de Propriedade Intelectual.

A Propriedade Intelectual abrange a proteção das invenções – patentes, modelos de

utilidade e desenho industrial –, das marcas, das descobertas de novas espécies vegetais, do

software, e também das obras literárias, científicas e artísticas. Estas últimas são objeto do

denominado Direito Autoral.

O Direito Autoral é direito intelectual, pois regula a proteção a um bem imaterial fruto

do intelecto humano: uma criação de natureza artística, científica, literária3.

Examinando a expressão Direito Autoral, José de Oliveira Ascensão informa tratar-se

de neologismo cunhado por Tobias Barreto, que o empregou na tradução do termo alemão

Urheberrecht4.

2 Ao utilizarmos o termo “valores” queremos nos referir não apenas às questões pecuniárias, mas também à melhoria da qualidade de vida, em seus mais variados aspectos, como a otimização das condições de saúde, da comodidade, da cultura, do prazer etc. 3 MANSO, Eduardo J. Vieira. O que é direito autoral. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 23. 4 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. 2. ed., ref. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 16.

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23

Tobias Barreto empregou a denominação Direito Autoral para se referir ao ramo

jurídico que regula a proteção do criador de um bem imaterial produto da inteligência humana

e aos titulares dos direitos conexos – os artistas, intérpretes ou executantes, os produtores

fonográficos e as empresas de radiodifusão5.

Segundo Eduardo Vieira Manso, por Direito Autoral entende-se o conjunto de

prerrogativas patrimoniais e morais conferidas ao autor da obra intelectual6.

Este conceito tem o mérito de enfatizar que ao autor da obra intelectual são

assegurados direitos de ordem patrimonial e não patrimonial, tema que será tratado a seguir.

Todavia, é insuficiente para esclarecer a real abrangência do Direito Autoral, visto que exclui

de seu âmbito as prerrogativas também asseguradas aos titulares dos direitos conexos7,

relacionando-se aos direitos subjetivos do autor propriamente ditos.

Tomando como sinônimas as expressões Direito de Autor8 e Direito Autoral, Carlos

Alberto Bittar assevera tratar-se do ramo do Direito Privado que rege as relações jurídicas

provenientes da criação e da utilização econômica de obras intelectuais estéticas e abrangidas

na literatura, nas artes e nas ciências9. Também este conceito tem o demérito de desconsiderar

os titulares dos direitos conexos.

Demonstrando predileção pela expressão Direitos intelectuais, H. Jessen assim se

manifesta:

em nosso modesto entender, a designação mais apropriada seria a de Direitos Intelectuais, por ser precisa no seu objeto e por compreender em seu campo os direitos análogos que a expressão direito autoral pareceria excluir por referir-se unicamente ao autor, sujeito de um dos ramos do instituto.10 (grifos no original)

O posicionamento de Jessen tem o mérito de incluir os direitos conexos, por ele

chamados de análogos. Porém, resta equiparado o ramo ora estudado a outros que recebem

tratamento diferenciado, mesmo sendo frutos do intelecto humano, como o que regula as

marcas e patentes. Os direitos subjetivos do autor são distintos dos direitos atribuídos aos

criadores dos inventos abarcados pela denominada Propriedade Industrial. 5 BARRETO, Tobias. Que se deve entender por Direito Autoral. in Estudos de Direito. São Paulo: Bookseller, 2000. 6 MANSO, Eduardo Vieira. op. cit. p. 07. 7 A Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 – LDA – em seu art. 1º estabelece: “Art. 1º. Esta Lei regula os direitos autorais, entendendo-se sob esta denominação os direitos de autor e os que lhe são conexos”. (sem grifos no original) BRASIL. Lei 9610, de 19/02/1998. Brasília. DF. É mister destacar que no Título V – arts. 89 a 96 – da citada lei são tratados os direitos conexos a que aqui se faz referência. Eles englobam os direitos dos artistas intérpretes ou executantes, os direitos dos produtores fonográficos e os direitos das empresas de radiodifusão. 8 Este é, inclusive, o título atribuído à obra de Bittar. 9 BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 08. 10 JESSEN, H. Direitos intelectuais dos autores, produtores de fonogramas e outros titulares. Rio de Janeiro: Itaipu, 1967. p. 30.

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24

Mais apropriados são a nomenclatura e o conceito apresentados por José de Oliveira

Ascensão, para quem o Direito Autoral é o ramo jurídico inserido no âmbito da Propriedade

Intelectual, que versa sobre a proteção das mais diversas criações do intelecto humano11,

abrangendo não apenas os direitos do autor, mas os direitos conexos, que envolvem os

direitos dos intérpretes, dos produtores fonográficos e das empresas de radiodifusão.

Segundo Ascensão, o “Direito Autoral passou a ser designação de gênero”, do qual

Direito de Autor é espécie12. Ainda seguindo esta conceituação, os direitos autorais são os

direitos subjetivos do criador da obra.

A despeito de não ser uníssono o seu emprego13, no presente trabalho, será tomada a

expressão Direito Autoral14 para designar o ramo jurídico que estipula a proteção às obras

artísticas, literárias e científicas criadas pelo homem, nele estando inseridos os direitos dos

criadores das citadas obras intelectuais, e os dos denominados titulares de direitos conexos.

Assim, no desenvolvimento do tema, dever-se-á considerar que a expressão Direito

Autoral será aplicada quando se quiser abordar o ramo jurídico que regula os direitos do autor

e os dos demais titulares, e a utilização da denominação Direito de Autor dar-se-á quando se

quiser referir exclusivamente ao ramo que disciplina os direitos do criador da obra.

Finalmente, por direitos de autor ou direitos autorais serão designados os direitos

subjetivos atribuídos ao criador da obra, que se subdividem em direitos morais e direitos

patrimoniais, como será examinado ainda neste capítulo.15

11 ASCENSÃO, José de Oliveira. op. cit. p. 15-16. 12 Ibidem p. 16. 13 Destacando as expressões cunhadas para denominar o ramo do direito objeto deste estudo, Carlos Alberto Bittar afirma que: “Diferentes denominações recebeu ao longo dos tempos, em função da evolução experimentada ou em relação à posição doutrinária de seu propugnador, desde a expressão ‘propriedade literária, artística e científica’, com que ingressou no cenário jurídico, a saber: ‘propriedade imaterial’, ‘direitos intelectuais sobre obras literárias e artísticas’, ‘direitos imateriais’, ‘direitos sobre bens imateriais’, ‘direitos de criação’ e, mais recentemente, ‘Direito Autoral’, ‘direitos de autor’ e ‘Direito de Autor’. Fala-se, ainda, em autoralismo”. BITTAR, Carlos Alberto. op. cit., p. 09. 14 Sobre o tema, Hildebrando Pontes enfatiza não ser pacífico na doutrina o emprego da expressão Direito Autoral. O referido autor observa que o legislador pátrio optou por tal nomenclatura, envolvendo os direitos de autor e os que lhe são conexos. PONTES, Hildebrando. Os contratos de cessão de direitos autorais e as licenças virtuais creative commons. 2.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 13. 15 Nos itens 2.7 e 2.8, serão examinados de forma sistematizada os ditos direitos subjetivos do criador da obra intelectual.

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25

2.2 BREVE ANÁLISE HISTÓRICA

Para que se possa compreender a atual estrutura do Direito Autoral, e, visando a

embasar alguns dos posicionamentos que serão apresentados ao longo deste trabalho, optou-se

por trazer um breve relato histórico deste ramo jurídico.16

Não se procura aqui fazer uma cobertura histórica de todos os eventos que

contribuíram para a formação do Direito Autoral, tema que por si só daria ensejo a um novo

trabalho científico.

Nesta parte, serão feitas divisões em períodos históricos e países que influenciaram

diretamente no nascimento da legislação autoralista, de modo a apontar os principais marcos

que contribuíram para a formação do Direito Autoral, proporcionando-se a compreensão do

atual sistema que aí está colocado.

Deve ser salientado que diante da parca quantidade de obras e da rasa profundidade

com que o tema é tratado, a pesquisa histórica acabar por restar dificultada.

É o que também registra Ivan Nogueira Pinheiro17, para quem o desenvolvimento de

estudos relativos à análise histórica do Direito Autoral é bastante incipiente, mormente nos

países integrantes do sistema unionista, como é o caso do Brasil.

Todavia, faz-se necessária a apreciação histórica, ainda que de forma concisa, com

finalidade utilitarista, de modo a apreciar o passado visando à melhor compreender o presente

e o futuro.

2.2.1 No âmbito internacional

Nesta primeira parte, será examinado o contexto internacional de nascimento do

Direito Autoral, desde o mundo antigo, passando-se pela Idade Média, a invenção dos tipos

móveis de Gutenberg, o Estatuto da Rainha Ana.

16 É interessante notar que as obras que tratam sobre o Direito Autoral, em sua maioria, apresentam o histórico voltado principalmente (senão exclusivamente) para a evolução deste ramo no que é pertinente aos livros, trazendo parca informação acerca das demais modalidades de criação. É o que se verifica, por exemplo, em Eduardo Vieira Manso, in O que é direito autoral?; Délia Lipszyc, in Derecho de autor e derechos conexos; Oswaldo Santiago, in A aquarela do direito autoral; Antônio Chaves, in O Criador da obra intelectual; Plínio Cabral, in A nova lei de direitos autorais; Henrique Gandelman, in De Gutenberg à internet: direitos autorais das origens à era digital; Rodrigo Moraes, in Os direitos morais do autor: repersonalizando o direito autoral; Elisângela Dias Menezes, in Curso de direito autoral. 17 PINHEIRO, Ivan Nogueira. A evolução histórica dos direitos de autor: da invenção da imprensa à sua positivação. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo. Faculdade de Direito. Orientador: Prof. Dr. Ignácio Maria Poveda Velasco. 2008. p. 6.

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26

2.2.1.1 A produção no mundo antigo e a ausência de normatização específica quanto ao tema

Sabe-se que a produção cultural do mundo antigo foi significativa. Inúmeras obras

produzidas na Grécia antiga, bem como em Roma, são conhecidas na atualidade.

Não obstante, a despeito dessa efervescência cultural, paradoxalmente, não houve,

naquele período, uma normatização específica para o Direito Autoral, aplicando-se às criações

humanas, normas já existentes para outras situações análogas.

Na Grécia antiga houve ampla produção intelectual. A arte, a literatura e a filosofia

gregas são tão fecundas que superam os limites do tempo. Naquela civilização,

desenvolveram-se o artesanato, a arquitetura, as artes plásticas, bem como a dança, música,

poesia e teatro18.

Examinando este período histórico, Antônio Chaves leciona que

Sem embargo da alta estima em que era tida a produção intelectual na Grécia, prestando governo e povo as maiores homenagens aos seus dramaturgos, poetas, filósofos, cientistas, compositores, artistas plásticos, concedendo prêmios aos vencedores de concursos e coroando-os em praça pública, reservando-lhes elevados cargos administrativos, os produtos da inteligência e da arte não eram considerados mais do que uma “coisa” que pertencia ao seu autor.19

Mesmo inexistente tratamento sobre direitos autorais, a obra era ligada ao seu autor,

pela vinculação do nome deste à criação. Por este motivo, sabe-se que Política é de autoria de

Aristóteles, Antígona, é atribuída a Sófocles, e a estátua de Zeus, uma das maravilhas do

mundo antigo, é criação de Fídias.

Também em Roma, a despeito da valorização moral das criações, os direitos – morais

e patrimoniais – dos autores não eram objeto de proteção legal. Ainda que escravo, o autor

tinha o prestígio público, mas nada recebia por suas criações artísticas20.

Antônio Chaves assevera que a antiguidade não tinha qualquer noção do Direito

Autoral. O autor destaca que apesar de receber o repúdio da sociedade, o plágio era praticado,

sendo inexistente qualquer sanção jurídica, mas apenas a moral: a condenação pela opinião

18 Narra-se que nas festas em homenagem a Dionísio, os gregos criavam danças e teatros – estes últimos nas suas conhecidas espécies, tragédias e comédias gregas – para apresentarem ao Deus do Vinho, agradecendo pela fartura daquele período. in MOTA, Myriam Brecho, BRAICK, Patrícia Ramos. História: das cavernas ao terceiro milênio. São Paulo: Moderna, 1997. 19 CHAVES, Antônio. op. cit. p. 39. 20 Segundo Eduardo Vieira Manso, “Ainda que não houvesse norma legal que instituísse alguma punição contra violações daquilo que haveria de ser direito dos autores das obras intelectuais, sempre existiu a sanção moral, que impunha o repúdio público do contrafator e sua desonra e desqualificação nos meios intelectuais. Ainda que sem efeitos jurídicos patrimoniais, nem pessoais (como a prisão, por exemplo), já se considerava um verdadeiro ladrão quem apresentasse como sua obra de outrem. Tudo indica que foi Marcial quem, pela primeira vez, atribuiu a esses espertalhões o epíteto de plagiarius, comparando-os àqueles que cometiam o crime de furto de pessoas livres, definido como plagium por uma lei do segundo século antes de Cristo, conhecida como Lex Fabia de Plarigriis”. op. cit. p. 09.

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27

pública21. Nos seus dizeres “O plágio era, sem dúvida, praticado e reconhecido, mas não

encontrava outra sanção senão a verberação do prejudicado e a condenação da opinião

pública”22.

É de se concluir que no mundo antigo (Grécia e Roma), em que houve grande

produção cultural, paradoxalmente, não havia proteção jurídica patrimonial efetiva ao autor

das obras, haja vista que inexistente sanção correlata para a afronta à obra, não obstante, a

existência da censura social23.

2.2.1.2 Idade Média

No período da Idade Média, as obras como um todo ficavam adstritas aos mosteiros.

Costuma-se chamar tal época de Período das Trevas, porque considerada como uma ocasião

em que o domínio da fé ofuscou as criações humanas, limitando o progresso.

Segundo narra H. Jessen, após a queda de Roma, na Europa, as artes ficam relegadas a

um segundo plano. Neste período, os autores se ocupam principalmente de questões religiosas

em todos os ramos da criação intelectual24 e as obras eram reproduzidas manualmente pelos

copistas.

Apenas o clero tinha acesso aos manuscritos, os quais não eram disponibilizados para

a população em geral25, que em grande parte não era letrada.

É o que retrata Rodrigo Moraes,

Na Idade Média, período marcado por alto índice de analfabetismo, a educação era vista pelo poder dominante como poderoso instrumento de contestação de valores estabelecidos. Nesse contexto histórico, marcado pela exclusividade monástica, pelo monopólio do saber, pela elitização do conhecimento, escrever consistia em tarefa árdua e cansativa. Com métodos rudimentares de reprodução, o ato de escrever implicava alto custo e significava gigantesco sacrifício, atividade lenta e dispendiosa. Até meados do século XV, as letras eram manuscritas pelos copistas.26

21 CHAVES, Antônio. op. cit. p. 39. 22 ibidem. p. 39. 23 Cite-se como exemplo a censura feita por Platão à reprodução literal da obra de Anaxágoras nos coros de Eurípedes. 24 JESSEN, Henry. op. cit. p. 15. 25 Ilustra bem este período, o romance do escritor italiano Umberto Eco, O nome da rosa, de 1980, adaptado para o cinema em 1986. A história passa em um mosteiro italiano cuja biblioteca tinha um significativo acervo de livros – inclusive um específico de Aristóteles, sobre o riso. O tema central da obra é o óbice à livre circulação do conhecimento. No texto, fica evidenciado que a Igreja não autorizava o acesso das pessoas comuns às obras (e aos significados dos dogmas religiosos). Fica ilustrado, também, o trabalho dos monges copistas, que manualmente, transcreviam o conteúdo das obras. ECO, Umberto. O nome da rosa. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Editora Record, 1986. passim. 26 MORAES, Rodrigo. Os Direitos Morais do Autor: Repersonalizando o Direito Autoral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 22.

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28

Enfocando a pesquisa científica produzida até o séc. XVII, e apresentando crítica ao

método científico utilizado até então, Francis Bacon aduz que “a Idade Média, em relação à

riqueza e fecundidade das ciências, foi uma época infeliz”27. Certo é que a crítica apresentada

por Bacon ao citado período não se deve ao fato de a Igreja cercear o acesso ao conhecimento,

mas aos métodos de pesquisa existentes – em verdade, segundo o autor, não existentes – até

então.

Nesta oportunidade, não se cogitava da proteção patrimonial e extrapatrimonial do

autor, e os escribas, muitas vezes, complementavam os textos com suas ideias e palavras,

acrescentando-lhes trechos.

2.2.1.3 Os tipos móveis de Gutenberg

Já no séc. XV, com o desenvolvimento dos tipos móveis de Gutenberg (1398-1468)

foi viabilizada a dinamização do fabrico dos livros, resultando na acelerada divulgação das

ideias28.

A produção dos livros se intensifica e as pessoas passam a ter acesso a textos que até

então se encontravam em poder exclusivo do clero.

Tratando sobre a revolução advinda do invento de Gutenberg, John Man narra que:

O resultado, claro, foi um novo mundo da comunicação. De repente, num piscar de olhos histórico, os escribas se tornaram obsoletos. Num determinado ano, levava-se um mês ou dois para se reproduzir a simples cópia de um livro; no seguinte, podia-se ter quinhentas cópias em uma semana [...] A invenção de Gutenberg adubou o solo do qual brotaram a história moderna, a ciência, a literatura popular, a nação-estado – muito de tudo o que chamamos de modernidade29.

Esta é, em verdade, a semente da indústria editorial, que resultou na mais veloz

proliferação dos livros30.

27 BACON, Francis. Novum Organum o Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza. trad. José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Nova Culural, 1997. p. 62. 28 Fazendo um exame da História do Direito Privado Alemão e da contribuição dos tipos móveis de Gutenberg para o seu acesso pela população como um todo, Franz Wieacker assevera que “Assim como, sobretudo desde o fim do séc. XV, a imprensa prepara a revolução religiosa, política e literária do ocidente, também o amplo impacto da recepção prática anda ligado ao livro impresso. Só através da imprensa a palavra escrita se torna popular, influente, nomeadamente, na formação da opinião da massa dos burgueses, artesãos, mesmo dos camponeses que então tomavam a palavra escrita com a mesma crença de hoje”. WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. trad. A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980. p. 182. 29. MAN, John. A revolução de Gutenberg: A história de um gênio e de uma invenção que mudaram o mundo. Trad. Marco Antônio Oliveira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. p. 12. 30 Segundo John Man, “Em 1455, todos os livros impressos na Europa poderiam ser carregados em um vagão simples. Cinquenta anos depois, os títulos chegavam a dezenas de milhares, os exemplares, a milhões. Hoje, livros que transbordam das impressoras chegam a dez bilhões por ano. Isso representa cinquenta milhões de toneladas de papel. Com os oito mil a nove mil jornais diários, e os dominicais, e as revistas, o resultado chega a cento e trinta milhões de toneladas. É uma montanha. Representa uma pilha de setecentos metros de altura – quatro vezes a altura da Grande Pirâmide”. (destaques no original) ibidem. p. 14.

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29

A partir daí, começam a surgir questionamentos sobre a proteção desta atividade, e

mais adiante sobre a proteção jurídica do autor, principalmente, no que tange à remuneração

pela sua obra.

2.2.1.4 O Licensing Act, de 1662 e os privilégios dos impressores

A proteção legislativa da criação intelectual remonta a menos de três séculos. Antes

dessa época, apesar de terem sido produzidas obras imortais, não se preocupou com a noção

de prerrogativa cuja violação deveria ser reprimida31.

Inicialmente, a proteção se deu através de concessão de privilégios.

Pelo Licensing Act, de 1662, era exigida aprovação prévia dos governantes para

impressão das criações literárias e científicas. Ainda nesta oportunidade, o autor não fazia jus

a qualquer vantagem econômica, assegurada apenas aos impressores e livreiros – direito a que

se chamou de privilégio do editor32.

Destarte, a primeira modalidade de proteção incidente sobre as obras foi conferida aos

impressores e não aos autores. A impressão dos textos ficava condicionada à autorização real

prévia, o que configurava uma espécie de censura.

Assim, caracterizado estava o controle, por questões políticas e religiosas, das obras

para que pudessem ser editadas: imprimiam-se as obras de interesse da Coroa.

Segundo lição de Plínio Cabral, “as licenças para imprimir eram dadas às tipografias,

impressores e livreiros – os editores da época. A eles era concedido o privilégio real para a

impressão e venda de qualquer obra, desde que aprovada pelos governantes” 33.

O privilégio era, destarte, uma prerrogativa disponibilizada aos editores, em prol dos

interesses destes. Não tinha por objetivo a tutela da criação intelectual, mas o incentivo da

atividade de impressão das obras, atribuindo em favor do beneficiário o monopólio sobre a

criação.

2.2.1.5 O Copyright act – Estatuto da Rainha Ana, de 1710

Após luta dos autores por maior liberdade de expressão e pela remuneração de seus

trabalhos, começam a brotar as modernas concepções dos direitos autorais.

31 CHAVES, Antônio. op. cit. p. 41. 32 Ibidem. p. 27. 33 CABRAL, Plínio. A Nova Lei de Direitos Autorais. 4. ed. São Paulo: Harbra, 2003. p. 4-5.

Page 31: OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO ...

30

Na Inglaterra, pelo Copyright Act, de 1710 – também chamado de Estatuto da Rainha

Ana –, os livreiros e impressores poderiam imprimir as obras, sob a condição de adquiri-las

previamente, remunerando seus respectivos autores.

Como observa Elisângela Dias Menezes, o Copyright Act representou a mudança de

perspectiva no que é pertinente à titularidade dos direitos autorais34.

Trata-se de diploma legal pioneiro pelo qual o criador passa a ser detentor do direito

autoral patrimonial, deslocando-se, assim, a proteção antes conferida ao editor para o autor –

o verdadeiro merecedor da tutela autoral.

2.2.1.6 A Revolução Francesa: marco definitivo para a ruptura dos privilégios e para o surgimento dos direitos morais do autor

Com a Revolução Francesa rompem-se definitivamente com os privilégios

anteriormente concedidos, e, paulatinamente, tem-se o advento do Droit d’ auteur, com típico

caráter individualista, fundado no direito de propriedade.

Resultado da Revolução foi o reconhecimento pelo direito positivo do status jurídico

de propriedade à criação literária e artística. A exploração da obra deixa de ser um favor dado

pela Coroa e passa a ser reconhecida pelo Direito Positivo35.

Como destaca Eduardo Vieira Manso:

Foi, porém, no bojo da Revolução Francesa, de 1789, que surgiu o Direito Autoral, com a estrutura que ainda hoje apresenta, para acolher novos produtos do espírito humano, acompanhando o desenvolvimento da tecnologia da comunicação, porque o Direito Autoral é o instrumento que protege a matéria-prima da comunicação social. [...]36

Resta configurada a primazia do autor sobre sua obra.

Ainda na França, porém em momento posterior, além do enfoque patrimonial, direitos

morais37 passam a ser garantidos ao autor.

34 MENEZES, Elisângela Dias. Curso de Direito Autoral. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 24. 35 BARBUDA, Ciro de Lopes e. Sistematização principiológica do direito autoral: repensando os fundamentos da ordem jusautoralista brasileira na perspectiva de um direito autoral-constitucional. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós Graduação em Direito. Salvador. 2011. Orientadora: Prof. Dra. Roxana Cardoso Brasileiro Borges. p. 30 36 MANSO, Eduardo Vieira. op. cit. p. 14. 37 Com relação aos direitos morais de autor, Henrique Gandelman aduz que: “Desde as especulações de Kant, para quem o direito autoral é aquele que o titular de uma obra tem de impedir que alguém a torne pública sem sua expressa autorização, vem se debatendo a característica imaterial desse direito, que não teria assim muita ligação com seus aspectos materiais, mas sim com a forma de expressão das ideias, o que seria uma verdadeira transposição da personalidade de seus criadores”. GANDELMAN, Henrique. De Gutemberg à internet: Direitos autorais das origens à era digital. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.op. cit. 33.

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31

2.2.1.7 O movimento pela proteção em âmbito internacional

A consciência de que as obras ultrapassam os territórios em que foram criadas, sendo

interesse de toda a humanidade, faz com que se inicie, no séc. XIX, um movimento pela

edição de normas internacionais que regulamentassem os direitos do autor38.

Assim, em 1886, tem-se o advento da Convenção de Berna, que traça os patamares

para a proteção dos autores de obras literárias, artísticas e científicas. A Convenção de Berna

é o pilar para as legislações autorais em todo o mundo, inclusive o Brasil. Ainda em vigor,

sofreu algumas alterações ao longo dos anos, com o fito de atualizá-la às novas realidades de

mundo atual, sem perder, porém, a sua essência protetiva do autor.

Outras convenções internacionais em matéria autoral foram criadas nestes últimos

séculos. A título de exemplo, citam-se a Convenção de Roma, concluída em 26 de outubro de

1961, para a proteção dos artistas e intérpretes ou executantes, dos produtores de fonogramas

e dos organismos de radiodifusão; a Convenção de Genebra, concluída em 29 de outubro de

1971, cujo objeto é a proteção dos produtores de fonogramas, dentre outros.

Impende, finalmente, registrar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de

1948, no art. 27. 2. prevê expressamente a proteção aos interesses morais e materiais

decorrentes da produção do intelecto humano39.

2.2.2 No Brasil

Também no Brasil a evolução foi paulatina. A influência da metrópole sobre a colônia

foi decisiva para o desenvolvimento tardio do Direito Autoral pátrio. Certo é, porém, que a

legislação hoje em vigor consegue acompanhar o desenvolvimento do sistema unionista do

qual o Brasil faz parte.

Aqui, também, será apresentada, em linhas gerais, a história da legislação brasileira

quanto ao tema, apontando-se os principais diplomas legais versando sobre o tema.

Insta salientar que, diante de sua amplitude, a evolução histórica do Direito Autoral no

Brasil poderia ser objeto de estudo acadêmico autônomo, não sendo pretensão esgotar o tema,

38 Vitor Hugo foi um dos artistas que, conscientes da necessidade de uma regulamentação em âmbito internacional, lutou pela criação de um documento em defesa dos direitos universais do autor. 39 Dispõe o citado art. 27. 2: “Art. 27. 2. Todo homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor”. disponível em http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm, acesso em 23 de out. de 2011.

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32

mas traçar, em linhas gerais a evolução e as principais características do Direito Autoral

pátrio.

2.2.2.1 Brasil Colônia

No período colonial brasileiro, não houve tratamento acerca dos direitos do autor,

mesmo porque, no referido período histórico, Portugal exercia controle sobre as criações

realizadas em sua colônia, buscando evitar qualquer insurreição por parte dos colonizados40.

Examinando tal período, Rodrigo Moraes destaca que a imprensa era proibida no

Brasil colônia41.

Sustenta o referido autor que o colonialismo português cerceou até quando lhe foi

possível o desenvolvimento cultural do Brasil. Era proibida a imprensa e indeferidas

solicitações de universidades. Somente em 1808, com a abertura dos portos, foi autorizada a

utilização da imprensa42.

2.2.2.2 Brasil Império

Diante da realidade social e cultural da época, após a Proclamação da Independência

do Brasil, também na Constituição Imperial de 1824 não havia qualquer previsão expressa de

proteção ao autor ou aos titulares dos direitos conexos.

Somente com a criação dos cursos de ciências sociais e jurídicas em São Paulo e

Olinda, em 1827, foram estabelecidas as primeiras normas tratando sobre os direitos do autor.

Isto ocorreu através do art. 7º da Lei Imperial de 11 de agosto de 1827.43 Segundo o referido

dispositivo legal, os professores deveriam submeter seus compêndios à aprovação, e uma vez

40 Retrata bem este período a seguinte passagem narrada por Laurentino Gomes: “A existência dessa pequena elite intelectual representava uma proeza numa colônia em que tudo se proibia e censurava, livros e jornais eram impedidos de circular livremente. Carta de D. Rodrigo de Sousa Coutinho ao governador da Bahia, D. Fernando José de Portugal, em 1798, recomendava vigilância severa sobre a circulação de livros, pois havia informações na corte de que os principais cidadãos de Salvador se achavam ‘infectados dos abomináveis princípios franceses’. Quem ousasse expressar opiniões em público contrárias ao pensamento vigente na corte portuguesa corria o risco de ser preso, processado e, eventualmente, deportado. Imprimi-las, então, nem pensar. Até mesmo reuniões para discutir ideias eram consideradas ilegais.”. in GOMES, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007. p. 122. 41 MORAES, Rodrigo. op. cit. p. 33 42 Ibidem. loc. cit. 43 “Art. 7.º - Os Lentes farão a escolha dos compendios da sua profissão, ou os arranjarão, não existindo já feitos, com tanto que as doutrinas estejam de accôrdo com o systema jurado pela nação. Estes compendios, depois de approvados pela Congregação, servirão interinamente; submettendo-se porém á approvação da Assembléa Geral, e o Governo os fará imprimir e fornecer ás escolas, competindo aos seus autores o privilegio exclusivo da obra, por dez annos”. disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-11-08-1827.htm, acesso em 10 de jul. de 2011. Transcrevemos o conteúdo do artigo com a redação original, sem a adequação à norma culta de linguagem atual.

Page 34: OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO ...

33

aprovados, seriam impressos pelo Governo e estariam protegidos pelo período de 10 (dez)

anos.

Já no art. 261 do Código Criminal de 183044 – Lei Imperial de 16 de dezembro de

1830 – restou estabelecida a vedação da contrafação, estabelecendo as penalidades para os

casos em que esta ficasse configurada. Neste artigo legal foi também prevista a proteção pelo

período da vida do autor, o qual era acrescido de 10 anos, após a sua morte, ocasião em que

ficava assegurado aos herdeiros o direito de explorar economicamente a obra.

2.2.2.3 A Constituição Republicana de 1891 e a Lei Medeiros Albuquerque

Até este momento, não havia qualquer norma que desse tratamento civilístico aos

direitos do autor, o que somente veio a ser estipulado na Constituição Republicana de 189145

– a primeira constituição brasileira a garantir, ainda que de forma precária, os direitos

autorais.

Seu art. 72, § 2646 estabelecia o direito de exclusividade de exploração de sua criação

aos autores de obras literárias e artísticas. Assegurava, ainda, a transmissibilidade aos

herdeiros, aos quais também era assegurada a exploração econômica da obra.

A Lei Medeiros de Albuquerque – Lei 496 de 1º de agosto de 1898 foi a primeira

norma infraconstitucional a tratar especificamente e de forma detalhada dos direitos autorais

no Brasil47.

Analisando tal diploma legal, Eduardo Vieira Manso aduz que 44 É teor do citado artigo: “Art. 261. Imprimir, gravar, lithographar, ou introduzir quaesquer escriptos, ou estampas, que tiverem sido feitos, compostos, ou traduzidos por cidadãos brasileiros, emquanto estes viverem, e dez annos depois da sua morte, se deixarem herdeiros. Penas - de perda de todos os exemplares para o autor, ou traductor, ou seus herdeiros; ou na falta delles, do seu valor, e outro tanto, e de multa igual ao tresdobro do valor dos exemplares. Se os escriptos, ou estampas pertencerem a Corporações, a prohibição de imprimir, gravar, lithographar, ou introduzir, durará sómente por espaço de dez annos”. disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm, acesso em 10 de jul. de 2011. Também este artigo é transcrito com a redação original, sem atualização da língua portuguesa. 45 À exceção da Constuição de 1934, todas as demais trouxeram dispositivos acerca da proteção autoral. 46 Eis a redação do art. 72, § 26: “Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 26. Aos autores de obras literárias e artísticas é garantido o direito exclusivo de reproduzi-Ias, pela imprensa ou por qualquer outro processo mecânico. Os herdeiros dos autores gozarão desse direito pelo tempo que a lei determinar”. 47 Para ilustrar, transcreve-se o conteúdo dos arts. 1º da Lei Medeiros de Albuquerque: “Art. 1º Os direitos de autor de qualquer obra litteraria, scientifica ou artistica consistem na faculdade, que só elle tem, de reproduzir ou autorizar a reproducção do seu trabalho pela publicação, traducção, representação, execução ou de qualquer outro modo. A lei garante estes direitos aos nacionaes e aos estrangeiros residentes no Brazil, nos termos do art. 72 da Constituição, si os autores preencherem as condições do art. 13”. Por sua vez, o art. 13 do citado diploma legal estatuía: “Art. 13. E' formalidade indispensavel para entrar no goso dos direitos de autor o registro da Bibliotheca Nacional, dentro do prazo maximo de dous annos, a terminar no dia 31 de dezembro do seguinte áquelle em que deve começar a contagem do prazo de que trata o art. 3º. 1) para as obras de arte, litteratura ou sciencia, impressas, photographadas, lithographadas ou gravadas, de um exemplar em perfeito estado de conservação; 2) para as obras de pintura, esculptura, architectura, desenhos, esboços ou de outra natureza, um exemplar da respectiva photographia, perfeitamente nitida, tendo as dimensões minimas de 0m,18 X 0m,24”. Disponível em http://www2.camara.gov.br/legin/fed/lei/1824-1899/lei-496-1-agosto-1898-540039-publicacaooriginal-39820-pl.html, acesso em 10 de jul. de 2011. Também estes artigos são transcritos com o vernáculo da época.

Page 35: OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO ...

34

foi retrógrada em vários aspectos, em relação ao direito autoral europeu, principalmente porque exigia o registro da obra, como condição de sua protegibilidade, e conferia sua proteção apenas por 50 anos contados da primeira publicação48.

De fato, o prazo de proteção estabelecido à época era inferior ao que se costuma

praticar na atualidade no Brasil, qual seja, o prazo de 70 anos após o falecimento do autor,

cuja contagem varia a depender do tipo de obra.

Da mesma forma, o registro não deveria ser exigido para fins de proteção da obra.

Correto seria que fosse considerado simplesmente declaratório, e não constitutivo, como

previsto na atualidade – em observância ao sistema individual adotado no Brasil.

2.2.2.4 O Código Civil de 1916: tratamento do Direito Autoral como propriedade

O Código Civil de 1916 – Lei 3071, de 1º de janeiro de 1916 – revogou a Lei

Medeiros de Albuquerque, que teve curto período de duração – passando a tratar do Direito

Autoral, como propriedade literária, científica e artística.

A doutrina autoralista49 como um todo censurou a inserção do direito autoral no corpo

do Código Civil, sustentando que aquele teria perdido a sua autonomia legislativa. Criticava-

se, ainda, o tratamento dos direitos do autor como uma espécie de propriedade.

Clamava-se por um novo diploma legal que fosse apto a atender à realidade social,

retirando o Direito Autoral do engessamento que lhe fora imposto pelo então vigente Código

Civil e atribuindo a este a sua devida autonomia.

Deve ser ponderado que o momento correspondia ao movimento de descodificação

que ocorreu no Brasil, com a criação de microssistemas – leis especiais – tratando sobre

assuntos em apartado. O Código Civil perdia naquela oportunidade, a sua centralidade como

diploma de Direito Privado, o que persiste ainda nos dias de hoje.

Segundo Eugênio Facchini Neto, o Direito Privado deixou os códigos totalizantes em

direção à legislação dita extravagante, o que deu ensejo ao fenômeno da descodificação e à

denominada Era dos Estatutos. Configura-se, assim, o deslocamento do monossistema, em

48 MANSO, Eduardo Vieira. op. cit. p. 17. 49 Citam-se como exemplos: Antônio Chaves, in O criador da obra intelectual; Henry Hessen, in Direitos intelectuais; Bruno Jorge Hammes, in Elementos básicos do direito de autor brasileiro;Carlos Alberto Bittar, in Direito de Autor.

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35

direção ao polissistema legislativo, adotando-se microssistemas que gravitam ao lado do

Código Civil50.

2.2.2.5 A Lei 5.988, de 14 de dezembro de 1973 – LDA/73

A inserção do Direito Autoral no rol dos institutos históricos do Direito Privado, em

especial, no direito das coisas, já não mais se sustentava, sendo o Direito Autoral um novo

ramo do direito.

Assim, em 1973 foi editado diploma especial tratando sobre o Direito Autoral. A Lei

5.988, de 14 de dezembro de 1973 – LDA/73 – passou a tutelar os direitos dos autores,

estendendo a proteção também aos titulares dos direitos conexos.

O Direito Autoral readquiria, assim, a sua autonomia em relação ao Direito Civil,

trazendo em seu conteúdo não apenas os direitos patrimoniais, mas também, os direitos

morais do autor.

2.2.2.6 A Constituição Federal de 1988

Já a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso IX51 consagra a liberdade de

expressão e de manifestação de pensamento. Por sua vez, os incisos XXVII52 e XXVIII53 do

citado artigo, asseguram aos autores a proteção de suas obras, tornando-os titulares54 de

direitos fundamentais.

50 Sobre o surgimento de leis esparsas, o autor trata da fragmentação do direito privado. No seu entender, não há como apreciar o conteúdo das leis – Código Civil e leis esparsas – isoladamente, e sim, deve-se examiná-las em conjunto, à luz de todo o ordenamento jurídico com ênfase aos princípios fundamentais nele consagrados. Nos dizeres de Eugênio Facchini Neto “O sistema unitário simbolizado pelo Código Civil, que tinha a pretensão de disciplinar todos os aspectos da vida privada, vê-se esfacelado em uma miríade de leis e decretos que subtraem determinados institutos da monolítica disciplina codicista. Esses novos estatutos passam a disciplinar tais temas sob outros enfoques e princípios. Para tentar garantir um mínimo de unidade sistemática, busca-se subordinar todo o direito privado à orientação unificadora da Constituição.” in FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. in SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 40. 51 Dispõe o inciso IX do art. 5º: “IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;” 52 Eis a redação do inciso XXVII: “XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”. 53 Consta do inciso XXVIII: “XXVIII – são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e coletivas”. 54 Para Ingo Wolfgang Sarlet, o vocábulo “titular” é o adequado para designar quem figura como sujeito ativo da relação jurídica-subjetiva que tem por objeto um direito fundamental. Para o referido autor, a utilização do termo “destinatário” como sinônimo de titular é equivocada, visto que por destinatário deve-se entender aquele a quem a lei impõe o respeito ao direito tutelado. in SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 208.

Page 37: OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO ...

36

O tratamento dado pela vigente Carta Magna ao Direito Autoral tem nuance

nitidamente patrimonialista, consagrando o direito de exclusivo do autor de exploração de sua

obra.

2.2.2.7 A Lei 9610, de 14 de fevereiro de 1998

Na vigência da Constituição Federal de 1988, revogando a antiga lei de 1973, foi

sancionada a Lei 9.610, de 19/02/1998 – LDA/98 –, diploma legal em vigor na atualidade, do

qual decorreu avanço apreciável sobre a proteção autoral, pois, além de adequar as definições

pertinentes aos titulares dos direitos autorais (autores, artistas, intérpretes ou executantes,

produtores, editores, empresas de radiodifusão), trouxe ampliação das formas de disseminação

da criação intelectual55.

Assim como em todas as leis brasileiras editadas até então, o caráter individualista

protetivo do autor prevaleceu.

Da leitura da LDA/98, verifica-se que se assegura a proteção ao autor de forma

dissociada do contexto em que ele está inserido.

Serão examinados abaixo os principais traços da citada norma, com enfoque no autor,

titulares dos direitos conexos e titulares derivados, o conceito de obra, e os próprios direitos

subjetivos: patrimoniais e morais.

2.2.2.8 O Projeto de Lei de alteração da LDA/98, de iniciativa do Ministério da Cultura do Brasil - MinC

Atualmente, Projeto de Lei de iniciativa do Ministério da Cultura do Brasil objetiva a

alteração da atual legislação autoral56, sob a justificativa da necessidade de adequação da

legislação autoral brasileira às novas tecnologias e realidade, bem como ao conteúdo da

vigente Carta Magna, que prevê a solidariedade57 como objetivo fundamental norteador de

todo o sistema jurídico.

É interessante notar que as propostas apresentadas pela ex-ministra Ana de Holanda

foram submetidas a apreciação popular, e está em discussão entre os autoralistas pátrios.

55 Tais como distribuição de sinais por cabo, satélite, fibra ótica etc. 56 Íntegra do projeto disponível no site: http://www.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2011/04/Anteprojeto_Revis%C3%A3o_Lei_Direito_Autoral.pdf. acesso em 11 de jul. de 2011. 57 Segundo a vigente Constituição Federal, são objetivos fundamentais da República, aqueles consagrados no art. 3º da CF/88, quais sejam: a construção de uma sociedade justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a promoção do bem-estar de todos.

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37

Trechos deste projeto serão apreciados no último capítulo, como alternativas de

soluções para as falhas existentes na vigente legislação que versa sobre a matéria.

2.3 OS SISTEMAS DO DIREITO AUTORAL

São dois os principais grandes sistemas legislativos que organizam o Direito Autoral58.

Tais sistemas repercutem nos regimes legislativos dos países, sendo instituídos segundo

influências culturais e políticas.

O primeiro deles é o denominado sistema unionista ou sistema individual. Por este,

respeitam-se os direitos patrimoniais do autor, bem como os seus direitos morais. Ou seja, a

proteção volta-se não apenas à obra, como também ao seu criador, nos moldes ajustados na

Convenção de Berna.

Ademais, dispensa-se o registro para que a obra possa ser protegida. A exteriorização

da obra por si só já faz com que esta seja objeto de proteção. O registro, acaso realizado, tem

caráter apenas declaratório.

Nos dizeres de Carlos Alberto Bittar:

O sistema individual (europeu ou francês) é o da Convenção de Berna, de caráter subjetivo, destinado à proteção do autor e consubstanciado na exclusividade que se lhe outorga, permitindo-lhe a participação em todos os diversos meios de utilização econômica. Corolários desse regime são: o do alcance limitado das convenções celebradas pelo autor para a exploração da obra e o da interpretação estrita dessas convenções, em defesa dos interesses do criador. A proteção é conferida independentemente de registro da obra ou outra formalidade.59

Como destaca Elisângela Dias Menezes, o sistema individual de proteção aos direitos

autorais rege a grande maioria das nações, inclusive o Brasil. Ou seja, no Brasil a atual Lei de

Direito Autoral reflete os princípios consagrados por tal sistema60, seguindo as disposições

constantes na Convenção de Berna.

Por sua vez, o Copyright é adotado nos Estados Unidos da América e na Inglaterra.

Esse sistema remonta ao Estatuto da Rainha Ana, sofrendo influência também da Convenção

de Genebra, de 1952.

58 Carlos Alberto Bittar identifica ainda um terceiro sistema a que chama de sistema coletivo, da Rússia e de países sob sua égide, pelo qual a proteção autoral se dá visando o desenvolvimento da cultura. op. cit. p. 9. 59 BITTAR, Carlos Alberto. op. cit. p. 9. 60 MENEZES, Elisângela Dias. op. cit. p. 32.

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38

Robert M. Sherwood aduz que o Copyright evoluiu a partir da multiplicação das

cópias, pela invenção da imprensa. Por este sistema, o autor tem assegurado os direitos de

proteção, a qual dura por toda a sua vida61.

Este sistema não abarca a proteção moral do autor. Desconsidera o aspecto subjetivo

da obra, voltando-se apenas para sua expressão econômica e para o desenvolvimento da

cultura do país.

Segundo Eliane Abrão, é protegida qualquer obra desde que a primeira publicação

traga o símbolo ©, que equivale à expressão Copyright62 que em tradução para o português

significa direito de cópia.

Carlos Alberto Bittar também se manifesta sobre o Copyright dizendo que “o

Copyright é concedido ao titular, mas, para efeito de expansão da cultura e da ciência,

exigindo-se formalidades para o gozo da exclusividade, conforme, inclusive, definido no

contexto da Convenção de Genebra (1952)”63.

Pelo Copyright a proteção é conferida à obra – tem-se a posição objetiva – e não ao

autor propriamente dito – sendo desconsiderados os direitos morais. Busca-se o

desenvolvimento econômico, daí que também se lhe atribui a nomenclatura de sistema

comercial.

2.4 NATUREZA JURÍDICA

Longe de ser tema pacífico, a natureza jurídica do Direito Autoral enseja divergências

na doutrina. Diversas teorias e posicionamentos surgiram ao longo dos tempos, repercutindo

diretamente no conceito deste ramo do direito.

Inicialmente, cumpre delimitar que o Direito Autoral é ramo jurídico compreendido no

âmbito do denominado Direito Privado.

61 SHERWOOD, Robert. M. Propriedade intelectual e desenvolvimento econômico. tradução de Heloísa de Arruda Villela, São Paulo:Edusp, 1992. p. 32 62 ABRÃO, Eliana. Direitos de autor e direitos conexos. São Paulo: Editora do Brasil, 2002. p. 47. 63 BITTAR, Carlos Alberto. op. cit. p. 9.

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39

Não se descura no presente trabalho do entendimento de que a dicotomia público-

privado estaria enfraquecida, em face da comunicação atual entre o público e privado – com a

constitucionalização do Direito Privado e a privatização do Direito Público64.

Todavia, diante da utilidade didática e sistemática de tal divisão, propõe-se a

manutenção da nomenclatura.

Feita esta colocação sistemática, insta, então, verificar as principais correntes

doutrinárias que buscam explicar qual a natureza jurídica do Direito Autoral, delimitando sua

essência.

Várias teorias foram concebidas para explicar a natureza jurídica do Direito Autoral e

em função do estágio de evolução em que se encontrava a matéria, ora foi considerado como

privilégio para incrementar as letras e as artes, ora definido como Direito de Propriedade, ora

como direito de personalidade, além de diversas outras variações65.

Aqui, serão apreciadas as principais correntes, valendo destacar existirem outros

posicionamentos que não serão aqui tratados, por terem menor relevância para este estudo, a

despeito de merecerem todo o respeito66.

2.4.1 Teoria do Privilégio

A primeira corrente que deve ser destacada é a que trata o Direito Autoral como um

privilégio concedido aos editores. Levando-se em consideração a evolução história deste ramo

do direito, corresponde tal teoria ao período de inauguração legislativa acerca do tema.

Os autores não contavam, neste momento, com proteção de seus direitos patrimoniais

ou morais, uma vez que, pela Teoria do privilégio, os direitos eram atribuídos aos que

editavam as obras e não aos que as concebiam.

A principal crítica que se pode apresentar a tal teoria é a de que não confere proteção

ao real criador da obra, mas sim àquele que a explora economicamente67.

64 Sobre o tema, vide LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>.; FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. in SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 11-60; e TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 1-22. 65 BITTAR, Carlos Alberto. op. cit. p. 10. 66 A exemplo, citem-se a teoria das obrigações, a teoria da quase-propriedade, a teoria do direito absoluto. 67 Deve ser assinalado, porém, que a proteção conferida pelo ordenamento ao autor, em diversas oportunidades é utilizada como escudo protetor dos detentores do poderio econômico, v.g. editoras.

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40

Tal corrente foi superada no séc. XVII, não prosperando nos dias atuais porque atribui

os direitos àqueles que imprimem as obras e não aos autores propriamente ditos.

2.4.2 Teoria patrimonialista ou Teoria da propriedade

Com o advento da Revolução Francesa, o regime dos privilégios foi extinto e o Direito

Autoral foi inserido na categoria do direito real de propriedade. Atribuía-se ao autor a

propriedade sobre a obra por ele criada, conferindo-se a este os direitos patrimoniais sobre

suas criações.

A segunda teoria considera o Direito Autoral como uma modalidade de direito real,

inserindo-o no conceito de propriedade formulado no Direito Romano.

Segundo José de Oliveira Ascensão, a tutela do direito dos autores seguiu, no séc.

XVIII, o caminho de afirmação de uma propriedade do autor sobre a obra. Segundo o citado

autor, “o direito de autor seria até a mais sagrada de todas as propriedades”68.

Nos dizeres de Delia Lipszyc

El reconocimento en cabeza del autor de um derecho de propriedad sobre su obra, congênere del derecho de domínio sobre las cosas materiales (muebles e inmuebles), tuvo el propósito – y el valor – de satisfacer los justos anhelos de los creadores, dotándolos de un derecho fundamental, claro e inequívoco69.

Passou-se a atribuir ao autor o direito fundamental de propriedade sobre as obras por

ele criadas, sendo, assim, oponível erga omnes.

Este posicionamento foi adotado pelo legislador brasileiro de 1916, que tendo inserido

o Direito Autoral no âmbito do Digesto Civilista, o tratou como propriedade literária,

científica e artística70, reduzindo-o ao seu caractere patrimonial.

Esta corrente também não é isenta de críticas.

A primeira objeção que se apresenta refere-se à desconsideração do aspecto moral do

direito de autor, tratando-o sob um enfoque exclusivamente materialista.

Tal teoria é criticada, também, pelo fato de que a proteção recai sobre a criação

intelectual e não sobre uma coisa. É o que sustenta José de Oliveira Ascensão, para quem,

resta caracterizada a confusão entre a obra e a sua materialidade. Segundo ele, a proteção não 68 ASCENSÃO, José de Oliveira. op. cit. p. 05. 69 LIPSZYC, Delia. Derecho de autor e derechos conexos. Buenos Aires: Zavalía, 1993. p. 20. Tradução livre: O reconhecimento em favor do autor de um direito de propriedade sobre sua obra, congênere ao direito de domínio sobre as coisas materiais (móveis e imóveis) teve o propósito – e o valor – de satisfazer os justos anseios dos criadores, dotando-os de um direito fundamental, claro e inequívoco. 70 Como visto no item 2.2.2.4 supra.

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se dá aos livros, folhetos e outros, mas à obra propriamente dita que pode ou não ser reduzida

a escrito71.

Considera-se, ainda, o fato de que a propriedade é perpétua, já o direito patrimonial do

autor não: após o prazo de proteção, a obra cai em domínio público.

2.4.3 Teoria personalista ou Teoria da personalidade

Já a teoria da personalidade dá relevância aos aspectos pessoais da obra, considerando-

a uma extensão da pessoa do autor.

Também chamada de Teoria personalista, considera que “a obra do engenho, tanto

antes quanto depois da publicação, não se distinguiria da atividade criadora do indivíduo,

ligando-se, assim, à sua própria personalidade”72.

Sobre esta corrente, H. Jessen aduz que teve origem nas concepções de Emmanuel

Kant. Seu principal seguidor, Otto Von Gierke, deu forma jurídica a essa tese, que vê na obra

uma extensão da pessoa do autor, cuja personalidade não pode ser dissociada do produto de

sua inteligência73.

O Direito Autoral não pode ser equiparado pura e simplesmente a um direito de

propriedade, como também não pode ser considerado apenas personalíssimo, sob pena de ser

mal compreendido74. Assim, a corrente personalista tem o mérito de dar relevância ao aspecto

pessoal do direito de autor e o demérito de desconsiderar seu elemento material.

Tal como a anterior – a teoria patrimonialista – é também incompleta.

2.4.4 Teoria dos direitos sobre bens intelectuais

Pela teoria dos direitos sobre bens intelectuais, os direitos dos autores são inseridos no

âmbito das coisas incorpóreas.

Elaborada pelo belga Edmond Picard que constatou a insuficiência das correntes

anteriores – a patrimonialista e a personalista – e manifestou sua insatisfação com a inserção

dos direitos dos autores nas três clássicas categorias do direito, tendo criado uma quarta

categoria, a da jure in re intellectualli. Picard propõe, então, a criação de um quarto grupo, a

que denomina direitos intelectuais.

71 ASCENSÃO, José de Oliveira. op. cit., p. 5. 72 BERSONE, Darci. Direitos reais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 117. 73 JESSEN, Henry. op. cit. p. 26. 74 HAMMES, Bruno Jorge. op. cit. p. 40.

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Para esta teoria, os direitos atribuídos ao autor consistem em direitos exercidos sobre

as coisas incorpóreas.

Tratando sobre o tema Carlos Alberto Bittar assevera que:

os direitos autorais não se cingem, nem à categoria dos direitos reais, de que se revestem apenas os direitos denominados patrimoniais, nem à dos direitos pessoais, em que se alojam os direitos morais. Exatamente porque se bipartem nos dois citados feixes de direitos – mas que, em análise de fundo, estão por sua natureza e sua finalidade, intimamente ligados, em conjunto incindível – não podem os direitos autorais se enquadrar nesta ou naquela das categorias citadas, mas constituem nova modalidade de direitos privados.

São direitos de cunho intelectual, que realizam a defesa dos vínculos tanto pessoais, quanto patrimoniais, do autor com sua obra, de índole especial, própria, ou sui generis, a justificar a regência específica que recebem nos ordenamentos jurídicos do mundo atual75.

Esta corrente, apesar de ter conquistado muitos adeptos, sofreu críticas pelo fato de ter

equiparado os direitos do autor aos direitos dos titulares das marcas.

2.4.5 Teoria do direito da coletividade76

Destaque-se, ainda, a corrente que considera que o Direito Autoral é um direito da

coletividade. Argumenta-se que a obra seria um produto do meio. Ou seja, o criador recebe

inspiração da sociedade, não podendo a inspiração humana ser monopolizada.

Para esta teoria, a criação decorre do acervo cultural do povo, sendo ignorada a

expressão de pessoalidade do autor. Este é o principal ponto criticado da teoria em apreço.

De Boor, citado por Antônio Chaves assevera que

As obras do espírito não são propriedade dos autores. Por seu destino, devem pertencer ao povo. Se um ser humano, tocado pela graça, fizesse atos de criador, este ser privilegiado não teria podido jamais realizar sua obra se não tivesse, por outro lado, conseguido alimentar-se com o imenso tesouro representado pela cultura nacional77.

Destarte, para os defensores desta corrente, a obra deve pertencer à coletividade, e não

ao seu criador.

75 BITTAR. Carlos Alberto. op.cit. p. 11. 76 Esta era a corrente adotada na antiga União Soviética. As obras eram criadas pelos indivíduos, mas as vantagens econômicas advindas de sua exploração eram revertidas em favor do Estado. O documentário A origem do videogame, parte III, retrata bem o Direito Autoral da extinta URSS. O game “Tetris” foi criado em 1984, por Alexei Pajitnov. Trata-se de um dos mais famosos e populares jogos eletrônicos já desenvolvidos, tendo sido explorado mundialmente, inclusive pela Nintendo. No documentário é informado que a Nintendo vendeu mais de 32 milhões de Gameboys em todo o mundo. Porém, como cidadão soviético, Pajitnov somente passou a receber os direitos pela exploração de sua criação a partir de 1996, quando as licenças originalmente concedidas expurgaram. O documentário está disponível no endereço eletrônico www.youtube.com/watch?v=0aMnyc3Rg-E, acesso em 03 de dez. de 2011. 77 De Boor apud CHAVES, Antônio. op. cit. p. 19.

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A crítica apresentada a esta corrente se deve ao fato de proteger a ideia em si, o que

não coaduna com a proteção autoral. Através do Direito Autoral se resguarda a forma dada à

ideia pelo criador, a fonte primeira da obra, mesmo que o criador receba influências da

sociedade em que está inserido e não à ideia propriamente dita.

2.4.6 Teoria dualista

Já a teoria dualista concilia as concepções anteriores – patrimonialista e personalista –

e considera que a proteção engloba tanto o caráter patrimonial, quanto o pessoal do criador,

que se inter-relacionam e se completam.

Mais completa, é a aceita no Brasil majoritariamente.

H. Jessen é adepto desta teoria, considerando-a a que reflete melhor a situação do

instituto. Ele destaca que tal posicionamento é também o adotado nas leis nacionais78.

Os direitos morais e os direitos patrimoniais constituem o caráter híbrido do Direito

Autoral, tratando-se de um direito de natureza mista. O autor ressalta que o aspecto

patrimonial somente irá se evidenciar, caso haja autorização do autor. Destarte, o elemento

patrimonial decorreria do direito moral79.

Rodrigo Moraes sustenta que a corrente dualista

Separa os direitos morais dos patrimoniais. Aqueles são independentes destes. Não nascem nem se extinguem ao mesmo tempo. Os direitos morais têm luz própria. Nascem com a criação da obra, enquanto os patrimoniais surgem a partir de uma comercialização posterior, que pode não ser concretizada, como acontece com o ineditismo. São independentes ente si e, também, podem ser objetos de regulações legais distintas.80

Destarte, para esta corrente, as teorias da propriedade e da personalidade são

conciliadas, de modo a evidenciar que o Direito Autoral assume uma forma mista, e traz em

seu bojo normas que regulamentam os denominados direitos morais de autor, assim como os

direitos patrimoniais.

É esta a teoria adotada no decorrer do presente trabalho.

78 JESSEN, H. op. cit. p. 30. 79 MORAES, Rodrigo. op. cit. p. 44. 80 Ibidem, op. cit. p. 45.

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44

2.4.7 Teoria monista ou unitária

Há, ainda, a teoria unitária criada na Alemanha – derivação da dualista – que entende

que o Direito Autoral possui uma nuance patrimonial e outra moral, mas não realizam tal

divisão.

Como assevera Rodrigo Moraes “os partidários dessa concepção, apesar de aceitarem

a diferenciação entre as duas classes de direitos (morais e patrimoniais), defendem um Direito

de Autor único, unitário, sui generis”81.

Eduardo Lycurgo Leite observa que para esta teoria é permitida a transferência de

todos os direitos do autor – faculdades morais e patrimoniais – por sucessão82.

Então, para os adeptos desta corrente, trata-se o Direito Autoral de direito único com

prerrogativas morais e patrimoniais, as quais são indissociáveis.

2.5 SUJEITOS

O Direito Autoral estabelece as prerrogativas dos autores e dos titulares dos direitos

conexos. Os primeiros são os criadores propriamente ditos; os segundos recebem tratamento

análogo aos autores, no que couber, sendo eles os intérpretes, executantes, produtores de

fonogramas e empresas de radiodifusão.

Há, ainda, uma terceira modalidade de sujeito a que se chama de titular derivado, que

consiste naquele que, por transferência gratuita83 ou onerosa, passa a explorar

economicamente a obra.

Antes, porém, de adentrar na apreciação dos sujeitos do Direito Autoral, é mister

delinear os contornos do que se concebe por sujeito de direito e o compromisso social que a

ele é conferido. Isso, porque toma-se o autor em um enfoque objetivo e sociológico no

presente trabalho.

81 Ibidem. op. cit. p. 44. 82 LEITE, Eduardo Lycurgo. Direito de autor. Brasília: Brasília Jurídica, 2004. p. 117. 83 Destaque-se que em matéria de Direito Autoral, presume-se onerosa a cessão.

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45

2.5.1 Noções gerais sobre a compreensão do sujeito de direito

Todos os homens são pessoas, dotadas de personalidade jurídica84.

Washington de Barros Monteiro ensina que o vocábulo pessoa teve origem do latim

persona, relacionando-se à máscara usada no teatro e que fazia ressoar, ecoar a voz do ator

que a usava. Posteriormente, persona passa a designar a própria personagem. Finalmente,

relacionou-se ao próprio homem que desempenhava o papel85.

Como na vida real, os indivíduos desempenham papéis, tal como ocorre com os atores

no teatro, daí que o termo persona passou também a designar o ser humano, em suas relações

sociais e jurídicas86.

Essas considerações iniciais servem de fundamento para a conceituação dada a sujeito

de direito como sendo aquela suscetível de direitos e obrigações.

Tradicionalmente, o sujeito de direito é aquele que participa da relação jurídica. É a

pessoa física ou jurídica titular de direitos e obrigações. Ser pessoa constitui a possibilidade

de ser sujeito de direito, titular de um direito, participando da relação jurídica em um dos seus

pólos87.

Como destaca Tércio Sampaio Ferraz Jr., inicialmente, o conceito de sujeito de direito

é identificado com o de direito subjetivo, de modo a vinculá-lo à liberdade e à autonomia.

Neste prisma, o sujeito de direito é vislumbrado sob a base ideológica do sujeito como titular

da propriedade privada.88

Apontando crítica a esta teoria tradicional, Hans Kelsen aduz que

A função ideológica desta conceituação do sujeito jurídico como portador (suporte) do direito subjetivo, completamente contraditória em si mesma, é fácil de penetrar: serve para manter a ideia de que a existência do sujeito jurídico como portador do direito subjetivo, quer dizer, a propriedade privada, é uma categoria transcendente em confronto com o Direito objetivo positivo, de criação humana e mutável, é uma instituição na qual a elaboração de conteúdo da ordem jurídica encontra um limite insuperável89.

84 Segundo Rafael Garcia Rodrigues, na atualidade deve-se tomar a dupla concepção de personalidade jurídica. A primeira refere-se à possibilidade de contrair direitos e obrigações, conferida tanto às pessoas físicas como às jurídicas. O segundo prisma é pertinente à visualização do ser humano como valor central do ordenamento, emanado do princípio da dignidade da pessoa humana. RODRIGUES, Rafael Garcia. A pessoa e o ser humano no Código Civil. in TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 3ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 2-3. 85 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1968. p. 58-59. 86 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 6. ed. rev. atual e aum.Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 217. 87 RODRIGUES, Rafael Garcia. op. cit. p. 1. 88 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: Técnica, decisão, dominação. 6. ed.rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2012. p. 125 89 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 191.

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Este conceito tradicional volta-se à liberdade e autonomia do indivíduo, viabilizando o

acesso à propriedade e majoração do patrimônio.

Não é, porém, o adotado no presente trabalho, haja vista que não se pode conceber o

sujeito de direito simplesmente como portador dessas faculdades conferidas pelo

ordenamento.

Numa concepção objetivada, que é a aqui empregada, o sujeito de direito é a pessoa –

física ou jurídica – a quem são conferidos os direitos subjetivos, sendo estes exercidos em

prol do interesse social, e não apenas em nome da liberdade e em prol da aquisição de

propriedade particular.

Tércio Sampaio Ferraz Jr. enfatiza que “o que chamamos de pessoa nada mais é do

que feixe de papéis institucionalizados”90 e que “o sujeito nada mais é do que o ponto

geométrico de confluência de diversas normas”91..

Hans Kelsen observa que a pessoa física é a unidade personificada das normas

jurídicas que obrigam e, concomitantemente, confere poderes ao indivíduo92.

A noção de sujeito aqui considerada adequada parte das premissas críticas apontadas

por Tércio Sampaio Ferraz Jr. e Hans Kelsen, no sentido de que a pessoa desempenha um

papel social institucionalizado.

É ela sim dotada de direitos, porém, são-lhe, também, atribuídos deveres pelo

ordenamento jurídico como um todo, desempenhando papéis sociais – tal qual aos atores no

teatro da antiguidade clássica.

Esses papéis são considerados objetivamente e são exercidos em favor não apenas do

sujeito, mas em prol da sociedade como um todo.

Neste sentido, adota-se um conceito objetivo e sociológico de sujeito de direito, e via

de consequência, de autor e titulares de direitos patrimoniais e conexos, abarcados pelo

Direito Autoral, e que serão examinados nos tópicos subsequentes, num primeiro momento

(neste capítulo segundo) à luz do discurso autoralista tradicional; e, ao longo do trabalho, de

forma objetivada – ou seja, de sujeito de direito como papel social, que tem compromisso com

o público, como um todo, na qualidade de difusores do conhecimento, que são.

90 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. p. 127. 91 Ibidem. loc. cit. 92 KELSEN, Hans. op. cit. p. 194.

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47

2.5.2 Os sujeitos do Direito Autoral

São tratados pela LDA/98 como sujeitos de direitos o autor – destinatário primordial

de proteção do Direito Autoral –, os titulares dos direitos conexos e os titulares derivados dos

direitos patrimoniais do autor.

Nesta oportunidade, são estes sujeitos apresentados, a fim de viabilizar a compreensão

subjetiva deste ramo jurídico.

2.5.2.1 O autor

O autor é a aquele que idealiza e externaliza a criação. É ele o titular originário da obra

intelectual, que a concebe e a faz vir a lume93. Não basta a sua idealização, deve a obra ser

materializada94.

Dispõe o caput do art. 11 da Lei 9810, de 19 de fevereiro de 1998 – LDA/98 – que é

autor a pessoa física que cria obra literária, artística ou científica, independentemente de ser

dotado de capacidade, ou de ser relativamente ou absolutamente incapaz.

Segundo Rodrigo Kopke Salinas, a autoria da obra intelectual só pode ser atribuída a

quem a cria, porquanto esta é resultado da atuação pessoal do seu autor. Nos seus dizeres, a

autoria é uma questão concreta95.

Eduardo Lycurgo Leite assevera que o entendimento universalmente adotado é no

sentido de que “qualquer autor deve ser de carne e osso, isto é, deve ser um ser humano

(indivíduo) capaz de se doar e despender o original esforço intelectual para a concepção da

obra”96. O autoralista ressalta, todavia, que há situações em que, por exceção, há a

possibilidade de se atribuir às pessoas jurídicas a titularidade originária sobre a obra criada,

como ocorre nas relações empregatícias.

No Brasil, estão excluídas do conceito legal de autor as pessoas jurídicas. Não obstante,

segundo o parágrafo único do acima mencionado art. 11, as pessoas jurídicas poderão receber

a proteção concedida aos autores97.

93 CHAVES, Antônio. op. cit. p. 83. 94 A materialização consiste na aposição da obra em um suporte físico. Assim é a música com o cd, o filme e o blu-ray, o texto com o livro, o software no cd room. 95 SALINAS, Rodrigo Kopke. Introdução ao direito autoral. in CRIBARI, Isabela (org). Produção cultural e propriedade intelectual. Recife: Massangana, 2006. p. 33. 96 LEITE, Eduardo Lycurgo. op. cit. Brasília: Brasília Jurídica, 2004. p. 52. 97 É teor do parágrafo único do art. 11, da LDA/98: “A proteção concedida ao autor poderá aplicar-se às pessoas jurídicas nos casos previstos nesta Lei”.

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48

O sujeito de Direito Autoral pode ser uma pessoa física ou um grupo de pessoas

físicas, podendo, ainda, ser uma pessoa jurídica, o que se dá por ficção legal. É o que ocorre

quando criada pelos componentes da pessoa jurídica ou pelos seus prepostos98.

Sobre o tema, Carlos Alberto Bittar aduz que:

Própria, por natureza, de pessoas físicas, a criação de obras intelectuais nasce, também, no âmbito de pessoas jurídicas (inclusive do Estado), existindo, aliás, no setor de comunicações, empresas especializadas em idear e produzir obras de engenho, concebidas e materializadas sob sua direção, de sorte que também podem ser titulares de direitos autorais, tanto por via originária (pela criação), como derivada (pela transferência de direitos).99

Para o Direito Autoral, apenas o homem é dotado de criatividade. A pessoa jurídica é

ficção criada pelo Direito, possui atributos também assegurados ao ser humano, mas não é

apta a expressar-se artística ou cientificamente. Para fazê-lo necessita da participação do

homem.

É o que se verifica, por exemplo, em agências de publicidade. Estas contratam

profissionais para criarem campanhas publicitárias. As pessoas físicas – empregados

publicitários – são as idealizadoras, mas o nascimento da obra se dá no âmbito da agência,

que passa a receber a proteção concedida aos autores pessoas físicas, mas não se torna autora

das obras.

É de se destacar que o Direito Autoral brasileiro, inserido no denominado sistema

individual de proteção, objetiva não apenas a proteção à obra, mas também ao autor, a quem

são assegurados não só direitos patrimoniais, como também direitos morais.

Finalmente, impende registrar que, no Brasil, para que o autor passe a exercer os

direitos sobre sua obra, basta que esta seja trazida ao exterior pelo sujeito criador, sendo

dispensado o registro, o qual, acaso realizado, é simplesmente declaratório e não constitutivo

do direito.

2.5.2.2 Os titulares derivados

O direito patrimonial do autor pode ser transmitido a outrem, seja por ato inter vivos,

seja mortis causa. O direito patrimonial de autor pode ser por este transferido contratualmente

a terceiros. Da mesma forma, como o falecimento do autor, seus herdeiros e/ou os legatários

assumem a exploração econômica da obra.

98 JESSEN, Henry. op. cit. p. 50. 99 BITTAR, Carlos Alberto. op. cit. p. 34.

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49

A estas pessoas que adquirem seja por contrato de direitos autorais, seja por sucessão

hereditária ou testamentária, denominam-se titulares derivados.

Aos adquirentes dos direitos autorais é dado explorar economicamente a obra, na

forma do contrato, que se presume oneroso, devendo o titular limitar-se à modalidade de

utilização da(s) obra(s) prevista pelas partes.

É o que sustenta Bruno Jorge Hammes, para quem os direitos de autor são suscetíveis

de cessão no Direito brasileiro, mas, diante dos aspectos morais, o adquirente tem apenas um

poder de disposição limitado.100

Também os herdeiros e/ou os legatários, uma vez aberta a sucessão, passam a exercer

a titularidade patrimonial sobre a obra, podendo defender-lhe também a integridade e autoria

do de cujus.

Delia Lipszyc aduz que:

Los sucesores – o el ejecutor testamentário – solo pueden ejercer las facultades negativas (el derecho a reivindicar la paternidad intelectual Del causante sobre su obra y a exigir el respeto a la integridad de esta) y el derecho de divulgación de lãs obras póstumas, pero no com la discrecionalidad com que puede hacerlo el autor101.

Segundo destaca Eduardo Vieira Manso, os herdeiros, os legatários e os cessionários

exercem o direito de explorar economicamente a obra até quando esta caia em domínio

público, momento em que a obra poderá ser utilizada pela coletividade como um todo102.

Destarte, têm os titulares derivados o direito de explorar economicamente a obra, até o

advento do termo final de proteção, momento em que a obra cai em domínio público, podendo

ser utilizada livremente, desde que respeitados os direitos morais – de paternidade, por

exemplo.

2.5.2.3 Os titulares de direitos conexos

Seguindo a orientação da Convenção de Roma, de 1961103, a LDA/98 define como

titulares dos direitos conexos os artistas intérpretes ou executantes, os produtores fonográficos

e as empresas de radiodifusão, determinando a aplicação, no que couber, das normas relativas

aos direitos do autor.

100 HAMMES, Bruno Jorge. Elementos básicos do direito de autor brasileiro: com exame especial da questão da isenção de formalidades. São Leopoldo: Unisinos, 1975. p. 99. 101 LIPSZYC, Delia. op. cit. p. 285. Tradução livre: Os sucessores – ou os legatários – somente podem exercer as faculdades negativas (o direito de reivindicar a paternidade intelectual e exigir o respeito à integridade da obra) e o direito de divulgação das obras póstumas, porém, não com a mesma discricionariedade com que pode fazer o autor. 102 op. cit. p. 68. 103 É de se observar que a Convenção de Roma não adota a terminologia “direitos conexos”, mas, tão somente “direitos”.

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O autor faz jus aos direitos previstos na legislação autoral, pela criação de uma obra

artística, científica ou literária. Mas há processos de criação artística que dependem de

participação de outras pessoas, para que sejam concretizados104.

A título de exemplo, tem-se os atores, cantores, bailarinos que respectivamente

concretizam os filmes, a música, a coreografia, levando-os ao conhecimento do público.

Assim, também aquele que interpreta ou executa uma obra é abrangido pela lei

autoralista. A este é atribuída a nomenclatura de titular de direitos conexos. Os executantes ou

intérpretes não são autores da obra em si, são executores destas obras. Sem eles as obras

existiriam, mas dificilmente chegariam ao conhecimento do público105.

Antônio Chaves justifica a necessidade de se reconhecer o direito do artista sobre sua

interpretação a fim de se restabelecer a relação material que existia antigamente, haja vista

que a execução não se esgota no momento em que é produzida, devendo ser uma fonte de

lucro para o artista106.

Da mesma forma, os organismos de radiodifusão e os artistas que nele atuam são

abrangidos pela proteção da LDA/98.

Segundo previsto no art. 3º, alínea f, da Convenção de Roma107, a emissão de

radiodifusão é a difusão de sons ou imagens e sons, através de ondas radioelétricas destinadas

à recepção pelo público. São organismos de radiodifusão as emissoras de rádio e televisão.

Trata-se de relevante mecanismo para a propagação de conhecimento, informação, da

própria cultura do povo, para todas as camadas da população108. Tem, ainda, a vantagem de

aproximar as Nações.

Daí a justificativa de sua proteção legal.

Segundo Antônio Chaves:

A radiodifusão desenvolve junto a cada indivíduo, no mundo inteiro, uma missão de distração, de instrução e de educação cuja importância pode ser exagerada. Não sòmente aumenta extraórdinariamente a divulgação das obras intelectuais,

104 MENEZES, Elisângela Dias, op. cit. p. 114. 105 É o que ocorreu com o compositor Pedro Luis e o cantor Ney Matogrosso. O primeiro tornou-se famoso após interpretação de suas canções pelo segundo, sendo gravado, inclusive um Cd pela dupla, titulado Vagabundo, que ganhou prêmios de melhor álbum em 2004 e 2005. 106 CHAVES, Antônio. Proteção Internacional do Direito Autoral de Radiodifusão. São Paulo: Max Limonad, p. 230-231. 107 É conteúdo do art. 3º, alínea f, da Convenção de Roma: “f) ‘emissão de radiodifusão’, a difusão de sons ou de imagens e sons, por meio de ondas radioelétricas, destinadas à recepção pelo público;”. disponível em http://www.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2008/02/cv_roma.pdf, acesso em 04 de out. de 2012. 108 Todavia, não se deve descurar que como propagação de ideologias, a radiodifusão é também mecanismo de manipulação da sociedade como um todo, como ocorreu, v.g. na Alemanha de Hitler, em que o Führer comunicava-se através das rádios com os alemães, insuflando-os a aderir à ideologia nazista.

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51

anteriormente feita apenas através de livros, publicações e conferências, como o faz numa instantaneidade análoga à de um jacto de luz.

[...]

Dilúem-se, pela radiodifusão, as barreiras mais ciumentamente levantadas entre as Nações, desaparecem as distancias, concentra-se e resume-se, em cada lar, a vida, em todos os seus aspectos, dos Países do mundo inteiro. A propaganda ideológica, comercial, religiosa, científica e técnica, encontrou, nas ondas hertzianas, a mais eficiente aliada, a ponto de Dorothy M. Frost, chegar a afirmar que o aparecimento da radiodifusão foi um acontecimento decisivo para a sorte da humanidade. 109

Finalmente, o produtor de fonogramas também é abarcado pela proteção autoralista.

Segundo preceitua o art. 3º, c da Convenção de Roma110, o produtor de fonogramas é a pessoa

física ou jurídica que, pela primeira vez, fixa os sons de uma execução.

Vários motivos podem ser apresentados como fundamentos desta proteção. O primeiro

deles diz respeito à divulgação das obras. Os produtores de fonogramas auxiliam a propagar

as obras.

Porém, pensar ser este o único motivo pelo qual é conferida a proteção aos organismos

de radiodifusão e aos produtores de fonogramas é pensar ingenuamente. As prerrogativas

legais são também justificadas pelo fato de que estes movimentam quantias significativas.

É o que assevera Plínio Cabral:

O fonograma tornou-se importante porque permite levar uma execução, seja ela musical ou de qualquer natureza, a milhões e milhões de pessoas. É algo que vem se aperfeiçoando, das caixas de música aos discos de vinil, às fitas cassetes e, agora, aos cd’s. A tecnologia nesse campo avança a passos de gigante. Bilhões e bilhões de dólares são investidos nessa indústria, o que gera interesses econômicos verdadeiramente vultosos.111

Em uma sociedade de informação, enfatiza-se o aspecto econômico112, não só no que

tange aos produtores de fonogramas, como também quanto aos demais titulares. Assim, a

verdadeira justificativa da proteção é, principalmente, relacionada às questões econômicas.

2.6 OBJETO

Resultado do espírito humano, a obra intelectual é protegida pelo ordenamento

jurídico, através do ramo jurídico comumente chamado de propriedade intelectual. A

propriedade intelectual abrange a proteção de diversas modalidades de criações. 109 CHAVES, Antônio. op. cit.. p. 100-101. 110 Cita-se o conteúdo da alínea c: “c) ‘produtor de fonogramas’, a pessoa física ou jurídica que, pela primeira vez, fixa os sons de uma execução ou outros sons;” disponível em http://www.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2008/02/cv_roma.pdf, acesso em 04 de out. de 2012. 111 CABRAL, Plínio. op. cit. p. 119. 112 Rodrigo Moraes destaca a necessidade de dar maior valor ao aspecto pessoal do que ao econômico – patrimonial, propondo uma mudança de paradigma quanto ao direito autoral. MORAES, Rodrigo. op. cit. passim.

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Há, segundo informa Carlos Alberto Bittar, duas espécies de obras: as de cunho

estético e as de caráter utilitário. As primeiras encontram-se protegidas pelo Direito Autoral,

as segundas, pela Propriedade Industrial113.

Como dito, a obra literária, artística ou científica é o objeto do Direito Autoral. É

necessário, porém, que sejam observados os requisitos previstos na lei para que a proteção

seja conferida114. Segundo o art. 7º da vigente LDA/98115, serão protegidas as obras

intelectuais criadas pelo espírito humano, expressas por qualquer meio ou fixadas em

qualquer suporte, seja ele tangível ou não, que já se conheça, ou seja, inventado no futuro.

Nos incisos do citado dispositivo legal, são elencadas algumas das criações abrigadas

pela lei, em listagem enumerativa. É, pois, possível conferir proteção a outras obras além das

que estão ali enumeradas, posto que, como bem ressalta Plínio Cabral “o campo da

criatividade é imenso, infindável e até mesmo desconhecido pelas suas possibilidades”116.

Ficam, desta forma, abrangidas obras que não estejam elencadas no rol do artigo em

comento, desde que preenchidas as características identificadoras.

Henry Jessen aduz que para que seja protegida, a obra deve atender a três requisitos

concomitantemente. São eles: pertencer ao domínio das letras, das artes ou das ciências; ter

originalidade; e achar-se no prazo de proteção previsto em lei117.

É de se discordar neste tocante, haja vista que, o prazo previsto em lei não é condição

para que a proteção seja conferida, porquanto, mesmo que a obra tenha caído em domínio

público, há direitos morais que persistem, tais como o da paternidade e o da incolumidade da

obra.

113 BITTAR, Carlos Alberto. op. cit. p. 19. 114 Estes requisitos para que haja a proteção da criação do intelecto nada mais são do que modalidades de limitação intrínseca dos próprios direitos do autor. 115 É conteúdo do artigo em comento: “Art. 7º. São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: I – os textos de obras literárias, artísticas ou científicas; II – as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza; III – as obras dramáticas e dramático-musicais; IV – as obras coreográficas e pantomímicas e outras obras da mesma natureza; V – as composições musicais, tenham ou não letra; VI – as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas; VII – as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia; VIII – as obras de desenhos, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética; IX – as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza; X – os projetos, esboços e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova; XII – os programas de computador; XIII – as coletâneas ou compilações, ontologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual”. 116 CABRAL, Plínio. op. cit. p. 26. 117 JESSEN, H. op. cit. p. 53.

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Seguindo o posicionamento de Carlos Alberto Bittar118, Plínio Cabral119, Henrique

Gandelman120, Elisângela Dias Menezes121, são requisitos para a proteção: que a obra seja

criada e exteriorizada pelo homem, que seja original, que seja materializada.

Passa-se, então, a examinar cada um dos citados requisitos exigidos para a proteção

autoral.

O primeiro deles é a criação pelo homem. Somente a obra que seja fruto do espírito

humano merece proteção.

Assim, obras criadas por animais, por exemplo, fogem ao abrigo da norma autoralista.

Da mesma forma, as denominadas obras psicografadas são atribuídas aos que as subscrevem,

como ocorreu com Chico Xavier e Zibia Gaspareto, e não aos que já “passaram deste mundo”.

Tendo em vista que a simples ideia não é protegida pelo Direito Autoral, é necessário

que seja ela exteriorizada, trazida ao mundo exterior, assumindo uma forma.

Destarte, a ideia pura e simples não recebe proteção autoral. É necessária a conjugação

da ideia com a expressão criativa do autor, sendo a obra – a criação formal – o resultado final

a que se atribui a proteção.

É o que leciona Delia Lipszyc:

El derecho de autor protege la expressión formal del desarrollo del pensamiento, otorgando al creador derechos exclusivos de carácter patrimonial a la publicación, difusión e reproducción de la obra y derechos de caráter pesonal. El derecho de autor propugna la creación de obras. Si se otorgaran derechos exclusivos sobre las ideas consideradas em si mismas, se obstaculizaria su difusión y con ello se impediria el desenvolvimiento de la creatividad intelectual.122

Justificando tal exigência, Elisângela Dias Menezes sustenta que no campo das ideias

não se há de falar em proteção, porque, acaso não exteriorizadas, elas fogem ao domínio do

real. Para a autora, a proteção somente será conferida se houver a existência fática do

objeto123.

118 in Direito de autor. 119 in A nova lei de direitos autorais: comentários. 120 in De Gutenberg à internet: direitos autorais na era digital. 121 in Curso de direito autoral. 122 LIPSZYC, Délia. op. cit. p. 62. Tradução livre: O Direito de autor protege a expressão formal do desenvolvimento do pensamento, outorgando ao criador direitos exclusivos de caráter patrimonial de publicação, difusão e reprodução da obra e direitos de caráter pessoal. O direito de autor propugna a criação de obras. Se se outorgassem direitos exclusivos sobre as ideias consideradas em si mesmas, se obstacularizaria sua difusão e com isso, se impediria o desenvolvimento da criatividade intelectual. 123 MENEZES, Elisangela Dias. op. cit. p. 42.

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Também a materialização da obra é necessária, para os casos em que a comunicação

oral por si só não é suficiente124. Por materialização entende-se a aposição da obra em um

suporte tangível ou não125. É o que ocorre com os CD’s, em que são materializadas as

canções. Do mesmo modo, uma obra literária pode ser aposta em um livro “tradicional”, a

brochura impressa, como também, em bibliotecas virtuais e, atualmente, nos tablets.126.

Eliane Yachouh Abrão manifesta-se sobre a materialização nos seguintes termos:

São obras intelectualmente protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro. Portanto, o pré-requisito fático necessário ao reconhecimento de uma obra protegida é o de que esteja fixado em suporte, ou seja, expressado concretamente por qualquer meio, de modo a ser captado pelos sentidos do beneficiário – consumidor de obra intelectual – e ser passível de multiplicação por meio de cópias, reproduções físicas ou virtuais.127

José de Oliveira Ascensão repudia, porém, a tendência materialística, destacando ser

distinta a obra do suporte material que a encerra. Segundo ele, via de regra, a obra não

equivale ao suporte e acaso perdidos todos os suportes, a obra permanece protegida pelo

Direito Autoral. Destaca o referido autor que “a obra é uma realidade incorpórea; a

exteriorização que ela representa ainda pode ser imaterial, bastando que se revele aos

sentidos”128. O autor português não refuta a aposição da obra em um corpo físico ou não, o

que ele contesta é a confusão que se costuma fazer entre a criação e o suporte.

Para que a obra seja protegida, impõe-se, ainda, seja ela original. A originalidade na

forma de expressão da obra é condição para a proteção autoral. Não se exige, porém, que a

obra apresente uma novidade absoluta. Deve ela ser apresentada com características

peculiares, com componentes próprios, traços marcantes da personalidade de seu autor.

Segundo Eduardo Vieira Manso:

Ao Direito Autoral interessam os requisitos estruturais da obra intelectual, isto é, o seu conteúdo formal, a sua causa formal. É à obra intelectual que a proteção da lei se aplica, seja à sua forma interna (sua textura íntima, seu verdadeiro ser místico, que lhe permite o reconhecimento em qualquer circunstância), seja à sua forma externa (o seu veículo, seu instrumento, sua modalidade de estar no mundo, concreta e sensivelmente). [...]

124 Há casos em que a materialização é dispensada, como se vê nas palestras, aulas, discursos, danças, mímicas, dentre outros. 125 Com o avanço tecnológico, a utilização das obras pelo meio digital resulta na mitigação da sua materialização em um corpo mecânico tangível. 126 Como observa Plínio Cabral “o livro é imortal, como instrumento que fixa o pensamento do criador. Sua forma, entretanto, vem mudando constantemente”. CABRAL, Plínio. op. cit. p. 27. 127 ABRÃO, Eliane Yachouh. Titularidade e liberdade no uso de ideias e formatos na propriedade intelectual. in ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; MORAES, Rodrigo (org.). Propriedade Intelectual em Perspectiva. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. p. 81. 128 ASCENSÃO, José de Oliveira. op. cit. p. 31.

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A forma interna da obra intelectual condiz com sua originalidade, isto é, decorre de uma organização pessoal que seu autor lhe dá, com a composição de suas ideias, ou de seus sentimentos. [...]

A originalidade da obra intelectual não significa novidade; o seu autor não a precisa criar ex nihilo: pode fazê-lo a partir de velhas ideias, de temas antigos, de assuntos já tratados antes, por outros. [...]

A forma externa, por sua vez, condiz com a criatividade pessoal do autor, referindo-se ao modo de a obra estar no mundo, porque é um estado contingente dela.129

A originalidade é, pois, condição necessária para a proteção. É ela relacionada ao

espírito criativo e individualizado do criador da obra, sendo expressão da personalidade deste.

Consequência de tal requisito é o repúdio às obras que sejam cópias – fiel ou

dissimulada – de criação já existente, haja vista que despidas de originalidade. É o que ocorre,

por exemplo, com o plágio, situação em que a pessoa apresenta como seu trecho ou totalidade

de obra de outra pessoa, podendo ser servil – tal qual a obra original – ou elaborado – com

alterações, para mascarar a apropriação indevida da obra.

O plágio distingue-se das paródias e paráfrases, que tomam por base outra obra e que

são lícitas, dispensando-se, inclusive, a permissão do autor da obra parodiada ou

parafraseada130. Também as obras derivadas, tais como adaptações e resumos, desde que

autorizadas, serão protegidas, porque, mesmo sendo baseada em ideia constante de outra obra,

possuem características próprias do autor que as elabora, sendo dotadas de originalidade.

E mais, para que a obra seja protegida não é relevante o seu valor ou o seu mérito. Não

é considerado o seu valor intrínseco. Em Direito Autoral, não se discute se determinada obra é

de boa qualidade ou não, se traz acréscimo à cultura, se é de bom gosto, se foi criada por

“autoridade” ou por um desconhecido.

Tais valorações fogem ao âmbito de proteção. Basta que a obra seja criada pelo

homem, que seja original, tenha sido materializada, para merecer proteção.

A qualidade de uma obra não constitui critério atributivo de titularidade, ou seja, a

proteção é concedida a uma criação, independentemente de seus méritos literários, artísticos,

científicos ou culturais.131

Eduardo Vieira Manso manifesta-se a respeito aduzindo que o valor ou o mérito da

obra intelectual não servem de parâmetro “para o seu enquadramento no rol das obras

129 MANSO, Eduardo Vieira. A informática e os direitos intelectuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 3. 130 As paráfrases e paródias são livres, desde que não sejam verdadeiras reproduções da obra originária e não tragam descrédito à obra e ao autor. 131 GANDELMAN, Henrique. op. cit. p. 35.

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protegidas, porque, tanto faz que se trate de um poema de Paulo Bonfim, como de um canto

improvisado de um violeiro da Feira de Caruaru”132.

Destarte, diante da característica plural de nossa atual sociedade, tal tomada de posição

é relevante para assegurar a diversidade cultural, respeitando-se as diferenças.

Preenchidos os requisitos supra examinados, a obra será protegida pelo Direito

Autoral. Esta proteção se dá para que seja viabilizada a produção intelectual, incentivando o

autor a criar mais, o que repercute diretamente no desenvolvimento da cultura.

2.7 DIREITOS PATRIMONIAIS

Os direitos patrimoniais de autor são uma modalidade peculiar de propriedade133, pois

pertinente a um bem incorpóreo, e tendo em vista que indissociavelmente ligado aos

denominados direitos morais do autor.

Interessa, neste momento, a possibilidade de exploração econômica pelo criador da

obra intelectual.

2.7.1 Considerações iniciais

Os direitos patrimoniais do autor possuem características próprias. Assim, além das

faculdades de usar, gozar e dispor, asseguradas a qualquer proprietário, e da vinculação à

função social da propriedade – elemento ínsito deste direito, como será tratado nos capítulos

subsequentes –, outras peculiaridades da propriedade autoral são apontadas.

O direito de exploração econômica é assegurado ao autor sobre a obra por ele criada

no art. 5º, XXVII da Constituição Federal, sendo-lhe dado utilizar – publicar ou reproduzir

suas obras – ou transferir tais direitos a terceiros.

Também a LDA/98, em seu art. 22, dispõe pertencer ao autor os direitos patrimoniais

sobre a obra que criou134 e em seu art. 28 assegura ao autor o direito exclusivo de utilizar,

fruir e dispor da obra literária, artística ou científica.

132 MANSO, Eduardo Vieira. op. cit. p. 8. 133 Já não mais se fala em propriedade, mas sim em propriedades, como asseveram Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. Os citados doutrinadores alertam para a mudança de paradigma ocorrida no tocante à propriedade, destacando que na sociedade pós-moderna, cuja característica marcante é a complexidade, há uma pluralidade de manifestações do fenômeno jurídico em comento. Para a propriedade intelectual, em que se insere o Direito Autoral, ressaltam os aludidos autores que há a aptidão do criador de explorar a obra economicamente, bem como se faz presente outro vértice, qual seja, a proteção extrapatrimonial, referente ao patrimônio moral e à própria humanidade do titular. in FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009. p. 173. 134 O art. 22 da LDA prevê também a titularidade dos direitos morais do autor, tema que será examinado no próximo tópico deste capítulo.

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A esta nuance dos direitos do autor, denomina-se direito patrimonial. Da criação, o

autor retira proveito econômico, de forma exclusiva, podendo dispor de tal direito em favor de

outrem, se assim lhe aprouver – é o que se costuma chamar de direito de exclusivo.

Todavia, como supra enfatizado, nem sempre foi assim. Até o advento do Estatuto da

Rainha Ana, não havia a proteção patrimonial do autor que nada recebia pelas suas criações.

A mudança de perspectiva é relevante, por resultar numa forma de incentivo à

produção cultural135. Daí ser justificada a remuneração do autor pela obra de seu intelecto.

Deve ser também considerado que o autor é um trabalhador como qualquer outro,

necessitando de capital para poder sustentar a si e a sua família, com dignidade.

É o que defende Hildebrando Pontes

Há que se ter em mente que os autores vivem dos rendimentos que obtêm com a comercialização de suas obras. Por isso, os direitos patrimoniais adquirem um caráter falimentar, em especial para aqueles autores que vivem unicamente da comercialização de sua produção intelectual, almejando por meio dessa atividade uma condição de vida digna. Se não fosse assim, não haveria razão plausível para que os autores alienassem suas obras136.

Sendo uma modalidade de propriedade, com características específicas, a doutrina

autoralista apresenta alguns traços que são próprios dos denominados direitos patrimoniais do

autor, que serão examinados a seguir.

2.7.2 Características

Delia Lipszyc afirma que os direitos patrimoniais são independentes entre si, não estão

sujeitos a numerus clausus, podem ter sua utilização fracionada no tempo e no espaço, as

limitações a eles impostas são apenas as previstas em lei, e à autorização de uso corresponde o

direito do autor de ser remunerado137.

Carlos Alberto Bittar traça como características básicas dos direitos patrimoniais: o

cunho real, o caráter de bem móvel, a alienabilidade, a temporalidade, a penhorabilidade, a

prescritibilidade, a independência entre os diferentes tipos de direitos patrimoniais138.

Hildebrando Pontes aduz que a doutrina autoralista aponta como traços

caracterizadores dos direitos patrimoniais de autor a exclusividade, a ilimitação, a

135 Este tema será retomado no item 5.2.3 infra. 136 PONTES, Hildebrando. op. cit. p. 79. 137 LIPSZYC, Delia. op. cit. p. 174-179. 138 BITTAR, Carlos Alberto. Op. cit. p. 50-51.

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disponibilidade, a possibilidade de expropriação, a renunciabilidade, a temporalidade e a

possibilidade de serem embargados139.

Não descurando de outras características traçadas pela doutrina, é de se classificar os

direitos patrimoniais tomando por base suas características principais, quais sejam: a

exclusividade, os direitos patrimoniais não se sujeitam ao numerus clausus140, são

temporários, disponíveis, renunciáveis e penhoráveis/ expropriáveis.

2.7.2.1 Exclusividade

A exclusividade do direito patrimonial consiste no fato de que ao autor é dado explorar

a obra por si, ou autorizar a sua utilização e exploração econômica por terceiros.

Pela exclusividade do direito patrimonial, somente ao autor é dado explorar a obra por

si, ou autorizar a sua utilização e exploração econômica por outrem. Tal faculdade é a ele

assegurada e a mais ninguém.

Segundo Hildebrando Pontes, a essência do direito patrimonial se manifesta na

exclusividade do direito de exploração da obra, e nas múltiplas possibilidades de que dispõe o

autor de receber com a sua comercialização, resultados econômicos satisfatórios141.

2.7.2.2 Não se sujeitam ao numerus clausus

A exploração econômica pode se dar de diversas formas, não exaustivas, haja vista

que os direitos patrimoniais são reconhecidos pela lei genericamente. Daí dizer-se que não se

sujeitam ao numerus clausus.

Conforme Delia Lipszyc

Los derechos de explotación de que dispone el autor son tantos como forma de utilización de la obra sean factibles, no solo em el momento de la creación de la obra, sino durante todo el tiempo em que ella permanezca em el domínio privado142.

Rodrigo Kopke Salinas assevera que o direito patrimonial de autor é um “feixe de

direitos” uma vez que ao autor são assegurados tantos direitos quantas forem as formas de

utilização de sua obra143.

139 PONTES, Hildebrando. Op. cit. p. 40. 140 Seguindo nomenclatura de Delia Lipszyc, prefere-se adotar no presente trabalho a expressão “não se sujeitam ao numerus clausus” em detrimento do termo “ilimitado”, haja vista que este último pode ensejar a indevida interpretação de que os direitos patrimoniais não sofreriam limitações externas ou internas, o que não coaduna com a realidade. Merece registro que tal palavra pode ser empregada buscando-se significar que os direitos patrimoniais seriam ilimitados em sua quantidade, sendo possível criar um sem-número de situações que a eles dão ensejo. 141 PONTES, Hildebrando. op. cit. p. 40. 142 LIPSZYC, Delia. op. cit. p. 175.

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Quer-se com isso dizer que o autor pode autorizar a utilização da obra por meios

distintos e autônomos entre si.

A título de exemplo, tome-se uma obra literária X. O autor desta obra pode permitir a

edição de livros. Separadamente, autoriza que a obra seja adaptada para o teatro, para que seja

feito um musical com seu conteúdo. Pode, ainda, através de outro negócio jurídico, permitir a

gravação de um filme, ou mesmo de um seriado de televisão, com base nesta mesma obra.

Assim, afirma-se que a exploração não se sujeita ao numerus clausus.

2.7.2.3 Temporalidade

A exploração econômica da obra não se dá de forma perpétua. Ela é sim vitalícia –

dura por toda a vida do autor – persistindo também, após a sua morte, pelo prazo fixado em

lei. Por isso se afirma que a proteção patrimonial é temporária.

Rodrigo Moraes assevera que o princípio da temporalidade dos direitos autorais é

direito fundamental, devendo o prazo ser fixado pelo legislador com razoabilidade144.

No caso do Brasil, o prazo é de 70 (setenta) anos e o início de cômputo de sua

contagem varia de acordo com a espécie de obra, como será tratado abaixo145.

2.7.2.4 Disponibilidade

A disponibilidade consiste na possibilidade que o autor tem de, onerosa ou

gratuitamente, transferir a terceiro o direito de exploração da obra. Esta transferência pode se

dar através de cessão ou de concessão dos direitos146, sendo imprescindível a anuência do

criador para que se configure.

Sobre a transmissibilidade e a exploração econômica da obra por terceiros que não o

autor, H. Jessen sustenta que:

143 SALINAS, Rodrigo Kopke. op. cit. p. 29-31 144 MORAES, Rodrigo. Direito Fundamental à temporalidade (razoável) dos direitos patrimoniais do autor. in SANTOS, Manoel J. Pereira dos. Direito de autor e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 254-290. 145 No item 2.9.2 infra. 146 Eduardo Vieira Manso distingue contratos de cessão de contratos de concessão de direitos de autor. Para o citado autoralista, pelos contratos de cessão, o titular de direitos patrimoniais do autor transfere, em todo ou em parte, de forma definitiva tais direitos, visando à utilização pública da obra. Trata-se de contrato que opera efeitos de compra e venda, visto que o cedente aliena seus direitos. Nos dizeres do autor “sem atentar para a ambigüidade da palavra cessão, os legisladores passaram a se valer dela sem nenhum critério científico, empregando-o ora no sentido de mero cumprimento da obrigação de transferir, mesmo temporariamente, direitos autorais, ora no de sua alienação definitiva, total ou parcial”. in MANSO, Eduardo Vieira. Contratos de Direito Autoral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 23. Quanto à concessão dos direitos do autor, o citado autoralista assevera que a concessão é “modalidade de negociação que transfere ao seu beneficiário a faculdade de utilizar a obra intelectual, publicamente e com fins econômicos, sem que idêntico direito deixe de integrar o patrimônio do cedente”. MANSO, Eduardo Vieira. op cit. p.41.

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O direito patrimonial sobre a obra se consubstancia na faculdade exclusiva de explorá-la por qualquer processo, fixando o preço e as condições de exploração. Na prática, o autor raramente faz uso pessoal dessa prerrogativa. Os autores que publicam e executam suas próprias obras constituem exceções. Em geral confiam a tarefa de explorá-las comercialmente a terceiros: editores, sociedades autorais, produtores fonográficos e cinematográficos147.

É dado, pois, ao autor, autorizar a terceiro a reprodução ou a representação da sua

criação intelectual, sendo que para cada forma de utilização da obra, faz-se necessária uma

autorização diferente.

Assim, o criador de uma obra literária pode autorizar que esta seja explorada

economicamente por determinada editora, que irá vender livros com o seu conteúdo. Por sua

vez, para que haja a adaptação da mesma obra para o teatro, deve haver nova autorização. O

mesmo ocorreria caso se pretendesse adaptá-la para o cinema ou televisão.

Ainda na busca de preservar o criador da obra intelectual abarcada pelo Direito

Autoral, os negócios jurídicos que tenham por objeto a transferência do direito de explorar

economicamente a obra são interpretados restritivamente e se presumem onerosos. E mais, a

interpretação destes negócios faz-se em favor do autor.

Finalmente, a transmissão do direito abrange apenas sua esfera patrimonial, não

alcançando os direitos pessoais do criador.

2.7.2.5 Renunciabilidade

Diretamente relacionado com a possibilidade de alienação, é a possibilidade de

renúncia dos direitos patrimoniais. São estes renunciáveis, porquanto ao autor é dado explorar

economicamente a obra, bem como deixar de fazê-lo, inclusive, permitindo a terceiro a sua a

sua utilização gratuita.

A renúncia, porém, não alcança os direitos morais do autor.

2.7.2.6 Possibilidade de expropriação

A possibilidade de expropriação é também uma característica do direito patrimonial.

Pode o direito patrimonial ser penhorado ou gravado de outra forma.

Destaque-se, que neste caso, o gravame incide sobre a esfera patrimonial do direito de

autor e não sobre seu âmbito moral. Desta forma, o direito moral de paternidade sobre a obra

continua incólume.

147 JESSEN, H. op. cit. p. 31.

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2.7.3 Espécies tradicionalmente trazidas pela doutrina

Para a utilização de obra literária, artística ou científica, faz-se indispensável a

autorização do seu autor148. Esta autorização é obrigatória e deve ser dada de forma prévia e

expressa. Impõe-se, ainda, sejam previamente delimitadas as condições da avença.

Tradicionalmente, apresentam-se como espécies de utilização da obra a reprodução,

distribuição e a representação ou comunicação.

A primeira consiste na cópia de um ou mais exemplares da obra e sua incorporação em

um suporte tangível ou não. A segunda é “compreendida como decorrência natural do direito

de reprodução”149, tratando-se da forma em que os exemplares reproduzidos serão

disponibilizados ao público em geral. A terceira é a execução direta da obra, fazendo-se com

que esta seja usufruída pelo público.

A reprodução é pertinente à materialização da obra no suporte para sua posterior

distribuição à coletividade. A distribuição é a colocação à disposição do original ou dos

exemplares da obra. Já a representação diz respeito à execução direta ou por atos, como as

encenações, a dança, ou mesmo pela sua projeção por satélite ou cabo.

Porém, como dito acima150, os direitos patrimoniais não se encaixam em um rol

taxativo, sendo passíveis de exploração nas mais variadas formas, podendo assumir novas

feições que não as previstas na lei e na doutrina pátrias.

Estas são as principais formas de utilização elencadas pela lei e pela doutrina, mas que

não excluem outras.

Neste sentido, oportuna a lição de Delia Lipszyc:

Los derechos de exploración de que dispone el autor son tantos como formas de utilización de la obra seam factibles, no solo en el momento de la creación de la obra, sino durante todo el tiempo em que ella permanezca em el dominio privado. Sin embargo, com finalidad didáctica y para aventar problemas de interpretación de um princípio básico em uma matéria relativamente nueva y poço difundida, las leyes mencionam, detalladamente, los distintos derechos patrimoniales, los cuales se corresponden com las diversas formas em que el autor puede ejercelos (por ejemplo, el derecho de reprodución es el derecho a reproducir uma obra mediante la realización de ejemplares o copias em cualquier forma material; el derecho de representación ed el de representar públicamente uma obra teatral; el derecho de

148 O uso não autorizado de obra caracteriza ilícito civil e penal. 149 PONTES, Hildebrando. op. cit. p. 46. 150 No item 2.7.2.2, supra.

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radiodifusión es el de transmitir o retransmitir la obra por radio y televisión; etcétera). 151

Às espécies de utilização da obra acima elencadas, soma-se, ainda, o denominado

droit de suit ou direito de sequência, pelo qual fica assegurada ao autor a participação nos

lucros que advierem após a primeira transferência da obra. Trata-se de direito patrimonial que,

por força de lei, é irrenunciável e inalienável.

Pelo direito de sequência, o autor faz jus a receber, pelo menos, 5% (cinco por cento)

da diferença de valor verificável a cada revenda da obra de arte ou do manuscrito, que tenha

transferido a terceiros. Busca-se, com isso, proporcionar que o autor tenha acesso ao lucro

posteriormente advindo de sua criação intelectual.

Certo é que o controle por parte do autor destas transferências é muito difícil, haja

vista que no mais das vezes, estas ocorrem fora de seu alcance. “É de fato impossível ao autor

estar em todas as feiras, exposições e demais mercados de circulação e comercialização da

arte.”152.

Estes, pois, os principais direitos patrimoniais assegurados aos autores.

2.8 DIREITOS MORAIS153 DO AUTOR

O autor, ao criar, recebe influência – social e histórica – do meio em que vive. Mas a

maior contribuição para a criação é dada por suas características próprias: é a contribuição

pessoal do autor.

Idealizada, concebida, trazida à lume, a obra traz, inegavelmente, conteúdo que

espelha as peculiaridades de seu criador.

151 LIPSZYC, Delia. op. cit. p. 175-176. Tradução livre: Os direitos de exploração de que dispõe o autor são tantos quanto sejam factíveis as formas de utilização da obra, não apenas no momento em que se dá a criação da obra, mas durante todo o tempo em que ela permaneça em domínio privado. Sem embargo, com finalidade didática e para afastar problemas de interpretação de um princípio básico em uma matéria relativamente nova e pouco difundida, as leis mencionam, detalhadamente, os distintos direitos patrimoniais, os quais correspondem a diversas formas pelas quais o autor pode exercê-los (por exemplo, o direito de reprodução é o direito de reproduzir uma obra mediante a confecção de exemplares ou cópias em qualquer forma material; o direito de representação, de representar publicamente uma obra teatral; o direito de radiodifusão é o de transmitir e retransmitir a obra por radio e televisão etc.) 152 MENEZES, Elisângela Dias. op. cit. p. 88 153 Há debate na doutrina acerca da nomenclatura empregada para denominar esta espécie de direitos subjetivos do autor. H. Jessen, por exemplo, sustenta que a expressão direitos morais não o agrada. No seu entender, melhor seria denominar esta espécie de direitos de direitos pessoais, em contraposição aos patrimoniais. in JESSEN, H. op. cit. p. 32. Também José de Oliveira Ascensão critica a expressão direitos morais. Para ele, “o qualificativo ‘moral’ é impróprio e incorreto. É impróprio, pois há setores não éticos no chamado direito moral e é incorreto, pois foi importado sem tradução da língua francesa”. in ASCENSÃO, José de Oliveira. op. cit. p. 129.Todavia, por ser expressão consagrada, será também empregada, no decorrer do presente trabalho, a denominação direitos morais. Enfatiza-se, por oportuno, que a expressão é grafada no plural, diante da multiplicidade de direitos conferidos ao autor.

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63

A criação intelectual é resultado direto da pessoa do seu criador, estando a ele

vinculada. O ato de criação reflete uma direta conexão entre criador e criatura. Esta é projeção

daquele. Os traços da personalidade marcam a criação humana, daí que, dentre os direitos

subjetivos do autor, são incluídos os denominados direitos morais – que são direitos de

personalidade154.

Consequência disto é que a proteção patrimonial afigura-se insuficiente para a

proteção integral do autor, motivo pelo qual são conferidos os denominados direitos morais

ou direitos pessoais155, como preferem alguns.

O Direito Autoral, em suas origens, foi considerado quase que exclusivamente sob seu

enfoque patrimonial. À medida que este ramo do Direito se desenvolveu, reconheceu-se a

relevância do direito moral que tem por fito a proteção da personalidade do autor em relação à

sua obra156.

Sobre a evolução do direito moral de autor, é imperioso transcrever a lição de Antônio

Chaves, para quem:

A defesa da integridade física, moral e social da personalidade humana passou da esfera do direito público para a do direito civil, onde encontrou ambiente mais propício para desenvolver-se em toda a sua plenitude, dando ensejo a que exercesse benéfica influência sobre o sistema geral dos direitos de autor, a tal ponto que ninguém contesta hoje em dia que a personalidade do autor, como tal, deva ser protegida independentemente da proteção usufruída pelo destino comercial da obra157.

A existência do aspecto extrapatrimonial é, pois, indiscutível, havendo, como

destacado linhas acima, teoria que atribui ao Direito Autoral natureza jurídica personalista, a

qual, a despeito de incompleta, evidencia a relevância da proteção ao autor e à sua

personalidade.

154 Bruno Jorge Hammes considera que os direitos morais do autor protegem o autor nas suas relações pessoais e de espírito com a obra. No seu entender, a despeito de dizer respeito à personalidade do autor, não se trataria de direito de personalidade. in HAMMES, Bruno Jorge. op. cit. p. 58. não há como concordar com este posicionamento, porquanto, como sustenta Rodrigo Moraes, a despeito de não serem inatos, os direitos morais do autor são direitos da personalidade, haja vista que são prolongamento do seu espírito criativo, sendo uma projeção de sua personalidade. in MORAES, Rodrigo. op. cit. p. 10. Este tema será retomado no item 2.8.1, infra do presente trabalho. No mesmo sentido, Manuella Santos, in Direito autoral na era digital. 155 No sistema de proteção adotado pelo Brasil, os direitos morais de autor são reconhecidos e protegidos, seguindo-se os ditames da Convenção de Berna, que em seu art. 6 “bis” estatui: “Art. 6, bis. 1 – Independentemente dos direitos patrimoniais de autor, e mesmo depois da cessão dos citados direitos, o autor conserva o direito de reivindicar a paternidade da obra e de se opor a toda deformação, mutilação ou outra modificação dessa obra, ou a qualquer dano à mesma obra, prejudiciais à sua honra ou à sua reputação”. 156 LIPSZYC, Delia. op. cit. p. 154-155. 157 CHAVES, Antônio. op. cit. p. 290.

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64

2.8.1 Conceito e natureza jurídica

Os denominados direitos morais são a outra faceta dos direitos do autor que merece ser

apreciada neste estudo, estando eles diretamente relacionados à proteção da pessoa do criador

da obra intelectual.

Segundo Eduardo Vieira Manso, chama-se direito moral pelo fato de não ser redutível

a um valor patrimonial. Através dele, objetiva-se a proteção não apenas do autor, como

também da própria obra em si mesma158.

A despeito de existirem críticas159 quanto à expressão direito moral, no presente

trabalho serão adotadas as duas expressões – direito moral e direito pessoal – com o mesmo

sentido. Empregar-se-á, também, a expressão, direito extrapatrimonial na mesma acepção.

Conceituando os direitos pessoais de autor, Carlos Alberto Bittar aduz que

são os vínculos perenes que unem o criador à sua obra, para realização da defesa de sua personalidade. Como os aspectos abrangidos se relacionam à própria natureza humana e desde que a obra é a emanação da personalidade do autor – que nela cunha, pois, seus próprios dotes intelectuais –, esses direitos constituem a sagração, no ordenamento jurídico, da proteção dos mais íntimos componentes da estrutura psíquica de seu criador160.

Bruno Jorge Hammes afirma que “o direito moral é o que protege o autor nas suas

relações pessoais e ideais (de espírito) com a obra”161.

O direito moral é a pluralidade de prerrogativas extrapatrimoniais que objetivam

salvaguardar tanto a personalidade do autor, como a obra intelectual em si mesma, porquanto

esta é uma projeção do espírito de seu criador162.

A despeito de não ser um direito inato – não nasce conjuntamente com o ser humano,

mas apenas após, com a criação da obra – não deixa o direito moral do autor de ser um direito

de personalidade, pois, como destacado linhas acima, a obra é uma extensão de seu criador, é

a projeção da personalidade deste.

Elimar Saziawski ressalta que nem todos os direitos de personalidade são inatos, e

conclui que os direitos morais do autor e do inventor se caracterizam como direitos especiais

158 MANSO, Eduardo Vieira. op. cit. p. 52. 159 ASCENSÃO, José de Oliveira, op. cit. p. 130, por exemplo, afasta a terminologia “direito moral” correntemente utilizada, preferindo adotar a expressão “direito pessoal”. Para o citado autoralista, a adoção do termo “moral” é inadequada porque há direitos do autor que não são morais, éticos e tendo em vista que a expressão teria sido traduzida inapropriadamente do francês. 160 BITTAR, Carlos Alberto. op. cit. p. 47. 161 HAMMES, Bruno Jorge. op. cit. p. 58. 162 MORAES, Rodrigo. op. cit. p. 8.

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65

de personalidade, podendo surgir após o nascimento da pessoa (e não com o nascimento

desta)163.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho catalogam o direito às criações

intelectuais no rol dos direitos psíquicos da personalidade, por serem manifestação direta da

liberdade de pensamento164.

Francisco Amaral assevera que os direitos autorais são uma das espécies dos direitos

de personalidade, e elenca os direitos morais do autor entre os direitos à integridade

intelectual165.

Em síntese, o direito pessoal de autor objetiva a proteção do próprio autor, sujeito de

direito que exterioriza a obra, a qual é uma extensão de sua personalidade e, como tal, merece

guarida no ordenamento jurídico.

2.8.2 Características

Compendiando os caracteres dos direitos morais de autor, Delia Lipszyc assevera que

o direito moral de autor é essencial, extrapatrimonial, inerente e absoluto. É essencial, porque

contém um mínimo de direitos exigíveis em virtude da criação da obra, sem o qual a condição

de autor perderia o sentido. É extrapatrimonial visto que não estimável em dinheiro. É

inerente à qualidade de autor, porquanto está unido à pessoa do autor, conservando-o durante

toda a sua vida. Os direitos morais do autor são, ainda, absolutos, por poderem ser opostos

pelo seu titular em face de todos166.

Decorrência dos caracteres acima elencados tem-se como outras características dos

direitos pessoais do autor: a pessoalidade, a inalienabilidade, a irrenunciabilidade, a

perpetuidade, a imprescritibilidade, a impenhorabilidade e a listagem que os prevê é

exemplificativa.

2.8.2.1 Pessoalidade

Inerentes à pessoa do autor, os direitos morais assumem um “caráter de proteção da

subjetividade do criador intelectual”167.

163 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de Personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 200. 164 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral. 13. ed., São Paulo: Saraiva, 2011. p. 213. 165 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 270. 166 LIPSZYC, Delia. op. cit. p. 156-157. 167 MENEZES, Elisângela Dias. op. cit. p. 67.

Page 67: OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO ...

66

A obra é direta e indissoluvelmente vinculada ao seu criador, sendo essência da

personalidade e expressão do intelecto deste. Por isso, se elenca dentre as características dos

direitos morais do autor, a pessoalidade.

2.8.2.2 Inalienabilidade

A inalienabilidade é característica decorrente da natureza jurídica dos direitos morais,

posto que estes são personalíssimos. Sendo direitos de personalidade, não são passíveis de

disposição gratuita ou mesmo onerosa.

Neste sentido, os direitos morais de autor são inalienáveis.

Ainda que cedida ou concedida a utilização da obra por terceiros, o negócio jurídico

versa sobre o aspecto patrimonial. Os direitos pessoais permanecem em poder do criador da

obra literária, artística ou científica.

O direito moral de autor não é passível de transferência a outrem. Ao transferir a

terceiro a sua obra, o autor não aliena a sua condição de autor, mas tão somente o seu suporte

físico. A autoria deve ser respeitada onde quer que a obra circule168.

Assim, aquele que adquire o corpo mecânico não passa a ser titular do direito de

modificar a obra, de atribuir a autoria a si mesmo. Ou seja, não recebe concomitantemente os

direitos morais, que continuam sendo de titularidade do autor da obra objeto da negociação.

Para H. Jessen,

o direito moral é a arma que o Direito entrega ao autor para fazer respeitar a sua obra e a si próprio. Emanando esta prerrogativa de sua personalidade, é óbvio que não é alienável. Nada impede, porém, que o exercício ativo e passivo desse direito se transfira mortis causa a seus herdeiros, legatários ou sucessores, que – melhor que qualquer entidade de direito público – saberão interpretar o pensamento do autor em relação às alterações e adaptações que a obra possa ou deva sofrer. [...]

Entendemos que – ainda que o autor haja alienado a obra – continua na plenitude da posse do seu direito moral por tôda a sua vida. O exercício desse direito se transfere aos seus herdeiros.169 (grifos no original)

Resumindo, o autor é o único titular dos direitos morais que surgem com a criação da

obra, não podendo transferi-los a terceiros, pois que não passíveis de alienação. Com o seu

óbito, a tutela e defesa destes direitos são realizadas pelos sucessores hereditários ou

legatários do falecido; e caída em domínio público, a defesa é feita pelo Estado.

168 Ibidem. p. 68. 169 JESSEN, H. op. cit. p. 41-42.

Page 68: OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO ...

67

Impõe-se, ainda, observar, quanto à inalienabilidade, que esta se refere apenas aos

direitos morais, o que não impede a transferência do direito de explorar a obra

economicamente.

Assim, como dito alhures, os direitos patrimoniais – de exploração econômica da obra

– são passíveis de transmissão a terceiros, sem que isso resulte em reflexos nos direitos

morais.

2.8.2.3 Irrenunciabilidade

A impossibilidade de renunciar ao direito moral é resultado da ligação que há entre o

autor e a obra por ele criada.

O direito pessoal de autor não é, pois, passível de renúncia. Não é dado ao autor

abdicar de sua qualidade de criador.

E mais, o fato de manter-se anônimo não significa que o criador renunciou ao seu

direito sobre a obra. Neste caso, o autor apenas opta por não exercer o seu direito naquele

momento, podendo reivindicar autoria a qualquer tempo, com a consequente vinculação de

seu nome à obra por ele criada.

2.8.2.4 Perpetuidade

Mesmo com o óbito do autor, alguns dos direitos morais persistem – como é o caso do

direito à paternidade, à integridade da obra e ao inédito – sendo inicialmente – no prazo legal

– defendidos pelos herdeiros170, que sucedem nos direitos patrimoniais.

Por sua vez, o direito de arrependimento se extingue com a morte do autor. Assim, não

é dado aos herdeiros – titulares derivados das obras por sucessão mortis causa – retirarem a

obra de circulação.

A perpetuidade está relacionada aos direitos à paternidade da obra e à sua integridade.

Refere-se, também, ao direito de ineditismo, caso o autor tenha manifestado em vida a

pretensão de não levar a obra ao conhecimento do público em geral171. Mesmo após o

falecimento do autor, estes direitos persistem.

170 Observe-se que os direitos de personalidade não passam a ser de titularidade dos herdeiros do autor falecido, porque são direitos personalíssimos. O que ocorre é que os sucessores passam a ter legitimidade para defendê-los. 171 Pelo sistema autoral vigente, o direito de inédito persiste, caso tenha havido manifestação do autor falecido neste sentido. Nesta hipótese, faz-se mister que haja solicitação do autor para que a obra não seja publicada – e neste caso, não será dado aos herdeiros trazer a obra ao conhecimento do público post mortem. Podem, porém, os herdeiros deixar de publicar obra

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68

Por isso, se diz que os direitos morais do autor são perpétuos.

2.8.2.5 Imprescritibilidade

A prescritibilidade está diretamente relacionada com o decurso do tempo e a correlata

inércia do titular do direito. No caso dos direitos morais do autor, a inércia deste não implica a

extinção do direito ou da pretensão advinda de sua violação. Por isso, são eles imprescritíveis.

Diz-se que os direitos morais são imprescritíveis porque a ação para assegurar o seu

exercício não está sujeita ao prazo prescricional.

Desta forma, os direitos morais não são passíveis de serem adquiridos pela prescrição

aquisitiva e tampouco alcançado pela prescrição extintiva. A imprescritibilidade é decorrência

direta da inalienabilidade.172

Assim, a qualquer tempo, o criador pode pleitear perante o Judiciário a defesa de

eventual direito pessoal que tenha sido ofendido.

Nos dizeres de Hildebrando Pontes, “se o autor não pode livremente dispor do seu

direito moral, por ser inalienável, preservá-lo inerte não configurará causa de sua extinção”.173

Assim, a inércia na defesa, assim como o seu não exercício, não implicam em perda

dos mecanismos processuais e tampouco dos direitos morais em si.

Deve-se atentar, porém, que apenas não prescreve a pretensão para defesa do direito

moral. A pretensão indenizatória correlata ao dano sofrido pelo autor está sujeita ao prazo

prescricional de 3 (três) anos, previsto no art. 206, § 3º, V do CC/2002174, haja vista que

inexiste norma específica sobre o tema na LDA/98.

2.8.2.6 Impenhorabilidade

A impenhorabilidade se justifica pelo fato de que o direito moral do autor não tem

expressão econômica e porque é resultado da personalidade do sujeito criador. Assim, não

podem os direitos morais ser objeto de constrição judicial, sob pena de afronta à dignidade do

criador.

mantida inédita pelo de cujus, caso este não tenha se manifestado pela sua não divulgação, desde que haja razoável justificativa para tanto, sob pena de caracterizar abuso de direito. 172 PONTES, Hildebrando. op, cit. p. 35. 173 Ibidem. p. 35. 174 No atual Código Civil, o prazo prescricional para a percepção de indenização por danos é de 3 (três) anos.

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69

Vale destacar que a impenhorabilidade decorre também da impossibilidade de se

transferir o direito moral do autor. É que, acaso admitida a constrição sobre o direito moral do

autor, não poderia este ser alienado em hasta pública.

2.8.2.7 Lista exemplificativa

Existe dissenso na doutrina acerca da tipicidade ou não dos direitos morais.

Para uns, os direitos pessoais do autor são típicos, são os previstos em lei, tendo em

vista que conferem ao seu titular uma marca protecionista, invadindo faculdades alheias.

Apenas aquelas faculdades especificadas em lei são outorgadas ao autor.

É o que defende José de Oliveira Ascensão segundo o qual não seria correto

“desenvolver um conceito de direito pessoal de autor do qual se deduzissem depois as

faculdades admissíveis. O que a lei quis outorgar, declarou-o expressamente”175.

Destarte, para esta corrente, são direitos morais do autor os elencados no art. 24 da

LDA/98: o direito de paternidade sobre a obra, o direito ao anúncio do nome do autor ou

equivalente, o direito de inédito, o direito de conservar a integridade da obra, o direito de

modificação da obra, o direito de arrependimento e o direito de acesso a exemplar único e raro

de exemplar que esteja em poder de terceiro.

Há, todavia, posicionamento oposto, no sentido de que em virtude do espírito dos

direitos em causa, não seria taxativa a relação legal, comportando outras modalidades de

direitos176, que não os elencados em lei.

Segundo Roxana Cardoso Brasileiro Borges, “os direitos de personalidade não são

numerus clausus. O catálogo está em contínua expansão, constituindo uma série aberta de

vários aspectos da personalidade”177.

Por se tratarem de direito da personalidade, visando à consagração da dignidade da

pessoa humana, o rol não pode ser concebido como taxativo. A lista prevista na LDA/98 é

apenas exemplificativa e espelha o presente momento histórico, em que se busca a

maximização do princípio da dignidade da pessoa humana.

175 ASCENSÃO, José de Oliveira. op. cit. p. 132. 176 BITTAR, Carlos Alberto, op. cit. p. 49. 177 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 24.

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70

2.8.2.8 Breves considerações sobre a impossibilidade de afetação dos direitos morais

Toda classificação é relevante e tem o mérito de agrupar as principais características

de determinado direito ou conjunto de direitos.

Todavia, é imperioso ressaltar que as características supra mencionadas não podem ser

tratadas como se absolutas fossem, sob pena de se adotar uma postura simplista e

reducionista.

Roxana Borges, por exemplo, refuta a impossibilidade irrestrita de se renunciar aos

direitos pessoais, ao argumento de que não pode ser retirado do indivíduo o poder de

autodeterminação, sob pena de comprometimento do livre desenvolvimento da pessoa

humana, o que afetaria frontalmente a dignidade desta178.

H. Jessen impugna o extremismo daqueles que consideram que a obra não pode ser

modificada. Segundo o citado doutrinador, as obras do passado pertencem ao patrimônio

artístico e cultural dos povos, que têm o dever de zelar pela sua conservação.

O aludido autor assevera que

Repelimos, em princípio, qualquer teoria que coloque o interesse do indivíduo acima do da coletividade. Empobrecer artisticamente a Humanidade para o único fim de satisfazer a sede de individualismo de alguns teóricos, parece-nos absurdo e iníquo, pelo que nos atemos às restrições impostas pelo interesse coletivo ao direito moral do autor como indivíduo179.

Não se discute acerca da existência das características acima examinadas ao direito de

paternidade, que será abaixo examinado. A identificação, a autoria e a paternidade são direitos

que não comportam relativização.

Todavia, há outros direitos morais de autor que se chocam com os interesses da

coletividade – em especial o acesso à cultura e à informação –, como se dá no caso do direito

de retirada e de inédito, a serem tratados a seguir180, impondo-se, para estes, lançar novo

olhar.

178 Ibidem. passim. 179 JESSEN, H. op. cit. p. 38. 180 No capítulo 6, item 6.4, infra.

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71

2.8.3 Espécies

No art. 24 da LDA/98 são assegurados direitos morais181 àquele que cria uma obra

literária, artística ou científica. São eles: o direito de paternidade sobre a obra, o direito ao

anúncio do nome do autor ou equivalente, o direito de inédito, o direito de conservar a

integridade da obra, o direito de modificação da obra, o direito de arrependimento e o direito

de acesso a exemplar único e raro de exemplar que esteja em poder de terceiro.

2.8.3.1 Paternidade da obra e reivindicação

O direito de paternidade sobre a obra refere-se à relação existente entre a obra e o seu

criador. O autor é o “pai” da obra e, por isso, tem o direito de requerer para si a autoria de sua

criação.

O autor tem o direito de a qualquer tempo reivindicar a autoria de obra por ele criada,

não importando o tempo, a localidade, as circunstâncias182.

O direito ao anúncio do nome do autor ou equivalente, diretamente relacionado à

paternidade, refere-se à faculdade que o autor tem de ligar seu nome ou pseudônimo à obra

por ele criada.

Pode o autor, todavia, optar pelo anonimato, hipótese em que será desconhecido. Neste

caso, pretendendo tornar-se conhecido, poderá o autor revelar-se a qualquer momento, pois,

como visto, o direito moral é imprescritível, podendo ser exercitável a qualquer tempo. Será

dado, ainda, ao autor anônimo, defender obra por ele criada em caso de ser usurpada por

terceiros.

Não se pode descurar de que a estes dois primeiros direitos morais examinados,

corresponde o direito à informação assegurado aos destinatários da obra, pelo qual à

coletividade é assegurado conhecer quem é o autor da obra acessada.

181 Deve-se observar, como visto no item 2.8.2.7 que esta listagem não é taxativa. Uma vez que se tratam de direitos da personalidade, o rol dos direitos morais do autor constante da LDA é exemplificativo. Isto porque se busca a proteção maior e mais eficaz do sujeito, preservando-lhe a dignidade humana. Neste sentido, vide Carlos Alberto Bittar, in Direito de autor. para quem, “em consonância com os direitos em causa, não é taxativa a relação legal, em função, ainda, da diretriz adotada na Convenção de Berna e da própria textura da lei (arts. 24 e 49, I), referindo-se a doutrina a outros (como o de destruição da obra, ressalvados direitos de terceiros)”. Em sentido contrário, considerando numerus clausus os direitos pessoais do autor, vide José de Oliveira Ascensão, já citado supra, in Direito Autoral. p. 132. O autor português entende que “O que a lei quis outorgar, declarou-o expressamente”. 182 CABRAL, Plínio. op. cit. p. 45.

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72

2.8.3.2 Direito de inédito

Pelo direito de inédito é assegurado ao autor manter em segredo obra por ele criada.

Ou seja, por esta faculdade, o autor pode ao seu bel prazer manter inédita a sua criação.

Sobre o tema, Eduardo Lycurgo Leite aduz que

Ao indicar entre os direitos morais do autor o direito que este possui de conservar a sua obra inédita, a Lei de Direitos Autorais fê-lo protegendo o direito ao inédito, ou seja, o direito que o autor possui em conservar sua obra inédita, sem comunicá-la (divulgá-la) ao público, sendo que, uma vez a tendo divulgada, tal obra perde o caráter de inédita183.

Através do direito de inédito, o autor não é obrigado a divulgar a sua obra – qualquer

que seja ela – mantendo-a afastada do público em geral184.

2.8.3.3 Conservação da integridade da obra

O direito de conservar a integridade da obra é também chamado de direito ao respeito.

Busca assegurar ao autor a preservação da sua criação, seja impedindo que terceiros a

modifiquem sem seu consentimento, seja providenciando os devidos reparos, para mantê-la

isenta de danos. O autor pode opor-se a quaisquer alterações na obra, ou mesmo àquelas que

comprometam sua própria honra.

Destarte, o ordenamento jurídico assegura ao autor a possibilidade de reagir contra o

atentado contra a obra por ele criada, ainda que tenha alienado seus direitos patrimoniais, haja

vista que o direito moral é inerente à personalidade do autor, não sendo dissociado de sua

pessoa185.

2.8.3.4 Direito de modificar a obra

Também o direito de modificar a obra é assegurado ao autor. Pode ele, ainda que

entregue a criação a terceiro – “antes ou depois de utilizada” – modificá-la.

Como enfatiza Rodrigo Moraes,

Sem dúvida, o ser humano é inconcluso, inacabado, constrói-se cotidianamente. A sua condição é de incompletude. A obra intelectual, como insistentemente frisado, consiste numa irradiação da personalidade do autor no momento da criação. Se a sua personalidade muda, a obra pode, ulteriormente, não mais ser considerada expressão do seu espírito criativo. O tempo costuma apontar imperfeições, falhas, equívocos.

183 LEITE, Eduardo Lycurgo. op. cit. p. 121. 184 O tema será retomado no item 6.4, infra. 185 JESSEN, Henry. op. cit. p. 35.

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73

Se o direito moral visa a resguardar a personalidade do autor, deve, também, defender a sua evolução, o seu amadurecimento186.

Sem embargo, é dado ao autor, proceder às devidas alterações no conteúdo da obra187,

objetivando adequá-la ao seu pensamento ou aperfeiçoá-la esteticamente, lapidando sua

criação.

Vale ressaltar que mesmo não sendo inédita, pode o autor proceder às alterações, salvo

situações de direito adquirido por terceiros.

2.8.3.5 Direito de retirada ou de arrependimento

O direito de retirada, chamado por alguns de direito de arrependimento, consiste na

faculdade assegurada ao autor de, após publicada a obra, retirá-la de circulação, pelo fato de

esta denegrir sua imagem ou outro motivo justificável.

Obviamente, neste caso em que há a retirada da obra do comércio, será devida a

indenização aos prejudicados, a exemplo dos que exploram economicamente a obra.

Este direito, porém, não atinge as obras que estejam em poder de particulares,

porquanto, como leciona H. Jessen, estas terão ultrapassado os limites de ação do autor188.

2.8.3.6 Direito de acesso a exemplar único

Ao autor é assegurado, finalmente, o acesso a exemplar único e raro de obra por ele

criada. Estando em poder de outrem, é dado ao autor acessar a obra por ele criada, visando a

preservar sua memória, conservar a obra ou mesmo explorá-la economicamente189.

Este direito, que somente pode ser exercido em caso de unicidade da obra, tem por

finalidade a preservação da memória do autor, ou até mesmo, proporcionar a reprodução de

novos exemplares, pelo criador da obra.

186 MORAES, Rodrigo. op. cit. p. 195. 187 Observe-se que a alteração no formato da obra não abarca as traduções ou adaptações para outros suportes (do livro para o teatro, por exemplo), em que se tem o surgimento de novas obras, as denominadas obras derivadas. 188 JESSEN, Henry. op cit. p. 40 189 Foge à seara deste trabalho a discussão acerca da impropriedade da inclusão do direito de acesso à obra no rol dos direitos morais. Vale, no entanto, ressaltar que há doutrina criticando esta inserção, como o faz Rodrigo Moraes, in Os direitos morais do autor: repersonalizando o Direito Autoral.

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74

2.9 LIMITAÇÕES AO DIREITO DE AUTOR

Os direitos patrimoniais e morais de autor são assegurados àqueles que criam obras

literárias, artísticas ou científicas. Previstos no ordenamento jurídico, viabilizam ao criador

usufruir de sua criação, retirando desta o proveito econômico – esfera patrimonial – bem

como protegendo a personalidade do próprio autor e a integridade da obra – esfera

extrapatrimonial.

Devem eles ser exercidos pelos respectivos titulares observando o conteúdo do próprio

direito, como o que está previsto em lei. Daí falar-se que o direito de autor, como direito

subjetivo que é, comporta limites internos e externos.

Os direitos de autor são, pois, condicionados por limites internos e externos, que

conformam o seu âmbito de atuação, porquanto inexiste direito absoluto, que não admite

limites.

É o que destaca Francisco Amaral: “a extensão dos direitos subjetivos é condicionada,

portanto, por limites próprios da natureza do direito (intrínsecos) ou por limites externos

estabelecidos pelo direito (extrínsecos)”190.

Neste trabalho, serão examinados os limites impostos aos direitos patrimoniais em

listagem apontada pela doutrina como taxativa – os quais são limites externos. Será

examinado, ainda, o domínio público, enquanto limite interno temporal imposto aos direitos

do autor. Ao fim deste tópico, apresentar-se-á brevemente o fair use previsto nos Estados

Unidos.

2.9.1 As limitações aos direitos patrimoniais: previsão em listagem taxativa

Na LDA/98, são previstas expressamente limitações aos direitos patrimoniais de autor,

em listagem constante dos arts. 46 a 48. Trata-se de exceções que afetam a exploração

econômica da obra, mas não os direitos morais do autor, que permanecem por elas não

afetados.

São situações em que o princípio monopolístico é excepcionado, em atendimento a

interesses de ordem pública191.

190 AMARAL, Francisco. op. cit. p. 206. 191 BITTAR, Carlos Alberto. op. cit. p.69.

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75

Justifica-se a inclusão de tais limitações no diploma legal autoralista por fatores

sociais e culturais, buscando-se a manutenção do equilíbrio entre o interesse individual do

autor e os interesses da coletividade de acesso às obras.

Neste sentido, Hildebrando Pontes aduz que

De uma maneira geral, a reflexão empreendida pelos juristas em torno das limitações aos direitos autorais tem por escopo uma política social. É preciso assegurar ao conjunto da sociedade o acesso às obras de criação literária, artísticas e científicas como meio eficaz de difusão da informação e do conhecimento192.

A listagem é considerada taxativa. Apenas as situações previstas na lei são passíveis

de limitar os direitos patrimoniais do autor193.

São elencados como limitações aos direitos patrimoniais do autor: a reprodução na

imprensa, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a

menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos; a

reprodução em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de

qualquer natureza; a reprodução de retratos, ou de outra forma de representação da imagem,

feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não

havendo a oposição da pessoa neles representada ou de seus herdeiros; a reprodução de obras

literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a

reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento

em qualquer suporte para esses destinatários; a reprodução, em um só exemplar de pequenos

trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro194.

Também não constituem ofensa aos direitos patrimoniais de autor: a citação em livros,

jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para

fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o

nome do autor e a origem da obra; o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por

aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização

prévia e expressa de quem as ministrou; a utilização de obras literárias, artísticas ou

científicas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais,

exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos

comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização; a representação

192 PONTES, Hildebrando. op. cit. p. 56. 193 É o que se colhe da leitura de Delia Lipszyc, in Derecho de autor e derechos conexos; José de Oliveira Ascensão, in Direito autoral; Carlos Alberto Bittar, in Direito de autor; Bruno Jorge Hammes, in O direito da propriedade intelectual: subsídios para o ensino; Plínio Cabral, in A nova lei de direitos autorais: Comentários; Hildebrando Pontes, in Os contratos de cessão de direitos autorais e as licenças vistuais creative commons. 194 Vide art. 46, da LDA/98.

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76

teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins

exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso

intuito de lucro; a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova

judiciária ou administrativa; a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras

preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que

a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a

exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos

interesses dos autores195.

Além deste rol, a LDA/98, no art. 47 estatui que as paródias e paráfrases são livres,

não podendo, todavia, ridicularizar a obra ou o próprio autor. Impõe-se, pois, o respeito à obra

originária e à honra do autor.

Todas estas situações são elencadas na LDA/98, sendo específicas e fechadas,

objetivando o acesso do particular à obra, sem que, para tanto, seja necessário o pagamento

dos direitos patrimoniais do autor.

Insta ressaltar que no capítulo sexto, será apresentada crítica a taxatividade da listagem

ora examinada.

2.9.2 O domínio público

A proteção autoralista é concedida por lei, por prazo previamente estipulado, após o

qual, a obra cai em domínio público, podendo ser utilizada pela coletividade sem o pagamento

dos direitos patrimoniais.

O prazo de proteção se alonga durante toda a vida do autor, estendendo-se por 70

(setenta) anos após o seu falecimento, em caso de haver herdeiros ou legatários. O início de

contagem deste prazo de 70 (setenta) anos varia conforme a obra. A regra geral é a de

cômputo a partir de 1º de janeiro do ano subsequente ao do falecimento do autor, na forma do

art. 41, da LDA/98.

Em se tratando de obra indivisível realizada em coautoria, o lapso temporal de 70

(setenta) anos somente começa a fluir a partir do óbito do último dos coautores sobreviventes,

nos moldes do art. 42 da LDA/98.

Já no caso das obras anônimas ou pseudônimas, os 70 (setenta) anos começam a fluir

desde a publicação da obra. Por sua vez, as obras audiovisuais e fotográficas são protegidas 195 Vide art. 46, da LDA/98.

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por 70 (setenta) anos contados de 1º de janeiro de sua primeira publicação. É o que estabelece

o art. 43, da LDA/98.

Também pertencem ao domínio público as obras de autores falecidos que não tenham

deixado sucessores e as de autores desconhecidos, ressalvada a proteção legal aos

conhecimentos étnicos e tradicionais, em que se incluem as obras de folclore. É o que estatui

o art. 45, da LDA/98.

A obra caída em domínio público pode ser utilizada livremente, o que não significa

que ao usuário é dado alterar a sua essência ou mesmo apropriar-se da sua paternidade. É que

a obra caída em domínio público não é res derelicta, mas sim pertencente a toda a sociedade –

é um bem comum.

A temporalidade de proteção dos direitos autorais justifica-se para proporcionar o

equilíbrio entre o interesse individual do autor e seus herdeiros e os interesses da coletividade,

possibilitando que a sociedade como um todo tenha acesso à produção intelectual.

Eduardo Vieira Manso afirma que a obra é fruto não só do espírito inventivo do autor,

mas também recebe influência do meio em que este se encontra inserido. Assim, para o citado

doutrinador, nada mais natural do que a exploração econômica pelo criador ser reservada

apenas por um período de tempo, após o qual, o fundo comum que municiou o autor de ideias

pode retirar o proveito de tal obra196.

Segundo Plínio Cabral, “a arte destina-se ao público e seu objetivo maior é alcançar

uma universalidade tão ampla quanto possível. Este é, em geral, o desejo do autor e a razão de

ser da própria obra”197.

Quanto aos direitos morais, a doutrina debate acerca da sua perpetuidade e sua

temporalidade, diante da omissão legislativa sobre o prazo de sua proteção.

Refutam a perpetuidade dos direitos morais, autores como Bruno Jorge Hammes e

José de Oliveira Ascensão.

Rodrigo Moraes, por sua vez, defende a perpetuidade dos direitos morais à paternidade

e à integridade da obra, com o que concordamos, visto que ainda que caída em domínio

público, a autoria e a manutenção da obra passam a ser preservados em memória do autor,

bem como em prol de toda a coletividade.

196 MANSO, Eduardo Vieira. op. cit. p. 70. 197 CABRAL, Plínio. op. cit. p. 64.

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78

2.9.3 O fair use norte americano

O sistema autoral do Copyright visa à proteção não apenas do autor, mas

principalmente da obra em si. Objetiva a exploração econômica da obra, com a sua respectiva

e conseqüente geração de riquezas.

O fair use que em tradução literal significa uso justo ou uso razoável é previsto no

sistema do Copyright como a possibilidade de ser utilizada obra protegida em determinadas

circunstâncias tais como para fins educacionais – aqui incluindo a retirada de várias cópias

para distribuição em sala de aula – bem como para fins de pesquisa, de divulgação de notícias,

dentre outras finalidades socialmente relevantes.

Nestes casos, é permitida a utilização da obra de forma livre e gratuita, devendo aquele

que a utiliza mencionar o nome do autor, da obra, bem como abster-se de realizar

modificações em seu conteúdo.

A finalidade do fair use é justamente proporcionar o equilíbrio entre os direitos de

autor com a promoção do progresso social e cultural.

Trata-se de cláusula aberta que possibilita a interpretação pelo Poder Judiciário em

cada caso concreto, para que se verifique a ocorrência ou não de afronta aos direitos autorais

em virtude de uso privado da obra.

A doutrina do fair use norte americano tem por desiderato proporcionar o equilíbrio

entre dois interesses legítimos: os do autor da obra intelectual e os da coletividade. De um

lado, tem-se a proteção autoral. De outro, oportuniza-se o acesso à criação intelectual.

Segundo o modelo do fair use, terceiro tem acesso direto à obra protegida, podendo

usá-la, sem que haja a necessidade de autorização prévia do autor para tanto, desde que a

referida utilização se caracterize como justa.

Trata-se de um princípio geral que permite maior flexibilidade ao intérprete na

concretização do interesse público na utilização das obras. Destarte, não se aplica um rol

fechado – em listagem reputada taxativa – mas o denominado uso justo, a ser averiguado em

cada situação concreta submetida à apreciação do Poder Judiciário198.

198 Kenneth D. Crews, registra que o fair use surgiu inicialmente como uma doutrina judicial, aplicada a casos concretos submetidos à apreciação do Judiciário. Apenas posteriormente, foram editadas normas regulamentando a questão. São dizeres do citado autor: “Fair use originated exclusively as a judicial doctrine, uniquely applicable to the facts of each case and without strict precision” CREWS, Kenneth D. Copyright, Fair use, and the Challenge for Universities: Promoting the Progress of Higher Education. Chicago: The University of Chicago Press, 1993. p. 30. Tradução livre: Fair use iniciou-se exclusivamente como uma doutrina judicial aplicável unicamente para os fatos de cada caso e sem precisão estrita.

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Nos dizeres de Lee Wilson:

Fair use is a kind of public policy exception to the usual standart for determining copyright infringement; that is, there is an infringing use of a copyrighted work but because of countervailing public interest, that use is permitted and is not called infringement. Any use that is deemed by the law to be ‘fair’ typically creates some social, cultural, or political benefit that outweighs any resulting harm to the copyright owner199.

Interessante notar que tal princípio não esvazia os direitos subjetivos do autor. Pelo

contrário, eles persistem previstos no ordenamento, sendo necessária, em regra, para a

exploração / utilização, a prévia autorização do criador da obra. Todavia, por tal doutrina,

determinados usos passam a ser exceção à necessidade de autorização, não se configurando

utilização ilegal da obra.

De se destacar, ainda, que o magistrado, no modelo do fair use norte americano, não

tem discricionariedade ilimitada para decidir o que é ou não o uso justo, apto a excepcionar os

direitos subjetivos.

O interesse público é o norte para as decisões, estando ele vinculado a determinadas

circunstâncias, tais como o propósito do uso, a natureza e tamanho utilizado da obra, que o

uso seja privado ou acadêmico (neste caso, voltado para o incremento científico e/ou

educacional).

O fair use resulta em avanços para a educação e pesquisa, tendo ampla aplicação, por

exemplo, para reproduções educacionais, sendo possível, até mesmo, que se façam várias

cópias para o ensino, desde que sem fins lucrativos200.

199 WILSON, Lee. Fair use, free use and use by permission. New York: Allworth Press, 2005. p. 67. Tradução livre: “O uso justo é uma espécie de política pública que excepciona o standart usual, sobre o que seja violação de direitos autorais; ou seja, há uma utilização inicialmente ilícita de um trabalho com direitos autorais, mas por causa do interesse público, tal uso é permitido e não é caracretizado como infração. Qualquer uso que é considerado pela lei para ser "justo" normalmente cria algum benefício social, cultural ou político que supera qualquer dano resultante para o proprietário dos direitos autorais”. 200 Sobre o tema, Kenneth D. Crews explica que são traçadas diretrizes para as cópias a serem feitas com a finalidade de ensino. Segundo ele, “In summary, the guidelines allow single copies of articles and parts of larger works for research or classroom preparation. They also allow multiple copies for classroom distribuition, if the copying meets meticulous standarts regarding "brevity", "spontaneity" and "cumulative effect". Tradução livre: “Em síntese, as diretrizes permitem cópias únicas de artigos e partes de obras maiores, para pesquisa ou preparação de sala de aula. Também são permitidas múltiplas cópias para distribuição em sala de aula, desde que sejam respeitados os requisitos meticulosos sobre "concisão", "espontaneidade" e "efeito cumulativo". CREWS, Kenneth D. op. cit. p. 35.

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É também permitido o uso justo para fins comerciais, como nos casos de paródias,

críticas, ilustrações sobre as observações de determinado autor, dentre outros201.

Tanto para fins educacionais como para comerciais são estabelecidos parâmetros para

aferição do cumprimento do uso justo: a) o propósito e caráter do uso (em que se inclui,

também, o uso comercial); b) a natureza da obra protegida; c) a quantidade utilizada da obra,

comparada com o todo da criação; d) o efeito do uso no mercado em potencial; e) o valor da

obra protegida.202

Em verdade, o uso justo ganhou reconhecimento legal, sendo previstos na legislação

norte-americana os parâmetros a serem considerados pelo intérprete. Nestes termos,

empregando o princípio do uso justo, pautado por essa orientação, o intérprete verifica, no

caso concreto, se restou configurada hipótese de exceção ao direito do autor, afastando-se

eventual indenização e/ou outras consequências, em caso de a utilização da obra ser

justificada.

201 No livro, Bound by law? Tales from the public domain, é explicado, através de uma história em quadrinhos, como se dá o uso justo em obras audiovisuais, em que se utilizam obras alheias, sendo citados inúmeros conflitos judiciais e soluções levadas a efeito nos EUA. A título de exemplo, cite-se a seguinte passagem: “The rap group 2 Live Crew made a song called ‘Pretty Woman’ that borrowed the bass riff, much of the tune and some lyrics from Roy Orbison’s ‘Oh, Pretty Woman”. 2 Live Crew seemed to have 2 strikes against them. They used a lot of the song, and their use was ‘commercial’. The Supreme Court said that even so, this could be fair use. They saw the song was a parody. It ‘juxtaposes the romantic musings of a man whose fantasy comes true, with degrading taunts, a bawdy demand for sex, and a sigh of relief from paternal responsibility’. Because the song was a parody, 2 Live Crew was also aloowed to copy more of it – as effective parodies nees to ‘conjure up the original’. AOKI, Keith; BOYLE, James; JANKINS, Jennifer. Bound by law? Tales from the public domain. Creative Commons. 2006. p. 38. Tradução livre: O grupo de rap 2 Live Crew fez uma música chamada ‘Pretty Woman’, que tomou emprestado o riff de baixo, grande parte da melodia e parte da letra de Roy Orbison ‘Oh, Pretty Woman’. 2 Live Crew parecia ter dois pontos contra eles. Eles usaram uma boa parte da música, e seu uso era "comercial". O Supremo Tribunal disse que mesmo assim, este poderia ser considerado uso justo. Eles consideraram que a canção era uma paródia. A música justapôs os devaneios românticos de um homem cuja fantasia se torna realidade, com insultos degradantes, uma demanda obscena para o sexo, e um suspiro de alívio de responsabilidade paterna ". Porque a música era uma paródia, foi permitido à 2 Live Crew fazer mais cópias – como efetivas paródias que eram e não afrontavam a original. 202 WILSON, Lee. op. cit. Passim.

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3 O DIREITO DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO

O presente capítulo é destinado ao exame dos direitos fundamentais de acesso à

cultura e à informação. Em um primeiro momento, estes serão tratados apartadamente. Em

seguida, proceder-se-á ao exame conjunto de ambos como instrumentos necessários para a

realização da democracia, sendo mecanismos de promoção da igualdade e da liberdade.

Ao final, serão examinados os motivos pelos quais se considera devida a vinculação

dos particulares aos direitos fundamentais de acesso à cultura e a informação.

3.1 DIREITO DE ACESSO À CULTURA

O presente tópico é destinado ao estudo do direito de acesso à cultura.

Antes, porém, de se adentrar na análise específica de tal finalidade, mister se faz

apreciar as diversas concepções atribuídas pelos distintos ramos científicos – inclusive no

âmbito do Direito – para, após, examinar a proteção no âmbito internacional, assim como pelo

ordenamento jurídico pátrio, ao direito de acesso à cultura, relevante instrumento de

promoção de desenvolvimento social.

É o que se passa a fazer nesta oportunidade.

3.1.1 Cultura: a multiplicidade de significados

O questionamento acerca do que seja cultura tem gerado muitas respostas, nas mais

diversas áreas do conhecimento. Há vários significados comumente atribuídos à palavra. Ora

tratada como sinônimo de civilização203; é também concebida como sinônimo de folclore204; e

203 Segundo Marilena Chauí, a partir do século XVIII, cultura seria tomada como sinônimo de "civilização", integrando-se a um processo geral de progresso intelectual, espiritual e material. in CHAUÍ, Marilena. Cidadania cultural: O direito à cultura. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 129. 204 A cultura tratada como sinônimo de folclore abrangeria as festas e cerimônias tradicionais, as lendas e as crenças de um povo, bem como seu modo de comer e vestir, como observa José Luiz dos Santos. in SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 16. ed. São Paulo: Brasiliense. p. 22.

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popularmente, como de erudição205. É a cultura também enfocada como cultivo e

agricultura206.

Nos dizeres de Edgar Morin, a cultura é uma “palavra armadilha” que em um primeiro

momento parece “estável e firme”, mas que traz em seu bojo um conteúdo dúbio. Segundo o

citado autor, tanto na linguagem corrente quanto nas ciências sociais, o vocábulo apresenta

uma quantidade plúrima de significados207.

Um primeiro conceito dado pela antropologia considera que a cultura se opõe à

natureza, tratando daquilo que não é inato, mas sim, dependente da atuação humana. Neste

sentido, a cultura é dependente da organização social, sendo pertinente ao que é próprio do ser

humano. A outra concepção antropológica é no sentido de ser a cultura aquilo que é dotado de

sentido, a exemplo do que ocorre com a linguagem. Já em sua acepção etnográfica, a cultura

consiste no conjunto de “crenças, ritos, normas, valores e modelos de comportamento”

humanos. 208

Com as definições acima apresentadas, percebe-se que a antropologia confere à cultura

um sentido amplo, como o conjunto das obras humanas, ou seja, ela compreende as diversas

possibilidades de realização humana.

José Afonso da Silva, examinando a concepção filosófica da cultura, assevera que

A concepção filosófica da cultura a vê como vida humana objetivada, ou seja, como projeção de valores espirituais que impregnam objetos da natureza de um sentido. [...] É assim que se diz que o homem é o único animal capaz de criar e manter cultura. Só a Filosofia é capaz de mostrar o sentido da natureza em face da cultura e da cultura em face da natureza.209

205 Costuma-se dizer que determinada pessoa é culta por ter conhecimento de vários assuntos. Todavia, tal acepção tende a ser refutada. É o que faz, por exemplo, Oldegar Franco Vieira, ao sustentar que a idéia de cultura não se confunde com a de erudição, visto que a primeira “é muito mais que a erudição ‘digerida, encarnada, vivificada, e consequentemente operativa”. in VIEIRA, Oldegar Franco. Estado de Direito e Estado de Cultura. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1983. p. 253. 206 Nos dizeres de Arendt, “A cultura – palavra e conceito – é de origem romana. A palavra ‘cultura’ origina-se de colere – cultivar, habitar, tomar conta, criar e preservar – e relaciona-se essencialmente com o trato do homem com a natureza, no sentido do amanho e da preservação da natureza até que ela se torne adequada à habitação humana”. in ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 265. Miguel Reale aduz que em Roma havia dúplice acepção acerca do termo cultura. A primeira como sinônimo de agricultura, a segunda como fruto das criações humanas. É o que se colhe do seguinte trecho: “A agricultura era apreciada em seu valor humano, mas sem se confundir com a outra espécie de cultura, a cultura do espírito. Ambas são expressões da cultura. O homem realiza a cultura tanto quando lança uma semente à terra, como quando cria por si mesmo uma expressão de beleza”. in REALE, Miguel. Filosofia do Direito. Ainda nos dias de hoje, a palavra cultura é tomada neste sentido, a exemplo do que se vê na Carta Magna Brasileira, no caput do art. 243, que estatui “Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. (sem grifos no original) 207 MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. Necrose. Trad. Agenor Soares Santos. v. 2. 3. ed. São Paulo: Forense Universitária, p. 75. 208 Ibidem. p. 75. 209 SILVA, José Afonso da Silva. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 32.

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Aqui, percebe-se claramente a distinção conceitual filosófica entre natureza e cultura.

A primeira diz respeito ao que existe por si, já a segunda refere-se ao que é criado pelo

homem. Constata-se que, a despeito de serem distintas, natureza e cultura se completam e se

relacionam.

Como destaca José Afonso da Silva, a criação da cultura consiste na mutação da

realidade natural – e também social – com a penetração de valores210.

Segundo Leonardo Brant, “cultura é algo complexo”. Não devendo ficar o seu

conceito restrito a uma perspectiva artística, econômica ou social. Para o citado autor, a

cultura consiste na conjugação de todos esses vetores, desempenhando papel de destaque no

projeto de Estado.211

Destarte, a palavra cultura comporta uma gama variada de acepções, o que resulta em

dificuldade de delimitação de um conceito que seja apto a abarcar a sua multiplicidade de

sentidos.

Sobre a impossibilidade de se alcançar uma noção unívoca de cultura, Vasco Pereira

da Silva enfatiza a multiplicidade de concepções do mundo e da vida que a cultura pressupõe.

Nos dizeres do citado autor:

Tanto mais quanto os vectores do ‘conflito’ e da ‘integração’ representam dimensões essenciais e permanentes de uma realidade múltipla e em constante transformação, como é a cultural, que não se compadece com lógicas imobilísticas e pretensamente neutrais de natureza definitória. Nestes termos, definir cultura apresenta-se mesmo como uma impossibilidade cultural, que remete a busca de uma qualquer noção única para ‘outros domínios’, como os ‘das frases de calendário’ ou dos ‘talk shows’ televisivos – ‘uma definição de cultura dá direito a um frigorífico, ou a uma máquina de lavar louça...’212

No mesmo sentido, Miguel Reale assevera que o termo cultura é multívoco. Segundo

o autor, não há conceito sobre ela concebido ao qual não se apresentem reservas ou

impugnações.213

210 Ibidem, p. 32. 211 BRANT, Leonardo. O poder da cultura. São Paulo: Peirópolis, 2009. p. 13 212 SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e cultura. Coimbra: Almedina, 2007. p. 08 213 A despeito disso, o primeiro capítulo desta obra de Miguel Reale tem por título “Conceito de cultura – seus temas fundamentais”. No dito ensaio, o autor enfatiza a amplitude da palavra “cultura”. Porém, para alcançar o desiderato por ele proposto em seu texto, Reale parte de dois dos possíveis conceitos do que seja cultura. O primeiro, que seria mais próximo ao uso corrente, incorporado à linguagem corriqueira, é pertinente aos conhecimentos e convicções acumulados pelo indivíduo. Segundo Reale, neste enfoque a cultura relaciona-se ao “comportamento como ser situado na sociedade e no mundo”. A segunda acepção de cultura apreciada por Reale refere-se ao seu aspecto objetivo, qual seja, o de “acervo de bens materiais e espitiruais acumulados pela espécie humana através do tempo, mediante um processo intencional ou não de realização de valores”. in REALE, Miguel. Paradigmas da cultura contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 01-03.

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Diante desta diversidade de conceitos, importa, então, realizar o corte epistêmico-

metodológico do presente trabalho, a fim de se delimitar quais das acepções dadas à cultura

pelo Direito serão as relevantes para o estudo ora proposto.

Antes, porém, insta demonstrar que a diversidade conceitual de cultura irá repercutir

diretamente no tratamento jurídico dado ao tema, o qual enfoca a cultura de forma

multifacetada.

É o que se passa a fazer a seguir.

3.1.2 O Direito da Cultura

Como visto alhures, o termo cultura comporta uma gama diversificada de acepções e

manifestações.

Nos dizeres de Peter Häberle “La riqueza de toda esta multiplicidad cultural pervive

gracias al “Derecho constitucional cultural” ya consolidado a nível federal, junto com todos

sus elementos como el de libertad cultural, pluralismo y división (también cultural) de

poderes”214.

Para Häberle, a cultura deve ser compreendida de forma aberta, voltando-se ao

pluralismo cultural, sendo devida a proteção tanto do que denomina de cultura superior,

popular, subcultura, e das culturas passivas (consumistas) e as ativas215.

Neste sentido, o autor observa que o Direito Constitucional Cultural – aqui

denominado de Direito da Cultura – acaba por ser igualmente aberto, devendo ser tomado em

sua magnitude empírica, diante de seu objetivo de proporcionar cultura para todos216.

Para Vasco Pereira da Silva, “a Constituição da Cultura – enquanto elemento essencial

da Constituição – deve ser vista como uma manifestação própria da realização do Estado de

Direito e da democracia – ao lado das suas demais dimensões, nomeadamente política,

econômica, social”217.

Assim também se dá na ordenação constitucional da cultura e nas normas

infraconstitucionais brasileiras, que compõem o que se denomina de Direito da Cultura.

214 HÄBERLE, Peter. Teoria de la Constitución como ciencia de la cultura. trad. Emilio Mikunda. Madrid: Tecnos, 2000. p. 31. Tradução livre: A riqueza de toda essa multiplicidade cultural sobrevive graças ao fato de o Direito Constitucional da Cultura ter se consolidade em nível federal, junto com todos os seus elementos de liberdade cultural, pluralismo e divisão (também cultural) dos poderes. 215 Ibidem, loc. cit. 216 Ibidem, p. 30. 217 SILVA, Vasco Pereira da. op. cit. p. 55.

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O Direito da Cultura é ramo jurídico que ainda vem se consolidando, e tem como

objeto a produção e manifestação cultural – aqui incluindo o Direito Autoral e demais ramos

abarcados pela Propriedade Intelectual –, a organização do patrimônio cultural, a difusão da

cultura e o acesso à cultura.

Para José Afonso da Silva:

O estabelecimento de uma política cultural é o meio que os Poderes Públicos utilizam para propiciar o gozo dos direitos culturais, especialmente o acesso à cultura e a organização do patrimônio cultural, instituindo os órgãos destinados a administrar a cultura, tais como o Ministério da Cultura, secretarias estaduais de cultura e secretarias municipais de cultura, cujo conjunto forma um sistema administrativo da cultura, dando origem ao conceito de instituições culturais.

Uma política pública da cultura exige a criação de normas jurídicas que disciplinem as relações jurídicas culturais. Seu desenvolvimento é que dá origem a um sistema normativo da cultura, que constitui o direito da cultura, um ramo do Direito em formação.218

No Brasil, são reconhecidos constitucionalmente como direitos culturais: a) a

liberdade de expressão; b) o direito de criação cultural; c) o direito de acesso às fontes

culturais; d) a proteção às manifestações das culturas populares; e) direito de difusão das

manifestações culturais; f) direito-dever estatal de formação do patrimônio cultural e proteção

dos bens culturais219.

De se concluir que o Direito da Cultura é o ramo jurídico que estabelece o conjunto de

regras que regulamentam as atividades culturais públicas e privadas, e pelo qual é prevista

uma política cultural para que os homens possam gozar dos direitos culturais acima

elencados.

3.1.3 Breve panorama acerca da cultura no âmbito do Direito Internacional

A cultura recebe tratamento jurídico em níveis distintos. Ao mesmo tempo em que há

normas internacionais regulando o assunto, elevando-a ao patamar de direitos humanos,

existem também normas estatais, que a tratam como direitos fundamentais do homem/mulher.

A despeito de não ser o objeto do presente trabalho, importa aqui salientar a diferença

entre direitos humanos e direitos fundamentais.

Ambos visam à concretização da dignidade da pessoa humana, ambos têm a pessoa

como critério orientador. Porém, enquanto a expressão direitos humanos é empregada para os

218 SILVA, José Afonso da. op. cit. p. 51. 219 Este rol é apresentado por José Afonso da Silva e será mais detidamente examinado no presente capítulo, item 3.1.5 infra. SILVA, José Afonso da. op. cit. p. 51.

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86

direitos consagrados em nível internacional, emprega-se direitos fundamentais com o intento

de designar os direitos humanos positivados numa constituição de determinado Estado220.

Feita esta breve distinção, é mister observar que o tratamento internacional da cultura

se justifica primeiro pela sua relevância, enquanto elemento essencial para a formação e

inclusão do ser humano. Ademais, faz-se necessário que o direito à cultura fique resguardado

além das fronteiras dos Estados, de forma a que lhe seja dada uma proteção não apenas em

nível regional, mas também global.

No que se refere ao tratamento internacional, a cultura é assegurada, como direito

humano, em diversos instrumentos internacionais221.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, por exemplo, “surgiu como

um código de princípios e valores universais a serem respeitados pelos Estados”222. Tratando

os direitos humanos como universalizados, em seu art. 27223 estabelece que todos têm direito

de participar da vida cultural da comunidade, fruindo das artes e tomando parte do progresso

científico e dos seus respectivos benefícios.

220 Neste sentido, Ingo Wolfgang Sarlet: “Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional). in SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 29. No mesmo sentido, Dirley da Cunha Júnior sustenta que “Os direitos humanos compreendem, assim, todas as prerrogativas e instituições que conferem a todos, universalmente, o poder de existência digna, livre e igual”. Mais adiante, ressalta o citado autor que “é preciso esclarecer que os direitos fundamentais não passam de direitos humanos positivados nas Constituições estatais”. in CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Podivm, 2008. p. 515-516. 221 Além dos que serão examinados no presente subtópico, há o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1966, que também trata do direito à cultura, porém numa acepção mais ampla, estabelecendo que “Artigo 27. No caso em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua”. Disponível em http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_politicos.htm, acesso em 23 de out. de 2011. Deve ser destacado que o tratamento dado por este Pacto Internacional à cultura a considera de forma ampla, o que, a despeito da relevância, por ligada ao pluralismo cultural e ao respeito à diferença, foge do âmbito deste trabalho, motivo pelo qual é apenas tratada em nota de rodapé. Há ainda, a Convenção sobre a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado. Considerando que os bens culturais durante as guerras mundiais sofreram severos danos, e diante das afrontas realizadas contra os bens culturais, a UNESCO entendeu que ficou caracterizado atentado contra toda a humanidade, e não apenas ao povo a que os referidos bens pertencem. Assim, em 1954, a UNESCO proclamou a citada convenção. Trata-se de documento pelo qual os Estado membros da ONU se comprometeram a, em caso de guerra, respeitar e proteger os bens culturais situados nos territórios dos países adversários e os de seu próprio patrimônio. Com o advento da Guerra do Golfo, essa convenção foi emendada em 1999. Disponível em http://portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=12025&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=-471.html, acesso em 29 de out. de 2011. 222 PIOVESAN, Flávia; GOTTI, Alessandra; MARTINS, Janaína Senne. A proteção internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais. in PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 80. 223 Eis a redação do citado art. 27: “Artigo XXVII. 1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios. 2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.” Disponível em http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm, acesso em 23 de out. de 2011.

Page 88: OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO ...

87

Também no citado artigo, a Declaração Universal prevê a proteção dos direitos morais

e patrimoniais relacionados à criação humana.

Destarte, na citada declaração, a cultura é vislumbrada tanto como o direito de criação,

como sob o enfoque de acesso aos inventos e obras humanas. Relaciona-se a cultura e os

direitos a ela afetos com os demais direitos humanos – civis, políticos, econômicos, sociais –,

face à unidade e indivisibilidade de todos os direitos humanos.

Tal previsão é, em termos distintos, também apresentada no Pacto Internacional dos

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966. Especificamente, no art. 15224, que

reconhece a cada indivíduo o direito de participar da vida cultural, desfrutar do progresso

científico e receber a proteção moral e patrimonial pelas criações do espírito humano.

Flávia Piovesan, Alessandra Passos Gotti e Janaína Senne Martins sustentam que o

intuito do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

foi permitir a adoção de uma linguagem de direitos que implicasse obrigações no plano internacional, mediante a sistemática da internacional accountability. Isto é, como outros tratados internacionais, esse Pacto criou obrigações legais aos Estados-partes, ensejando responsabilização internacional em caso de violação dos direitos que enuncia.225

A Declaração delimita a proteção do indivíduo, mas não possui força vinculante. Por

sua vez, o Pacto estabelece efetivos deveres para os Estados, com o fito de propiciar ao ser

humano a participação na cultura, em diversos níveis, haja vista ser esta essencial para o pleno

desenvolvimento dos indivíduos.

Em verdade, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi trazido à tona

com o escopo de dar efetividade ao conteúdo da Declaração Universal, uma vez que esta,

mesmo sendo um marco histórico, não tinha caráter vinculativo e obrigatório.

Com o advento do citado Pacto, houve a “juridicização” da Declaração Universal,

resultando na responsabilização dos Estados que descumprirem as obrigações a eles

dirigidas226.

224 É teor do citado artigo: “ARTIGO 15. 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: a) Participar da vida cultural; b) desfrutar o progresso científico e suas aplicações; c) beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica, literária ou artística de que seja autor. 2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o pleno exercício desse direito aquelas necessárias à conservação, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura. 3. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa científica e à atividade criadora. 4. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das ralações internacionais no domínio da ciência e da cultura.” disponível em http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_economicos.htm, acesso em 23 de out. de 2011. 225 PIOVESAN, Flávia; GOTTI, Alessandra; MARTINS, Janaína Senne. op. cit. p. 87. 226 Ibidem. passim.

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Certo é que tanto a Declaração quanto o Pacto preveem a proteção da cultura sob

dupla perspectiva, a de acesso à produção humana e a de viabilização da própria produção

intelectual. Busca-se, destarte, criar condições para a produção cultural, bem como de acesso

popular ao que for produzido.

Além dos dois instrumentos internacionais acima mencionados, há outros que tratam

sobre o assunto sob o enfoque que interessa a este estudo.

É o caso da Recomendação sobre a Participação dos Povos na vida Cultural, de 1976.

Esta recomendação define as esferas da participação dos povos na vida cultural em

duplo aspecto. Um pertinente à livre criação, viabilizando-se que os indivíduos e os grupos

em que se encontram inseridos a possibilidade de se expressarem livremente. Já a outra

dimensão refere-se à oportunidade de obtenção da informação, do conhecimento e do

discernimento. Ambos os domínios voltam-se para o desenvolvimento da personalidade

humana e do progresso cultural da sociedade.

Também merece ser ressaltado, no âmbito interamericano, o Protocolo de San

Salvador, de 1988, que estabelece uma variada gama de direitos econômicos, sociais e

culturais.

Este Protocolo objetiva, com isso, o fortalecimento e respeito às liberdades

fundamentais, à justiça e à paz.

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Em seu art. 13227 assegura o direito à educação, na busca do pleno desenvolvimento da

pessoa humana e da consecução de sua dignidade. O acesso à educação é vislumbrado como

elemento de capacitação dos indivíduos, sendo dever dos estados proporcionar a formação das

pessoas. Já o seu art. 14228 estabelece o direito aos benefícios da cultura.

227 Eis o teor do citado artigo: “Artículo 13. Derecho a la Educación. 1. Toda persona tiene derecho a la educación. 2. Los Estados partes en el presente Protocolo convienen en que la educación deberá orientarse hacia el pleno desarrollo de la personalidad humana y del sentido de su dignidad y deberá fortalecer el respeto por los derechos humanos, el pluralismo ideológico, las libertades fundamentales, la justicia y la paz. Convienen, asimismo, en que la educación debe capacitar a todas las personas para participar efectivamente en una sociedad democrática y pluralista, lograr una subsistencia digna, favorecer la comprensión, la tolerancia y la amistad entre todas las naciones y todos los grupos raciales, étnicos o religiosos y promover las actividades en favor del mantenimiento de la paz. 3. Los Estados partes en el presente Protocolo reconocen que, con objeto de lograr el pleno ejercicio del derecho a la educación: a. la enseñanza primaria debe ser obligatoria y asequible a todos gratuitamente; b. la enseñanza secundaria en sus diferentes formas, incluso la enseñanza secundaria técnica y profesional, debe ser generalizada y hacerse accesible a todos, por cuantos medios sean apropiados, y en particular por la implantación progresiva de la enseñanza gratuita; c. la enseñanza superior debe hacerse igualmente accesible a todos, sobre la base de la capacidad de cada uno, por cuantos medios sean apropiados y, en particular, por la implantación progresiva de la enseñanza gratuita; d. se deberá fomentar o intensificar, en la medida de lo posible, la educación básica para aquellas personas que no hayan recibido o terminado el ciclo completo de instrucción primaria; e. se deberán establecer programas de enseñanza diferenciada para los minusválidos a fin de proporcionar una especial instrucción y formación a personas con impedimentos físicos o deficiencias mentales. 4. Conforme con la legislación interna de los Estados partes, los padres tendrán derecho a escoger el tipo de educación que habrá de darse a sus hijos, siempre que ella se adecue a los principios enunciados precedentemente. 5. Nada de lo dispuesto en este Protocolo se interpretará como una restricción de la libertad de los particulares y entidades para establecer y dirigir instituciones de enseñanza, de acuerdo con la legislación interna de los Estados partes”. Disponível em http://www.derhumanos.com.ar/legislacion/protocolo%20san%20salvador%20conv%20ameri.htm; acesso em 28 de Nov de 2011. Tradução livre: Direito à Educação. 1. Toda pessoa tem direito à educação. 2. Os Estados Partes do presente Protocolo concordam que a educação deve ser direcionada para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido da sua dignidade e reforçar o respeito pelos direitos humanos, o pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, a justiça e paz. Concordam também que a educação deve capacitar todas as pessoas para participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista, conseguir uma subsistência digna, promover a compreensão, a tolerância ea amizade entre todas as nações e todos os racial, étnica ou grupos religiosos e promover atividades para a manutenção da paz. 3. Os Estados Partes do presente Protocolo reconhecem que, a fim de alcançar a plena realização do direito à educação: a. O ensino primário deve ser obrigatório e acessível gratuitamente a todos; b. Educação secundária em suas diferentes formas, incluindo técnica e profissional do ensino secundário, deve ser feita geralmente disponível e acessível a todos, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação progressiva do ensino gratuito; c. ensino superior deve ser igualmente acessível a todos, em função da capacidade, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação progressiva do ensino gratuito; d. deve ser encorajada ou intensificada, tanto quanto educação, possível básica para aqueles que não tenham recebido ou terminado o ciclo completo de educação primária; e. devem estabelecer programas educacionais para os deficientes, a fim de proporcionar instrução especial e formação a pessoas com deficiência física ou mental. 4. De acordo com a legislação interna dos Estados Partes, os pais têm o direito de escolher o género de educação a dar aos filhos, desde que esteja em conformidade com os princípios enunciados acima. 5. Nada no presente Protocolo será interpretado como restringir a liberdade dos indivíduos e de entidades de criar e dirigir instituições de ensino, de acordo com a legislação interna dos Estados Partes 228 É conteúdo do citado artigo: “Artículo 14. Derecho a los Beneficios de la Cultura. 1. Los Estados partes en el presente Protocolo reconocen el derecho de toda persona a: a. participar en la vida cultural y artística de la comunidad; b. gozar de los beneficios del progreso científico y tecnológico; c. beneficiarse de la protección de los intereses morales y materiales que le correspondan por razón de las producciones científicas, literarias o artísticas de que sea autora. 2. Entre las medidas que los Estados partes en el presente Protocolo deberán adoptar para asegurar el pleno ejercicio de este derecho figurarán las necesarias para la conservación, el desarrollo y la difusión de la ciencia, la cultura y el arte. 3. Los Estados partes en el presente Protocolo se comprometen a respetar la indispensable libertad para la investigación científica y para la actividad creadora. 4. Los Estados partes en el presente Protocolo reconocen los beneficios que se derivan del fomento y desarrollo de la cooperación y de las relaciones internacionales en cuestiones científicas, artísticas y culturales, y en este sentido se comprometen a propiciar una mayor cooperación internacional sobre la matéria”. Disponível em http://www.derhumanos.com.ar/legislacion/protocolo%20san%20salvador%20conv%20ameri.htm; acesso em 28 de Nov de 2011. Tradução livre: Direito aos benefícios da cultura. 1. Os Estados Partes do presente Protocolo reconhecem o direito de toda pessoa a: a. participar na vida cultural e artística da comunidade, b. desfrutar dos benefícios do progresso científico e tecnológico; c. beneficiar da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor. 2. Entre as medidas que os Estados Partes do presente Protocolo serão tomadas para assegurar a plena realização deste direito devem incluir as necessárias para a conservação, desenvolvimento e difusão de cultura, ciência e arte. 3. Os Estados Partes do presente Protocolo comprometem a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa científica e à atividade criadora. 4. Os Estados Partes do presente Protocolo reconhecem os benefícios que derivam do

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O direito à cultura é relevante elemento para o desenvolvimento humano e social,

sendo objeto de regulamentação internacional a fim de que se proporcione ao indivíduo

alcançar a sua dignidade.

Assim, é o direito à cultura, protegido em seus mais diversos aspectos, de modo a

consagrar o desenvolvimento individual e social.

Neste momento, cumpre ressaltar que internacionalmente é o direito à cultura, elevado

ao patamar de direitos humanos, sendo prevista a sua proteção como um meio de realizar a

dignidade do homem/mulher e como um mecanismo para o alcance da justiça social.

O provável choque entre os enfoques dados pelas normas internacionais –

especificamente quanto ao direito de ter a produção intelectual protegida e, por outro lado, o

de acesso à cultura – e a possível solução, apresentada no presente trabalho, serão examinados

no sexto capítulo.

3.1.4 A cultura como direito fundamental “multidimensional”

Ao se afirmar que o direito à cultura assume caráter multidimensional, quer-se dizer

que a cultura e os direitos a ela relacionados não se enquadram apenas na primeira, segunda

ou terceira dimensões dos direitos fundamentais.

Pelo contrário, é o direito à cultura multidimensional, justamente porque a depender

do enfoque a ele dado, assumirá caráter de direito protetivo da liberdade, assim como feição

social e também a natureza de direito de participação.

Para que se proceda a tal análise, inicialmente, será apreciado brevemente o contexto

de surgimento dos direitos fundamentais, para, a seguir, se confirmar que a cultura assume

características das diversas dimensões assinaladas pela doutrina.

3.1.4.1 As dimensões dos direitos fundamentais

Os direitos fundamentais são os direitos humanos inseridos na ordem jurídica Estatal e

têm o princípio da dignidade da pessoa humana como norte e como meio unificador.

Os direitos fundamentais surgem gradativamente como resposta a um dado contexto

histórico, após a luta contra situação preexistente. Daí que se costuma sustentar que tais

fomento e do desenvolvimento de relações e cooperação na científica, artística e cultural, e, portanto, concordam em promover uma maior cooperação internacional sobre o assunto.

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direitos fundamentais são direitos históricos, que se ampliam gradativamente, consoante o

contexto histórico e social da sociedade229.

Uma vez que foram conquistados pouco a pouco, os direitos fundamentais são

geralmente agrupados pela doutrina de acordo com a fase de sua conquista, em dimensões230,

a que alguns231 costumam nomear de gerações.232

Sobre a evolução histórica dos direitos fundamentais, Gustavo Amaral aduz que seu

conceito surge na era moderna, havendo uma reformulação dos conceitos de dignidade,

liberdade e igualdade, existentes no período que antecedeu ao Renascimento, mas que não

eram concebidas como direitos, nos moldes atuais. Nos seus dizeres, inicialmente, os direitos

fundamentais aparecem, inicialmente, como meio de afirmação da liberdade de fé, e, em

seguida, como instrumento de impugnação ao exercício do poder absoluto e sua relação com

os cidadãos. Nesta oportunidade, surge, também, como mecanismo de humanização do direito

penal e processual penal233.

Diante das revoluções francesa e norte-americana, de cunho liberal, que repercutiram

nos ordenamentos jurídicos de outros países, os direitos fundamentais passam a ser

reconhecidos em textos constitucionais, dispondo que tais direitos eram assegurados a todos.

Todavia, esta positivação não foi apta alterar a realidade social, em que as desigualdades e o

não acesso às liberdades era evidente234.

229 Norberto Bobbio assevera que os direitos fundamentais surgem gradualmente, “não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. in BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 5. 230 Há doutrinadores que consideram ser mais oportuno o emprego do termo “dimensões” ao argumento de que os direitos fundamentais são reconhecidos progressivamente e que os conquistados no momento histórico anterior não são substituídos pelos do momento posterior. Neste sentido, veja-se o escólio de Willis Santiago Guerra Filho, para quem “em vez de ‘gerações’ é melhor se falar em ‘dimensões de direitos fundamentais’, nesse contexto, não se justifica apenas pelo preciosismo de que as gerações anteriores não desaparecem como surgimento das mais novas. Mais importante é que os direitos gestados em uma geração, quando aparecem em uma ordem jurídica que já traz direitos da geração sucessiva, assumem uma outra dimensão, pois os direitos de geração mais recente tornam-se um pressuposto para entendê-lo de forma mais adequada – e, conseqüentemente, também para melhor realizá-los”. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade. in GUERRA FILHO, Willis Santiago (Coord.) Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 11-43. No mesmo sentido, Ingo Wolfgang Sarlet, em A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 231 A exemplo de Norberto Bobbio, em A era dos direitos; Vasco Pereira da Silva, em A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e cultura; Wilson Steinmetz, em A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. 232 Neste trabalho dar-se-á preferência à adoção do termo dimensão, de modo a acompanhar a mais moderna doutrina acerca do tema. Todavia, quando se fizer citação direta ou indireta de determinado autor que empregue a expressão “geração”, buscando fidelidade à tese apresentada, será utilizado o termo proposto pelo autor na forma original. 233 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 50. 234 Ibidem. p. 50.

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Nesta oportunidade, ao Estado – não intervencionista – não eram impostos deveres de

fazer. Esses direitos somente surgem sistematicamente, no século XX, sendo seguidos pelo

reconhecimento de direitos coletivos, em que se reconhecia a pluralidade e as diferenças235.

Tratando sobre a evolução histórica dos direitos fundamentais, Ricardo Luís

Lorenzetti destaca que estes são classificados em graus, de modo a evidenciar uma “certa

evolução histórica”.236

Segundo Lorenzetti, a primeira geração237 está relacionada à liberdade do indivíduo

em face do Estado. Os direitos fundamentais inseridos nesta geração foram inicialmente

consagrados a partir da Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, e tinham por finalidade

a limitação da atividade estatal, ao qual fica imposta a obrigação de não atentar contra a

liberdade, a vida, a integridade física, a propriedade dos indivíduos. Daí que traço marcante é

o seu enfoque negativo.238

Lorenzetti prossegue na análise geracional dos direitos fundamentais, observando que

os direitos de segunda geração equiparam-se aos denominados direitos sociais, os quais foram

incorporados aos ordenamentos jurídicos com o constitucionalismo social, nos meados do séc.

XX. Tais direitos prestam-se ao atendimento das necessidades sociais básicas e constituem a

obrigação do Estado de viabilizá-los. Nestes, podem ser incluídos o direito ao trabalho, à

saúde, à moradia, à educação.239

Por sua vez, a terceira geração, segundo Lorenzetti, refere-se à qualidade de vida.

Trata-se de “novos direitos” advindos como “resposta à ‘contaminação da liberdade’.”. São

eles os direitos difusos que interessam à comunidade como um todo, tais como o direito ao

meio ambiente equilibrado, a liberdade informática, o consumo.240

O autor argentino aponta como de quarta geração o “direito de ser diferente”, o qual

tem sua razão de ser em uma sociedade plural. Nesta geração estariam englobados o direito à

homossexualidade, à troca do sexo, ao aborto, dentre outros. Lorenzetti aprecia à parte, ainda,

o direito ao desenvolvimento, como um direito fundamental em nível internacional.241

235 Ibidem. p. 52. 236 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. Trad. Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 153. 237 Tendo em vista que na tradução a que se teve acesso, o tradutor optou por empregar o termo “geração”, será utilizada tal palavra em detrimento de “dimensão”. Desta forma, ainda que se trate de uma citação indireta do texto traduzido do autor argentino, objetiva-se possibilitar ao leitor uma melhor visualização de seu pensamento. 238 LORENZETTI, Ricardo Luís. op. cit. p. 153. 239 Ibidem. p. 153. 240 Ibidem. p. 154. 241 Ibidem. p. 154.

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Certo é que esta classificação não é a única encontrada na doutrina, havendo, ainda,

quem questione a importação destas teorias para a realidade brasileira242. Os doutrinadores

tendem a apresentar um consenso quanto à primeira e segunda dimensões. Todavia, quanto à

terceira e quarta, não se verifica tal harmonia.

Ingo Wolfgang Sarlet destaca que os direitos fundamentais, desde o seu surgimento

até os dias atuais, passaram por diversas transformações, seja no que toca ao seu conteúdo,

quanto à titularidade, eficácia e efetivação243. Para Sarlet, os direitos de primeira dimensão

têm inspiração jusnaturalista, tendo sido posteriormente acrescidos das liberdades. Segundo o

autor, surgem como modo de afirmar o indivíduo em face do Estado, demarcando uma zona

de não intervenção estatal. São elencados como exemplos os direitos à vida, à liberdade, à

propriedade e à igualdade formal.

Os de segunda dimensão, segundo Sarlet, surgem em virtude das consequências

advindas do impacto do liberalismo e da industrialização, e são consagrados de forma especial

nas Constituições do segundo pós-guerra. Tratam-se dos direitos que propiciam a “liberdade

por intermédio do Estado” e que visam a concretização do bem-estar social. Exemplificando,

o autor menciona a assistência social, a saúde, a educação, o trabalho, bem como os direitos

de sindicalização e de greve244.

Os direitos de terceira dimensão, a que Sarlet também chama de “direitos de

solidariedade e fraternidade”, têm como marco característico “o fato de se desprenderem, em

princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos

humanos (família, povo, nação), e caracterizando-se, consequentemente, como direitos de

titularidade coletiva ou difusa”.245 Levando em consideração os direitos fundamentais que são

consensualmente citados, Sarlet elenca como exemplos, o direito ao meio ambiente, ao

desenvolvimento, à paz, à autodeterminação dos povos, ao meio ambiente, bem como o

direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito à

comunicação.246

242 Para Flávio Galdino, a importação acrítica de modelos estrangeiros, em especial, da classificação geracional dos direitos fundamentais, não condiz com a realidade brasileira. Primeiro, é criticada a divisão dos direitos fundamentais em gerações históricas, sob o fundamento de que os direitos humanos compõem um todo, que não é divisível. Em segundo lugar, Galdino observa que, ao contrário do que ocorreu em outros países, como a Inglaterra, no Brasil, surgiram em ordem cronológica, inicialmente, os direitos sociais, que se seguiram aos direitos políticos. Os direitos civis, no entender de Galdino, foram os que surgiram por último, e continuam sendo sistematicamente violados e não concedidos à parcela significativa da população brasileira. GALDINO, Flavio. Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos: Direitos não Nascem em Árvores. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. p. 170-171. 243 SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit. p. 45. 244 Ibidem, p. 47-48. 245 Ibidem, p. 48-50 246 Ibidem, p. 48.

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Sarlet passa a examinar a existência de uma quarta e quinta dimensões de direitos

fundamentais. Registra o citado autor que:

[...] não nos parece impertinente a ideia de que, na sua essência, todas as demandas na esfera dos direitos fundamentais gravitam, direta ou indiretamente, em torno dos tradicionais e perenes valores da vida, da liberdade, igualdade e fraternidade (solidariedade), tendo, na sua base, o princípio maior da dignidade da pessoa247.

Adiante, Sarlet assinala que os direitos de quarta dimensão ainda se encontram em fase

de reconhecimento, e que na construção de novos direitos fundamentais deve-se atentar para

que não se configure a sua degradação, a sua desvalorização.

Classificações à parte, o que se pode verificar é que os direitos fundamentais se

expandem tanto no plano de titularidade, também no plano de espacialidade ou mesmo no que

se refere aos âmbitos de proteção, o que repercute diretamente nas dimensões anteriormente

existentes, ampliadas e complementadas pelas que surgem posteriormente.

3.1.4.2 A cultura e seu caráter “multidimensional”

Trazendo tal evolução e ampliação histórica dos direitos fundamentais como um todo

para a análise do direito fundamental à cultura, pode-se visualizar que também este

acompanhou o desenvolvimento histórico e gradual dos direitos fundamentais.

No que tange à cultura, tem-se uma caraterística peculiar, haja vista que a cada

dimensão subsequente, a cultura permanece com a feição anterior, assumindo, porém, novo

enfoque, com novas características.

Daí a sua natureza complexa e multidimensional.

Vasco Pereira da Silva afirma que:

A natureza complexa da estrutura jurídica dos direitos fundamentais é particularmente evidente na “história” do direito à cultura, o qual parece mesmo enfermar de “angústias” de “identificação geracional”, na medida em que a respectiva noção jurídica se vai transformando ao longo das sucessivas etapas da sua evolução. Trata-se de um direito fundamental cujo conteúdo parece estar “sempre a par do seu tempo”, uma vez que se vai transformando à medida que acompanha as sucessivas gerações de direitos. 248

Segundo o citado autor português, a cultura surge como direito fundamental de

primeira geração249, tratando-se de uma liberdade assegurada ao indivíduo em face do Estado.

247 Ibidem, p. 50. 248 SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e cultura. Coimbra: Almedina, 2007. p. 36 249 Também Vasco Pereira da Silva adota o termo geração. Por isso, por fidelidade, neste trecho, opta-se pelo emprego de tal vocábulo.

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Neste primeiro momento, o direito fundamental da cultura relaciona-se com as chamadas

“liberdades de espírito” ou “liberdades de pensamento”. Em seguida, como direito de segunda

geração, a cultura é consagrada como um direito a prestações, agregando-se à categoria dos

direitos econômicos, sociais e culturais. Finalmente, o direito à cultura, enquanto direito de

terceira geração, adquire a característica de direito de participação, tratando-se de forma

“institucionalizada de cooperação entre entidades públicas e privadas de natureza

procedimental”.250

Assim, a cultura, inicialmente, é enfocada sob o seu viés de liberdade, como liberdade

de manifestação do pensamento; a seguir, fica evidenciado o seu caráter social, buscando-se a

promoção da igualdade através do seu acesso. Em momento histórico posterior, verifica-se a

sua nuance de direito de participação.

A cultura é uma “realidade jurídica ‘aberta ao tempo’”, pois foi evoluindo e

conjugando elementos típicos das sucessivas gerações dos direitos, e assumindo vertentes

positivas – direito a prestações – e negativas – obrigação Estatal de não fazer.251

Destarte, percebe-se que a cultura ora assume o enfoque negativo, no sentido de que

deve o Estado se abster de invadir a seara individual, viabilizando a liberdade de criação; ora

assume o enfoque positivo, quando fica atribuído ao Estado o dever de atuar a fim de que seja

alcançado o objetivo legal, de acesso à cultura; ora toma para si o caráter de direito de

participação, que implica uma liberdade ativa de participação dos indivíduos na vida política

do país.

O tratamento jurídico dado à cultura a consagra como direito associado à liberdade,

quando pertinente à liberdade de manifestação do pensamento, com a criação pelo intelecto

humano de obras de arte, literárias e científicas, e demais criações, como as marcas e patentes,

por exemplo.

É também enfocada à luz dos direitos sociais, como um instrumento viabilizador da

igualdade, relacionando-se com o desenvolvimento do indivíduo, na busca de seu

desenvolvimento intelectual. É a cultura, ainda, focalizada como meio de participação no

desenvolvimento social.

A cultura recebe, desta forma, a cada situação distinta, tratamento diferenciado. Ora

como direito fundamental de primeira dimensão, ora como de segunda dimensão, bem assim

250 SILVA, Vasco Pereira da. op. cit. p. 36-37. 251 Ibidem, p. 42.

Page 97: OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO ...

96

como de terceira dimensão. Daí que no presente trabalho afirma-se que a cultura é um direito

fundamental multidimensional.

3.1.5 Breve exame da “ordenação constitucional da cultura”252 no Brasil

A multiplicidade de significados do vocábulo “cultura” repercute diretamente no

ordenamento jurídico pátrio. Ao se dar tratamento legal à cultura, as suas mais diversas

acepções ficam evidenciadas, assumindo o caráter de direito fundamental multidimensional.

Daí porque a Constituição Federal de 1988 traz em seu corpo, uma gama de artigos

acerca do tema cultura, enfocando-a em suas mais variadas concepções. Alguns deles serão

abaixo expostos.

O art. 5º consagra os direitos e garantias fundamentais. No inciso IV do citado artigo é

prevista a liberdade de manifestação do pensamento; no inciso IX assegura-se a livre

expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente

de censura. Já nos incisos XXVII e XXVIII é prevista a proteção dos autores e às suas

respectivas criações, sendo os direitos patrimoniais transmissíveis aos seus herdeiros, pelo

prazo legal. Por sua vez, o XXIX assegura a proteção aos inventores e titulares de marcas,

nomes comerciais e outros signos distintivos.

Verifica-se, pois, que os incisos do art. 5º acima mencionados guardam relação com a

produção cultural. Primeiro, é garantida a todos a liberdade de manifestação do pensamento,

independentemente de censura prévia. Neste sentido, a expressão e manifestação do

pensamento não pode sofrer limitação seja por censura política, ideológica ou artística253.

Segundo, o art. 5º consagra a proteção da criação de obras artísticas, literárias e

científicas – objeto do Direito Autoral254 –, bem como com a criação de marcas e outros

elementos pertinentes ao direito empresarial.

Seja como proteção à manifestação do pensamento, seja no tocante à proteção dos

autores e inventores, o tratamento está diretamente vinculado à liberdade, sendo uma proteção

do indivíduo contra a afronta estatal. Aqui assume, pois, feição de direito fundamental de

primeira geração.

252 Este é o nome atribuído por José Afonso da Silva à obra jurídica em que o constitucionalista aprecia o tratamento conferido à cultura no âmbito da Constituição Federal de 1988, motivo pelo qual a expressão é cunhada entre aspas. 253 Não se pode olvidar que é lícito o controle no que tange aos limites de horários e idade para veiculação de determinadas manifestações artísticas. 254 Novamente é de se lembrar que a expressão Direito Autoral é empregada com suas iniciais em maiúsculo com o fim de nomear o ramo jurídico, distinguindo-o dos denominados direitos autorais: os direitos morais e os direitos patrimoniais do autor, estes últimos direitos subjetivos do criador das obras.

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97

A despeito de não tratado expressamente no art. 6º da Constituição Federal, o acesso à

cultura é também um direito social, o que se verifica da leitura sistemática da Constituição,

que, ao disciplinar no Título VIII, Da Ordem Social, tendo por objetivo o bem-estar e a justiça

sociais, traz em seu bojo conteúdo pertinente à cultura.

José Afonso da Silva considera que o fato de os direitos culturais não terem sido

previstos no art. 6º como direitos sociais, não faz com que percam a natureza de direito social.

Pelo contrário, para o autor,

a Constituição de 1988 deu relevante importância à cultura, tomando esse termo em sentido abrangente da formação educacional do povo, expressão criadora da pessoa e das projeções do espírito humano materializadas em suportes expressivos, portadores de referências à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira que se exprimem por vários de seus artigos [...], formando aquilo que se denomina ordem constitucional da cultura, ou constituição cultural, constituída pelo conjunto de normas que contém referencias culturais e disposições consubstanciadoras dos direitos sociais relativos à educação e à cultura.255 (grifos no original)

Destarte, o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura

nacional são, sim, direitos sociais, e como tais devem ser considerados.

O art. 23, em seus incisos III e IV, da Carta Magna estatui ser competência da União,

dos Estados-membros e dos Municípios tanto proteger os documentos, as obras e outros bens

de valor histórico, artístico e cultural, como impedir a evasão, a destruição e a

descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural. Já

no inciso V do mesmo artigo fica prevista a competência dos entes federativos para

proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência.

O artigo em apreço enumera as matérias em que, pela competência comum, a União,

Estados-membros, Distrito Federal e Municípios devem atuar concomitantemente, visando à

satisfação dos interesses geral, regional e local. Dentro deste contexto, é inseria a proteção dos

bens culturais e o acesso à cultura.

Definindo o que são bens ou objetos culturais, Carlos Cossio sustenta que são um

[...] grupo de objetos que encontramos en nuestra experiencia y de cuya realidad no podemos dudar, constituído por todas aquellas cosas que, en términos generales, se llaman culturales: aquellas cosas que hace el hombre actuando según valoraciones [...]

De modo que podemos caracerizar esa nueva familia de objetos, la de los cuturales, diciendo que tienen existencia, que están em la experiência y que son valiosos256.

255 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 311. 256 COSSIO, Carlos. El Derecho em el Derecho Judicial. 3. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1967. p. 30.

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98

Os bens ou objetos culturais são os “criados” pelo homem. Deve-se entender por

“criado” não só o bem produzido, mas também o vivido e sentido, ao qual é atribuída uma

valoração positiva ou negativa. Podem eles ser mundanais ou egológicos, segundo

qualificação apresentada por Cossio. Os mundanais são os objetivados, têm uma existência

independente do homem, sendo que os bens por este criados passam a integrar o mundo. Ou

seja, a vida humana sai de si mesma, sendo, pois, objetivada. Já os egológicos constituem a

própria ação humana, tratando-se do comportamento humano. Trata-se da conduta inseparável

do ego atuante257.

Conforme análise a ser a seguir feita quanto ao conteúdo do art. 216 da vigente Carta

Magna, é de se concluir que os bens culturais mencionados no art. 23, bem como no próprio

art. 216, encaixam-se no conceito de bens mundanais apresentado por Cossio, tratando-se de

objetos correspondentes à vida humana objetivada258.

Já o inciso IX do art. 24, também da Carta Magna estabelece a competência

concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislarem sobre educação, cultura,

ensino e desporto. Neste caso, a União edita as denominadas normas gerais e os Estados e

Distrito Federal legislarão especificamente em matéria de cultura.

Vale ressaltar que o art. 30, IX estatui a competência suplementar dos Municípios para

a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora

federal e estadual.

A cultura é também tratada no art. 215. Este artigo prevê o dever do Estado de garantir

a todos o pleno exercício dos direitos culturais, bem como do acesso às fontes da cultura

nacional, apoiando e incentivando a valorização e difusão das manifestações culturais.

No §1º do mesmo artigo 215 fica, ainda, prevista a proteção das manifestações da

cultura popular, indígena e afro-brasileira, assim também dos outros grupos que participam do

processo civilizatório nacional. Evidenciada fica a valorização da pluralidade e da riqueza

cultural brasileira.

257 A paráfrase ora apresentada foi retirada das seguintes obras de Cossio: COSSIO, Carlos. El Derecho em el Derecho Judicial. 3. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1967. e COSSIO, Carlos. La valoración jurídica y la ciencia del derecho. Buenos Aires: Arayu, 1954. 258 Neste sentido, vide José Afonso da Silva: “Bem se vê que os bens culturais referidos no art. 216 da Carta Magna se encaixam no campo dos objetos culturais mundanais, como vida humana objetivada num pedaço da natureza física, seja como bens culturais de natureza material ou imaterial, como forma de expressão, modos de criar, fazer e viver, ou como as criações científicas, artísticas e tecnológicas, ou como obras, documentos, edificações, conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico ou arqueológico, seja objetos de cultura popular, indígena, afro-brasileira, ou erudita”. op. cit. p. 29.

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99

Por sua vez, o art. 216 dispõe o que constitui patrimônio cultural brasileiro. Em seus

incisos são elencadas as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações

científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e outros

espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor

histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Este dispositivo constitucional é de uma amplitude significativa, pois compreende, por

exemplo, como patrimônio cultural brasileiro, a língua portuguesa, coloquial ou escrita; o

cancioneiro popular, como as cirandas; as manifestações folclóricas, a exemplo da Lenda do

boto; a própria culinária regional típica, como o acarajé, na Bahia, e o pão de queijo, em

Minas Gerais.

No contexto do citado artigo incluem-se, ainda, as expressões da atividade intelectual,

aqui inseridas as criações literárias, como Tieta, de Jorge Amado ou Manuelzão e Miguilim,

de Guimarães Rosa; artísticas, um quadro de Iara Tupinambá; e mesmo científicas, a obra

doutrinária de Orlando Gomes, por exemplo; abarca, ademais, as marcas e inventos do

intelecto humano.

Também abrange os conjuntos urbanos e os locais tombados como patrimônio da

humanidade, como a cidade de Ouro Preto e o Pelourinho, em Salvador; os sítios

arqueológicos, como os localizados no Estado da Paraíba.

Evidenciada fica, assim, a dimensão do que se entende por patrimônio cultural, que

comportaria um sem-número de exemplos.

Examinando o conteúdo do art. 216, Carlos Frederico Marés de Souza Filho sustenta

que:

O próprio conceito de patrimônio cultural do art. 216 refere-se à identidade nacional. A cultura protegida é a praticada, criada e representativa das mais diversas camadas da população, o que, em termos sociológicos, é o povo. [...]

O art. 216 e seus cinco incisos e cinco parágrafos desenham o contorno da proteção cultural no Brasil, e se trazem na essência essa novidade do pluralismo, enriquecem na forma com alguns avanços significativos259.

Prossegue o citado autor destacando que entre os avanços na proteção do patrimônio

cultural no Brasil realizada à luz do pluralismo da sociedade brasileira, estão a consolidação

da expressão “patrimônio cultural”, em detrimento de “patrimônio histórico e artístico”,

259 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e sua proteção jurídica. 3. ed. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2008. p. 64.

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100

adequando-se ao que já era adotado em âmbito internacional, visto que o cultural abrange o

histórico e o artístico.260

Outro ponto por ele ressaltado diz respeito aos mecanismos de proteção do patrimônio

cultural, como o inventário, o registro, a vigilância, ficando possibilitada, ao Poder Público, a

criação de novos meios de proteção.261

Finalmente, o art. 243 reza que as glebas de terra em que houver cultura de plantas

psicotrópicas serão expropriadas e destinadas ao assentamento de colonos, sem qualquer

indenização ao proprietário. Aqui, cultura é enfocada como sinônimo de plantação.

Da breve análise apresentada, é de se concluir que a cultura é consagrada na vigente

Carta Magna Brasileira sob enfoques distintos. Seja como sinônimo de artes; seja como

diversidade da produção do povo, buscando a consagração da identidade nacional; é a cultura

também tratada na vigente Carta Magna como cultivo de plantas, tomando-se o significado

dado pelos romanos ao vocábulo.

3.1.6 O direito de acesso à cultura

A cultura deve ser realizada como um direito da pessoa, garantindo-se o acesso e a

fruição das obras culturais produzidas, o direito de criar as obras, assim como o de participar

das decisões a respeito das políticas sociais existentes.

São, assim, consagrados três tipos principais de direitos fundamentais à cultura. O

direito de criação cultural (aqui inserido os direitos do autor), o direito de fruição cultural

(também incluído o direito de fruição do patrimônio cultural) e o direito de participação nas

políticas públicas da cultura262.

Para fins de se proceder ao corte epistêmico-metodológico do presente trabalho, será

dado enfoque especial ao direito de fruição cultural, a que se opta por denominar de direito de

acesso à cultura.

Da mesma forma, os bens culturais a que se fará menção no presente trabalho, dentre a

gama variada elencada pelo art. 216 da Constituição Federal de 1988, são aqueles pertinentes

260 Ibidem. p. 64. 261 Ibidem, p. 64. 262 SILVA, Vasco Pereira da. op. cit. passim.

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101

à criação intelectual, protegidos pelo ramo jurídico denominado Direito Autoral263, objeto de

apreciação no capítulo primeiro.

Feitas estas considerações iniciais, passa-se, então, ao exame específico do direito

fundamental de acesso à cultura.

O direito fundamental de acesso à cultura surge, segundo leciona Vasco Pereira da

Silva, como instrumento de viabilização das condições de ingresso nos bens culturais por

todas as pessoas, sendo um direito “democrático” e umbilicalmente ligado à concretização da

dignidade da pessoa humana264.

A dignidade da pessoa humana é vinculada ao reconhecimento dos direitos humanos

fundamentais e do mínimo existencial265 – imprescindíveis para que o ser humano possa se

desenvolver e se autodeterminar.

263 Para ilustrar os bens a que se refere nesta dissertação, são trazidos à lume os arts. 7º e 8º da LDA, o primeiro elenca quais as obras fruto do espírito humano que são protegidas pela referida lei; já o segundo delimita o que não é abrangido pela LDA: “Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: I - os textos de obras literárias, artísticas ou científicas; II - as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza; III - as obras dramáticas e dramático-musicais; IV - as obras coreográficas e pantomímicas, cuja execução cênica se fixe por escrito ou por outra qualquer forma; V - as composições musicais, tenham ou não letra; VI - as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas; VII - as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia; VIII - as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética; IX - as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza; X - os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência; XI - as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova; XII - os programas de computador; XIII - as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual. § 1º Os programas de computador são objeto de legislação específica, observadas as disposições desta Lei que lhes sejam aplicáveis. § 2º A proteção concedida no inciso XIII não abarca os dados ou materiais em si mesmos e se entende sem prejuízo de quaisquer direitos autorais que subsistam a respeito dos dados ou materiais contidos nas obras. § 3º No domínio das ciências, a proteção recairá sobre a forma literária ou artística, não abrangendo o seu conteúdo científico ou técnico, sem prejuízo dos direitos que protegem os demais campos da propriedade imaterial. Art. 8º Não são objeto de proteção como direitos autorais de que trata esta Lei: I - as ideias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais; II - os esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou negócios; III - os formulários em branco para serem preenchidos por qualquer tipo de informação, científica ou não, e suas instruções; IV - os textos de tratados ou convenções, leis, decretos, regulamentos, decisões judiciais e demais atos oficiais; V - as informações de uso comum tais como calendários, agendas, cadastros ou legendas; VI - os nomes e títulos isolados; VII - o aproveitamento industrial ou comercial das ideias contidas nas obras”. 264 SILVA, Vasco Pereira da. op. cit. p. 72. 265 Segundo Daniel Sarmento: “O direito mínimo existencial corresponde à garantia das condições materiais básicas de vida. Ele ostenta tanto uma dimensão negativa como uma positiva. Na sua dimensão negativa, opera como um limite, impedindo a prática de atos pelo Estado ou por particulares que subtraiam do indivíduo as referidas condições materiais indispensáveis para uma vida digna. Já na sua dimensão positiva, ele envolve um conjunto essencial de direitos prestacionais”. SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: histórica constitucional brasileira, Teoria da Constituição e Direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2012. p. 204. Já nos dizeres de Walber de Moura Agra, o mínimo existencial consiste em se assegurar aos direitos fundamentais que exigem uma concretização jurídico-política uma precisão de seu conteúdo, protegendo-se o substrato material contido na Constituição, tratando-se de instrumento conformador da atuação do poder estatal. AGRA, Walber de Moura. A legitimação constitucional pelos direitos fundamentais. in AGRA, Walber de Moura; CASTRO, Celso Luiz Braga de; TAVARES, André Ramos (coord.) Constitucionalismo: os desafios no terceiro milênio. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 501. Para o presente trabalho, não obstante a relevância do mínimo existencial como balizador da atividade estatal, que deve ser pautada pelo conteúdo mínimo dos direitos fundamentais, é dado enfoque às condições materiais necessárias para que o sujeito possa viver dignamente.

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Desta forma, a proteção da pessoa humana será concretizada através do acesso aos

direitos sociais relacionados ao mínimo vital, nos quais se podem incluir, dentre outros, a

alimentação, a saúde, a educação, o objeto específico deste estudo: direito de acesso à cultura.

Examinando a relação do acesso à cultura com a dignidade da pessoa humana, Vasco

Pereira da Silva assevera que:

No domínio da cultura, as normas de direitos fundamentais, apesar de sua diversidade e complexidade, não deixam de estar relacionadas entre si por uma “unidade de sentido”, que resultam do facto de todas elas dizerem respeito à realização cultural de cada indivíduo na vida em sociedade, que é uma dimensão essencial da dignidade da pessoa humana.266

Destarte, como elemento do mínimo existencial, deve o acesso à cultura ser efetivado

de forma a assegurar a proeminência do ser humano.

O direito de acesso à cultura assume tanto um enfoque positivo, no sentido de ser

necessária a adoção de meios para que seja possibilitado, como também é dotado de

característica negativa, de abstenção de afronta, visto tratar-se de direito de defesa contra

possíveis agressões de entidades públicas e também particulares na liberdade de acessar a

cultura267.

Para tanto, faz-se necessária a adoção de políticas públicas para a promoção do

democrático acesso à cultura, assim como a proteção deste direito fundamental contra

possíveis afrontas perpetradas pelo Poder Público e pelos particulares em suas relações

horizontais.

O acesso à cultura é direito fundamental que está umbilicalmente relacionado ao

exercício da democracia, haja vista que a participação democrática somente poderá ser

realizada por pessoas esclarecidas e com liberdade material de escolhas.

Daniel Sarmento, com propriedade, ao examinar o papel dos direitos sociais na ordem

brasileira que tem por traço característico a desigualdade social, observa que

[...] os direitos sociais deveriam exercer um papel essencial, de emancipação dos componentes destes segmentos excluídos, ao proporcionar-lhes não só mais bem-estar, como também a possibilidade efetiva de fruição das suas liberdades individuais e políticas268.

Tratando sobre o fortalecimento da democracia pela cultura, Leonardo Brant sustenta

que a cultura fortalece a democracia, a economia e o trabalho, sendo instrumento de combate

266 SILVA, Vasco Pereira da. op. cit. p. 72. 267 Ibidem. p. 72. 268 SARMENTO, Daniel. op.cit. p. 215.

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103

às desigualdades sociais e a promoção da paz. É a cultura não somente aquilo que diverte e

emociona, mas, acima disso, que viabiliza o pensar e o agir. 269

Assim, é mister que seja proporcionada a igualdade de ingresso cultural a todos, de

modo a fomentar o acesso da cultura e o próprio exercício da democracia.

Para tanto, impende seja adotada ação estatal afirmativa270, inscrevendo o direito de

acesso à cultura entre os bens auferíveis indistintamente, afastando-se as desigualdades

porventura existentes em seu ingresso271.

Tal desiderato pode ser alcançado, dentre outros meios, através da promoção da

educação. Educação e cultura caminham lado a lado. A própria opção do constituinte

brasileiro de tratá-las em conjunto no Título VIII, Da Ordem Social, que trata dos direitos

sociais evidencia tal interdependência.

O acesso às bibliotecas272 públicas ou privadas, aos museus, salas de teatro e cinema,

aos meios de comunicação social273 em geral, é imprescindível para que seja concretizado o

direito à cultura. Enfim, impõe-se a viabilização de ingresso aos “locais de cultura” e a fruição

de todo o conteúdo ali inserido: as obras literárias274 e artísticas – como as pinturas,

esculturas, as peças teatrais, concertos, danças populares ou clássicas.

O acesso à cultura abrange, assim, a possibilidade de contato, conhecimento e

apreensão intelectual dos mais variados bens culturais, assegurando ao indivíduo o seu

desenvolvimento moral e intelectual, enfim, a sua realização enquanto ser dotado de

dignidade.

269 BRANT, Leonardo. O poder da cultura. São Paulo: Peirópolis, 2009. p. 108. 270 Nos dizeres de José Afonso da Silva, “o Estado só poderá garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional, apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais, se desenvolver efetiva ação positiva visando a alcançar esses objetivos que lhe impõe a norma constitucional do art. 215.” 271 SILVA, José Afonso da. op. cit..p. 49. 272 José Afonso da Silva sustenta que “As bibliotecas são, certamente, um excelente instrumento de pesquisa e leitura, e de importância fundamental para a cultura. Por um lado, constituem, só por si, uma atividade cultural essencial, por proporcionar acesso às obras, conhecimento e difusão da cultura; por outro lado, têm função cultural indireta, na medida em que permitem produzir, em torno delas, obras do espírito de caráter cultural, por serem daqueles espaços destinados às manifestações artístico-culturais de que nos fala o art. 215, IV da Constituição”. Ibidem. p. 144. 273 Aqui podem ser inseridos desde as empresas de radiodifusão – as emissoras de rádio e televisão –, os telefones, a internet e demais instrumentos tecnológicos disponíveis (ou a serem inventados pelo homem) em que a cultura (e também a informação) são disponibilizados ao público em geral. 274 Nos dizeres de José Afonso da Silva, “A leitura é certamente uma atividade cultural das mais relevantes, porque é já em sai mesma uma prática cultural e especialmente porque é meio direito de participar da cultura, do acesso à cultura e de adquirir cultura. O acesso democrático à leitura e à escrita é das conquistas que o povo não só deve almejar, mas reivindicar, porque é certo que se apropriar da arte de ler e escrever é garantia de autonomia e de cidadania”. SILVA, José Afonso da. op. cit. p. 139-140.

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104

3.2 DIREITO DE ACESSO À INFORMAÇÃO

Assim como o direito de acesso à cultura, também o direito de acesso à informação

assume diversas feições, sendo imperioso delimitar a concepção adotada neste trabalho.

Para se chegar a este mister, no presente tópico, em que se fará o estudo em separado

do direito de acesso à informação, serão tratadas as distintas concepções existentes sobre o

tema, examinadas a proteção no âmbito internacional, assim como pelo ordenamento jurídico

pátrio, a fim de se fazer o corte epistemológico quanto ao direito de acesso à informação.

3.2.1 Conceito

Como o termo “cultura” comporta uma gama variada de concepções, também o

vocábulo “informação” possui uma gama variada de significados.

Ora enfocada como sinônimo de conhecimento275; também é a informação enfocada

como dados, sendo muito utilizada no âmbito da informática276. É a informação também

equiparada à obra do engenho humano277; assim como à notícia apresentada pelos meios de

comunicação278.

Jorge Luis Nicolas Audy, Gilberto Keller de Andrade e Alexandre Cidral sustentam

que a informação é um conceito central na área dos sistemas de informação e asseveram que

Informação é uma coleção de fatos organizados de forma a possuir um valor adicional aos fatos em si. Em outras palavras, são dados concatenados, que passaram por um processo de transformação, cuja forma e conteúdo são apropriados para um uso específico.279

Assim, para a teoria dos sistemas de informação, esta é um dado processado

(composto de letras e dígitos), dotado de um significado em determinado contexto.

275 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006. Deixamos de transcrever o conceito apresentado por Paulo Affonso em nota de rodapé, vez que este será apresentado no corpo do próprio texto. 276 AUDY, Jorge Luis Nicolas; ANDRADE, Gilberto Keller de; CIDRAL, Alexandre. Fundamentos de sistemas de informação. Porto Alegre: Bookman, 2005. p. 94. Deixamos de transcrever o conceito apresentado pelos autores desta obra em nota de rodapé, vez que este será apresentado no corpo do próprio texto. 277 “Se a informação tem os requisitos da criatividade e da originalidade (e, portanto, da reprodutibilidade), tem os caracteres próprios da obra de engenho (invenção): poderá, portanto, obter a tutela prevista pela normativa em tema de direito de autor ou de patentes”. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 238. 278 Edilsom Pereira de Farias sustenta que a liberdade de expressão e informação atinge seu nível máximo quando as informações/ notícias são prestadas por profissionais dos meios de comunicação social, sendo assegurada, como uma das interfaces da liberdade de informação, a liberdade de imprensa. FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. 279 AUDY, Jorge Luis Nicolas; ANDRADE, Gilberto Keller de; CIDRAL, Alexandre. op. cit. p. 94.

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105

Buscando sua relação com o âmbito jurídico, Paulo Affonso Leme Machado ressalta

que a informação comporta vários conceitos, apresentando dentre estes o de registro do que

existe; o de transmissão de conhecimento; e o de meio criador do saber.280

Como registro do que existe, a informação é concebida como dados acerca de uma

pessoa ou de alguma coisa. Ou seja, através dela se organizam dados existentes sobre alguém

ou algo. Como transmissão de conhecimento é a informação instrumento através do qual se dá

ciência sobre um fato existente. Como forma de criação do conhecimento, a informação é

conceituada etimologicamente, sendo mecanismo de produção de novos saberes.281

Evidente fica, assim, a gama diversificada de conceitos encontrados também para o

que seja informação. Destarte, assim como realizado quanto à cultura, será feito a seguir o

corte epistêmico-metodológico do presente trabalho, a fim de se delimitar a acepção de

informação que releva para o estudo ora proposto.

É o que se passa a fazer a seguir.

3.2.2. Breve panorama acerca da informação no âmbito do Direito Internacional

Inicialmente remete-se o leitor ao item 3.1.3, em que foi apresentada uma breve

distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais, de forma a evitar redundância no

corpo do presente trabalho.

No que tange à informação, também é relevante o seu tratamento no âmbito

internacional, haja vista que, assim como a cultura, por ser elemento essencial para a

formação e inclusão do ser humano. Por isso a necessidade de sua proteção para além das

fronteiras dos Estados, de forma a que seja resguardada não apenas em nível regional, mas

também global, mormente se considerado o atual estágio globalizado da civilização, em que

se vive no que se costuma chamar de “sociedade da informação”.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 consagra como direito

humano em seu art. 19282, a liberdade de opinião e expressão, o qual abrange a liberdade de,

sem empecilhos, apresentar suas opiniões próprias e procurar, receber e transmitir

280 MACHADO, Paulo Affonso Leme. op. cit. p. 25-27. 281 Ibidem. p. 25-27. 282 Eis o conteúdo do art. 19: “Artigo XIX - Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. Disponível em http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm, acesso em 31 de out. de 2011.

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106

informações e ideias através de quaisquer meios, sem que seja imposta qualquer limitação

territorial.

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, em seu artigo 19283

também trata das liberdades de opinião e de informação. Este Pacto traz uma novidade em

relação à Declaração Universal dos Direitos Humanos, vez que prevê a possibilidade de

imposição de limites ao direito de informação. São motivos para a limitação o respeito dos

direitos e da reputação das demais pessoas e a proteção da segurança nacional, a ordem, a

saúde ou a moral pública

Também o Pacto de San José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969 e que entrou

em vigor em 1978, estatui em seu artigo 13284, a proteção à liberdade de informação em sua

dupla face de prestar a informação e de a ela ter acesso, estabelecendo, porém, restrições ao

seu exercício.

Segundo Paulo Affonso Leme Machado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos

afirma que “a liberdade de expressão permite o debate aberto sobre os valores morais e sociais

e facilita o discurso político, essencial para a consolidação da democracia”.285

Destarte, internacionalmente é o direito à informação elevado ao patamar dos direitos

humanos, sendo prevista a sua proteção com o escopo de realizar a liberdade da pessoa, e sua

respectiva dignidade, sendo, ainda, um mecanismo para o alcance da democracia e da justiça

social.

283 O art. 19 do citado Pacto estabelece que: “ARTIGO 19. 1. Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões. 2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou qualquer outro meio de sua escolha. 3. O exercício do direito previsto no § 2º do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para: a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral pública.” Disponível em http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_politicos.htm, acesso em 31 de out. de 2011. 284 Eis o teor do artigo 13: “Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão. 1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar: a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões. 4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2. 5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”. Disponível em http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm, acesso em 31 de out. de 2011. 285 MACHADO, Paulo Affonso Leme. op. cit. p. 39.

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107

3.2.3 A informação como direito fundamental

A informação é, assim como a cultura, um direito fundamental assegurado aos

homens/ mulheres. Sua proteção jurídica tem relevância, por ser a informação essencial ao

crescimento do sistema econômico e social. É ela um dos pilares do Estado Democrático de

Direito, haja vista que na sua ausência são as pessoas como um todo impedidas de exercer

suas escolhas de forma livre e consciente.

Conforme sustentado por Pietro Perlingieri, “um ordenamento que tende a realizar um

‘Estado de cultura’ deve optar pela informação e pela sua livre circulação”. 286

A informação é diretamente relacionada à liberdade287 – liberdade de manifestação do

pensamento, liberdade de expressão, liberdade de ser informado – tratando-se, assim, de um

direito fundamental de primeira dimensão. Como tal, exige uma atuação negativa no sentido

de não ser invadida a esfera de liberdade individual de acesso às ideias e às informações.

A liberdade é essencial à produção da informação, porquanto somente se produzida

livremente, poderá ser afirmada a sua idoneidade. Acaso caracterizada afronta à liberdade,

tanto o que produz a informação, quanto o que a recebe estarão submetidos a pressões

externas, que poderão deturpar o conteúdo dos fatos e mensagens.288

Enquanto direito fundamental de liberdade, a informação assume dois enfoques

distintos. O primeiro diz respeito ao direito fundamental de informar. Este consiste na

faculdade a todos assegurada de veicularem informações e ideias, fazendo com que estas

cheguem aos destinatários.

Advindo da liberdade de manifestação do pensamento, o direito de informar está

diretamente vinculado à liberdade de expressão, à qual não pode ser imposto impedimento

injustificado289.

Nos dizeres de Edilsom Pereira de Farias, a liberdade de informar é “um direito

subjetivo fundamental assegurado a todo cidadão, constituindo na faculdade de manifestar

286 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 241. 287 Tratando sobre a liberdade, Paulo Affonso Leme Machado aduz que esta “é um anseio natural do ser humano. Ser livre é poder pensar e agir sem pressões ou constrangimentos exteriores ao próprio ser”. in MACHADO, Paulo Affonso Leme. op. cit. p. 31 288 Ibidem. p. 31. 289 Aqui, refere-se à censura prévia, por questões religiosas, políticas e afins. Obviamente que, em casos de colisão entre o direito de informar e outros direitos fundamentais, deverá ser feito o sopesamento, de forma em que, poderá haver limitação do direito de informar nestes casos. Ainda são justificados os limites de horário e de faixa etária para que sejam veiculadas determinadas ideias, opiniões, manifestação do pensamento.

Page 109: OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO ...

108

livremente o próprio pensamento, ideias e opiniões através da palavra, escrito, imagem ou

qualquer outro meio de difusão”.290

Não só os cidadãos são titulares do direito de informar. Igualmente a sociedade é

titular de tal direito. Todos têm direito a que as ideias e opiniões circulem, haja vista tratar-se

de pressuposto para que a sociedade civil funcione eficientemente291.

Ainda inserido no direito de informar encontra-se o direito aos mecanismos para a

transmissão das informações. A vedação de imposição de obstáculos abrange não só a

impossibilidade de censura prévia, mas também a determinação de que não se deve impedir o

acesso aos meios em que são transmitidas as informações.

O segundo enforque atribuído ao direito fundamental de informação – o do direito de

ser informado – consiste na faculdade de receber livremente informações pluralistas, ou seja,

de ser integralmente informado. Este direito fundamental diz respeito, ainda, à faculdade ser

mantido não só integralmente, mas também corretamente informado292, seja pelo Estado, seja

por outros particulares.

Neste caso, fica estabelecido o binômio liberdade-responsabilidade: a liberdade de

receber informações deve estar conjugada com a liberdade de informar. Esta, por sua vez, se

vincula à responsabilidade ao apresentar informações, as quais devem ser verdadeiras, a fim

de viabilizar o direito de ser informado corretamente e para que se propicie a adequada

formação das convicções do indivíduo.

Sobre o direito de receber informações verdadeiras, assevera Alexandre de Moraes

que:

é um direito de liberdade e caracteriza-se essencialmente por estar dirigido a todos os cidadãos, independentemente de raça, credo ou convicção político-filosófica, com a finalidade de fornecimento de subsídios para a formação de convicções relativas a assuntos públicos.293

Neste sentido, o Estado deve informar aos cidadãos acerca dos fatos relevantes que

estejam em seu domínio, de forma a favorecer os mecanismos para conhecimento dos

assuntos públicos.

290 FARIAS, Edilsom Pereira de. op. cit. p. 163. 291 LORENZETTI, Ricardo Luiz. op. cit. p. 510. 292 Aqui, é inserido o direito da pessoa de receber as suas informações pessoais constantes dos bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público. 293 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. Teoria Geral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 162.

Page 110: OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO ...

109

Ainda no contexto deste direito, impõe-se aos meios de comunicação prestar as

informações de interesse público visando sempre a sua verossimilhança, posto que devem ser

apuradas e veiculadas de forma responsável.

Apreciando este dever de veracidade, Edilsom Pereira de Farias sustenta que em um

Estado Democrático de Direito, exige-se do sujeito o dever de diligência, sendo limite interno

da informação não a verdade objetiva – que estaria vinculada à verdade do Estado, através de

seus órgãos – mas a verdade subjetiva, vinculada à atitude espiritual do observador. Destarte,

a veracidade exigida da informação prestada é um problema valorativo, referente à atitude de

probidade daquele que presta a informação294.

Assim, a expressão do pensamento, das ideias e opiniões, o acesso aos mesmos, bem

como aos bancos de dados oficiais são direitos fundamentais assegurados a todos, estando

previstos na ordenação constitucional brasileira, como se verá a seguir.

3.2.3 Breve análise da “ordenação constitucional da informação”295 no Brasil

Assim como ocorre com o vocábulo cultura, a multiplicidade de significados do termo

informação repercute francamente no ordenamento jurídico pátrio. Ao se dar tratamento legal

à informação, as suas mais diversas definições ficam cunhadas.

Daí porque a Constituição Federal de 1988 traz em seu corpo, uma gama de artigos

acerca do tema informação, enfocando-a em suas mais variadas concepções. Alguns deles

serão abaixo expostos.

A livre manifestação do pensamento é consagrada no art. 5º, inciso IV. Este

dispositivo deve ser apreciado em conjunto com o conteúdo do art. 220, também da Carta

Magna.

O art. 220, em seu caput preconiza que a manifestação do pensamento, a criação, a

expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer

restrição. Já os parágrafos 1º e 2º, do aludido artigo, estabelecem a vedação de se estabelecer

embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação

social bem como a proibição de toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e

artística.

294 FARIAS, Edilsom Pereira de. op. cit. p. 164-165. 295 Como destacado acima, “A ordenação constitucional da cultura” é o título atribuído por José Afonso da Silva à obra jurídica em que o constitucionalista aprecia os direitos da cultura e à cultura no âmbito da Constituição Federal de 1988. A fim de sistematizar adequadamente o presente trabalho o título é ora parodeado aplicando-o ao direito à informação.

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110

Da leitura de ambos os dispositivos constitucionais, verifica-se ser vedada a restrição à

livre manifestação do pensamento, devendo, porém ser observados os direitos da

personalidade de terceiros que possam vir a ser atingidos pela informação veiculada.

Como leciona Manoel Jorge e Silva Neto:

Em um Estado democrático não deve haver limites outros ao direito de informar que os relativos à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (art. 5º, X, da Constituição), bem assim aqueles atrelados ao interesse público, porquanto há previsão constitucional que faz reserva à concessão de informação por órgão público [...]296

Obviamente, que não ficam excluídas as limitações de horário e de idade, que devem

ser observadas por aqueles que prestam as informações.

Também relacionado com os dispositivos supra elencados, o inciso IX, do art. 5º

estatui ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,

independentemente de censura ou licença. Por sua vez, no inciso XIV do art. 5º está

assegurado o acesso à informação e resguardado o sigilo de fonte, quando necessário ao

exercício profissional.

Os dispositivos constitucionais elencados nesta primeira parte têm pertinência com a

liberdade de expressão e informação.

Como leciona Ricardo Luís Lorenzetti o direito de liberdade de expressão e

informação assume dupla dimensão. A primeira é pessoal, no sentido de que a ninguém será

arbitrariamente imposto embaraço ou impedimento na manifestação do seu próprio

pensamento. A segunda dimensão é coletiva, que demanda que todos têm o direito de receber

informação e acesso ao pensamento alheio297.

Arrematando esta primeira parte do tratamento constitucional sobre a informação, é

imperioso transcrever os ensinamentos de José Afonso da Silva, para quem a liberdade de

informação:

compreende a procura, o acesso, o recebimento e a difusão das informações ou ideias, por qualquer meio, e sem dependência da censura, respondendo cada qual pelos abusos que cometer. O acesso de todos à informação é um direito individual consignado na Constituição, que também resguarda o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.298

Já o inciso XXXIII, do art. 5º estabelece que o Estado tem o dever de promover, na

forma da lei, a defesa do consumidor. A despeito de não estar expresso na Carta Magna o 296 SILVA NETO, Manoel Jorge. Curso de direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 565. 297 LORENZETTI, Ricardo Luis. op. cit. p. 512. 298 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 246.

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111

direito de informação do consumidor, é relevante destacar que a Lei 8.078, de 11.09.1990,

Código de Defesa do Consumidor – CDC –, prevê expressamente no art. 6º, III, o dever dos

fornecedores de bens e/ou serviços de informar adequadamente o consumidor. É este parte

hipossuficiente na relação consumerista, pelo que tem direito de ser cientificado acerca dos

diferentes produtos e serviços – com a devida especificação de quantidade, características,

qualidade e preço, bem como sobre os riscos que podem proporcionar.

Ainda o art. 5º, inciso XXXIII da Carta Magna estatui que todos têm direito de receber

dos órgãos públicos informações do seu interesse particular ou de interesse coletivo ou geral,

que serão prestados no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvados aquelas cujo

sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Este dispositivo refere-se ao direito líquido e certo de obter certidão, assegurado a

qualquer pessoa para defesa de um direito seu. Como requisito exige-se que haja legítimo

interesse para tanto. O Estado tem o dever de prestar as informações solicitadas pela pessoa,

salvo em casos de sigilo, sob pena de sua responsabilização.

O inciso LXIII do art. 5º estatui o direito do preso de ser informado de seus direitos.

Entre estes direitos, vislumbra-se o de permanecer calado, sendo assegurada ao preso a

assistência da família e do advogado. Ou seja, ao preso é garantido ter ciência de quais são os

seus direitos, inclusive o de ficar silente.

Finalmente, o inciso LXXII, do art. 5º dispõe que o habeas data será concedido em

duas situações distintas. A primeira diz respeito ao acesso ao conhecimento das informações

relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros de bancos de dados de entidades

governamentais ou de caráter político; a segunda é pertinente à retificação de dados quando

não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo.

Nesta hipótese, a informação refere-se aos dados pessoais do impetrante, que tem

direito a deles tomar conhecimento ou mesmo a eles retificar.

Da breve análise apresentada, é de se concluir que a Carta Magna Brasileira dedica à

informação concepções distintas. Ora tratada como ideias, ora como conhecimento, ora como

notícias, é a informação também enfocada como conteúdo de banco de dados, dentre outras

acepções.

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112

3.2.4 O direito de acesso à informação

O mundo atual é marcado pela constante troca de informações, daí ser relevante a

proteção do acesso à informação como um direito fundamental do ser humano através do qual

fica assegurado ao homem o direito de assimilar e receber as ideias, notícias e as opiniões

expressas por outrem.

Como sustentado linhas acima, o direito fundamental de informação assume duas

facetas primordiais: a de prestar a informação, fazendo-a chegar ao destinatário da mensagem,

e a de receber a informação. Procedendo-se ao corte metodológico deste capítulo, no que

tange à informação, é a última dimensão que releva ao presente trabalho: a que aprecia a

informação em seu enfoque de acesso. Daí dizer-se direito fundamental de acesso à

informação.

Aqui importa, ainda, delimitar que não é qualquer conteúdo que se discutirá no

presente trabalho, ficando excluídas, por exemplo, as informações constantes de bancos de

dados estatais, as informações que devem ser prestadas aos consumidores em geral, acerca do

conteúdo dos contratos, a cientificação do preso acerca dos seus direitos de ficar calado e

afins.

O direito de acesso à informação a que se dá foco no trabalho ora produzido refere-se

àquele que tem por objeto ideias, opiniões e notícias veiculadas pelos mais diversos meios.

A recepção da informação está inserida no campo da liberdade e viabiliza o

desenvolvimento humano voltado à sua realização e concretização de sua dignidade. Volta-se,

ainda, ao exercício da democracia, potencializando a liberdade de escolha da pessoa, que, em

poder da informação prestada, passa a ser dotada de subsídios para a formação de suas

convicções particulares pertinentes aos assuntos sociais como um todo.

Com o progresso da sociedade e os estreitos vínculos de dependência recíproca que hoje nos prendem uns aos outros, a informação se tornou indispensável. A comunicação pública e imediata do que acontece dá a conhecer melhor e de maneira contínua o que se passa contribuindo para o bem comum e para o proveito de toda a sociedade.299

Ao se afirmar que deve ser assegurado o direito de acesso à informação, quer-se

significar que ao indivíduo fica resguardada a liberdade de procurar e receber ideias, opiniões,

pensamento de qualquer natureza, expressadas através de qualquer meio.

299 Inter Mirifica – Decreto do Concílio Vaticano II sobre os meios de comunicação social. 3. ed. 2001. São Paulo, Paulinas, p. 8.

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113

É de se concordar com Paulo Afonso Leme Machado quando este afirma que “tanto a

presença da informação pode agir para libertar o ser humano, como a ausência da informação

poderá ser causa de opressão e subordinação”.300

No escólio do citado autor

A qualidade e a quantidade de informação irão traduzir o tipo e a intensidade da participação na vida social e política. Quem estiver mal informado nem por isso estará impedido de participar, mas a qualidade de sua participação restará prejudicada. A ignorância gera apatia ou inércia dos que teriam legitimidade para participar.301

Destarte, a liberdade de acesso à informação é pilar básico para uma participação

democrática qualitativa, estando intimamente relacionada com a dignidade da pessoa humana,

posto ser mecanismo apto a contribuir para o desenvolvimento intelectual individual e na

busca de “um lugar ao sol” na chamada sociedade da informação.

3.3 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO: UM ENFOQUE PROMOCIONAL

Os direitos de acesso à cultura e à informação são mecanismos que podem propiciar a

transformação da realidade social. A efetivação dos referidos direitos contribui para a

consecução do ideário democrático, com o desenvolvimento humano nos seus mais variados

enfoques.

O acesso ao saber (cultura e informação) é, como destacado acima, direito assegurado

a todos. Trata-se de meio pelo qual é possível evidenciar o valor do homem.

Através do acesso à cultura e à informação, o indivíduo resta capacitado para as

funções sociais a serem por ele exercitadas. Assegura-se o desenvolvimento de suas aptidões

e, via de consequência, proporcionam-se ao indivíduo os meios para prover as suas

necessidades302.

Oldegar Franco Vieira elucida:

[...] a cultura é constituída pelo saber mais integrado no espírito do homem; mas conquista da inteligência, o saber – culturalizável – deve ser posto ao alcance de todos; e deve ser sempre capaz de promover a elevação de todos, não como privilégio de minorias exclusivistas, como vulgarmente se costuma atribuir ao termo cultura uma significação elitista. 303

300 MACHADO, Paulo Afonso Leme. op. cit. p. 32. 301 Ibidem. p. 34. 302 BRANT, Leonardo. op. cit. passim. 303 VIEIRA, Oldegar Franco. Estado de direito e estado de cultura. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1983. p. 252.

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114

Discursando sobre o desenvolvimento de um país, através do trinômio biblioteca,

cultura e comunidade, Marcos Vinícius Vilaça sustenta ser necessário o estímulo à

consciência social do povo, ao qual deve ser proporcionado elevado grau de informação.

Segundo o citado autor, é necessário facilitar o acesso à informação. Somente assim é

viável o desenvolvimento social, econômico e cultural do ser humano, bem como a

transformação da sociedade304.

A cultura e a informação são bases indispensáveis para o desenvolvimento integral do

ser humano, para a superação da pobreza e da desigualdade sociais, e para a promoção do

bem-estar coletivo.

Segundo Maria Luiza Marcílio,

A responsabilidade de promover o Bem Comum compete não apenas às pessoas consideradas individualmente, mas também ao Estado, sendo o Bem Comum a razão mesma de ser da autoridade pública. O Bem Comum tem valor quando em referência à obtenção universal da dignidade de toda a humanidade [...]

Essa atenção refere-se não apenas à pobreza material, mas também às numerosas formas de pobreza cultural. O Bem Comum diz respeito ao homem todo, tanto às suas necessidades do corpo como às do espírito. Consiste no conjunto das condições da vida social que possibilite o desenvolvimento integrado da pessoa humana.305

Flávia Piovesan enfatiza que o direito de acesso ao conhecimento é essencial em uma

sociedade globalizada “em que o bem-estar e o desenvolvimento estão condicionados, cada

vez mais, pela produção, distribuição e uso equitativo da informação, do conhecimento e da

cultura”. Assim, é mister transformar o paradigma vigente, eliminando-se as barreiras ao

acesso à informação e à cultura306.

No mesmo sentido, Jorge Renato dos Reis e Eduardo Pires ensinam que na atual

“sociedade informacional”, o conhecimento tornou-se bem imaterial de valor imensurável,

sendo ele elemento indispensável para o desenvolvimento econômico, tecnológico e cultural

da sociedade307.

A consecução do acesso à cultura e à informação auxilia, assim, na promoção do pleno

desenvolvimento da pessoa. Destarte, a efetivação dos direitos de acesso à cultura e à

informação são instrumentos aptos a gerar o bem-estar individual e coletivo.

304 VILAÇA, Marcos Vinícius. Cultura e Estado. Secretaria da Cultura, 1985. p. 79-85. 305 MARCÍLIO, Maria Luiza. A Declaração Universal dos Direitos Humanos: o primado da dignidade humana e do bem comum. in MARCÍLIO, Maria Luiza (org.). A Declaração Universal dos Direitos Humanos: Sessenta anos. Sonhos e realidades. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008. p. 21. 306 PIOVESAN, Flávia. op. cit. p. 120. 307 REIS, Jorge Renato; PIRES, Eduardo. O direito de autor funcionalizado. in SANTOS, Manoel J. Pereira dos. (Coord.) Direito de autor e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011.p. 211.

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115

Não se pretende propor aqui que os direitos de acesso à cultura e à informação sejam

soluções para todas as mazelas da sociedade, mas que se constituem em um dos instrumentos

aptos a viabilizar a igualdade para acesso às oportunidades de desenvolvimento e crescimento

econômico disponibilizadas às pessoas, assim como a liberdade de escolha, haja vista se

tratarem de direitos essenciais para a efetivação de outros direitos fundamentais.

Ou seja, não se visa a defender que com o acesso à cultura e à informação todos os

problemas sociais estariam resolvidos. O que se busca é demonstrar que através da

concretização destes, a pessoa passa a ser dotada de mecanismos que auxiliar na sua

realização enquanto ser dotado de dignidade e com possibilidade de escolhas.

3.3.1 A promoção da igualdade

Jean-Jacques Rousseau, em seu “Discurso sobre a origem e os fundamentos da

desigualdade entre os homens”, sustenta a existência de duas modalidades de desigualdades

na espécie humana. A primeira seria natural ou física, relacionada à diferença de idades,

saúde, qualidades do corpo e espírito; a segunda, a que denomina de moral ou política,

caracteriza-se pelos diferentes privilégios de que uns usufruem em detrimento de outros.

Dentre estes privilégios, Rousseau elenca o acesso à educação, como um dos fatores decisivos

para as desigualdades configuradas308.

De fato, a falta de acesso à educação, à cultura e à informação acaba por dificultar o

ingresso nas oportunidades mercadológicas, e, como consequência, inviabiliza a realização da

pessoa e de sua existência digna, resultando em uma maior desigualdade social.

Tem-se, é verdade, uma verdadeira “bola de neve”: a ausência de igualdade afeta o

ingresso na cultura e na informação, fato que, por sua vez, repercute diretamente no acesso às

oportunidades de trabalho e desenvolvimento humano, o que flui novamente para a

desigualdade social, em um movimento cíclico, que não cessa.

Os direitos de acesso à cultura e à informação fortalecem a democracia, são

instrumentos de combate contra as desigualdades sociais, bem como constituem importantes

mecanismos de formação intelectual e crítica do ser humano.

308 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos de desigualdade entre os homens. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martins Claret, 2009. passim.

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116

Nos dizeres de Leonardo Brant:

Cultura, como agenda política, é oportuna e necessária para o fortalecimento da democracia, da economia e do trabalho, no combate às desigualdades sociais e na promoção da paz. Uma maneira de enxergar o acesso à cultura não apenas como algo que diverte e emociona, mas que, acima disso, permite pensar e agir. 309

A despeito de tratar apenas sobre a cultura, o trecho acima transcrito, de autoria de

Leonardo Brant se aplica perfeitamente à informação, que é também mecanismo que permite

“pensar e agir”.

O efetivo acesso aos direitos fundamentais da cultura e informação310 é, assim,

instrumento hábil a promover a igualdade – não só formal – mas, e principalmente, a

substancial, o que repercute diretamente no exercício das liberdades de escolha, como será

suscitado a seguir.

3.3.2 Promoção da liberdade

O acesso ao saber deve ser pensado de forma distinta do que se faz hodiernamente. É

necessário passar do enfoque que o trata como simples meio de acesso ao mercado (não que

não tenha esta relevância, mas esta não é a única), para ser considerado como um instrumento

de efetivação da autonomia e autodeterminação individual.

O acesso à cultura e à informação são mecanismos aptos a propiciar o que se costuma

denominar de mínimo existencial, colaborando diretamente para a promoção da igualdade

material, como apreciado no subitem anterior, e, via de consequência, para a promoção da

liberdade de escolha.

Konrad Hesse faz importante análise acerca da liberdade formal – perante a lei – e

material – a efetiva liberdade – defendendo que a segunda somente poderá se configurar em

caso de existência da igualdade substancial. Para o autor alemão, a autodeterminação do

indivíduo não é alcançada nos casos em que a pessoa não esteja em pé de igualdade com a

309 BRANT, Leonardo. op. cit. p. 108. 310 Não se descura da necessidade de adoção de políticas que viabilizem o acesso a outros direitos fundamentais, como instrumento de promoção da igualdade. Aqui, todavia, importa salientar o acesso à cultura e informação, por se tratar do corte metodológico proposto. Obviamente, que o acesso à saúde, moradia, trabalho, dentre outros direitos sociais serão também instrumentos aptos a promover tal desiderato.

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117

outra para deliberar. Daí que a liberdade material somente se concretiza através da promoção

da igualdade efetiva311.

Trazendo tal posicionamento para o que se propõe neste trabalho, aquele que não

detém o conhecimento, a quem não é proporcionado o acesso à cultura e à informação, não

está em pé de igualdade com os outros para poder manifestar as suas escolhas.

Como esta pessoa irá exercer a sua autonomia enquanto ser humano? Como ficará a

sua autodeterminação?

Apenas com o mínimo existencial assegurado, que influi na promoção da igualdade

material, é que se pode falar em liberdade de escolha da pessoa. Dentre os direitos que

compõem o mencionado mínimo existencial, estão, sem dúvida, os direitos de acesso à cultura

e à informação.

Neste sentido, Leonardo Brant assevera que a cultura “é ponto de partida para um

projeto de nação, para o desenvolvimento social, para as oportunidades econômicas, mercados

potentes, brasileiros capazes, competentes e livres”. 312 Estendemos este posicionamento

também à informação.

De se concluir, pois, que com a promoção do acesso à cultura e à informação, fica,

também, promovida a liberdade substancial.

3.4 OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO E SUA OPONIBILIDADE AOS PARTICULARES

A Constituição Federal de 1988 prevê que o Estado tem o dever de proporcionar aos

indivíduos o acesso à cultura e à informação, direitos fundamentais voltados para a concreção

da dignidade da pessoa humana. Indene de dúvida o dever estatal de adotar políticas públicas

voltadas para este sentido.

311 Nos dizeres de Hesse: “La autonomia privada y su manifestación más importante, la liberdad contractual, encuentran su fundamento y sus límites em la idea de la configuración bajo propia responsabilidad de la vida y de la personalidad. Presuponen uma situación jurídica y fática aproximadamente igual de los interesados. Donde falta tal presupuesto, y la autonomia privada de uno conduce a la falta de liberdad del outro, desaparece todo fundamento y se trespasa todo limite; el indispensable equilíbrio debe entonces ser encontrado por outra via, la de la regulación estatal, cuya eficácia frecuentemente requiere uma conexión de preceptos de Derecho Público y Privado. Aquí radica la diferencia esencial entre el significado actual de la autonomía privada y el del siglo XIX: aquél ofrecia uma libertad solo formal, porque partía de uma igualdad solo formal, que solo parcialmente se correspondia com la realidad social; em consecuencia, podia conducir a la falta de liberdad efectiva. Una liberdad real general nunca puede ser producida por la sola autonomia privada. Dado el pressupuesto de uma situación jurídica y fática aproximadamente igual de los interesados, ésta es, sin embargo, elemento esencial de la libertad real, y como tal, no puede ser sustituida por planificación o regulación estatal alguna por cuidada que sea.” in HESSE, Konrad. Derecho constitucional e derecho privado. Trad. Ignácio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Civitas, 2005. p. 77-78. 312 BRANT, Leonardo. Op. cit. p. 108.

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118

A celeuma surge quanto à possibilidade de opor os ditos direitos de acesso à cultura e

à informação aos particulares, por inexistir norma constitucional expressa neste sentido.

Poder-se-ia afirmar que se tratando de norma dirigida diretamente ao Estado, somente

a este vincularia, eis que a omissão ou a prestação somente poderia ser por este realizada.

Todavia, este não parece o entendimento mais adequado.

Ainda que dirigidos ao Estado, seja como limite à atuação estatal, na qualidade de

direitos de defesa, seja como imposição de atividade estatais, como direitos a prestações, é

possível exigir dos particulares a observância dos direitos fundamentais de acesso à cultura e

à informação.

Como fundamentos do posicionamento ora apresentado, têm-se o princípio da

supremacia da Constituição, o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da

solidariedade, o princípio da aplicação imediata dos direitos fundamentais, o princípio da

unidade do ordenamento jurídico313, que serão examinados a seguir.

3.4.1 Princípio da supremacia da Constituição

Também conhecido como princípio da constitucionalidade, o princípio da supremacia

da Constituição consiste no reconhecimento de que as disposições constitucionais detêm força

normativa, vinculativa e obrigatória, seja formal, seja material.

A Constituição assume posição central na ordem jurídica, inclusive se sobrepondo e

vinculando as normas reguladoras das relações privadas – e via de consequência, os

particulares em suas relações horizontais.

Sobre o tema, veja-se o escólio de Luís Roberto Barroso

A primeira característica distintiva das normas constitucionais é a sua posição no sistema: desfrutam elas de superioridade jurídica em relação a todas as demais normas. A supremacia constitucional é o postulado sobre o qual se assenta todo o constitucionalismo contemporâneo. [...] É para assegurar essa supremacia que se criou o controle de constitucionalidade das leis. [...] A norma constitucional, portanto, é parâmetro de validade e o vetor interpretativo de todas as normas do sistema jurídico.314

Neste sentido, além de ser aplicável direta e imediatamente às situações por ela

contempladas, pela Constituição faz-se o controle da validade das as demais normas jurídicas

313 Estes fundamentos são apresentados por Wilson Steinmetz, na obra “A vinculação dos particulares a direitos fundamentais” sendo reproduzidos no presente trabalho, por considerar-se adequados ao ponto de vista trazido na presente tese. 314 BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo. Saraiva. p. 198.

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que compõem o sistema. Estas terão sua aplicabilidade afastada se forem com a norma

suprema incompatíveis.

Ou seja, por força do princípio da constitucionalidade, todos os atos devem ser

praticados de acordo os princípios constitucionais. Do contrário, poderão ser reputados

inexistentes, nulos, anuláveis ou ineficazes. Neste sentido, a legislação infraconstitucional

torna-se constitucionalizada, não se havendo de falar em um direito privado autônomo em

relação ao direito constitucional315.

Não bastasse tal fato, o conteúdo trazido no bojo constitucional é norte para a

interpretação do sentido das normas jurídicas infraconstitucionais, sendo parâmetro para a

argumentação jurídica a ser desenvolvida pelo aplicador do Direito.

Hodiernamente, as Constituições normatizam as relações do indivíduo com o Estado

bem como as pertinentes aos âmbitos sociais, econômicos e culturais em que se estabelecem

as relações entre particulares.

Desta forma, as normas constitucionais – e em especial as que preveem os direitos

fundamentais – incidem também sobre as relações jurídicas travadas entre particulares.316

3.4.2 Princípio da dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana foi consagrada no art. 3º, III da Constituição Federal

de 1988, não como um direito fundamental, mas como um dos fundamentos da República

Federativa do Brasil.

A dignidade da pessoa humana é “fundamento e fim da sociedade”317 e traz em seu

bojo conteúdo multifacetado, na medida em que se volta à pessoa e a esta assegura o respeito

ao exercício de seus direitos fundamentais, iluminando a interpretação da legislação ordinária,

inclusive, a aplicável às relações jurídicas entre particulares.

Segundo Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos:

O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independente da crença que se professe quanto à sua origem. A

315 REIS, Jorge Renato dos. O direito de autor no constitucionalismo contemporâneo: considerações acerca de sua função social. in ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; MORAES, Rodrigo (coord.) Propriedade intelectual em perspectiva. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. p. 151- p. 153. 316 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 103. 317 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 5. ed. rev. e atual. Coimbra: Coimbra Editora. 2004.

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120

dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência318.

Destarte, a dignidade da pessoa humana se manifesta especialmente na

autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que estabelece um mínimo

intocável que o ordenamento jurídico como um todo deve assegurar319.

3.4.3 Princípio da solidariedade

Também o princípio da solidariedade vem a reforçar a vinculação dos particulares aos

direitos fundamentais de acesso à cultura e à informação. Está expressamente previsto no art.

3º, inciso I que a construção de uma sociedade livre, justa e solidária é objetivo fundamental

da República Federativa do Brasil.

Este princípio tem como destinatário principal o Estado, que deve buscar a efetividade

aos direitos fundamentais consagrados na Carta Magna, promover o bem-estar das pessoas e

fomentar a solidariedade nas relações horizontais – entre particulares.

Porém, não apenas o Estado deve atentar para o conteúdo do princípio em comento.

Os particulares também são destinatários do princípio da solidariedade, ainda que em

grau menor em relação ao Estado, na medida em que se prevê a responsabilidade social como

dever de todos, sem distinção. Daí que as ações dos particulares devem ser também pautadas

por este objetivo fundamental.

Nos dizeres de Daniel Sarmento:

A construção de uma sociedade solidária, tal como projetada pelo constituinte, pressupõe o abandono do egocentrismo, do individualismo possessivo, e a assunção, por cada um, de responsabilidades sociais em relação à comunidade, em especial em relação àqueles que se encontram numa situação de maior vulnerabilidade. É obvio que o Direito não tem como penetrar no psiquismo das pessoas par a impor-lhes as virtudes da generosidade e do altruísmo. Seria terrível, aliás, que o Direito pudesse ditar sentimentos. Entretanto, se ele não pode obrigar ninguém a pensar ou a sentir de determinada forma, ele pode, sim, condicionar o comportamento externo dos agentes, vinculando-os a obrigações jurídicas.

Construir esta sociedade justa e igualitária é um dever do Estado, que impõe tarefas promocionais aos três Poderes, mas é também uma obrigação que pesa sobre toda a sociedade e sobre cada um de seus integrantes, na medida das respectivas possibilidades. Sem embargo, trata-se de uma responsabilidade cujos contornos e limites devem ser desenhados de forma cuidadosa, para que não seja demasiadamente comprometida a liberdade dos agentes privados, tão importante

318 BARROSO, Luís Roberto. BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da História: A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. in SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Crise e desafios da Constituição: Perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 503. 319 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 48.

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para a dignidade da pessoa humana e para a edificação de uma sociedade verdadeiramente democrática320.

Deve o indivíduo sacrificar uma parcela de sua liberdade em prol do todo, daí que o

princípio da solidariedade supera o individualismo, para que se consigam solucionar os

problemas sociais.

De se concluir que tanto as ações a desenvolvidas pelo Estado, como as pelos

particulares – em menor proporção – devem atender diretamente ou estar relacionadas ao

princípio da solidariedade.

Diz-se que o particular deve desenvolver suas atividades voltadas ao princípio da

solidariedade, porém em menor proporção que o Estado a fim de se salvaguardar a pessoa de

uma intervenção estatal de tal ordem que de cada qual seria retirada a sua liberdade de

autodeterminar-se, diante da socialização e funcionalização total do indivíduo.

Quer-se com isso afirmar que as pessoas devem desenvolver suas atividades voltadas

para seus interesses pessoais, de forma a desenvolver e fomentar sua dignidade, mas tal esfera

de liberdade deve também ser voltada aos interesses da coletividade.

3.4.4 A aplicação imediata dos direitos fundamentais – inclusive perante os particulares321

O §1º, do art. 5º, da Constituição Federal estatui que as normas definidoras dos

direitos e garantias fundamentais são dotadas de aplicabilidade imediata, tendo ficado

consagrado o reforço e qualificação dos citados direitos fundamentais322, os quais estão

protegidos perante o legislador ordinário e o poder constituinte reformador, vez que integram

o rol das cláusulas pétreas.

Para Ingo Wolfgang Sarlet, a melhor exegese da norma contida no art. 5º, § 1º., a

vigente Constituição é a que a considera como uma norma de cunho principiológico, tratando-

se de um mandado de otimização (ou maximização). Assim, fica estabelecida a necessidade

de se dar a maior eficácia possível aos direitos fundamentais. Daí que, segundo Sarlet, ao

preceito em exame deve ser presumida a aplicabilidade imediata das normas definidoras de

320 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 297. 321 Não se descura da existência de posicionamento no sentido de que para que os direitos fundamentais sejam aplicados horizontalmente, ou seja, sejam vinculativos dos particulares, se faz necessária a atuação concreta do legislador infraconstitucional. Adotando este posicionamento, Konrad Hesse sustenta que “Al legislador del Derecho Privado corresponde constitucionalmente la tarea de transformar el contenido de los derechos fundamentales, de modo diferenciado y concreto, em Derecho inmediatamente vinculante para los participantes em uma relación jurídico-privadas”. HESSE, Konrad. op. cit. p. 63-64. 322 SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit. p. 66.

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direitos e garantias fundamentais, a qual somente poderá ser afastada mediante justificação à

luz do caso concreto323. (271)

Wilson Steinmetz sobre o tema afirma que:

O Poder Constituinte, ao prescrever, textualmente, que as normas de direitos e garantias fundamentais devem ter aplicação imediata, decidiu que, no âmbito da vigência da CF, os direitos fundamentais são uma categoria de direitos com força especial e que por isso devem ser tomados a sério. [...] a CF é uma estrutura normativa básica que pretende normatizar não somente as relações entre Estado e indivíduo (ou grupos) e as relações intraestatais, mas, em âmbitos fundamentais de vida, também as relações sociais em sentido amplo. Ademais, [...] além do Estado, também os poderes privados são potenciais inimigos dos direitos fundamentais e a pretensão da Constituição em normatizar, em âmbitos essenciais, as relações sociais, a tese segundo a qual as normas de direitos fundamentais não seriam aplicáveis nas relações entre particulares. Evidentemente, a resposta é negativa.324

Eugênio Facchini Neto também debate acerca da eficácia dos direitos fundamentais

entre particulares. Analisando o questionamento acerca da eficácia da norma constitucional –

se seria direta ou indireta, se dependeria ou não da atuação do legislador – o autor apresenta

posicionamento favorável à eficácia direta. A depender da atuação do legislador, estar-se-ia

concedendo ao legislador infraconstitucional poder superior ao do Constituinte, visto que com

a inércia na edição das leis infraconstitucionais que implementam os direitos fundamentais,

estes ficariam com o conteúdo esvaziado. Nos seus dizeres “Isso significa que a criatura

(legislador ordinário) teria mais poder que o seu criador (legislador constituinte)”325.

Pela vinculação direta fica dispensada, pois, a mediação legislativa para que os direitos

fundamentais produzam efeitos nas relações entre privados. Desta forma, os efeitos dos

citados direitos fundamentais são imediatos, haja vista que incidirão na situação,

independentemente de norma infraconstitucional regulamentando o direito.

Assim, ainda que não seja editada norma de direito privado, os direitos fundamentais

configuram direitos subjetivos dos sujeitos da relação jurídica. Fica, destarte, assegurada a

real efetividade ao direito fundamental, prestigiando-se o constituinte e não o legislador

infraconstitucional.

Faz-se, desta forma, desnecessária a edição de legislação mediadora para que a

vinculação do particular ao direito fundamental reste configurada.

323 SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit. p. 270-271. 324 STEINMETZ, Wilson, op. cit. p. 123. 325 FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. in SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 11-60.

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123

3.4.5 Princípio da unidade material do ordenamento jurídico

A Constituição é norma norteadora de todo o ordenamento jurídico. Hierarquicamente

superior, serve de parâmetro formal e material para as demais normas infraconstitucionais.

Estando os direitos fundamentais consagrados na Constituição, são eles alguns dos núcleos

materiais desta.

Consequência disso é que também os direitos fundamentais são norteadores da

unidade material do ordenamento, refletindo-se nas normas infraconstitucionais.

Como diz Wilson Steinmetz

Os direitos fundamentais, como elementos constitutivos da parte dogmática da Constituição, fazem parte do núcleo material (da Constituição). Logo, os direitos fundamentais operam como elementos de unificação material do ordenamento jurídico.326

Tratando da eficácia dos direitos fundamentais no âmbito das relações jurídicas

privadas, Eugênio Facchini Neto sustenta que os direitos fundamentais devem ser observados

não só pelo Estado – Executivo, Legislativo e Judiciário –, mas também pelos particulares.

Aduz, ainda, que os direitos fundamentais têm efeito irradiador sobre o direito privado como

um todo e em especial do Direito Civil. Para o autor, na interpretação e definição do conteúdo

normativo do Código Civil os direitos fundamentais são “linhas diretivas”, norteadoras. 327

Assim, as normas destinadas à regulamentação das relações entre particulares também

devem ser editadas em observância material e formal ao conteúdo da norma constitucional e,

por conseguinte, dos direitos fundamentais ali consagrados.

326 STEINMETZ, Wilson. op. cit. p. 104. 327 FACHINNI NETO, Eugênio. op. cit. p. 49.

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124

4 A FUNCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS

O enfoque individualista dado aos ramos jurídicos integrantes do denominado Direito

Privado é arquitetado ao longo da história com influência direta do movimento de codificação

do séc. XIX, mormente a partir dos reflexos da Revolução Francesa e do Code Napoleon, que

viria a ser um símbolo das conquistas da classe burguesa emergente à época.

Fruto da racionalidade sobrevinda do mesmo período tem-se o advento do positivismo

jurídico. Por esta filosofia, a ciência jurídica cinge-se ao que está normatizado, dando-se

ênfase à estrutura do ordenamento e à norma jurídica, propriamente dita, desvinculada de

valores como v.g. a justiça. Neste contexto – decorrência da corrente positivista, que tão bem

serviu aos interesses individualistas, dentre eles, o de segurança jurídica nas relações

interprivadas – o estudo das funções do Direito acaba por ser relegado a um segundo plano.

Este quadro somente vai ser alterado com a retomada do estudo do Direito

concomitantemente com a Sociologia328, e com os questionamentos propostos acerca da

insuficiência da análise simplesmente estrutural procedida pela ciência jurídica produzida até

então.

Propõe-se, no presente capítulo, demonstrar que o Direito é condição necessária para a

existência da sociedade, mas que, concomitantemente, é fruto desta, sendo fator, inclusive, de

mudança da realidade social, e não somente de conservação do status quo.

Neste sentido, buscar-se-á enfatizar que o Direito não é apenas o conjunto de normas

voltadas à coerção, à paz social e à conservação do que está posto. É ele funcionalizado como

instrumento de transformação social e de promoção de direitos e condutas socialmente

desejadas.

Esta mudança de ótica acaba por refletir em todo o sistema, inclusive no intitulado

Direito Privado, vislumbrado não mais como apenas um ramo protetor do indivíduo

atomizado, mas deste inserido dentro de um contexto social. Daí falar-se em função social dos

principais institutos deste ramo jurídico, o que será também abaixo examinado.

É justamente esta evolução de ótica que se pretende examinar nesta oportunidade da

dissertação.

328 Com isso não se pretende dizer que o estudo sociológico do direito inexistiu no período, mas que na formulação da teoria do direito, com ênfase para as normas postas, os fatores sociais eram tidos como secundários.

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4.1 BREVES NOTAS SOBRE O POSITIVISMO JURÍDICO E A ANÁLISE ESTRUTURAL DO DIREITO

Antes de adentrar na análise funcional do Direito, é mister tecer concisas

considerações329 acerca do positivismo jurídico, teoria330 que assume várias gradações e que

imperou no século XIX até meados do século XX.

Trata-se de doutrina filosófica que tem seu advento com a preocupação de

fundamentar a ciência do direito, motivo pelo qual analisa o Direito sob seu prisma puramente

estrutural, vinculando-o ao ordenamento jurídico e às normas postas pelo Estado.

O positivismo jurídico surge como uma reação ao movimento jusnaturalista que o

antecedeu, sendo decorrência da era cientificista em que surgiu, e visava à concretização da

estabilidade e segurança jurídica da classe burguesa emergente331.

Nos dizeres de Tércio Sampaio Ferraz Jr., “a crítica dos pensadores iluministas e a

necessidade de segurança da sociedade burguesa passou, então, a exigir a valorização dos

preceitos legais no julgamento dos fatos. Daí se originou um respeito quase mítico pela

lei[...]” 332. Assim, acabou-se por restringir o âmbito jurídico à lei. Tendo-se, com isso, o

monopólio da lei como fonte do direito. É o “fetichismo da lei”.

O positivismo jurídico possui como um de seus marcos teóricos333 o austríaco Hans

Kelsen, “divisor de águas” da ciência jurídica334, para quem a ciência do direito tem relação

com o prescrito juridicamente – com o positivado –, e não com as condutas humanas.

329 Não é pretensão do presente trabalho esgotar o estudo do positivismo jurídico, mesmo porque, para tanto, poderiam ser desenvolvidos tratados a respeito. Nesta oportunidade, é ele apreciado, suscintamente (e com ênfase para Hans Kelsen), apenas para demonstrar a existência de paradigma anterior, tradicional, voltado à apreciação estrutural do direito, e a constatação de incompletude desta abordagem, que passa a ser realizada concomitantemente com a análise funcional do sistema jurídico. Mas não é demais registrar, ainda que em nota de rodapé, que Auguste Comte voltou seus estudos à ciência, à previsibilidade e à ação, negando as causas dos fenômenos em busca de suas leis, sendo o fundador do positivismo. Para maior aprofundamento sobre o positivismo e do positivismo jurídico, vejam-se: COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. Coleção Os pensadores. Nova Cultural, 2000. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006; BARZOTTO, Luiz Fernando. O Positivismo Jurídico Contemporâneo. Uma introdução a Kelsen, Ross e Hart. São Leopoldo: Unisinos, 2001; AFTALIÓN, Enrique R., VILANOVA, RAFFO, Julio. Introducción al Derecho. 5. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2009. p. 177-345. 330 Norberto Bobbio conclui tratar-se o positivismo de uma teoria e uma ideologia, além de tratá-lo como um método para o estudo do direito. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone Editora, 2006. p. 223-234. 331 AFTALIÓN, Enrique R., VILANOVA, RAFFO, Julio. op. cit. passim. 332 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. 4. reimp. São Paulo: Atlas. 2012. p. 50. 333 Volta-se a enfatizar que o extenso rol de autores positivistas impede o estudo detalhado no presente trabalho. Todavia, para fins de demonstrar que existem outros doutrinadores, que adotam posicionamentos distintos do de Kelsen, mas que também são positivistas, filiados a outras escolas, citem-se, H.L.A. Hart, filiado à escola analítica da linguagem comum, autor da obra Teoria da norma jurídica, de destaque internacional, reputada um marco fundamental do pensamento jurídico; Alf Ross, Sobre el derecho y la justicia, aluno de Kelsen, que, porém, não seguiu seu mestre em todo o pensamento, sendo filiado à escola de Upsala. 334 Tratando sobre a Teoria Pura do Direito, de Kelsen, Larenz assevera que esta é “a mais grandiosa tentativa de fundamentação da ciência do Direito como ciência – mantendo-se embora sob o império do conceito positivista desta última e sofrendo das respectivas limitações – que o nosso século veio até hoje a conhecer. [...]”. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Golbenkian, 1991, p. 92. Já Mario Losano, em prefácio à edição brasileira da obra de Norberto Bobbio, Da estrutura à função, chega a chamar a teoria pura do direito de “Bíblia do positivismo jurídico”. p. XXI.

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Hans Kelsen desenvolve o raciocínio de que o ato somente passará a ser jurídico acaso

haja uma norma que a ele empreste o sentido objetivo. Ou seja, é a norma que irá atribuir ao

fato uma significação jurídica. Segundo ele, os fatos externos não são objeto de um

conhecimento especificamente jurídico. Para que sejam transformados em atos jurídicos

(lícitos ou ilícitos) é necessário haver o seu sentido objetivo, que será dado pela norma

jurídica 335.

Enfatiza Kelsen que

o conhecimento jurídico dirige-se a tesas normas que possuem o caráter de normas jurídicas e conferem a determinados fatos o caráter de atos jurídicos (ou antijurídicos). Na verdade, o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano336.

Conclui-se, assim, que seus ensinamentos são voltados à estrutura do ordenamento: o

Direito é tratado como o sistema de normas que regulam os ilícitos e as respectivas sanções,

direcionando as condutas humanas, impondo-se aos indivíduos como devem se comportar.

Ao elaborar a teoria pura do direito, Hans Kelsen buscou atribuir pureza à ciência do

Direito, afastando do âmbito deste a moral e qualquer juízo de valor ou comunicação com

outras áreas do saber, como a sociologia, a psicologia, a política etc.

Segundo Enrique R. Aftalión, José Vilanova e Julio Raffo, Kelsen se propõe a

terminar com a confusão de limites existentes entre o Direito, as outras áreas do saber e a

Moral, depurando a ciência jurídica de todo o material reputado espúrio337.

Para alcançar tal desiderato, metodologicamente, são feitas duas depurações: a

primeira purificação consiste na separação entre Direito, de um lado, e Política, Moral, Justiça

e toda ideologia. Isto porque a Teoria Pura do Direito é uma teoria do direito positivo. A

segunda purificação da ciência jurídica se faz através da separação da ciência natural e, em

especial, da sociologia jurídica.338

335 in KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. trad, João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 04. 336 Ibidem. p. 05. 337 AFTALIÓN, Enrique R., VILANOVA, José, RAFFO, Julio. op. cit. p. 287-288. 338 Ibidem. p. 287-288.

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A. L. Machado Neto, apreciando as etapas de depuração propostas pela Teoria Pura do

Direito, manifesta

La primeira es uma purificación del aspecto táctico que pudiera estar ligado al derecho, entregando esse aspecto a las ciências casusativas como la sociologia y la psicologia. La segunda, elimina del derecho el aspecto ético-valorativo del ideal de justicia, frecuentemente asociado a la Idea de derecho339.

Independentemente da ordem de depuração trazida pela doutrina, percebe-se que, pelo

princípio da pureza, a neutralidade axiológica pretendida por Kelsen e a separação das outras

áreas científicas têm por escopo precípuo dar cientificidade ao Direito.

Neste tocante, considerava-se irrelevante a sua análise funcional.

Kelsen deu primazia ao ponto de vista estrutural, pois que, com o advento do Estado

moderno, sua teoria do Direito surge com enfoque no ordenamento340, visando à segurança

jurídica e à estabilidade das relações como um todo. Por isso, pode-se afirmar que a

construção kelseniana é típica do mundo liberal.

A Teoria Pura do Direito concentra-se na estrutura lógica das normas jurídicas,

enfocando-as em sua estática (momento de criação das normas e relação entre elas) e

dinâmica (momento de aplicação das normas).

Ou seja, metodologicamente, o positivismo kelseniano considera o Direito apenas sob

o enfoque estrutural, com ênfase ao Direito posto e formal. E, como decorrência, verifica-se o

nítido traço dogmatista atribuído à ciência jurídica.

Segundo Tércio Sampaio Ferraz Junior, a ciência dogmática é um pensamento

conceitual, vinculado ao Direito posto, que “funciona como um agente pedagógico [...] que

institucionaliza a tradição jurídica, e como um agente social que cria uma ‘realidade’

consensual a respeito do direito”.341

Com o pensamento jurídico dogmatizado, dá-se especial ênfase à lógica, ao legalismo

e ao formalismo, o que passa a ser objeto de refutação por outras correntes do pensamento

339 MACHADO NETO, Antônio Luiz. Fundamentación egológica de la teoria general del derecho. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1974. p. 29. Tradução livre: A primeira é uma purificação do aspecto tático que poderia estar ligado ao direito, entregando esse aspecto às ciências causais como a sociologia e a psicologia. A segunda elimina do direito o aspecto ético-valorativo do ideal de justiça, frequentemente associado à ideia de direito. 340 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função. Novos estudos de teoria do direito. Trad. Daniela Beccaria Versiani. Barueri: Manole, 2007. p. 87. 341 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. op. cit. p. 60.

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ocidental342. É que, como leciona Giuseppe Lummia, “O fenômeno jurídico mostra-se

estreitamente ligado ao fenômeno social, de maneira que não pode haver direito onde não haja

sociedade: ou seja, as ações jurídicas se apresentam como um subconjunto das ações

sociais.”343

Tem-se o questionamento da análise simplesmente estrutural do Direito, conservadora

das regras de caráter prevalente liberal, em que se privilegiam as questões formais em

detrimento das demais. Isso porque essa análise estrutural, feita a partir do Direito posto pelo

Estado denota incompletude, na medida em que não há como isolar o mundo jurídico dos

demais ramos científicos, posto que são todos integrantes do contexto social.

4.2 A DOGMÁTICA JURÍDICA E A SOCIOLOGIA DO DIREITO: RELAÇÃO DE COMPLEMENTARIDADE

Com a maior valorização da Sociologia Jurídica, também chamada de sociologia do

Direito, ramo compreendido no âmbito das ciências sociais, verifica-se o destaque do

encontro entre o Direito e a Sociologia, na busca da investigação dos processos de resolução

de conflitos em sociedade.

De uma análise isolada e puramente formal, que busca dissociar o Direito do contexto

em que está inserido, tem-se, concomitantemente, o exame à luz da realidade social em que é

constituído, valorizando-se a apreciação sociológica do Direito.

É que, como enfatiza Norberto Bobbio, “a ciência jurídica já não é uma ilha, mas, sim,

uma região entre as outras de um vasto continente”.344

342 É o que se denota, por exemplo, do movimento do direito livre, surgido na Alemanha no início do século XX e que teve como um de seus ícones Eugen Ehrlich. Este movimento surge como uma reação ao formalismo legalista imperante à época, pelo qual direito e lei eram sinônimos. Relacionado com o pluralismo jurídico, que concebe o direito não apenas como as normas advindas do Estado, mas advém de um sem número de fontes, e refutando a completude do ordenamento jurídico, o movimento do direito livre pondera que a sociologia jurídica deve ser considerada a verdadeira ciência do direito. Sobre o tema, vide TREVES, Renato Treves, Sociologia do direito, pp. 119-127. Também a corrente do pluralismo jurídico é movimento de oposição ao positivismo, na medida em que considera Direito não apenas as normas postas pelo Estado, como as normas organizadas por grupos sociais, por exemplo. Sobre o tema, vide SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós moderna. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000; SANTOS, Boaventura de Souza. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1988; WOLKMER, Antônio Carlos Wolkmer. Pluralismo jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo: Editora Alfa Omega, 2001; WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: Novo marco emancipatório na historicidade latino-americana. in Revista Cadernos de Direito. Cadernos do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Metodista de Piracicaba. V. I. n. I, 2001. semestral/bianual; CAIRO JUNIOR, José. A crise do Estado e o pluralismo jurídico. in Diké – Revista Jurídica de Direito da UESC/ Universidade Estadual de Santa Cruz, Departamento de Ciências Jurídicas. Ilhéus: UESC, 2001. anual; CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e democracia. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. 343 LUMMIA, Giuseppe. Elementos de teoria e ideologia do direito. Trad. Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 29. 344 NORBERTO, Bobbio. op. cit. p. 46.

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129

Passa-se, com isso, a evidenciar a existência de relação entre o Direito e a realidade

social, visando à sua compreensão como integrante do sistema social. Daí porque se faz a

comunicação entre o Direito, a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia, a Política etc.

Neste sentido, oportuna a lição de Larenz, para quem “o Direito como ordenação da

vida e como ordem normativa não se exclui reciprocamente; pelo contrário, o Direito ‘válido’

é sempre as duas coisas: validade normativa e validade fática são-lhe igualmente

características”345.

Tem-se, em verdade, como consequência da dogmática e da sociologia jurídica, duas

formas metodológicas distintas de se vislumbrar o Direito, mas que se correlacionam entre si.

A primeira consiste no método dogmático-jurídico, de relevância instrumental, a segunda se

refere ao método empírico sociológico, com finalidade cognitiva.

Enquanto a dogmática jurídica objetiva o estudo do Direito material em vigor, tratando

das normas jurídicas formalmente válidas; a Sociologia do Direito volta-se à realidade social

que subjaz a estas normas, objetivando o exame dos comportamentos e fatos sociais que a elas

deram ensejo346.

A Sociologia do Direito nasceu com o fito de, de forma empírica, conhecer a realidade

do direito. Assim, enquanto

a dogmática jurídica examinava a validade formal do direito, a sociologia do direito interessava-se pela sua validade empírica ou por sua eficácia social; se a dogmática jurídica se indagava acerca do que é formalmente direito, numa época e num contexto social determinados, a sociologia do direito ocupava-se com o que estava acontecendo realmente no seio desta sociedade [...] A dogmática jurídica procurava, então, descrever o que é lícito ou ilícito do ponto de vista jurídico. A sociologia do direito buscava, por sua vez, explicar certos comportamentos, entre cujos determinantes causais se contam as normas jurídicas formalmente válidas347.

Dada a complementaridade que ambos exercem entre si, a apreciação formal e o

exame empírico devem ser feitos concomitantemente.

E não apenas isto, é necessária uma reconstrução contínua de conceitos e definições

jurídicas, incluindo a definição de sistema. O Direito deve estar relacionado com outros

campos. Destarte, é imperiosa a ruptura com a moldura tradicional positivista que propugna

345 LARENZ, Karl. op. cit. p. 87. 346 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Fariñas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos. Trad. Eduardo Pellew Wilson. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p.15-16 347 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Fariñas. ibidem. p. 17.

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130

que elementos psicológicos, sociológicos e históricos, não podem ingressar no mundo do

Direito348.

É que, frise-se, o Direito está inserido no contexto social, desempenhando tarefas no

seio da sociedade. Por conseguinte, deve ser concebido não apenas sob o enfoque estrutural –

em que se consideram as normas e o ordenamento jurídico –, mas também, sob o ponto de

vista funcional.

4.3 “DA ESTRUTURA À FUNÇÃO”349

Enfatizando as relações entre os integrantes de uma sociedade, o funcionalismo é uma

corrente das ciências humanas que remonta ao séc. XIX, tendo como um de seus precursores

Émile Durkheim350.

Esta corrente cumpriu e continua exercendo influência na pesquisa científica, inclusive

no âmbito do estudo jurídico351 – apesar de no ramo jurídico passar a ter maior expressão em

tempos mais recentes.

Como tratado no item 4.1, em virtude da corrente positivista, que enfatizava o enfoque

estrutural do Direito, o seu prisma funcional era relegado a um segundo plano.

Basta dizer que na Teoria Pura do Direito, Kelsen apenas aduz que o Direito tem por

função a organização social, através dos meios coercitivos. Todavia, tal argumento não é por

ele desenvolvido, posto que sua ênfase fosse volvida à concepção instrumental.

Nos dizeres de Norberto Bobbio:

Na obra de Kelsen, não só a análise funcional e estrutural estão declaradamente separadas, como esta separação é a base teórica sobre a qual ele funda a exclusão da primeira em favor da segunda. Como todos sabem, para o fundador da teoria pura do direito, uma teoria científica do direito não deve se ocupar da função do direito, mas tão-somente dos seus elementos estruturais. A análise funcional é confiada aos sociólogos e, talvez, aos filósofos.352

348 FACHIN aduz que “O estabelecimento de uma espécie de cartografia da transdisciplinaridade impõe um repensar do sujeito e do objeto, bem como da metodologia da investigação científica, voltada para esses estatutos jurídicos fundamentais. Caso logrado êxito, ter-se-á chegado ao final com um resultado realmente significativo, que é o de ter desenvolvido uma metodologia de investigação transdisciplinar, a partir de um referencial específico que retorne à característica ‘universal’.” FACHIN, Luis Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar: 2000. p. 254. 349 A expressão é cunhada entre aspas como referência à obra de Norberto Bobbio, cujo título é empregado no presente trabalho. Na obra em comento, o autor italiano aprecia a complementaridade entre a teoria estrutural do direito – em que se considerava apenas a estrutura do ordenamento e da norma jurídica – para a teoria funcional – dando ênfase à função promocional do direito. BOBBIO, Norberto. op. cit. passim. 350 GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas da pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 19. 351 Ibidem, loc. cit. 352 BOBBIO, Norberto. op. cit. p. 54.

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131

Percebe-se que, na busca de se atribuir cientificidade à Teoria do Direito, voltou-se à

sua análise formal, em detrimento da histórica, hermenêutica e sociológica. A apreciação era

destinada à compreensão dos elementos formais da experiência jurídica, tendo por objeto o

exame das estruturas jurídicas fundamentais, na busca do conhecimento rigoroso e preciso,

estabelecendo-se o Direito como um meio e não como um fim.

Em outras palavras, a Teoria do Direito focava o conhecimento de “como o direito é

feito” e não “para que o direito serve”353.

Apreciando a ausência de maior desenvolvimento doutrinário acerca da função social

do Direito, Norberto Bobbio sustenta que o parco interesse pelo estudo da função social na

Teoria Geral do Direito é associado à ênfase dada pelos grandes teóricos – de Ihering a

Kelsen – ao Direito como instrumento, como estrutura.354

Desta forma, o estudo do direito se ateve muito mais ao seu conteúdo formal e lógico,

do que ao seu enfoque finalístico, tudo em nome da busca de sua cientificidade.

Porém, o direito está inserido no contexto social, desempenhando tarefas no seio da

sociedade. Destarte, deve ser concebido não apenas sob o enfoque estrutural – em que se

consideram as normas e o ordenamento jurídico – mas, também, sob o ponto de vista

funcional.

Ou seja, concomitantemente com a análise estrutural, que tem por finalidade assegurar

a certeza ao sistema normativo, a análise funcional do Direito é realizada, sendo tendência

hodierna. A relação é, portanto, de complementaridade.

A análise funcional do Direito é método através do qual é examinado o próprio

Direito, suas instituições, e os respectivos papéis que desempenham na sociedade355, com a

evolução da clássica concepção estruturalista pura e simples para a verificação dos fins por

ele almejados e concretizados.

Volta-se, pois, aos mais variados objetivos realizados e perseguidos pelo sistema

jurídico.

Esta análise funcional, por sua vez, comporta a divisão em dois pontos de vista

distintos. O primeiro leva em consideração o todo e a função que o Direito desempenha

perante o sistema social. Já o segundo aprecia a repercussão no âmbito individual.

353 Ibidem. p. 54. 354 Ibidem. p. 85. 355 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Fariñas. op. cit. p. 139.

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132

É o que lecionam André-Jean Arnaud e Maria José Fariñas Dulce, para quem a função

do Direito pode ser enfocada de duas formas distintas. A primeira seria a perspectiva

epistemológica objetiva, que tem como referencial o paradigma biológico-organicista. Assim

como o corpo humano é formado por órgãos, que desempenham papéis específicos, o sistema

social é formado por elementos que contribuem para o funcionamento do sistema social como

um todo356.

A segunda perspectiva epistemológica de função apresentada por André-Jean Arnaud

e Maria José Fariñas Dulce é a subjetiva. Sob este prisma, é o próprio ator social quem

delimita as funções dos atos por ele praticados. Em outras palavras,

o conceito de “função” parte da categoria da ação dos indivíduos que participam das ações sociais e, assim fazendo, interagem num quadro comum preestabelecido: o sistema social. [...] passa-se do “objetivismo” determinista do sistema à “subjetividade” do “ator social”. É o próprio “ator social” que delimita e que define, com seus objetivos, suas finalidades e seus projetos de ação social, as “funções” que cada um dos elementos do sistema irá executar.357

Nesta seara, são considerados os indivíduos, integrantes da totalidade e que interagem

entre si e com a coletividade.

Também Bobbio considera que a função do Direito pode ser vislumbrada sob óticas

diferentes: a) a do indivíduo, e, b) a da sociedade. A primeira leva em consideração a

satisfação dos interesses do homem, individualmente considerado. A segunda tem como

referência a concepção global da coletividade em seu conjunto.

Para Bobbio, o estudioso que se propõe a examinar o problema da função social do

Direito deve se perquirir a qual dos polos que faz referência, esclarecendo se pretende

visualizar a sua função em relação à sociedade, como totalidade, ou em relação ao indivíduo

que a integra. Para ele, nada impede que seja estudada a função do Direito sob ambos os

primas, porém, é imperiosa a determinação e delimitação efetiva do problema.358

356 Ibidem. p. 140. 357 Ibidem. p. 140-141. 358 São seus dizeres: “Quem se põe o problema da função social do direito faz referência a qual dos pólos? Põe-se o problema de qual é a função do direito em relação à sociedade como totalidade ou em relação aos indivíduos que dela fazem parte? Provavelmente, em relação a ambos, o que é perfeitamente lícito. O que não é lícito e cria confusão é que os dois problemas não sejam claramente diferenciados. Se eu digo, como diz o príncipe dos funcionalistas, que a principal função do direito é a integração social, coloco-me do ponto de vista da sociedade e me ponho um problema determinado, que é o da função do direito em relação à sociedade no seu conjunto. Se eu digo, como dizem os antropólogos, que a função do direito é tornar possível a satisfação de algumas necessidades fundamentais do homem, como a nutrição, o sexo e outras necessidades de ordem cultural e assim por diante, nas sociedades mais evoluídas, coloco-me do ponto de vista do indivíduo e me ponho um outro problema determinado, que é a função do direito em relação aos indivíduos singularmente considerados”. BOBBIO, Norberto. op. cit. p. 104.

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133

Em verdade, Bobbio destaca que uma apreciação funcional que ambicione ser

completa deveria tomar ambas – a individual e a coletiva – em consideração, porém,

esclarecendo os prismas do estudo359.

Tomando-se por base este posicionamento, o exame funcional dos institutos do Direito

Privado feito no decorrer do presente trabalho, leva em consideração ambos os prismas –

individual e coletivo; procedimento a ser repetido no próximo capítulo, em que se propõe

examinar as funções do Direito Autoral.

Antes, porém, insta examinar algumas das funções atribuídas pela Doutrina ao Direito.

4.4 FUNÇÕES DO DIREITO

O Direito exerce diversas funções reais e ideais, podendo-se, através da sua análise e

da do contexto em que está inserido, verificar os reflexos que produz no seio da sociedade;

assim também, constatar, do conteúdo do conjunto das normas que o integram, quais as

finalidades almejadas com a sua realização.

A doutrina como um todo atribui ao Direito diversas funções360.

Reinaldo Dias, por exemplo, aponta como as principais funções do direito a

organização, o controle social, a orientação e persuasão, a resolução de conflitos, a

legitimação de poder, a segurança jurídica, realização da justiça, a integração social, o

fortalecimento do processo de socialização, a institucionalização de mudanças sociais e a

distribuição de recursos escassos361.

Neste tópico, porém, serão apreciadas apenas as funções de manutenção da ordem

social, de transformação da ordem social, funções protetiva e repressiva, e função

promocional, pois estas guardam relação direta com a presente dissertação.

359 Ibidem. p. 105. 360 Criticando esta gama diversificada de funções, Norberto Bobbio observa que as listagens das funções do direito, apresentadas pela doutrina, são, em geral, óbvias. São dizeres do autor italiano: “Digo logo que o interesse pelo problema da função ou das funções do direito, do modo como se desenvolveu nesses últimos anos, não deve nos impedir de ver que os resultados até agora alcançados por este tipo de análise estão bem longe de serem satisfatórios. A qualquer pessoa que passe os olhos sobre o elenco das funções atribuídas ao direito na maioria desses escritos é impossível não sair com a impressão de que tais elencos são, por um lado, uma reunião de coisas bastante óbvias, que pouco ou nada acrescentam ao nosso conhecimento do fenômeno jurídico, e que, por outro lado, são compostos por elementos heterogêneos, do que surge imediatamente a suspeita de que, na expressão ‘função do direito’, tanto o termo ‘função’ quanto o termo ‘direito’ são empregados, sem que isso seja explicitado, com significados diferentes”. BOBBIO, Norberto. op. cit. p. 103 361 DIAS, Reinaldo. Sociologia do direito: a abordagem do fenômeno jurídico como fato social. São Paulo: Atlas, 2009. p. 209.

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134

Não se descura da existência de outras funções atribuídas ao Direito, tais como as

funções de controle social362; a coesão social363; a capacidade integradora dos conflitos364; a

capacidade desintegradora365; a função de legitimação do poder social366, dentre outras.

A opção por não adentrar no estudo destas últimas é aqui feita como forma de apontar

aquelas funções que o Direito exerce no âmbito da sociedade, relacionadas com o tema e

problematização propostos na presente dissertação.

4.4.1 O direito como instrumento de manutenção do status-quo

A primeira das funções que se pretende examinar é a de manutenção do status

precedente.

Como sabido, o Direito é produto da cultura367, e reflete valores que satisfazem às

necessidades de determinado grupo social. Daí que na teoria, na prática e na constituição de

seus órgãos e instituições, o direito é a repetição do estágio social e cultural de determinada

sociedade.

Como preleciona A. L. Machado Neto, “o direito se apresenta, inicialmente [...] como

realidade estática, conservadora do atual status quo, do atual sistema de relações culturais e

sociais”.368

362 O direito tem por função realizar o controle social, o que se dá através da institucionalização da reação a comportamentos desviantes, de forma a minimizar os conflitos sociais. Neste sentido, o direito é um mecanismo de controle, tendo a finalidade de propiciar o equilíbrio, a ordem e a paz social. Como sustentam André-Jean Arnaud e Maria José Fariñas Dulce, “o direito se constitui no mais poderoso meio de controle social, o que significa ser o meio mais eficaz para integrar, para regular e para determinar o comportamento social”. ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Fariñas. op. cit. p. 145. 363 É o que se vê, por exemplo, em Niklas Luhmann, que analisa primordialmente o direito positivo, considerando-o o maior e mais importante fator de coesão social. LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I . trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1983. passim. 364 Como enfatizam Andre-Jean Arnaud e Maria José Fariñas Dulce: “O direito, portanto, propõe normas para conter os conflitos; dito de outra maneira, ele não busca fazer, radicalmente, que o conflito desapareça, mas o faz seu e propõe um tratamento possível, sempre o mantendo sob seu controle. [...] o conflito em si, entretanto, não desaparece da estrutura social; o direito dele se apropria, no momento em que ele propõe um “tratamento” possível. O direito não constitui uma ordem de paz, mas vive do e no conflito”. op. cit. p. 150 365 Para Luhmann, o direito pode provocar ou engendrar também conflitos. Ou seja, não apenas tem a capacidade integradora dos conflitos sociais, mas também pode ter uma capacidade desintegradora: o direito não apenas resolve conflitos, no sentido corriqueiro do termo, como também pode provocá-los. 366 Segundo Luhmann, as regras jurídicas que atribuem competências e estipulam procedimentos têm a função de legitimação, validando as decisões tomadas pelos que têm o poder concedido por lei para tanto e que acaba se transformando em direito – neste caso, o direito positivo. Assim, o direito justifica o consenso em torno das decisões tomadas pelos detentores do poder, legitimando este poder, inclusive. LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, 1985. p. 46-50 367 Sobre as acepções da palavra cultura, remete-se o leitor ao capítulo terceiro – item 3.1.1. 368 MACHADO NETO, A. L. Sociologia jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1973. p. 159.

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135

Por isso, pode-se dizer que o Direito atua como conservação da cultura assimilada369.

Visualizado sob este prisma, o Direito – positivado e inerte – é funcionalizado à permanência

das coisas no estado em que elas se encontram, sendo um instrumento de controle social.

Eduardo Novoa Monreal destaca que o Direito espelha as escolhas feitas pelo

legislador, mantendo o estado social precedente, e que entre um e outro – Direito e realidade

social – acaba por haver uma ruptura370.

O Direito como instrumento de manutenção do status quo, embasa as escolhas

normativas precedentes, refletindo e assegurando o corpo de regras já estabelecidas pela

sociedade, mas nem sempre restrata a realidade social.

4.4.2 O direito como instrumento de transformação social

O Direito é um produto cultural, e como tal, não apenas retrata o sistema social que o

sustenta – preservando a ordem social preexistente –, como também o conforma, nele

repercutindo diretamente.

As modificações perpetradas na realidade social, subjacente ao Direito e que o envolve

e o contém, têm consequências na ordem jurídica. Por sua vez, o direito assume, também,

função de agente de mudança social, sendo considerado um fator de transformação social.

Neste sentido, o Direito acompanha as mudanças efetivadas na sociedade, e vice-versa.

Noutras palavras, não apenas como elemento funcionalizado à ordem preexistente

deve ser vislumbrado o Direito. É ele também funcionalizado à modificação da sociedade.

Com a edição de novas normas – em resposta aos anseios sociais – tem-se a direta

repercussão na esfera social, pelo se que pode afirmar que a edição de uma norma legal é um

fator de mudança da estrutura social.

É o que se vê em Luhmann, para quem o Direito não mais tem a função apenas de

manutenção da ordem previamente existente. A partir do momento em que é positivado, tem-

se a concretização das decisões nas normas, que passam a apresentar nova perspectiva,

devendo ser reputada como uma conquista evolutiva371. No seu entender,

[...] agora o direito serve como instrumento do desenvolvimento social, como mecanismo de definição e distribuição de chances e de resolução de consequências

369 Ibidem. p. 160. 370 MONREAL, Eduardo Novoa. O direito como obstáculo à transformação social. Trad. Gérson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1988. p. 30 371 LUHMANN, Niklas. op. cit. p. 117.

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136

funcionais problemáticas, as quais surgem inevitavelmente do rápido crescimento da diferenciação entre sistemas funcionais.372.

As mudaças jurídicas repercutem no interior do sistema social, reconhecendo

realidades sociais novas e orientando estas alterações de modo que estas repercutam na

sociedade como um todo.

Destarte, é o Direito funcionalizado à modificação da sociedade, sendo elemento

condicionante dos comportamentos sociais.

4.4.3 As funções repressiva e protetiva do direito

Classicamente – e ainda na contemporaneidade, porém de forma mitigada – o Direito é

vislumbrado como um instrumento de proteção dos indivíduos e de repressão dos atos

desviantes – condutas indesejadas – apontadas como tais pelo legislador.

Como sustenta Luiz Otávio Rabelo Neto:

Em um ordenamento unicamente protetivo-repressivo, característico do Estado liberal clássico, o desencorajamento é a técnica típica por meio da qual se realizam as medidas indiretas, ou seja, aquelas que não agem diretamente sobre o comportamento, mas sim buscando influenciar por meios psíquicos o agente, tornando o comportamento indesejado mais difícil, ou então, uma vez realizado, produtor de consequências desagradáveis, mediante a aplicação de sanções negativas373.

Destarte, pela função repressiva, a prática de ato reputado ilícito é punida,

repercutindo perante o indivíduo, posto que seja uma forma de desencorajamento de ações

nocivas.

Já a nuance protetiva assegura aos indivíduos a possibilidade de fazer ou deixar de

praticar atos, nos limites da lei, defendendo-se, inclusive, os direitos subjetivos assegurados

no ordenamento.

Ao ordenamento protetivo-repressivo interessa o combate aos comportamentos

socialmente não desejados, com o fim primordial de impedir a sua prática374. Acaba o Direito,

também, por viabilizar aos indivíduos a prática e defesa de direitos subjetivos consagrados no

ordenamento como tal.

Neste sentido, o que se percebe é que, na qualidade protetiva-repressora, o Direito

assume o caráter de instrumento mantenedor da ordem social pré-existente.

372 Ibidem. p. 12 373 RABELO NETO, Luiz Otávio. Teoria funcionalista e função promocional do direito. Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/20369/teoria-funcionalista-e-funcao-promocional-do-direito, acesso em 02 de junho de 2012. 374 BOBBIO, Norberto. op. cit. p. 15.

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137

4.4.4 A função promocional do direito: a promoção de condutas socialmente desejadas

Como exposto no item 4.4.3, classicamente, atribuía-se ao Direito as funções protetiva

e repressiva, o que reflete a tendência de análise do direito como funcionalizado

exclusivamente à proteção de direitos e repressão de condutas. Porém, na atualidade,

concomitantemente com as mencionadas funções acima examinadas, volta-se o Direito,

também, ao encorajamento de condutas socialmente desejadas.

Hodiernamente, para realizar o controle social, o direito “não deve sempre, nem

necessariamente, ser repressivo, isto é, coercitivo e a posteriori; ele deve até mesmo prevenir

e promover”.375

É o que leciona Norberto Bobbio, para quem a função do Direito não mais é

apenas protetivo-repressiva, mas também, e com frequência cada vez maior, promocional. Nos dias de hoje, uma análise funcional do direito que queria levar em consideração as mudanças ocorridas naquela ‘específica técnica de organização social’ que é o direito não pode deixar de integrar a sua função promocional ao estudo da sua tradicional função protetivo-repressiva. A meu ver, essa integração é necessária se o que se deseja é elaborar um modelo teórico representativo do direito como sistema coativo. Trata-se de passar da concepção do direito como forma de controle social para a concepção do direito como forma de controle e direção social.376

Essa mudança de paradigmas, que retrata a evolução doutrinária sobre as finalidades

que o direito se propõe a alcançar, é o que ora se propõe a examinar.

Ao final dos anos sessenta, com o advento do Estado Social377, as funções de proteção

e de repressão mostram-se insuficientes para a organização social, surgindo, como

consequência, outra nuance do Direito. Isto porque as diferenças nas diversas camadas

sociais, resultantes do modelo liberal, restaram enfatizadas, sendo necessária uma atuação

estatal para minimizar os disparates concretizados.

Com a necessidade de efetivação dos denominados direitos fundamentais sociais, o

Estado atua de forma interventiva, e o Direito passa a assumir nova feição, não apenas

direcionado à proteção dos direitos de liberdade e igualdade.

O Estado ampliou suas atividades e funções, estando vinculado à consecução dos

direitos sociais. Porém, consciente de sua incapacidade para satisfazer a todos os direitos, e 375 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Fariñas. op. cit. p. 148. 376 BOBBIO, Norberto. op. cit. p. 209. 377 Norberto Bobbio destaca que o Estado assistencial tem como uma de suas características primordiais o aumento das denominadas leis de incentivo. in BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função. Novos estudos de teoria do direito. Trad. Daniela Beccaria Versiani. Barueri: Manole, 2007. p. 17. Mais adiante, o autor observa que a técnica de encorajamento – em que se inserem as leis de incentivo, as sanções positivas, dentre outras – tem uma função transformadora ou inovadora do status quo. Ibidem, p. 20-21.

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138

percebendo a insuficiência da estrutura normativa antes existente – pois voltada apenas à

proteção e repressão – objetivando alcançar comportamentos desejados para a consecução do

bem-estar social, lança-se mão do que se costuma denominar de norma promocional.

Norberto Bobbio ressalta que, em virtude das exigências do Estado assistencial

contemporâneo, é tendência do Direito estimular atos inovadores. Daí que sua função não é

apenas protetora ou repressiva, mas também promocional. Concomitantemente com as

sanções negativas, com específica técnica de repressão, vê-se, também, a adoção de sanções

positivas378 como uma espécie de estímulo e propulsão para a concretização de atos

considerados socialmente úteis, em lugar da repressão de atos considerados socialmente

nocivos.379

Neste cenário, o Direito assume o caráter de encorajamento de condutas socialmente

desejáveis – a que se costuma denominar de promocional. Com a nuance promocional busca-

se atingir um fim tornando-se a ação desejada “necessária, fácil e vantajosa”.380

É interessante anotar que “a técnica do encorajamento tem uma função transformadora

ou inovadora”381. Ou seja, as medidas de encorajamento consubstanciadas pelo direito

promocional acabam se tornando uma categoria de mudança social.

Desta forma, no modelo jurídico hodierno, às funções protetiva e repressiva é somada

a função promocional382. Consubstanciando, assim, uma modalidade de controle social

preventiva, que visa à obtenção da igualdade material, assim também como de solidariedade

entre os componentes do grupo social.

Para Tércio Sampaio Ferraz Jr., o Direito torna-se

um mecanismo de controle premunitivo: em vez de disciplinar e determinar sanções em caso de indisciplina, dá maior ênfase a normas de organização, de condicionamentos que antecipam os comportamentos desejados, sem atribuir o caráter de punição às consequências estabelecidas ao descumprimento. Nessa circunstância, o jurista, além de sistematizador e intérprete, passa a ser também um teórico do aconselhamento, das opções e das oportunidades, conforme um cálculo de custo-benefício, quando examina, por exemplo, incentivos fiscais, redução de

378 Aqui impende registrar que a expressão “sanção positiva” é adotada por Bobbio, mas não é isenta de críticas. Há quem, a exemplo de Marília Muricy, considere que esta expressão constitui um elemento de desordem na linguagem do Direito. Trata-se de expressão cunhada com influência das teorias sociológicas que distinguem as sanções sociais em positivas – estímulos – e negativas – as sanções propriamente ditas. MURICY, Marília. Anotações de aulas de Teoria Geral do Direito. UFBA. 21/Set/2011. 379 BOBBIO, Norberto. op. cit. p. 24. 380 Ibidem. p. 15. 381 Ibidem. p. 20 382 Segundo André-Jean Arnaud e Maria José Faniñas Dulce, não se há de fazer uma identificação simplista entre a função repressiva e o Estado liberal, de um lado, e de outro, a função de promoção do direito e do Estado social, visto que também neste último são estabelecidas normas de caráter repressivo. op. cit. p. 156

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139

impostos, vantagens contratuais, avalia a necessidade e a demora nos processos judiciais etc.383

Destarte, esta função do Direito está estritamente ligada à regulação dos

comportamentos, que são orientados de duas formas distintas: a primeira, pela repressão dos

comportamentos socialmente indesejáveis, com o impedimento de sua prática; a segunda, com

a promoção dos comportamentos socialmente desejados, favorecendo a realização destes.

Daí que, na consecução de tal fim, são utilizadas a recompensa, brindes, vantagens

econômicas, incentivos etc.

4.5 FUNÇÃO SOCIAL

Feitas as considerações da passagem da análise puramente estrutural para a análise

estrutural-funcional e acerca das funções do Direito, passa-se, neste ponto, à apreciação da

função social propriamente dita.

Esta parte do trabalho está sistematizada da seguinte forma: inicialmente, apreciar-se-á

a teoria da solidariedade social, de León Duguit e os reflexos desta na forma de se vislumbrar

os direitos subjetivos. Em seguida, passa-se ao exame dos fundamentos da função social, para,

após, adentrar na aplicação da função social aos institutos de Direito Privado, com enfoque

especial para a propriedade, uma vez que esta guarda relação com os direitos patrimoniais do

autor.

4.5.1 A solidariedade social de León Duguit e seus reflexos nos direitos subjetivos, em especial do direito de propriedade

León Duguit nasceu em 1859 em Libourne, na França. Professor de direito público,

aderiu à escola da sociologia, considerando a ciência jurídica como uma ciência social.

Seguidor das ideias de Durkheim, em seus estudos, Duguit voltou-se para o que denominava

de solidariedade social.384

Segundo sua teoria, o homem vive em sociedade, estando ligado aos demais pelos

laços de solidariedade social. A sociedade somente subsiste pela solidariedade dos indivíduos

que a constituem. Também a sociedade provoca a solidariedade, seja pela semelhança dos

383 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. op cit. 384 TREVES, Renato. op. cit. p. 127.

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140

indivíduos que a compõem, seja pela divisão do trabalho; toda a regra de conduta dos homens

que vivem em sociedade leva a cooperar nessa solidariedade.385

Los hombres de una misma sociedad están unidos unos com otros, primero porque tienen necesidades comunes, cuya satisfacción no pueden asegurar más que por la vida común: tal es la solidariedad o interdependencia por semejanzas. Por outra parte, los hombres están unidos unos a otros porque tienen necesidades diferentes, y al mismo tiempo aptitudes diferentes, y pueden, por tanto, ayudarse em mútuos servicios y asegurar la satisfacción de sus necesidades diversas. En esto consiste la solidariedad o la interdependencia social por la división del trabajo386.

As sociedades modernas são compostas de indivíduos e de grupos. Os indivíduos são

as células que integram o organismo social, formando subgrupos aos quais são atribuídas

missões de acordo com a divisão do trabalho social387.

Duguit considerava o Direito como um produto da vida social, tratando-se, mais

especificamente, de uma regra da vida social “da qual o legislador positivo não faz outra coisa

que constatar a existência e assegurar a observância”, daí porque, segundo Renato Treves, “é

fácil compreender que não haja lugar para concepções que entendem o direito subjetivo como

uma qualidade inerente ao homem”.388

Flávio Galdino observa que existiram diversas teorias que negaram o Direito

subjetivo. Dentre elas, destaca a de León Duguit, que formulou a noção de situação jurídica.

Sintetizando o posicionamento do autor francês, Galdino assevera que Duguit aprecia duas

características dos direitos subjetivos, a individualista e a metafísica. Quanto à individualista,

é destacado que

o conceito de direito subjetivo é fundado numa premissa individualista – numa concepção individualista da própria organização social – consoante a qual a sociedade deflui da associação voluntária entre os homens com o escopo de assegurar tais direitos. Para o autor, ao revés, o homem possui uma função instrumental na sociedade – uma concepção funcionalista do homem, inexistindo direitos subjetivos, de modo que sua ideia de direito seria fundada numa concepção essencialmente socialista (lato sensu, e sem vinculação a qualquer corrente de pensamento político).389

385 DUGUIT, Léon. Fundamentos do direito. trad. Eduardo Salgueiro. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, p. 24. 386 DUGUIT, Léon. Las transformaciones generales del derecho: Público y Privado. Trad. Adolfo G. Posada, Ramón Jaén e Carlos G. Posada. Buenos Aires: Editorial Heliasta S.R.L., s.d., p. 182. Tradução livre: Os homens de uma mesma sociedade estão unidos uns com os outros, primeiro porque têm necessidades comuns, cuja satisfação não podem assegurar, senão pela vida comum: esta é a solidariedade ou interdependência por semelhança. Por outro lado, os homens estão unidos uns aos outros porque têm necessidades diferentes e ao mesmo tempo, atitudes diferentes, e podem, portanto, ajudar-se em mútuos serviços e assegurar a satisfação de suas necessidades diversas. Isto consiste solidariedade ou interdependência social pela divisão do trabalho. 387 Ibidem. p. 202. 388 TREVES, Renato. op. cit. p. 130. 389 GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. p. 70.

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141

Cada indivíduo está obrigado a desempenhar um papel no seio da sociedade, mesmo

quando estiver gozando das faculdades asseguradas pelo ordenamento, motivo pelo qual, o

seu direito liberdade fica comprometido. Isto porque todo indivíduo teria uma função a

desempenhar na sociedade e, neste sentido, teria que desenvolver de forma otimizada a sua

individualidade física, individual e moral.

Assim, o homem não teria direito de ser livre, pois teria o dever social de desenvolver

sua individualidade e de cumprir sua missão social.

Nos dizeres de Duguit

[...] todo individuo tiene en la sociedad una cierta función que llenar, una certa tarea que ejecutar. No puede dejar de cumplir esta función, de ejecutar esta tarea, porque de sua abstención resultaria un desorden o cuando menos un perjuicio social. Por outra parte, todos los actos que realizasse contrarios a la función que le incumbe serán socialmente reprimidos. Pero, por el contrario, todos los actos que realice para cumplir la missión aquella que corresponde en razón del lugar que ocupa en la sociedad, serán socialmente protegidos y garantidos.390

Certo é que, como visto acima, Duguit negava a existência dos direitos subjetivos,

defendendo a existência do que denominou de situação jurídica subjetiva. A despeito disso,

suas ideias em muito contribuíram para a noção de função social, hoje imperante – com

algumas modificações – e que é o ponto fulcral de exame no presente trabalho.

Em suma, Duguit desenvolve uma concepção realista, embasada na ideia de dever do

homem, que deve exercer uma função social, e não de direito, “porque, para ele, adotando as

palavras de Augusto Comte, ninguém possui mais direito que de cumprir sempre com o seu

dever”.391

Este posicionamento produz reflexos diretos na concepção da propriedade. Duguit

enfatiza que inexiste propriedade absoluta, no sentido de direito sobre o qual não incida

qualquer modalidade de limitação, ao contrário do que se pretendia com a concepção clássica,

através da qual se buscava tornar a propriedade limitada apenas aos atos de vontade do seu

titular.

390 DUGUIT, León. Las transformaciones de derecho (público y privado). Trad. Adolfo G. Posada, Ramón Jaén e Carlos G. Posada. Buenos Aires: Editorial Heliasta S.R.L., s.d., p. 181. Tradução livre: todo indivíduo tem uma certa função a desempenhar na sociedade, uma certa tarefa a executar. Não pode deixar de cumprir essa função, de executar essa tarefa, porque esta abstenção resultaria em uma desordem, e quando menos, em um prejuízo social. por outro lado, todos os atos que realizasse contrários a função que lhe incumbe seriam socialmente reprimidos. Mas, ao contrário, todos os atos que realize para cumprir à missão que corresponde ao lugar que ocupa na sociedade, serão socialmente protegidos e garantidos. 391 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da, ANDRIOTTI, Caroline Dias. Breves notas históricas da função social no direito civil. in GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. (coord.) Função social no direito civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 09.

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142

Criticando o regime de propriedade então existente, pelo qual se vislumbrava o direito

de propriedade como um atributo do indivíduo, Duguit sustenta que pelo Direito clássico, se

tendia a proteger unicamente os fins individuais, reputados como suficientes por si. Para ele,

este enfoque do direito de propriedade não mais pode prevalecer, porque, em verdade, a coisa

deve ser afetada a um fim coletivo, tratando-se, assim, de um dever392.

Duguit assevera que:

Todo individuo tiene la obligación de cumplir en la sociedad una cierta función en razón directa del lugar en que ella ocupa. Ahora bien, el poseedor de la riqueza, por lo mismo que posee la riqueza, puede realizar un cierto trabajo que solo él puede realizar. Solo él puede aumentar la riqueza general haciendo valer el capital que posee. Está, pues, obrigado socialmente a realizar esta tarea, y no será protegido socialmente más que si la cumple y en la medida que la cumpla. La propriedade no es, pues, el derecho subjetivo; es la función social del tenedor de la riqueza393.

A função social é, assim, um dever inerente à própria propriedade, que não teria

função social, mas, seria função social394.

Duguit enfatiza que não nega o direito de propriedade, mas apenas sustenta que a

noção jurídica em que repousa a sua proteção social se modifica. O direito de propriedade

continua sendo objeto de proteção contra todos os atentados que possam ser contra ele

dirigidos, inclusive os eventualmente praticados pelo poder público.

Para Duguit, a mudança de ótica consiste justamente na justificativa da proteção do

direito: a proteção individual da propriedade se dá diante da utilidade social que dela

resulta395.

Neste sentido, o proprietário tem o poder-dever de empregar a coisa para satisfazer às

suas necessidades individuais, de modo a contribuir no desenvolvimento de sua atividade

física, intelectual e moral. Mas, aqui, o embasamento não mais é a liberdade individual

conferida a cada indivíduo, e, sim, o fim dado ao exercício do direito.

392 DUGUIT, León. Las transformaciones de derecho (público y privado). Trad. Adolfo G. Posada, Ramón Jaén e Carlos G. Posada. Buenos Aires: Editorial Heliasta S.R.L., s.d., p. 239-240. 393 Ibidem. p. 240. Tradução livre: Todo indivíduo tem a obrigação de cumprir na sociedade uma certa função em razão direta do lugar em que ocupa. Assim, o possuidor da riqueza, pelo simples fato de possui-la, pode realizar um certo trabalho que apenas ele pode desempenhar. Somente ele pode aumentar a riqueza geral fazendo valer o capital que possui. Está, portanto, obrigado socialmente a realizar esta tarefa, e não será protegido socialmente, mas apenas e na medida em que cumprir tal tarefa. A propriedade não é, pois, o direito subjetivo; é a função social do detentor da riqueza. 394 Mais adiante, será retomada a discussão a fim de responder ao questionamento se a propriedade é ou tem função social, com a tomada de posição a respeito. Neste momento, limita-se o presente trabalho a apresentar a doutrina de Duguit e sua contribuição para a consolidação da doutrina da função social. 395 DUGUIT, León. Las transformaciones de derecho (público y privado). Trad. Adolfo G. Posada, Ramón Jaén e Carlos G. Posada. Buenos Aires: Editorial Heliasta S.R.L., s.d., p. 240.

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143

Da mesma forma, tem o proprietário o poder-dever de empregar a coisa para a

satisfação das necessidades comuns da coletividade como um todo396, sob pena de repressão

ou mesmo reparação.

Este raciocínio acaba por refletir na discussão do que seja uso normal e uso anormal

da propriedade. Resta vedado ao proprietário utilizar a coisa de que é titular sem que este ato

tenha qualquer utilidade, sob pena de ficar configurado abuso de direito.397

4.5.2 Função social: Fundamentos

Ficou apreciado no item 4.1 que com o positivismo jurídico clássico realizava-se uma

apreciação avalorativa do Direito, com ênfase para a proteção da segurança jurídica e dos

direitos individuais.

Verificou-se, ainda, que tal enfoque tornou-se insuficiente com o advento do Estado

Social – e com a consequente necessidade de se otimizar a eficácia dos direitos fundamentais,

em prol do bem-estar da coletividade.

Consequência disto vê-se o afastamento da postura individualista de outrora, em que

se prestigiava o indivíduo em detrimento da coletividade.

Tem-se, ainda, a apreciação valorativa do direito como um todo, voltado para a

consecução de valores como a dignidade da pessoa humana e a justiça social, alcançados,

dentre outras formas, através do princípio da solidariedade social398.

Como elucida Daniel Sarmento:

Na verdade, a solidariedade implica o reconhecimento de que, embora cada um de nós componha uma individualidade, irredutível ao todo estamos também juntos, de alguma forma irmanados por um destino comum. ela significa que a sociedade não deve ser o locus da concorrência entre indivíduos isolados, perseguindo projetos pessoais antagônicos, mas sim um espaço de diálogo, cooperação e colaboração entre pessoas livres e iguais, que se reconheçam como tais.399

A função social encontra como fundamentos, justamente os valores fundantes do

ordenamento jurídico, de modo a, inclusive, promovê-los como um todo, superando-se o

enfoque individualista não mais condizente com a era atual.

396 Ibidem. p. 243. 397 Ibidem. p. 243 398 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; CIDAD, Felipe Germano Cacicedo. Função social no direito privado e Constituição. in GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Função social no direito civil. 2. ed São Paulo: Atlas, 2008. p.23. 399 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 338.

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144

Volta-se, portanto, aos interesses da coletividade, diretamente relacionados à

solidariedade social.

Os indivíduos, antes considerados de forma atomizada, passam a ser enfocados

enquanto sujeitos, pessoas dotadas de dignidade, componentes do espaço social que integram,

tendo, por isso, que atuar na esfera social de modo colaborativo, e não apenas em prol dos

próprios interesses.

A função social é voltada ao bem-estar da sociedade, sendo imposto aos titulares dos

direitos, que estes não se norteiem pela sua atitude egoísta.

Desta forma, considera-se a função social como fundamentada – e concomitantemente,

embasadora – pela promoção da dignidade da pessoa humana e do bem-estar social.

4.5.3 Função social dos institutos do Direito Privado

O processo de funcionalização dos institutos do Direito Privado, tal como concebido

hoje, tem suas origens históricas no período compreendido entre as duas grandes Guerras

mundiais, sendo decorrência da socialização do direito que se deu com o advento do

denominado Estado Social.

Leciona Paulo Nalin que

A funcionalização dos institutos da propriedade e, também, do contrato, surge, portanto, neste novo modelo de Estado de Direito, agora adjetivado como social, notadamente pela experiência europeia de Weimar, ao determinar o uso menos egoístico da propriedade e da autonomia contratual, tornando-o mais solidário. O Estado de Direito Social congrega as conquistas do Estado Liberal (Estado de Direito), igualdade e liberdade individual, com as do Estado Social, ou a superação da fração entre Estado e sociedade. O instrumento prático de consolidação da solidariedade é a funcionalização da propriedade e do contrato.400 (grifo no original)

Com a funcionalização, os direitos subjetivos permanecem assegurados aos

particulares, estando, porém, o seu exercício voltado à consecução dos interesses da

coletividade.

Luiz Edson Fachin assevera que com a funcionalização de institutos do Direito

Privado, como ocorre com a propriedade, os contratos e a empresa, uma série de deveres que

são integrantes de seu próprio exercício são estabelecidos.401

400 NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006. p. 217. 401 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 78.

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145

O individualismo característico da modernidade não mais se coaduna com a realidade

social atual, sendo imposta a socialização de diversos direitos. É o que ocorre com os

principais institutos de Direito Privado – contrato, propriedade, posse, família, que vêm sendo

funcionalizados.

Na concepção clássica, o contrato confirmava a liberdade das pessoas, estando

diretamente relacionado à livre manifestação da vontade, poder reconhecido às pessoas a fim

de se autodeterminarem. Consequência disto era a ausência de intromissão estatal na liberdade

individual, sendo o Direito Privado um instrumento de defesa do indivíduo em relação ao

Estado.

A vontade era, assim, um dogma prestigiado em detrimento do equilíbrio contratual e

de outras circunstâncias sociais, impondo-se o cumprimento do avençado, diante do conteúdo

do princípio pacta sunt servanda. Neste sentido, a liberdade assegurada era apenas formal, e

não material, posto que as partes contratantes não estavam em pé de igualdade material para

contratar.

A desigualdade contratual, com a imposição arbitrária de cláusulas pelas partes

economicamente mais fortes, a contratação em massa, os contratos de adesão, dentre outras

feições assumidas pelo contrato, acabaram por exigir do Estado uma atuação no âmbito

econômico.

Por isso, na atualidade não há como se visualizar o contrato vinculado puramente à

autonomia da vontade402 dos indivíduos contratantes.

Ana Prata assevera não haver a possibilidade de se vincular o negócio jurídico (e, por

conseguinte, o contrato) exclusivamente à vontade da parte. No seu entender, o contrato é

estabelecido pela liberdade do sujeito, ficando adstrito, porém, à função social.403

A função social dos contratos se manifesta sobre dois ângulos distintos. Um pertine à

própria relação entre as partes contratuais. O outro diz respeito aos efeitos produzidos em

relação à coletividade como um todo, que deve ter também os seus interesses resguardados.

402 Insta aqui registrar a superação do termo “autonomia da vontade” e sua substituição pela expressão “autonomia privada”. A autonomia do indivíduo começa a ser enfocada sob outro prisma. Não mais se concebe a vontade como fator determinante. Esta é relevante, mas não a ponto de relegar a um segundo plano os ditames legais pertinentes aos contratos. O contrato nasce não apenas em virtude da vontade das partes que o firmaram. A manifestação de vontade, deve se fazer acompanhar do respeito à dignidade da pessoa humana e da observância ao objetivo constitucional de desenvolvimento de uma sociedade mais justa e solidária, dentre outros valores evidenciados pela ordem constitucional. 403 PRATA, Ana. op. cit. passim.

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146

São eles, respectivamente, os níveis intrínseco e extrínseco, tratados por Pablo Stolze

Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:

Em um primeiro plano, a socialização da ideia de contrato, na sua perspectiva instrínseca, propugna por um tratamento idôneo das partes, na consideração, inclusive, de sua desigualdade real de poderes contratuais. Nesse sentido, repercute necessariamente no trato ético e leal que deve ser observado pelos contratantes, em respeito à cláusula de boa fé objetiva [...] E nessa perspectiva temos que a relação contratual deverá compreender os deveres jurídicos gerais e de cunho patrimonial (de dar, fazer ou não fazer), bem como deverão ser levados em conta os deveres anexos ou colaterais que derivam desse esforço socializante. Com isso, obrigações até então esquecidas pelo individualismo cego da concepção clássica do contrato ressurgem gloriosamente, a exemplo dos deveres de informação, confidencialidade, assistência, lealdade etc. E todo esse sistema é, sem sombra de dúvidas, informado pelo princípio maior de proteção da dignidade da pessoa humana. Em um segundo plano, o contrato é considerado não só como instrumento de circulação de riquezas, mas, também, de desenvolvimento social. [...] Sem o contrato, a economia e a sociedade se estagnariam por completo, fazendo com que retornássemos a estágios menos evoluídos da civilização humana. Ocorre que todo o desenvolvimento deve ser sustentado, racionalizado e equilibrado.404 (grifos no original)

Desta forma, pela função social, o contrato firmado com fundamento na autonomia

privada das partes, deve assumir feição benéfica para ambos os contratantes, impondo a estes

agir de boa-fé. O contrato assume, ainda, o escopo de proporcionar igualdade entre as partes,

não apenas formal, mas também material. Ademais, o contrato deve ter seus efeitos sociais

otimizados, proporcionando bem-estar, não só para aqueles que contratam, mas também para

a coletividade.

Também o direito de propriedade resta funcionalizado.

A propriedade é o instituto de Direito Privado que mais deu ensejo à discussão acerca

da função social, tendo tais reflexões, repercutido nos demais institutos, inclusive no Direito

Autoral, motivo pelo qual a seguir será retomado este instituto, para que se proceda a uma

análise mais detida.

Segundo Paulo Luiz Netto Lobo, o direito à propriedade envolve o domínio sobre bens

corpóreos, móveis ou imóveis, assim, como as coisas incorpóreas, sendo que “todas essas

dimensões de propriedade estão sujeitas ao mandamento constitucional da função social”405.

O titular do direito de propriedade atende aos seus interesses e, ao mesmo tempo, deve

exercer seu direito em prol da coletividade.

404 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. v. IV. t. 1. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 53-54. 405 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 09 de abr. de 2011.

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A despeito de não haver expresso tratamento legal a respeito, também à posse é

imposta a função social.

As teorias subjetiva, de Savigny, e objetiva, de Ihering406, buscaram explicar a

natureza jurídica da posse, atribuindo a esta determinados elementos. Para a primeira, a posse

restaria configurada se presentes o corpus e o animus domini. Já a segunda reputa a posse

constituída apenas com o corpus, ou seja, com a atitude e poder exercido sobre a coisa. Tais

teorias, na atualidade, mostram-se insuficientes para delimitar o que seja posse, mormente se

considerados os avanços constitucionais quanto à socialização dos direitos.

Neste sentido, ainda que não positivada expressamente, considera-se que a posse deve,

também, ser exercida em atenção à função social, relacionada, na vigente Constituição, à

propriedade.

Nunca é demais lembrar que a posse é uma exteriorização da propriedade. Basta

passar os olhos à conceituação dada pelo legislador ordinário para se chegar a esta conclusão.

Nos moldes do art. 1196 do CC/02, a posse se caracteriza pelo exercício de um – ou alguns –

dos poderes inerentes à propriedade. Esta norma, por si só, já embasaria o argumento de que a

posse também é funcionalizada.

Não bastasse tal fato, é de se destacar, ainda, que o legislador civilista, a despeito de

não ter previsto expressamente a função social da posse, o faz indiretamente, através da

redução dos prazos para usucapião – nos arts. 1238, parágrafo único e 1242, parágrafo único

do CC/02 – nos casos em que a posse seja exercida para a moradia de seu titular e familiares,

ou que ela tenha se destinado a alguma atividade produtiva.

Do mesmo modo, a denominada desapropriação judicial, trazida no art. 1228, §§ 4º e

5º do vigente Digesto Civilista, também apresenta contornos valorativos do trabalho e

proteção da moradia.

Segundo esta norma, um considerável grupo de pessoas acionado pelo proprietário de

determinado imóvel, através de ação reivindicatória, pode apresentar pedido contraposto.

Neste caso, será requerida, com base em posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco

anos, a propriedade do bem, desde que realizadas, em conjunto ou separadamente, obras e

serviços de interesse social e econômico relevante. 406 Sobre a natureza jurídica da posse e as Teorias de Ihering e de Savigny, sugere-se a leitura das seguintes obras: ALVES, José Carlos Moreira. Posse: evolução histórica. v. I. Rio de Janeiro: Forense, 1999; FULGÊNCIO, Tito. Da posse e das ações possessórias. v. I e v. II. Atual. por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Forense, 1994; IHERING, Rudolf Von. Teoria simplificada da posse. Trad. Fernando Bragança. Belo Horizonte: Rider, 2004; REZENDE, Astolpho. A posse e sua proteção. v. I e II. São Paulo: Saraiva e Cia., 1937.

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148

Tanto em um, como em outro caso, evidencia-se a valorização do que Flávio Tartuce

denomina de “posse trabalho”407, com nítido prestígio à posse exercida em atenção ao

cumprimento da função social.

Finalmente, a família contemporânea passa por diversas modificações, sendo a ela

dado novo enfoque. Os valores são outros. A família não é mais hierarquizada, patriarcal e

matrimonializada. É ela funcionalizada ao bem-estar de seus integrantes, voltando-se ao afeto

como norteador das relações.

Maria Berenice Dias aduz que no Direito das Famílias os princípios e valores sociais

dominantes eleitos pela Constituição Federal de 1988 refletem mais diretamente408.

De fato, a família – considerada plural, por não mais estar adstrita às entidades

matrimonializadas – é pautada pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade,

igualdade, da solidariedade e da afetividade, a ela sendo também aplicável o princípio da

função social.

É o que asseveram Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho

Numa perspectiva constitucional, a funcionalização social da família significa o respeito ao seu caráter eudemonista, enquanto ambiência para a realização do projeto de vida e de felicidade de seus membros, respeitando-se, com isso, a dimensão existencial de cada um.

[...]

Como consectário desse princípio, uma plêiade de efeitos pode ser observada, a exemplo da necessidade de respeito à igualdade entre os cônjuges e companheiros, a importância da inserção de crianças e adolescentes no seio de suas famílias naturais ou substitutas, o respeito à diferença, em arranjos familiares não standartizados, como a união homoafetiva, pois, em todos esses casos, busca-se a concretização da finalidade social da família.409 (grifos no original)

Nestes termos, com o advento da vigente Carta Magna, a família passa por profundas

modificações em sua estrutura, função e valores. Abandonado o modelo matrimonializado,

patriarcal e patrimonialista, abrem-se novas formas de constituição, plurais, baseadas na

igualdade, no afeto e na busca da felicidade de seus integrantes. A função social da família

nada mais é do que reflexo dessa alteração paradigmática, em que se prestigia a pessoa,

dotada de dignidade e centro do sistema jurídico.

407 TARTUCE, Flávio. A função social da posse e da propriedade e o direito civil constitucional. Disponível em http://www.flaviotartuce.adv.br/artigos/Tartuce_possse.doc. acesso em 01 de fevereiro de 2012. 408 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 61. 409 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Direito civil. v. 6. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 99-100.

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149

De todo o exposto, pode-se concluir que os principais institutos jurídicos privados

estão funcionalizados em prol do bem comum, na concreção da solidariedade social.

4.6 FUNÇÃO SOCIAL DAS PROPRIEDADES

Foi visto acima, no item 4.5.3, que os principais institutos do Direito Privado restam

funcionalizados na contemporaneidade.

Para o presente trabalho, é relevante tal exame porque se parte da premissa de que se

os institutos basilares do Direito Privado estão funcionalizados, por que não o deveria estar o

Direito Autoral?

A fim de reforçar a tese de funcionalização do Direito Autoral, tem especial relevo a

funcionalização da propriedade, haja vista que, dentre os direitos subjetivos do autor,

encontram-se os direitos patrimoniais, cujo tratamento deve ser similar ao atribuído ao direito

de propriedade, a despeito de se tratar do que se denomina de direito de inédito.

Neste ínterim, passa-se, a seguir, ao exame da função social das propriedades.

4.6.1 Propriedade ou propriedades?

O legislador civilista brasileiro optou por, no vigente Código Civil, manter a definição

analógica do que é propriedade, tratando-a no caput do art. 1228, como o direito de uso, gozo,

disposição e reinvindicação do bem que é seu objeto410.

Como observa Flávio Tartuce, nos termos do comando da legislação civil em vigor, a

propriedade está “relacionada com os direitos dela decorrentes”.411

Outra característica marcante na doutrina tradicional acerca da propriedade – e que

reflete nas disposições do digesto civilista – é a flagrante ênfase ainda dada aos bens imóveis

em detrimento dos móveis412.

Neste sentido, Luiz Edson Fachin destaca que a característica do anterior Código Civil

– CC/1916 – de ser patrimonial e valorizar o bem imóvel, resta também verificável no Código

de 2002.413 410 Certo é que houve um avanço considerável na codificação no que tange à sua adequação ao conteúdo da Carta Magna, havendo previsão, inclusive, da função socioambiental da propriedade, como se colhe do §1º, do art. 1228, do Código Civil de 2002, atentando-se ao princípio geral da socialidade. 411 TARTUCE, Flávio. Questões polêmicas quando ao direito das coisas no novo Código Civil. Visão crítica sobre a nova codificação. in BARROSO, Lucas Abreu (org.) Introdução crítica ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 367. 412 Como o título do livro III do Código Civil em vigor é “Direito das coisas” e tendo em vista que a doutrina tende a considerar como coisa apenas os bens materiais, a propriedade sobre bens imateriais não é tratada. Sobre o conceito de coisa e o tratamento na doutrina nacional, vide STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. Parte Geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 295-296.

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150

Deixou o legislador de 2002 de atentar para o fato da relevância de outras modalidades

de bens, que não os imóveis. É o que se pode verificar da leitura atenta dos artigos que

compõem o capítulo que trata sobre a propriedade.

Esta concepção encontra-se em desconformidade com o contexto atual,

desconsiderando as mudanças sociais, econômicas e tecnológicas ocorridas na sociedade em

que se vive.

É que, no contexto atual, merecem relevo não apenas os bens imóveis – outrora

considerados como embasadores de riquezas e status – mas também as demais espécies de

bens, inclusive os imateriais – desconsiderados pelo legislador civilista, justamente pelo fato

de que o vigente Código Civil, no que tange ao tratamento da propriedade, é aplicável apenas

aos bens materiais.

Pietro Perlingieri ressalta a necessidade de se adotar uma visão pluralista da

propriedade, asseverando que esta receberá tratamento legislativo e doutrinário distinto, de

acordo com o objeto e os sujeitos414.

Para Perlingieri, haverá distintos regimes de propriedade por razões de ordem

qualitativa, em que se leva em consideração o tipo de bem que seja o seu objeto e a forma de

exploração econômica: e, também, de ordem quantitativa, que tem relação com a extensão e

produtividade, assim como o acesso à propriedade privada415.

Não foge à sua apreciação o aspecto subjetivo, o qual também deve ser examinado à

luz do enfoque funcionalizado, pelo que, mesmo em se tratando de uma propriedade particular

(privada), pode haver a sujeição do direito de propriedade às normas de caráter público416.

No exame da pluralidade de propriedades, Perlingieri vai além, tratando, também, a

informação como bem, e enfatiza a sua relevância jurídica e a “importância de tutelar seu

adequado valor individual sem o qual desapareceria o próprio “serviço” informativo, essencial

ao moderno crescimento do sistema econômico e social”.417

413 FACHIN, Luis Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. p. 75. 414 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Trad. Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 218-220 415 Ibidem. loc. cit. 416 Ibidem. loc. cit. 417 Ibidem. p. 235.

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Também Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald afirmam que na atualidade, não há

como se conceber unitariamente a propriedade, destacando haver, em verdade, um

“caleidoscópio de propriedades”.418 Para eles,

situada a propriedade como relação jurídica complexa, melhor falarmos em propriedades do que em direito de propriedade ordinário. O vocábulo propriedades captura a pluralidade de manifestações do fenômeno jurídico, enquanto o termo propriedade é circunscrito à ideia física do bem de raiz419.

Luciano L. Figueiredo assevera que “a pluralidade é reconhecida na própria ordem

constitucional vigente, no momento em [sic] esta tutela bens incorpóreos, propriedade urbana,

propriedade rural, e à propriedade, genericamente mediante cláusula geral.”420

Não se contesta aqui a relevância da propriedade sobre os bens imóveis.

O que se destaca é a necessidade de mudança de paradigma, diante do contexto plural

da sociedade atual, em que não apenas os imóveis são dotados de relevo, mas também os bens

móveis, assim como os bens incorpóreos421.

Daí que se propõe o emprego da expressão “propriedades”, que receberão tratamento

diferenciado, a depender do seu regime.

4.6.2 As propriedades têm ou são função social?

Os direitos devem ser exercidos por seus titulares atentando-se para as faculdades a ele

inerentes, impondo-se a observância das normas pertinentes ao seu exercício.

Como sustenta Orlando Gomes, “o princípio de que cada qual pode usar de seu direito

como lhe convém não é mais aceito em face do princípio da normalidade”422. Os direitos não

mais podem ser exercidos exclusivamente de acordo com a vontade de seus titulares, sob pena

de configurar abuso de direito.

Neste sentido, os direitos assegurados aos indivíduos recebem limitações que podem

ser ou integrantes de sua própria essência, como outras que lhe são externas. As primeiras são

nominadas de intrínsecas, as segundas são as extrínsecas423.

418 CHAVES, Cristiano. ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. 2. tir. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009. p. 170 419 CHAVES, Cristiano. ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. 2. tir. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009. p. 170 420 FIGUEIREDO, Luciano L. Os reais contornos do princípio da função social das propriedades: (in)acesso X funcionalização. in Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia. n. 13. Ano 2006. Salvador-Bahia. p. 165-166. 421 É de se registrar que, em inúmeras situações, os bens incorpóreos, assumem expressão econômica superior à dos bens imóveis. Basta mencionar que Bill Gates, um dos homens mais ricos do mundo, produziu sua riqueza em virtude de softwares desenvolvidos. Como sabido, os programas de computador são bens intangíveis, inseridos em um suporte material. 422 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1957. p. 123. 423 AMARAL, Francisco. Direito civil. Introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 206.

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152

Como limites intrínsecos, podem-se citar aqueles referentes ao objeto, ao conteúdo e à

duração do próprio direito. Já os extrínsecos, podem ser exemplificados através da proteção

de terceiros de boa-fé e da sobreposição de um direito em detrimento do outro, quando em

rota de colisão.

Estas breves considerações são pertinentes ao presente trabalho haja vista que, quanto

à função social das propriedades, há dissenso na doutrina: seria uma limitação intrínseca,

integrante da própria essência do direito, ou se seria uma limitação extrínseca, não relacionada

ao direito em si, mas à forma de seu exercício?

Em verdade, parece que o debate acadêmico neste tocante tem a finalidade precípua de

justificar a intervenção nas propriedades pela função social, de modo a fazer com que não seja

visualizada como uma afronta às propriedades, antes reputadas absolutas e intocáveis.

Não obstante, merece o dissenso doutrinário ser apresentado neste tópico, de modo a

elucidar a questão, com tomada de posição quanto ao tema, ao final.

Inicialmente, destaca-se o posicionamento no sentido de que as propriedades têm

função social. Para os defensores desta corrente, a função social não é elemento que integra os

próprios direitos de propriedades, sendo uma limitação externa imposta ao seu exercício.

Segundo esta corrente, as propriedades são, em primeiro lugar, asseguradas, com seus

contornos previamente definidos em lei. A função social foge de seu âmbito, sendo exterior

ao próprio direito. Funciona, assim, como um limite externo, que não compõe o direito em si,

configurando-se uma nítida restrição às propriedades.

Luiz Edson Fachin, por exemplo, sustenta que a doutrina da função social implica em

alteração da concepção clássica da propriedade, não mais havendo como concebê-la como um

direito absoluto que serve aos interesses individuais do seu titular. No seu entender, ocorreu

esta modificação de paradigma que não alcança a essência do direito de propriedade, mas

apenas limita tal direito424.

Para ele, “considerar que a propriedade é uma função social [...] é insustentável”.

Fachin assevera que a propriedade tem função social, e não é função social, pelo que, no

exercício do direito são impostas limitações externas a fim de se alcançar o interesse

público425.

424 FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Uma perspectiva da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 18-19 425Ibidem. p. 19.

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Por outro lado, os que consideram que as propriedades são função social, asseveram

que tais direitos são compostos das prerrogativas asseguradas ao seu titular, de uso, gozo,

disposição, reivindicação, sendo somado a estes elementos o quinto, a função social.

Assim, a função social, para esta corrente, faz parte da essência do próprio direito,

chegando a ser considerada, inclusive, como a razão de ser da garantia das propriedades.

Neste sentido, oportuna a lição de Pietro Perlingieri, para quem

A função social predeterminada para a propriedade privada não diz respeito exclusivamente aos seus limites. [...] A função social, construída como conjunto de limites, representaria uma noção somente de tipo negativo voltada a comprimir os poderes dos proprietários, os quais sem os limites, ficariam íntegros e livres. [...] Em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa (art. 2 Const.) o conteúdo da função social assume um papel de tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza somente finalizando a disciplina dos limites à função social. Esta deve ser entendida não como uma intervenção “em ódio” à propriedade privada, mas torna-se “a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito”, um critério de ação para o legislador, e um critério de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as situações conexas à realização de atos e de atividades do titular426.

Paulo Luiz Netto Lobo coaduna com este posicionamento, asseverando que a função

social “é incompatível com a noção de direito absoluto, oponível a todos, em que se admite

apenas a limitação externa, negativa”. Para o autor, a função social consiste em limitação

ínsita ao próprio direito, condicionando o seu exercício. Neste sentido, somente será lícito o

interesse individual se este concretizar, também, o interesse social. Ou seja, o exercício do

direito de propriedade deve ser voltado à utilidade, para si e para todos. Daí ser incompatível

com a inércia, com a inutilidade, com a especulação427.

No mesmo sentido, posiciona-se Luciano L. Figueiredo, que sustenta que a função

social é um dever que decorre do próprio conteúdo do direito de propriedade, direito que deve

ser exercido pelo sujeito em observância aos seus interesses pessoais, e voltada à obtenção de

vantagem de cunho difuso428.

O autor vai mais além, e sustenta que “o direito de propriedade passa de um direito e

garantia individual, para um direito e garantia transindividual, pois além das faculdades

proprietárias, [...] sobre o instituto incidem os direitos dos não proprietários”429.

426 PERLINGIERI, Pietro. op. cit. p. 226 427 LÔBO, Paulo Luiz Netto. op. cit. p. 09. 428 FIGUEIREDO, Luciano L. op. cit. p. 169. 429 Ibidem. p. 170.

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154

De fato, é de se posicionar segundo o entendimento de que as propriedades são

função social, sendo esta motivo determinante para a proteção do direito subjetivo do seu

titular. A função social é elemento que integra os direitos de propriedades, consistindo em

motivo determinante para o seu reconhecimento e proteção.

Deste modo, a função social é essência qualitativa dos direitos de propriedades – assim

como dos demais institutos de direito privado –, assumindo um papel promocional dos valores

constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da solidariedade etc.

4.6.3 A previsão constitucional da função social das propriedades

Os institutos de Direito Privado restaram funcionalizados aos titulares dos direitos,

assim também ao bem comum430.

Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Felipe Germano Cacicedo Cidade ensinam

que a função social, integrante dos institutos do Direito Privado é considerada um dever

fundamental, devendo ser obrigatoriamente observada pelos particulares, como uma

imposição para o bem-estar da sociedade.431

A propriedade foi o instituto privado que mais debates ensejou quanto à função social,

não obstante há muito já consagrada esta funcionalização no ordenamento jurídico pátrio.

A Constituição de 1988, assim como as constituições anteriores432, elevou a

propriedade privada como pedra angular do sistema econômico-social capitalista brasileiro.

Porém, esse direito está vinculado ao cumprimento da função social, condição sine qua non

para o gozo das garantias constitucionais. Sem a função social – condição sine qua non das

propriedades – os direitos não existem.433

430 Remete-se o leitor ao item 4.5.3. 431 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; CIDAD, Felipe Germano Cacidedo. Função social no Direito Privado e Constituição. in GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord.). Função social no Direito Civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 30 432 As Constituições brasileiras de 1824 e 1891 asseguravam o direito de propriedade, em sua plenitude, sem previsão de qualquer limitação em seu bojo. As Constituições que se seguiram, de 1934, 1937, 1946, 1967, a Emenda n. 1, de 1969, e a vigente Constituição de 1988, também asseguraram o direito de propriedade, porém, vinculada à função social. Foi, porém, com a Carta de 1988, que a matéria pertinente à funcionalização da propriedade restou elevada a status de direito-dever fundamental, afastando-se o tratamento programático anteriormente dado ao tema. 433 TAVARES, José de Farias. O Código Civil e a nova Constituição. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 110

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O direito de propriedade é resguardado pelo caput434 do art. 5º e seu inciso XXII435, da

vigente Constituição Federal, sendo tratado como direito fundamental do indivíduo. É, ainda,

incluído entre os alicerces da Ordem Econômica, no art. 170, II, da Carta Magna.

Nos moldes destes dispositivos, o sujeito de direito recebe proteção estatal, sendo-lhe

dado acumular riquezas em seu patrimônio.

Todavia, a este direito fundamental é somado um dever fundamental: o de

cumprimento da função social, que é da essência do direito de propriedade, e condiciona o seu

exercício à observância dos interesses sociais. Sua previsão está expressa no inciso XXIII436,

do art. 5º, no art. 170, III437, art. 182, §2º438, e 186439, todos da Constituição de 1988.

No que pertine aos bens imóveis rurais, a vigente Constituição brasileira estatui a

necessidade de sua exploração observando-se a os critérios utilidade e ocupação efetivas.

Ademais, é necessário que esta exploração seja compatível com a preservação do meio-

ambiente, assim como sejam respeitadas as normas trabalhistas e o bem-estar dos empregados

e empregadores.

Da mesma forma, os imóveis urbanos devem atender à função social, impondo-se, aos

municípios com mais de 20.000 habitantes a observância do conteúdo do Plano Diretor,

visando a proporcionar o bem-estar dos habitantes das cidades440.

Também no âmbito econômico a função social é norteadora, devendo a atividade

privada com o intuito de lucro, ser desenvolvida na busca da consecução do bem comum,

impondo-se o respeito à cultura, do meio ambiente, dentre outros, que integram o conceito de

função social.

434 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” 435 “XXII - é garantido o direito de propriedade;” 436 “XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;” 437 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] II - propriedade privada; III - função social da propriedade; [...]”. 438 “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. [...] § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.” 439 “Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores” 440 Aqui, insta salientar que também os titulares de direito de propriedade sobre bens imóveis urbanos que estejam localizados em municípios com menos de 20.000 habitantes, ou que tenha população superior a este número, mas sem a edição de Plano Diretor, devem atentar para a função social da propriedade, no exercício de seus direitos.

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156

Quanto à propriedade imaterial, a despeito de não haver expressa previsão

constitucional, esta também é funcionalizada socialmente, seja em favor da saúde – como no

caso das patentes de medicamentos –, do acesso à cultura e à informação – como no caso do

Direito Autoral –; do desenvolvimento econômico, cultural, social, tema que se propõe a

apreciar no capítulo que se segue.

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5 COMPREENDENDO A FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO AUTORAL

Assim como os demais institutos do Direito Privado, também o Direito Autoral é

enfocado hodiernamente sob o prisma funcional.

Como visto no Capítulo anterior441, Norberto Bobbio leciona que a função do Direito

deve ser examinada sob dois prismas distintos. Um, o individual, é pertinente aos reflexos que

exerce na esfera de cada sujeito. Outro, o coletivo, refere-se à função que o Direito

desempenha perante a coletividade, a sociedade como um todo.

Levando-se em conta a lição de Bobbio e tendo-se em consideração que o Direito

Autoral – a despeito de historicamente ser caracterizado como um ramo privatístico –, gera

interesses individuais e também coletivos442, será examinada a função que este ramo jurídico

desempenha, sob duas óticas diferenciadas: a) a do autor, dos titulares dos direitos

patrimoniais e dos titulares dos direitos conexos, e b) a da coletividade.

À primeira chamar-se-á de função individual, posto que voltada à satisfação de

interesses particulares dos sujeitos cuja proteção autoralista é expressa em lei. A segunda, a

função social, trata do papel desempenhado pelo Direito Autoral perante a sociedade como

um todo.

5.1 FUNÇÃO DO DIREITO AUTORAL SOB O PRISMA INDIVIDUAL

A função individual precípua deste ramo jurídico é a de proteção do criador das obras

científicas, literárias e artísticas. Todavia, este ramo tem, também, outra função, não revelada

no discurso, qual seja, a de proteção dos detentores do poderio econômico, que exploram

economicamente as obras, mediante negócios jurídicos firmados com os autores.

5.1.1 A PROTEÇÃO DO AUTOR

A primeira função do Direito Autoral que se elenca no presente trabalho é a função

sob a ótica individual do autor, o principal sujeito de direito protegido por este ramo jurídico.

Já restou examinado no capítulo 2 que, tendo surgido como uma reação aos privilégios

outrora concedidos aos que imprimiam os livros, o Direito Autoral, tal como concebido na

441 Sobre o tema, vide item 4.3 supra. 442 REIS, Jorge Renato; PIRES, Eduardo. O direito de autor funcionalizado. in SANTOS, Manoel J. Pereira dos. (Coord.) Direito de autor e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011.p. 211.

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158

atualidade pelos países que integram o sistema unionista443, volta-se à proteção daquele que

concebe as obras literárias, artísticas e científicas: o autor.

Também já ficou enfatizado que o Direito Autoral é o ramo do direito que tem por

finalidade resguardar os interesses do autor nas as relações jurídicas que tenham por objeto a

sua obra, abrangendo tanto os direitos morais como os patrimoniais444.

O autor é o legítimo titular da produção de seu intelecto, daí que pode usar, gozar e

dispor de suas obras, impedindo o uso ilícito, através de medidas judiciais e extrajudiciais,

sem prejuízo de eventuais indenizações pelos prejuízos a ele causados pela exploração

indevida por parte dos terceiros.

Ao criador de obras literárias, artísticas e científicas é dado explorar economicamente

o fruto de seu trabalho intelectual. Para tanto, pode ele firmar negócios jurídicos, com fulcro

em sua autonomia privada.

Correlata a tal proteção de cunho patrimonial, tem-se, ainda, a salvaguarda da

personalidade do autor, através dos denominados direitos morais, tais como o direito de

paternidade, o de integridade da obra, o direito de modificação da obra, o direito de inédito, o

direito de retirada – os quais também já foram tratados no capítulo 2.

Ao criador é assegurado o reconhecimento de sua autoria, oponível e protegida contra

todos aqueles que a quiserem usurpar. É-lhe, ainda, dado perceber os frutos advindos de seu

trabalho, de forma a prover o seu próprio sustento e de sua família.

Neste sentido, Hildebrando Pontes sustenta ser “preciso assentar a convicção de que o

autor não vive apenas dos elogios ao seu talento e à sua sensibilidade. Sem a devida

percepção dos frutos do seu trabalho, sua vida será marcada por graves dificuldades.”445

É esta, pois, a primeira função individual do Direito Autoral: a de conferir a proteção

ao autor, tanto na seara pessoal (moral), como no âmbito patrimonial.

5.1.2 A proteção dos detentores do poderio econômico

O Direito Autoral é ramo jurídico que traz prerrogativas não apenas para os criadores

das obras, mas também para os que auxiliam na sua produção e mesmo na sua difusão.

443 Sobre o tema, vide item 2.3 supra. 444 BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 04. 445 PONTES, Hildebrando. Os contratos de cessão de direitos autorais e as licenças virtuais creative commons. 2. ed. Del Rey: Belo Horizonte: 2009. p. 33.

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159

Também os denominados titulares de direitos conexos são sujeitos protegidos no

âmbito do Direito Autoral446, por força dos arts. 1º e 89 e ss. da LDA/98. Como destacado no

segundo capítulo, são eles: os artistas intérpretes ou executantes, os produtores fonográficos e

as empresas de radiodifusão.

A proteção dos titulares de direitos conexos é uma extensão dos direitos subjetivos do

autor, e é justificada pelo argumento de que estes contribuiriam para a disseminação das

obras. É através deles que as criações autorais são disponibilizadas ao acesso do público.

A doutrina autoralista447 como um todo sustenta que sem eles as obras existiriam, mas

dificilmente chegariam ao conhecimento do público em geral.

Assim, o Direito Autoral não existe apenas como meio de proteção do autor. Naquilo

que couber, aos titulares dos direitos conexos são aplicáveis as prerrogativas concedidas aos

criadores das obras intelectuais.

A equiparação legal – inicialmente justificada pela propagação de conhecimento, da

informação, da própria cultura do povo, para todas as camadas da população – tem também

outro e principal fundamento: o poderio econômico, no que pertine aos produtores de

fonogramas e às emissoras de radiodifusão.

Sob o argumento de que os produtores de fonogramas e as emissoras de radiodifusão

seriam colaboradores do autor, na medida em que auxiliariam na propagação das obras,

assegura-se a proteção conexa, mas, em pano de fundo, a proteção se justifica pelas altas

somas de dinheiro em movimento.

Neste sentido, é de se concordar com a observação de Elisângela Dias Menezes448 para

quem:

Em verdade, com todo o respeito que merecem os produtores fonográficos e as empresas de radiodifusão, parece tratar-se muito mais de um lobby da categoria do que de uma conquista fundamentada na igualdade jurídica de direitos. Com efeito, a grande movimentação de valores decorrente da execução musical bem explicaria a necessidade verificada por esses organismos de se resguardarem também sob a perspectiva autoral. (grifo no original)

446 A proteção dos produtores de fonogramas e das emissoras de radiodifusão é prevista na Convenção de Berna – que trata do Direito Autoral como um todo –, sendo também objeto da Convenção de Roma para a proteção dos Artistas Intérpretes ou Executantes, dos Produtores de Fonogramas e dos Organismos de Radiodifusão. Tal orientação é seguida pelo Brasil, sendo na vigente LDA estendida a proteção dos intérpretes e executantes aos produtores de fonogramas e organismos de radiodifusão. 447 A exemplo de Carlos Alberto Bittar, in Direito de autor; José de Oliveira Ascensão, in Direito autoral; Antônio Chaves, in Criador da obra intelectual. 448 MENEZES, Elisângela Dias. Curso de direito autoral. Del Rey: Belo Horizonte, 2007. p. 113.

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160

Tem-se, pois, que a proteção conexa, especificamente a dos produtores de fonograma

e das empresas de radiodifusão, tem por justificativa não só a sua colaboração para com o

autor, mas, e principalmente, a expressão do poderio econômico.

Outro ponto que merece destaque é pertinente aos titulares derivados dos direitos

patrimoniais.

Impõe-se relembrar que o titular originário é aquele que concebe, que cria a obra449. A

este é garantido o direito de usar, fruir e dispor da criação. Diante dos poderes assegurados ao

autor, de explorar economicamente sua obra, é a ele dado firmar negócios jurídicos com

terceiros dispondo de seus direitos patrimoniais. Pela disposição através dos negócios

jurídicos, aparece a figura a que se costuma denominar de titular derivado dos direitos

patrimoniais incidentes sobre a obra. O titular derivado, como o próprio nome diz, é aquele a

quem o titular originário, através de um negócio jurídico, transfere os direitos patrimoniais

total ou parcialmente.

A proteção legal do autor existe, mas é evidente que a proteção é também conferida

aos que detém a titularidade dos direitos materiais de autor – como é o caso das editoras – sob

o escudo de proteção dos criadores das obras intelectuais.

Neste sentido, fica evidenciado que os titulares derivados do direito de exclusivo

(exclusividade na exploração econômica das obras) são também interessados450 na

observância da lei protetiva dos autores.

José de Oliveira Ascensão enfatiza que os direitos subjetivos do autor tornaram-se um

dogma, principalmente os direitos patrimoniais. Porém, a proteção acaba por reverter-se em

favor da empresa adquirente do direito de explorar economicamente as obras451.

Ascensão observa que “houve uma deriva perversa: o exclusivo (na vida comercial,

um monopólio), reverteu nos casos mais significativos em favor da empresa”452. E mais

adiante, Ascensão destaca que “todas as utilizações são vedadas sem o consentimento prévio

do autor, com o óbvio propósito de deixar o mínimo de frestas para obter o máximo lucro”.453

449 Sobre o tema, vide 2.5.2 supra. 450 As editoras podem ser elencadas entre as maiores interessadas na proteção conferida ao autor, face à repercussão econômica, e tendo em vista que não foram inseridas no rol dos titulares dos direitos conexos. 451 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito fundamental de acesso à cultura e direito intelectual. in SANTOS, Manoel J. Pereira dos. (coord.) Direito de autor e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 20. 452 Ibidem, p. 20. 453 Ibidem, loc. cit..

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161

Neste sentido, o Direito Autoral revela-se também como um instrumento em favor dos

titulares derivados das obras.

Daí que, ainda sob a ótica individualista, o Direito Autoral é funcionalizado à proteção

dos detentores do poderio econômico: os produtores de fonograma, as emissoras de

radiodifusão e as editoras, dentre outros.

5.2 FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO AUTORAL

Não apenas sob a ótica individual deve ser vislumbrado o Direito Autoral.

Também sob o prisma social ele tem relevo, mormente após as alterações perpetradas

no Direito, com o advento do Estado Social, da solidariedade e da elevação do princípio da

dignidade da pessoa humana como norte do ordenamento jurídico.

5.2.1 A solidariedade social e seus reflexos no Direito Autoral

Com o advento do Estado Liberal, restou prestigiado o individualismo jurídico, que

acabou por resultar na desigualdade social. Esta desigualdade deu ensejo a diversos conflitos,

tendo, como uma de suas consequências, o surgimento do Estado Social.

O Estado, na busca da realização do bem-estar da pessoa humana, passa a intervir nas

relações interindividuais de forma a assegurar valores mínimos e para corrigir as

consequências que a situação de real desigualdade dos sujeitos acarreta454.

Destarte, o Estado passa a intervir na livre iniciativa e na autonomia dos indivíduos, a

fim de alcançar a dignidade da pessoa humana. Tal intervenção foi imposta historicamente

“pela pressão de certas necessidades”455 da coletividade como um todo na busca de uma

existência digna.

Nos dizeres de Paulo Lôbo, uma das características do Estado Social é a de, visando a

realizar a denominada justiça social distributiva, incluir em sua Constituição a limitação ao

poder político e o poder econômico, projetando-se para além dos indivíduos a tutela de

direitos que repercutem diretamente no Direito Civil456. Ou seja, o Estado atua de forma a

454 PRATA, Ana. A tutela Constitucional da autonomia privada. p. 39. 455 Ibidem. p. 41. 456 LÔBO elenca o trabalho, a cultura, a saúde, a seguridade social, dentre outros. in LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 09 de abr. de 2011.

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162

fazer prevalecer o interesse coletivo, evitar os abusos e garantir o espaço público de afirmação

da dignidade humana457.

Também no âmbito nacional esta mudança foi sentida: com a passagem da sociedade

agrária para uma sociedade urbana, as diferenças sociais ficaram ainda mais evidenciadas,

com precarização do acesso a recursos necessários para uma vida digna.458

Neste sentido, fez-se, também no Brasil, necessária a mudança paradigmática, com a

maior intervenção estatal na esfera privada.

Tal mudança, porém, foi feita paulatinamente, e somente com a Constituição Federal

de 1988 teve-se a consagração de princípios constitucionais volvidos para a dignidade da

pessoa humana e a solidariedade social

Destarte, na atualidade nega-se o individualismo, e o modelo estatal passa a ser

voltado ao enfoque coletivo.459

Relacionada à democracia social e à justiça distributiva, e rompendo com a concepção

individualista que reinou quando do Estado liberal, a solidariedade social é destinada, assim,

ao prestígio do interesse coletivo em detrimento do indivíduo atomizado, enfatizando a

colaboração entre os integrantes do grupo.

Tratando-se de princípio constitucional que reflete em todo o ordenamento jurídico, a

solidariedade também repercute diretamente no Direito Autoral.

O autor e os detentores do poderio econômico que com aquele relacionam são

considerados isoladamente, e como tal são protegidos, tendo direitos subjetivos resguardados.

Mas, no exercício de tais direitos, devem observar também a consecução dos interesses da

coletividade.

Neste sentido, não mais pode ser prestigiado o discurso autoralista clássico de que os

direitos concedidos ao autor devem ser respeitados indistintamente, com fulcro na proteção

integral do criador da obra intelectual. 457 Mário Lúcio Quintão e Lucas Abreu Barroso lecionam que “A pessoa humana, na dicção constitucional, é valorada mediante o espectro antropocêntrico que permeia a Ciência Jurídica no Estado Democrático de Direito, no qual é posta no vértice do prisma da hierarquia das normas jurídicas, juntamente com os demais princípios expostos no art. 1º mencionado, haja vista a consolidação da noção de que a justiça é o fundamento do Direito, sendo o fundamento da justiça a dignidade da pessoa humana”. SOARES, Mário Lúcio Quintão; BARROSO, Lucas Abreu. A dimensão dialética do novo Código Civil em uma perspectiva principiológica. in BARROSO, Lucas Abreu (org.). Introdução Crítica ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 07. 458 RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. in FACHIN, Luiz Edson (coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 15. 459 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Apresentação. In GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord.) Função social no direito civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. XVIII.

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163

A proteção individual do autor e dos detentores do poderio econômico permanece

sendo conferida, mas respeitando-se, concomitantemente, os interesses da coletividade.

Daí que se diz que o Direito Autoral está funcionalizado socialmente.

5.2.2 A interpenetração dos Direitos Privado e Público e seus reflexos no Direito Autoral: a funcionalização social

O Direito Autoral não conta, em nosso país, com uma regulamentação

infraconstitucional explícita sobre a sua função social, a ele sendo dado tradicionalmente um

enfoque individualista, contrário ao posicionamento atual de vinculação dos particulares aos

direitos fundamentais da coletividade460.

Em face da nova leitura do Direito Privado, que acaba por reduzir a dicotomia

público-privado, não mais pode o Direito Autoral ser vislumbrado exclusivamente sob o

enfoque de outrora.

É que, como enfatiza Eugênio Facchini Neto, os âmbitos público e privado tendem a

convergir, o que significa que tanto o Direito Privado se desloca em direção ao Direito

Público, como ocorre com a função social da propriedade, do contrato, da família, da

responsabilidade civil461.

Tem-se, pois, segundo Gustavo Tepedino, a consequente reelaboração da dogmática

jurídica: uma vez que a Constituição é juridicamente superior em relação às demais normas

existentes no ordenamento, devem as normas infraconstitucionais – a exemplo do Código

Civil e das Leis especiais, como é o caso da LDA/98 – serem lidas à luz da Constituição.

Desta forma, privilegiados ficam a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da

personalidade do sujeito, os direitos sociais e a justiça distributiva462.

No mesmo sentido, Paulo Lôbo aduz que a constitucionalização do Direito Privado

contribui para o rompimento de paradigmas na passagem do Estado Liberal para o Estado

Social, inserindo-se em cena a pessoa humana e sua respectiva dignidade, com todos os

460 Defendido, dentre outros autores, por Wilson Steinmetz, para quem “é preciso enfatizar que a vinculação dos particulares a direitos fundamentais, além de ser uma imposição da Constituição, é um instrumento socialmente necessário para a preservação e promoção dos direitos fundamentais ante as transformações, sobretudo no plano das relações de poder, das sociedades capitalistas contemporâneas. Dizendo de outro modo, a vinculação dos particulares a direitos fundamentais além de relevância constitucional tem relevância social”. STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 83. 461 FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. in SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. passim. 462 TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. passim.

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reflexos. Com isso, este ramo jurídico é renovado, assumindo nova feição, muito mais

humana. Através da mudança social perpetrada, há uma nova leitura dos seus institutos, os

quais não mais ostentam as características individualistas de outrora463.

Destarte, com a penetração das normas constitucionais nas normas

infraconstitucionais, em especial no que se refere à dignidade da pessoa humana, insculpida

no art. 1º, III, a solidariedade social, prevista no art. 3º, I, ambos da vigente Carta Magna; e

com base na previsão da funcionalização de institutos jurídicos – como é o caso da

propriedade – também o Direito Autoral resta funcionalizado socialmente, buscando-se

alcançar o desiderato constitucional.

Certo é que este ramo jurídico tem o papel relevante de incrementar as criações

intelectuais, protegendo-as, bem como a seus criadores e titulares dos direitos patrimoniais e

dos direitos conexos.

Todavia, tal não é a sua função exclusiva.

Num contexto constitucional em que os institutos jurídicos são funcionalizados em

favor da coletividade, também o Direito Autoral fica voltado à consecução dos interesses da

sociedade como um todo.

Assim, aponta-se no presente trabalho como algumas das funções sociais do Direito

Autoral464: a) a promoção da produção intelectual e do desenvolvimento cultural; b) a

promoção do desenvolvimento econômico; c) a inclusão digital; d) a promoção dos direitos de

acesso à cultura e à informação.

De início, insta salientar que todos estão relacionados entre si: alcançada uma das

funções mencionadas, repercussão direta poderá haver nas demais, tratando-se de um ciclo

que deve ser cada vez mais privilegiado.

Feitas estas breves considerações iniciais, passa-se ao exame de cada uma das funções

sociais do Direito Autoral trazidas no presente capítulo.

5.2.3 Função social de promoção da produção intelectual e do desenvolvimento cultural

O Direito Autoral é importante fator de estímulo da produção cultural.

463 LÔBO, Paulo Luiz Netto. op. cit. p. 11-12. 464 Outras funções poderiam ser elencadas. É o caso da função social de identificação do autor tratada por Guilherme Carboni. Por esta função, o Direito Autoral teria, através da consagração do direito moral de paternidade, a finalidade de proporcionar à sociedade o conhecimento de quem é o real autor da obra, mantendo a todos informados corretamente. CARBONI, Guilherme. Função social do direito de autor. Curitiba: Juruá, 2008.

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Com o advento da proteção do autor465, que veio a substituir os privilégios concedidos

aos editores em momento histórico anterior, já no século XVIII atribuiu-se também ao Direito

Autoral a função de incentivar o desenvolvimento cultural466.

É que, uma vez assegurada a proteção ao autor, este fica incentivado a criar cada vez

mais, ampliando sua produção intelectual e, via de consequência, há a repercussão direta no

desenvolvimento cultural.

É o que se colhe do trecho abaixo transcrito, de autoria de Arpad Bogsh, citado por

Bruno Jorge Hammes:

A experiência prova que o enriquecimento do patrimônio cultural nacional depende diretamente do nível de proteção assegurada às obras literárias e artísticas; quanto mais elevado este nível, mais encorajados de criar serão os autores; quanto mais criações intelectuais houver no domínio literário e artístico, mais crescerá a importância dos auxiliares destas produções que são as industrias do espetáculo, do disco e do livro e, finalmente, o encorajamento da criação intelectual constitui uma das condições primordiais de toda a promoção social, econômica e cultural.467

Ao tutelar o autor e as suas obras, resta, por conseguinte, incentivada a produção

intelectual.

O criador fica estimulado a criar mais, uma vez que poderá tirar o proveito econômico

advindo da sua obra – e de que necessita para sobreviver –, recebendo, ainda, a proteção a

seus direitos de personalidade – os direitos morais do autor. Sob este prisma, o Direito

Autoral é também funcionalizado ao desenvolvimento cultural da sociedade como um todo.

É mister destacar a relevância do desenvolvimento cultural dada pelo legislador pátrio.

Optou-se pelo fomento à produção artística, literária e científica, o que está previsto

constitucionalmente. É o que se colhe do §3º do art. 216, da Constituição Federal de 1988. Ali

é expressamente estabelecido que “a lei estabelecerá incentivos para a produção e o

conhecimento de bens e valores culturais”.

Este incentivo a que a Carta Magna se refere não é pertinente apenas a eventuais

benefícios fiscais, mas também às demais formas de promoção de “condutas socialmente

desejadas”468.

465 O assunto já foi tratado no capítulo 2, do presente trabalho. 466 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito fundamental de acesso à cultura e direito intelectual. in SANTOS, Manoel J. Pereira dos. (Coord.) Direito de autor e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011.p. 11. 467 BOGSH, Arpad apud HAMMES, Bruno Jorge. O direito da propriedade intelectual. Subsídios para o ensino. São Leopoldo: Unisinos: 1998. p. 29 468 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Trad.: Daniela Beccaria Versiani. Berueri, SP: Manole, 2007. passim.

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Obviamente que os estímulos fiscais são relevantes mecanismos para que se promova

a produção intelectual e acabam por beneficiar as indústrias cinematográficas, fonográficas,

dentre outras.

Mas não são os únicos.

O Direito Autoral é também voltado ao interesse da coletividade, visando à promoção

do desenvolvimento cultural, através da proteção concedida ao autor.

Porém, o Direito Autoral não assume a feição premial de sanção positiva – tão

enfatizada por Bobbio –, haja vista que não atribui ao autor uma recompensa, na busca da

produção intelectual como conduta socialmente desejada.

Este ramo jurídico, que evoluiu historicamente como um instrumento de proteção

daqueles que criam as cobras, confere a proteção ao autor469, assegurando a este os direitos

patrimoniais e morais sobre a obra criada.

Resta, assim, valorizado o trabalho do criador intelectual, titular dos citados direitos

subjetivos, o que reflete no aumento da produção intelectual, com o consequente

desenvolvimento cultural.

5.2.4 Função social de promoção do desenvolvimento econômico

Um país se torna próspero e o padrão de vida de sua população passa a ser majorado

quando produtivo e aperfeiçoado o uso dos recursos humanos, do seu acervo cultural, dos

recursos naturais, e do emprego do capital.

A este trabalho interessa a produtividade intelectual e sua repercussão no

desenvolvimento econômico de um país.

Apreciando a relevância do Direito Autoral, Bruno Jorge Hammes sustenta que “a

cultura é fator de progresso” 470, no que tem razão, uma vez que, assegurada a proteção do

criador das obras intelectuais, resta fomentada a produção cultural e a indústria cultural,

refletindo-se diretamente nos diversos setores sociais.

469 Frise-se, porém, que a proteção é ao autor conferida, mas acaba por abarcar os detentores do poderio econômico. Guilherme Carboni sustenta tal posicionamento, afirmando que “se pode dizer que, na prática, o direito de autor, apesar de ter como uma de suas principais funções a recompensa do criador, hoje acaba por beneficiar a indústria dos bens intelectuais, que se torna mola propulsora desta motivação”. CARBONI, Guilherme. op. cit. p. 76. 470 HAMMES, Bruno Jorge. O direito da propriedade intelectual. Subsídios para o ensino. São Leopoldo: Unisinos: 1998. p. 29

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O Direito Autoral, ramo jurídico que tem por objeto o fruto da produção intelectual471

– a obra –, é funcionalizado ao desenvolvimento econômico e social de um país.

Em lúcida colocação, Antônio Chaves leciona que

A criatividade não tem relevo apenas em termos individuais: é patrimônio da nação inteira: a riqueza de uma Nação mede-se não pela sua extensão territorial, pelos seus recursos hídricos ou minerários, e sim pela criatividade de seus filhos, que podem fazer de uma terra de abrolhos uma potência472.

Tratando sobre a relevância da proteção das obras do intelecto humano como um todo

e sua repercussão no desenvolvimento econômico, Robert Sherwood assevera que a

propriedade intelectual – em que são incluídas a propriedade industrial, o Direito Autoral473, a

proteção aos softwares e outros – desempenha relevante papel na infraestrutura de um país,

com repercussão direta no crescimento econômico474.

O autor norte-americano realça que a proteção efetiva dos bens advindos do intelecto

humano colabora para majorar a participação nas redes globais de tecnologia e para o

estímulo à criatividade humana dentro da economia nacional475.

Delia Lipszyc leciona que a partir de 1950, com o advento dos novos meios de

reprodução, difusão e exploração das obras, houve uma significativa expansão da indústria

cultural – mercado editorial, de entretenimento, de computação etc. – com a paralela

ampliação do alcance do Direito Autoral e dos interesses a serem protegidos476.

A autora argentina enfatiza que a indústria cultural exerce relevante papel no

desenvolvimento econômico de um país, o que é comprovado por diversos estudos realizados

nos Estados Unidos, na Suécia, Reino Unido, Países Baixos477.

471 Sobre o tema, vide capítulo 2 desta dissertação, em que são apresentados os conceitos de cultura existentes. 472 CHAVES, Antônio. Criador da obra intelectual. São Paulo: LTR, 1995. p. 82. 473 Nos Estados Unidos é chamado de Copyright. 474 SHERWOOD, Robert M. Propriedade intelectual e desenvolvimento econômico. trad. Heloísa Arruda Villela. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. passim. 475 Ibidem. passim. 476 LIPSZYC, Delia. Derecho de autor e derechos conexos. Buenos Aires: Zavalia, 1993. p. 55 477 Ibidem. p. 56-57. Neste trecho, a autora apresenta diversos resultados de estudos e pesquisas feitas com relação à contribuição da indústria cultural para o desenvolvimento do país.

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No Brasil, durante os anos de 2003 a 2005, verificou-se não apenas o crescimento do

rendimento financeiro das empresas que atuam no setor, como, também, o aumento no

número de empresas e de pessoas trabalhando na indústria cultural478.

Neste sentido, pois, a proteção autoral é funcionalizada ao desenvolvimento

econômico do país, que está “em dependência direta com a cultura”479.

5.2.5 Função social de inclusão digital

Na atualidade, a sociedade se vê inserida num contexto de constante mutação,

ocasionada, principamente, pelas novas tecnologias surgidas a cada dia. A televisão, o sistema

de telefonia fixa e móvel, a internet e os provedores de acesso, dentre outros tantos

mecanismos tecnológicos disponíveis na atualidade permitem a expansão da comunicação em

âmbito mundial.

Correlato a isso, tem-se a elevação do acesso à informação e cultura possibilitado por

estes meios, como um instrumento de estímulo à produção da riqueza e de promoção do bem-

estar dos indivíduos.

Tratando sobre o atual estágio de desenvolvimento tecnológico, Bill Gates sustenta

que:

As eras econômicas anteriores foram marcadas por longos períodos de estabilidade, seguidos por curtos períodos de mudança. Os evolucionistas chamariam esse fenômeno de equilíbrio ‘pontuado’. Hoje, as forças da informação digital estão criando um ambiente empresarial em constante mudança. Os evolucionistas chamariam isso de caos pontuado: agitação constante marcada por breves repousos. O ritmo das mudanças é por vezes perturbador480.

Através dos instrumentos tecnológicos disponíveis e que se desenvolveram

assustadoramente no último século, instaurando-se o que Bill Gates destaca como sendo um

478 É o que se colhe do trecho abaixo de pesquisa realizada pelo IBGE, no citado período: “durante o período 2003 a 2005, o número total de empresas formalmente constituídas, que atuavam na produção cultural brasileira, alcançaram um crescimento de 19,4%, superior ao crescimento total do número de empresas do País que atingiu 9,3% no mesmo período. No período considerado, as atividades culturais apresentam a cada ano um crescimento na participação no número de empresas no total do CEMPRE. [...] No que diz respeito ao número total de pessoas ocupadas no setor cultural nota-se um crescimento de 14,2% entre 2003 e 2005, passando de 1,4 milhão para 1,6 milhão de pessoas ocupadas. O número de sócios e proprietários que em 2003 somava 424,3 mil, passou para 475,9 mil, em 2005, o que representou um crescimento de 12,2%. No Brasil, as atividades caracterizadas como culturais registraram aumento no número de pessoas ocupadas assalariadas, de 1 milhão para 1,2 milhão, entre os anos de 2003-2005. O crescimento dos ocupados assalariados do setor cultural (15,1%) foi maior vis-à-vis a taxa de 13,2% referente ao total de pessoas ocupadas assalariadas relacionadas aos demais setores da economia”. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/indic_culturais/2005/indic_culturais2005.pdf, acesso em 09 de fev. de 2012. Diante das pesquisas realizadas pelo IBGE, é de se concluir a relevância mercadológica da indústria cultural no desenvolvimento econômico, seja pela majoração do capital circulante, seja pelo aumento de trabalhadores no setor. 479 HAMMES, Bruno Jorge. op. cit. p. 29. 480 GATES, Bill. A empresa na velocidade do pensamento: com um sistema nervoso central. Trad. Pedro Maia Soares, Gabriel Tranjan Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 389.

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caos pontuado, resta, assim, possibilitada a veiculação permanente da comunicação,

oportunizando-se, àqueles que têm ingresso a estes meios, também o acesso à produção

intelectual humana.

A relevância da internet e demais meios tecnológicos disponíveis na atual sociedade

da informação é, assim, manifesta, impondo-se a promoção do ingresso a estas ferramentas de

propagação do conhecimento.

Não é demais enfatizar que, na atual conjuntura, o acesso a estas tecnologias de

informação e comunicação, é indispensável ao bem-estar do indivíduo, tratando-se de

mecanismos que propiciam não apenas a comunicação entre pessoas (que muitas vezes estão

em lugares extremos do planeta), mas, principalmente, são instrumentos necessários ao

desempenho dos trabalhos481, ao acesso aos bens culturais e à informação, e ao exercício do

direito ao lazer.

As mudanças advindas da evolução tecnológica repercutem, assim, não apenas na

facilitação da comunicação, mas também no acesso às obras, que produz efeitos diretos no

Direito Autoral.

José de Oliveira Ascensão assevera que

As grandes inovações tecnológicas atuais tiveram funda repercussão no domínio do direito de autor.

Por um lado porque obrigaram a comprovar se as categorias clássicas deste seriam suscetíveis de se adaptar ainda aos modos de utilização que os processos novos, muito em particular a informática, propiciavam.

Por outro, porque surgiu a tendência de todos os interessados pretenderem tutela através do direito de autor, por este oferecer a proteção mais ampla existente no domínio dos direitos intelectuais.482

No mesmo sentido, Carlos Alberto Rohrmann enfatiza que a utilização da internet

trouxe significativo desafio para as obras protegidas pelo Direito Autoral na medida em que

proporciona cópias perfeitas e em grande escala483.

Destarte, o cenário tecnológico atual tem sido considerado uma ameaça aos detentores

dos direitos autorais, diante da rápida proliferação das obras, havendo tentativa de expansão

da proteção autoralista para uma pluralidade de interessados. 481 Isto porque, no contexto da sociedade da informação, exige-se a cada dia, maior qualificação profissional e acadêmica. 482 ASCENSÃO. José de Oliveira. Direito da internet e da sociedade da informação: estudos. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 01 483 ROHRMANN, Carlos Alberto. Breves considerações sobre o que realmente o direito autoral protege. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito Milton Campos. Disponível em http:/www.revistadir.mcampos.br/PRODUCAOCIENTIFICA/artigos/carlosalbertorohrmann02.pdf. acesso em 01 de out. de 2012.

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170

Não obstante, Jorge Renato dos Reis e Eduardo Pires ressaltam a importância da

funcionalização do Direito Autoral ao acesso da sociedade às criações intelectuais, em face da

veloz evolução dos meios tecnológicos484.

No entendimento dos citados autores, a construção do conhecimento é viabilizada pelo

compartilhamento das obras, sendo a internet e demais meios tecnológicos elementos que, na

atualidade, se tornaram indispensáveis para o alcance de tal desiderato485.

Assim, para que possa haver a inclusão digital, em um primeiro momento, faz-se

necessária a oportunização de ingresso aos mecanismos tecnológicos em exame.

Todavia, a inclusão digital não se efetiva apenas com tal medida.

Além de viabilizar o acesso à nova tecnologia, é imperioso oportunizar o acesso ao

conteúdo das redes. Em outras palavras, é mister viabilizar a utilização das obras. É

necessário permitir que as criações intelectuais disponíveis na internet, por exemplo, possam

ser conhecidas por todos, indistintamente.

Corrobora com este posicionamento, Guilherme Carboni, para quem

a exclusão digital vai além da privação de computador, de linha telefônica, de provedor de acesso e mesmo de conhecimento para utilizar esses equipamentos e ‘navegar’ na internet. A nosso ver, a exclusão digital também diz respeito à necessidade de maior liberdade de criação e fruição de bens intelectuais, o que remete à questão da rigidez na estruturação do direito de autor. é por essa razão que a questão da exclusão digital está relacionada com o tema da função social do direito de autor486.

Não basta propiciar o ingresso aos mecanismos físicos, tais como computadores,

aparelhos de televisão, telefones celulares, smartphones. Como bem observa Sérgio Amadeu

da Silveira, este é apenas o passo inicial para que haja a efetiva inclusão digital487.

Também é insuficiente proporcionar o conhecimento e domínio de como usar a

tecnologia disponível, se não houver conteúdo a ser acessado, ou, caso seja disponibilizado,

haja cobrança excessiva para tanto – o que inviabilizaria o ingresso das camadas mais

desfavorecidas da população.

Por isso, é necessária uma mudança de paradigma também no tocante à proteção

autoral!

484 REIS, Jorge Renato; PIRES, Eduardo. O direito de autor funcionalizado. in SANTOS, Manoel J. Pereira dos. (Coord.) Direito de autor e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011.p. 214. 485 Ibidem. passim. 486 CARBONI, Guilherme. op. cit.. p. 91 487 SILVEIRA, Sergio Amadeu da Silveira. Inclusão digital, software livre e globalização contra-hegemônica. in SILVEIRA, Sérgio Amadeu da; CASSINO, João (orgs.) Software livre e inclusão digital. São Paulo: Conrad, 2003. p. 34.

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E esta mudança já vem sendo efetivada paulatinamente.

Cite-se, por exemplo, a iniciativa de músicos, que, com o advento da internet,

passaram a disponibilizar gratuitamente, ou mediante pagamento de quantia simbólica, suas

canções, propiciando aos seus fãs o acesso às faixas ou mesmo à integralidade dos seus

álbuns488. Este movimento tem-se verificado, também, com o advento dos softwares livres e

das licenças creative commons, tema que será retomado no próximo capítulo.

Tanto o software livre quanto aos creative commons surgem como alternativas de

acessibilidade, respectivamente, aos programas de computador, e às obras literárias, artísticas

e científicas na rede virtual.

Esta é, assim, uma das funções do Direito Autoral: a de promover a inclusão digital,

com o acesso às obras disponíveis nos mecanismos tecnológicos existentes na atualidade.

Daí que a inclusão digital promovida pelo Direito Autoral está diretamente relacionada

com a função social de promoção dos direitos de acesso à cultura e à informação.

5.2.6 Função social de promoção dos direitos de acesso à cultura e à informação

O Direito Autoral tem por função social promover não só a criação e circulação de

bens intelectuais, mas dar maior amplitude democrática de ingresso às obras por ele

abarcadas489.

Destarte, este ramo jurídico é instrumento promotor do acesso à cultura e à

informação, proporcionando a democratização do conhecimento.

Como enfatizado no capítulo 3, a criação humana protegida pelo Direito Autoral

integra o rol dos bens culturais protegidos constitucionalmente e que devem ser

disponibilizados ao acesso da população como um todo.

Não basta haver o estímulo à produção intelectual, com o fito de promover o

desenvolvimento cultural. É necessário que os bens culturais estejam aptos a ser acessados

por todos.

488 É o que se verificou no Brasil em páginas oficiais na web dos músicos/bandas musicais mineiras Patu Fu e Graveola. Outros músicos nacionais também compartilharam faixas pela internet, como Mallu Magalhães, Fresno e Bruno e Marrone. No exterior, a disponibilização vem sendo feita por Bob Dylan, em sua página oficial, e por bandas, como Radiohead. Também Paul McCartney disponibilizou em seu site oficial faixas de seus álbuns, cujos trechos podem ser ouvidos gratuitamente, ou adquiridas por quantia simbólica. 489 Hildebrando Pontes leciona que “se o direito à cultura possibilita ao homem fruir das artes e participar do desenvolvimento científico, por certo será mediante o seu acesso que o ser humano terá condições de assimilar livremente as concepções artísticas e científicas preexistentes, credenciando-se a transformar a produção cultural de seu tempo”. PONTES, Hildebrando. op. cit. p. 18.

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Obviamente, o Direito Autoral, sob o prisma individual, é voltado para a proteção do

autor e a consequente majoração da criação intelectual.

Mas o Direito Autoral é também funcionalizado à promoção dos direitos de acesso à

cultura e à informação, direitos fundamentais assegurados ao ser humano, e que se

correlacionam diretamente à dignidade da pessoa humana490.

O acesso à cultura e à informação, como visto no capítulo 3, são mecanismos que

repercutem diretamente no desenvolvimento individual e social, com a promoção da

igualdade substancial – posto que relacionados à formação do indivíduo –, do ingresso ao

mercado de trabalho, dentre tantas outras consequências.

Nas palavras de Antônio Chaves

À medida que vai se disseminando a cultura, que camadas mais amplas da população atingem esse segundo grau de vivência que é a escrita e a leitura, alarga-se a compreensão da indispensabilidade dos bens do intelecto, torna-se mais verdadeira a afirmação de Cristo de que não só de pão vive o homem.491

Neste sentido, aos demais direitos integrantes do mínimo existencial do sujeito, como

o direito à vida, à moradia, à saúde, à alimentação, somam-se os direitos de acesso à cultura e

à educação.

Por se tratar do tema central do presente trabalho, a funcionalização do Direito Autoral

à promoção do direito de acesso à cultura e à informação será detidamente examinada no

próximo capítulo.

5.3 FUNÇÃO SOCIAL DO AUTOR

Émile Durkheim, em sua obra a “Divisão do Trabalho Social”, evidencia que o

homem é um ser individualizado, mas que depende estreitamente da sociedade para viver.

Neste sentido, o sociólogo francês trata sobre a solidariedade social – analisando-a sob

diversos prismas, a exemplo da solidariedade mecânica e da solidariedade orgânica492 – como

um requisito para a vida em sociedade.

490 Aqui reside aparente antinomia entre direitos fundamentais assegurados pela vigente Constituição. 491 CHAVES, Antônio. op. cit. p. 30. 492 A solidariedade mecânica implica, segundo Durkheim na semelhança entre os indivíduos. Já a solidariedade orgânica seria reflexo da divisão do trabalho, considerando-se as diferenças existentes entre os indivíduos. Nos dizeres de Durkheim: “Enquanto a precedente [a solidariedade mecânica] implica que os indivíduos se assemelham, esta [a solidariedade produzida pela divisão do trabalho] supõe que eles diferem uns dos outros. A primeira só é possível na medida em que a personalidade individual é absorvida na personalidade coletiva; a segunda só é possível se cada um tiver uma esfera de ação própria, por conseguinte, uma personalidade. [...] De fato, de um lado, cada um depende tanto mais estreitamente da sociedade quanto mais dividido for o trabalho nela e, de outro, a atividade de cada um é tanto mais pessoal quanto mais for especializada”. DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. Trad. Eduardo Brandão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 108.

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Também León Duguit, que recebeu influência da doutrina de Durkheim, trata em suas

obras da solidariedade social. Para ele, o homem natural que nasce livre e independente dos

demais não é condizente com a realidade, tratando-se de uma abstração, haja vista que o

homem nasce inserido no âmbito da sociedade. É ele um ser coletivo. Nos dizeres do

doutrinador francês, “é o indivíduo implicado nos laços da solidariedade social”.493

Tomando-se por base as doutrinas de Durkheim e de Duguit, pode-se concluir que os

homens são seres individuais. Ao mesmo tempo, são seres sociais, uma vez que integram a

sociedade, nela desempenhando os seus papéis em prol da coletividade. Cada qual tem

necessidades comuns e distintas, que são satisfeitas pelos demais, daí que se agrupam e são

solidários, seja pelas semelhanças que guardam entre si, seja pelo trabalho e sua respectiva

divisão.

Neste sentido, cada componente do grupo desempenha um papel em benefício não

apenas próprio, mas também da coletividade a que está vinculado.

É o que ocorre também com o autor.

O autor é uma pessoa inserida em um contexto social e neste âmbito desempenha

relevante papel. Sofre, concomitantemente, influências do meio em que vive, a este encontra-

se adstrito.

A obra concebida pelo criador intelectual é fruto de um somatório de dois elementos,

um externo e outro interno.

Tem-se, primeiro, o meio em que o autor vive que repercute na elaboração das suas

criações, seja para seguir o que está posto, seja para questioná-lo.

Inserido na coletividade, o autor recebe influências desta para a consecução de seu

fim494, que é a criação da obra, e sua criação acaba por refletir o contexto histórico, social e

cultural em que foi elaborada e exteriorizada495.

493 DUGUIT, León. Fundamentos do direito. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2005. p. 15 494 Jorge Amado, por exemplo, ícone do romance ficcional brasileiro, é escritor que retrata o cotidiano em suas obras. Narrando a realidade social da Bahia como pano de fundo em seus textos, se apropriou do contexto em que estava inserido para contar a sua terra e suas histórias. Na obra Capitães de Areia, por exemplo, cuja primeira edição data de 1937, Jorge Amado retrata a desigualdade social existente na capital baiana – e que era característica de todo o Brasil – tratando sobre a vida de meninos que sobreviviam nas ruas soteropolitanas. AMADO, Jorge. Capitães de Areia. 107. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. passim. 495 É o que se pode perceber das expressivas músicas do movimento do Clube da Esquina, surgido na década de 60, em Minas Gerais. Seus principais componentes foram Milton Nascimento, os irmãos Borges (Lô, Márcio e Marilton), Fernando Brant, Ruy Guerra, Flávio Venturini, Beto Guedes e Tavinho Moura; os quais, sob mistura de cores e sons, influenciados pelos Beatles, jazz, pop e bossa nova, trouxeram ao cenário musical nacional um som de vanguarda, inconfundível.

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174

Por outro lado, a obra é fruto do intelecto, da criatividade humana. Como visto no

capítulo 2, não se protege a ideia, mas a forma a ela dada pelo homem, através de sua

criatividade.

Nos dizeres de Antônio Chaves, “a matéria-prima do direito de autor é, com efeito,

mais preciosa do que os materiais e metais mais raros: a criatividade, extraordinário e

misterioso atributo de que a natureza privilegiou o homem”.496

Idealizada e trazida à lume, a obra traz, inegavelmente, conteúdo que espelha as

características de seu criador. Os traços da personalidade marcam a criação humana, daí que,

dentre os direitos subjetivos do autor, são incluídos os denominados direitos morais – que são

direitos da personalidade.

Assim, é fácil, ao visualizar um quadro de Picasso, ler um livro de Machado de Assis,

ou ao ouvir uma música de Bach, identificar o criador da obra, pelo seu estilo e suas

características pessoais passadas para as obras por ele criadas.

Analisando os momentos externo e interno da criação, Plínio Cabral assevera que

Há, dessa forma, dois momentos, dois fatores: a vida exterior e a sensibilidade interior do artista. Ele realiza um trabalho marcante e marcado. Fala à sensibilidade. Transmite sensações. E materializa essa visão – exterior e interior – de forma a transmiti-la aos outros. é algo seu, pessoal, particular e que ele oferece ao mundo, seja este grande ou pequeno, próximo ou distante.497

Transmitindo para sua criação as influências sociais e seus traços pessoais, o autor é

um ator social que age em benefício próprio – pois através do produto financeiro advindo de

suas obras é possível sobreviver –, e em favor da coletividade – uma vez que a obra por ele

criada irá integrar o rol dos bens culturais, sendo fonte de conhecimento para os demais

integrantes da sociedade, não importando se classificável a criação como cultura erudita,

popular ou de massa.

Parafraseando Maria Isabel Londero é de se observar que a função social do autor498 é

mostrar o seu mundo, dentro do mundo em que lhe foi dado viver.

Nunca é demais lembrar que não apenas a remuneração é objetivo do autor ao criar a

obra. Pretende ele tornar-se conhecido, difundir seu pensamento, suas ideias.

496 CHAVES, Antônio. Criador da obra intelectual. São Paulo: LTR, 1995. p. 29. 497 CABRAL, Plínio. A nova lei de direitos autorais. Comentários. São Paulo: Harbra, 2003. p. 02. 498 No texto, a autora trata sobre a função social do escritor e examina dois poemas de Carlos Drummond de Andrade. Estendemos o seu ponto de vista a todo e qualquer autor, que está inserido em um contexto histórico e social e que, além disso, vive em seu contexto pessoal/ particular. in LONDERO, Maria Isabel. Texto literário e contexto social: o entrecruzar de fronteiras, na obra A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade. Disponível em http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/num3/ass07/pag01.html, acesso em 07 de fev. de 2012.

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175

Neste sentido, afirma Plínio Cabral que “o autor deseja ver sua obra entregue ao

público. É um sonho que acalenta, não raro ao longo do tempo. É a razão de seu trabalho,

muitas vezes realizado com sacrifício que chega às raias da privação [...]”499.

Daí que o autor tem também uma função a desempenhar na sociedade, transmitindo

seus conhecimentos, influências do meio e traços de sua personalidade para a obra, que será

acessada pela coletividade.

Ao se afirmar que o autor desempenha uma função social, não se pretende anular sua

pessoa em prol da coletividade. Continua ele sendo dotado de dignidade, e merece proteção

legal, como ser humano que é.

Porém, diante da relevância da atividade que exerce, deve atuar de forma responsável

e solidária perante a sociedade, haja vista que é ele um difusor do conhecimento.

5.4 FUNÇÃO SOCIAL DA OBRA

As obras ultrapassam os territórios em que foram criadas, sendo relevantes para toda a

humanidade. Mais que bens culturais pertencentes a uma nação específica, são bens de

interesse universal500.

Destarte, a criação humana é voltada para a coletividade como um todo. E não apenas

para a satisfação pessoal daquele que a concebeu.

É o que leciona Plínio Cabral

A obra de arte, o produto da criação, é peculiar. Gera um interesse universal e, sem dúvida alguma, um direito também especial: o direito que tem o cidadão – em qualquer tempo e em qualquer lugar – de apreciar uma obra de arte.

Há, dessa forma, dois pontos:

1. o autor, como proprietário da obra que cria, dela pode dispor;

2. mas essa obra é, também, feita para o público. Sem ele, perde-se a finalidade maior da criação artística.501

Já foi destacado que o autor/ criador da obra merece proteção, por se tratar de um

trabalhador como outro qualquer, justificando-se esta proteção como uma forma de estímulo

para novas criações, com a ampliação da produção cultural. Mas as obras não são

499 CABRAL, Plínio. op. cit. p. 83. 500 Basta visitar museus como Metropolitan, em Nova York, o MASP, em São Paulo, para chegar a esta conclusão. Reunindo criações artísticas de diversos períodos históricos, assim também de lugares distintos do planeta, instruem, educam, esclarecem as pessoas que a elas acessam, tocando a sensibilidade de todos. 501 CABRAL, Plínio. op. cit. p. 03

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176

funcionalizadas apenas para satisfazer aos seus criadores, e, principalmente, os interesses do

público que as acessa.

Se assim não fosse, como destacado no trecho acima, a obra perderia a razão de ser.

As obras literárias, artísticas e científicas desempenham papel relevante tanto para a

formação do homem que a concebeu, como para os que a elas têm acesso.

Ficou dito no item 5.3, supra, que, ao criar, o autor passa para a obra tanto os seus

traços particulares, marcantes e característicos de sua personalidade, como as circunstâncias

sociais existentes no momento da criação, e que o influenciam sobremaneira ao idealizar a

obra.

Parafraseando Nelson Wernek Sodré, que trata sobre a literatura brasileira, pode-se

dizer que a criação humana literária, artística ou mesmo científica aproxima-se da vida, da

terra, da gente. Retrata o próprio meio em que está inserida, o contexto social, econômico,

político.502

Neste sentido, a criação humana consiste em importante instrumento de conhecimento

do mundo em que se vive.

É também instrumento de transformação503.

O acesso à obra – qualquer que seja o gênero – contribui para a formação do sujeito

historicamente situado e incita àquele que nela (obra) ingressa a ter uma percepção de mundo

mais ampla, compreendendo pluralidade e diversidade deste, bem como verificando aquilo

que se faz necessário mudar.

As obras, científicas, artísticas e literárias, indistintamente, ampliam os horizontes, são

instrumentos em prol da formação e educação do sujeito. Propiciam a sua inclusão, na

sociedade da informação.

Ou seja, as criações artísticas, literárias e/ou científicas são aptas a conferir ao sujeito

as condições para seu desenvolvimento. Destarte, a obra é, além de parte integrante da

sociedade, também um instrumento de educação, de ensino e de transformação social.

502 SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. Seus fundamentos econômicos. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964. p. 25 503 Tome-se como exemplo as obras surgidas no Brasil na segunda década, do século passado, com a Semana de Arte Moderna. Este movimento consistiu em uma reação àquilo que vinha sendo produzido em território nacional, ao argumento de sua falta de originalidade, e por retratar a ideologia colonial ainda existente à época. Criticava-se a produção distanciada da vida e do mundo. Visando à ruptura com o antigo, artistas de diversos seguimentos criaram obras inovadoras e que traduziam a inquietação social do seu tempo. Sobre o tema, vide SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. Seus fundamentos econômicos. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964.p. 522- 533.

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177

6 A PROMOÇÃO DO ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO DECORRÊNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO DE AUTOR

Neste capítulo será feita a tentativa de composição dos direitos fundamentais de acesso

à cultura e à informação e os direitos de autor, compatibilizando-os através da adequação do

discurso jurídico, assim também com a análise do ordenamento jurídico brasileiro e as

máculas impeditivas da plenitude da funcionalização do Direito Autoral.

6.1 CONFLITO E COMPOSIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: A CONCILIAÇÃO DOS DIREITOS DO AUTOR, DOS TITULARES DERIVADOS E DOS TITULARES DE DIREITOS CONEXOS COM OS DIREITOS DA COLETIVIDADE DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO

Tanto os direitos subjetivos do autor como os direitos de acesso à cultura e à

informação são direitos fundamentais consagrados pela ordem constitucional brasileira. Os

três coincidem funcionalmente para o incremento da cultura. Os direitos do autor por

fomentarem a criação intelectual e os direitos de acesso à cultura e à informação, porque

estimulam a democratização do saber504.

Também restou enfatizado no quinto capítulo que o Direito Autoral – não obstante a

insistência dos autoralistas de o enfocarem desta forma – não mais pode ser concebido sob

aquele viés patrimonial-individualista, que historicamente caracterizou o Direito Privado. Isto

porque, dentre outros fatores505, a função social pressuposto dos institutos de Direito Privado

– contratos, propriedade, família etc. – também é norteadora do Direito Autoral.

Este ramo passa a não ser apenas instrumento de proteção do autor, para ser enfocado

também sob o prisma do interesse público. Assim, da visão exclusivamente unitária, tem-se

concomitantemente a ótica da coletividade. No que interessa ao presente trabalho, de

democratização do conhecimento.

Não obstante esta finalidade de desenvolvimento cultural, de ambos, e mesmo sendo o

Direito Autoral funcionalizado em favor da cultura e da informação, percebem-se algumas

zonas de conflito, como será apreciado a seguir.

504 Daí que no terceiro capítulo se fez menção ao Direito da Cultura, abrangendo os direitos em apreço. 505 Sobre o tema, remete-se o leitor ao capítulo quarto, item 4.5.

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178

6.1.1 O DISCURSO DE QUE COMPETE APENAS AO ESTADO A PROMOÇÃO DO ACESSO À CULTURA

O primeiro ponto a ser apreciado neste capítulo refere-se ao discurso no sentido de que

apenas o Estado é destinatário das normas pertinentes à promoção do acesso à cultura. Tal

discurso advém da visão individualista que ainda se insiste em aplicar ao Direito Autoral, em

descompasso com a realidade de constitucionalização do Direito Privado506.

Como bem destacado por Ciro de Lopes e Barbuda, “é com perplexidade que se chega

à conclusão de que o direito autoral não tem acompanhado a evolução do direito civil,

permanecendo alheado desse processo de descentralização e constitucionalização do direito

privado.”507

Há quem, a exemplo de Silmara Juny de Abreu Chinellatto, sustente que ao Direito

Autoral não deve ser aplicada a função social, que não se coaduna com a proteção do autor508.

Em verdade, para este discurso tradicional o autor teria soberania sobre sua obra e

apenas as situações elencadas na LDA poderiam servir como exceções aos direitos subjetivos

do autor.

Os direitos patrimoniais e morais do criador da obra intelectual seriam absolutos, não

havendo que se falar em funcionalização em prol dos direitos de acesso à cultura e à

informação.

Competiria ao Estado a promoção do acesso à cultura, por força do caput do art. 215,

da CF/88 que dispõe que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e

acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das

manifestações culturais”.

Destarte, fazendo-se a interpretação literal e isolada do citado artigo, propõe-se que o

Estado é que deve tomar medidas para promover a disseminação cultural para a sociedade

brasileira como um todo, não se podendo impor tal dever ao autor, que deve ser devidamente

506 Verifica-se que efetivamente a vigente LDA tem caráter extremamente patrimonialista, fato que, somado à cultura codicista nacional, acaba por caracterizar óbice à aplicação dos direitos fundamentais de acesso às obras culturais. 507 BARBUDA, Ciro de Lopes e. Sistematização principiológica do direito autoral: repensando os fundamentos da ordem jusautoralista brasileira na perspectiva de um direito autoral-constitucional. Dissertação de mestrado. Programa de Pós graduação da Universidade Federal da Bahia, Salvador 2011. Orientadora: Roxana Cardoso Brasileiro Borges. p. 85. 508 Em palestra proferida no IV Seminário Nordestino de Propriedade Intelectual (SENEPI) e II Seminário do Instituto Baiano de Direito Intelectual (IBADIN), no dia 19 de maio de 2011, Silmara Chiavenato, ao examinar o projeto de lei de alteração da vigente Lei de Direitos Autorais, mostrou-se contrária à funcionalização do Direito Autoral em favor da cultura e da informação, argumentando que a promoção destes direitos fundamentais compete ao Estado, por força do art. 215 da Constituição Federal.

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179

remunerado por seu trabalho e pelo produto de seu intelecto, exercendo seus direitos de forma

absoluta.

O pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional seriam,

segundo esta perspectiva, obrigações atribuídas apenas ao Estado, não se havendo de falar em

funcionalização do Direito Autoral para tal desiderato.

Todavia, não há como se posicionar no sentido de que a proteção do autor é ilimitada,

tampouco defender a existência de um direito absoluto e de exclusividade irrestrita do autor

sobre sua obra.

Imperiosa, ainda, a mudança de prisma de irresponsabilização do indivíduo,

atomizado, e atribuição de todo e qualquer dever de promoção de acesso à cultura e à

informação apenas ao Estado.

É o que se busca demonstrar a seguir.

6.1.2 O conflito entre os direitos fundamentais do autor e de acesso à cultura e à informação: “derrubando” a visão patrimonialista do Direito Autoral

Com a necessidade de democratização do conhecimento, incrementada nos dias atuais

pelas características da sociedade da informação em que se vive, os direitos fundamentais de

acesso à cultura e à informação tornam-se mecanismos imprescindíveis para a inclusão do

sujeito. Na busca de acesso aos bens culturais, pode ficar caracterizado o choque deste com os

direitos conferidos ao autor, resultando em conflito entre ambos.

A grande preocupação dos autoralistas é o esvaziamento dos direitos subjetivos do

autor, consagrados ao longo dos tempos, em prol do acesso à cultura e à informação.

Como lembra José de Oliveira Ascensão, “o direito de acesso à cultura pode ameaçar e

esvaziar o direito de autor; o direito de autor pode criar obstáculos ao acesso à cultura”509.

A partir dessa colocação, propõe-se a análise de compatibilização dos direitos

fundamentais do autor e os de acesso à cultura e à informação.

Não se quer, aqui, como já sobejamente dito no decorrer do trabalho, aniquilar os

direitos subjetivos conquistados ao longo dos tempos pelo autor. Pretende-se a mudança de

perspectiva, com readequação do ordenamento jusautoralista, de modo a atender às demandas

sociais.

509 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito fundamental de acesso à cultura e direito intelectual. in SANTOS, Manoel J. Pereira dos. (coord.) Direito de autor e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 18.

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180

Busca-se a adequação das premissas do Direito Autoral, visando a alcançar a

satisfação dos interesses privados – do autor e titulares – e dos interesses da coletividade. E

mais, alcançar o ponto ótimo de equilíbrio, alcançando-se o máximo de satisfação de cada um,

com o mínimo de sacrifício dos direitos que entrem em conflito.

Desta forma, é mister equacionar o interesse da coletividade com o interesse privado,

objetivando que não se anulem reciprocamente, mas, pelo contrário, que seja proporcionado o

meio-termo entre ambos.

6.1.2.1 A promoção do acesso aos bens culturais

O Direito Autoral tem por função individual a proteção do autor, criador da obra

intelectual literária, artística ou científica, dos titulares dos direitos conexos e dos titulares

patrimoniais da obra. Tal finalidade já restou apreciada no capítulo anterior e está diretamente

ligada ao enriquecimento cultural. Ou seja, a proteção dada ao autor repercute diretamente no

enriquecimento cultural de um país.

Todavia, não basta haver o desenvolvimento cultural e aumento de produção das obras

intelectuais. Se não houver o acesso a tais bens – se não houver a socialização do

conhecimento – o incremento na produção fica esvaziado de sentido.

O ponto de partida tem de ser este: não basta afirmar que o direito de autor fomenta a criatividade, que sem criatividade não há cultura, não basta esta visão unilateral, porque sem acesso ao patrimônio cultural também não há cultura. Só se desenvolve o diálogo cultural se as pessoas estiverem em condições de efetivamente participar510.

Daí que se defende que ao autor são assegurados direitos subjetivos, que devem ser

exercidos, porém, de modo a proporcionar o acesso às obras por ele produzidas, posto que

funcionalizadas socialmente.

Os direitos de acesso à cultura e à informação são interesses sociais

constitucionalmente protegidos e devem ser compatibilizados com os direitos do autor511.

[...] a recuperação de legitimidade do direito autoral pressupõe que o discurso jusautoralista seja afinado às metas do direito constitucional, o que implica seu compromisso com os programas de desenvolvimento científico e tecnológico nacional e de universalização do acesso à cultura – que têm sido por ele sistematicamente ignorados -, sem, contudo, descurar da importância dos direitos fundamentais do autor e direitos fundamentais conexos, de maneira que o microssistema jurídico dos direitos intelectuais – conformado pelo direito autoral, direito autoral do software, direito da propriedade industrial, direito dos cultivares e

510 ASCENSÃO, José de Oliveira. op. cit. p. 20-21 511 Não se propõe o acesso livre e irrestrito por parte da coletividade, mas a ampliação do ingresso atualmente proporcionado pela LDA às obras, adequando-se o dito diploma legal à atual sociedade da informação em que se vive.

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181

biotecnologia, bem como diplomas afins – possa ser conciliado com o ordenamento constitucional brasileiro, fortalecendo, destarte, a ambos, de maneira que essa nova maneira de interpretar os direitos intelectuais beneficie, a um só tempo, autor, sociedade e Estado.512

Destarte, é imperiosa a alteração do discurso, voltando-se o Direito Autoral em favor

do autor e da coletividade, em prol do acesso à cultura e à informação.

6.1.2.2 Novamente o papel do autor

Como visto, o autor desempenha relevante papel social de disseminador de

conhecimento.

Oportunos os ensinamentos de Duguit, na medida em que sustenta que cada indivíduo

está obrigado a desempenhar um papel no seio da sociedade, mesmo quando estiver gozando

das faculdades asseguradas pelo ordenamento513.

Deste modo, todo indivíduo tem uma função a desempenhar na sociedade e, neste

sentido, tem o dever de ampliar sua individualidade e de cumprir sua missão social: o que

também se aplica ao criador da obra intelectual, que além de ter a titularidade de direitos deve

voltar-se ao interesse coletivo quando do seu exercício.

No caso do autor, o ordenamento prevê a proteção das obras por ele criadas,

assegurando direitos de ordem patrimonial e moral. Todavia, não são tais direitos absolutos. A

eles são impostos limites.

Além dos próprios limites internos, como o objeto, prazo de duração e as limitações

previstas em lei de forma taxativa, há os limites externos que favorecem terceiros, como é o

caso da vedação de abuso de direito, conforme preleciona Guilherme Carboni.514

Ademais, ínsito ao próprio direito em si, tem-se a função social que desempenha.

Desta forma, também o autor (e aqui estenda-se a todos os titulares patrimoniais) deve

cumprir seu papel social de propagar o conhecimento515.

Insistir no discurso de que compete exclusivamente ao Estado a promoção do acesso à

cultura e à informação acaba por afastar a função que o autor deve desempenhar na sociedade,

além de esvaziar o conteúdo do próprio caput do art. 215 da Carta Magna, que deve ser lido,

512 BARBUDA, Ciro de Lopes e. op. cit. p. 86. 513 Sobre o pensamento de Duguit, vide capítulo quarto, item 4.5.1. 514 CARBONI, Guilherme. Função social do direito de autor. Curitiba: Juruá, 2008. passim. 515 Sobre o tema, vide capítulo quinto, item 5.3.

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182

não isoladamente, mas em conjunto com todos os demais dispositivos legais pertinentes à

consecução da democratização do conhecimento.

Somada à própria função social da propriedade, prevista no art. 5º, XXIII, da CF/88,

passível de aplicação ao Direito Autoral, como visto alhures; tem-se a dimensão social do ser

humano – em especial o princípio da solidariedade, consagrado no art. 3º, I; e, ainda, o valor

supremo da dignidade da pessoa humana – estatuído no art. 1º, III, da CF – que aqui deve ser

considerado tanto para o autor, quanto para aqueles que têm acesso às obras. Também o

desenvolvimento nacional, trazido pelo art. 3º, II da Carta Magna, em especial o cultural,

tecnológico e econômico, é intercorrência do Direito Autoral, na medida em que se estimula

as criações e que o acesso a estas é disponibilizado.

6.1.2.3 A eficácia irradiante dos direitos fundamentais e o Direito Autoral

Os direitos fundamentais repercutem por todo o ordenamento jurídico, atuando como

diretrizes para o aplicador do Direito, não apenas nos momentos de crise, mas no dia-a-dia de

sua aplicação516.

A eficácia irradiante significa que os valores que respaldam os direitos fundamentais

influenciam todo o ordenamento jurídico, tratando-se de um vetor de interpretação das normas

que, concomitantemente, vincula a todos os poderes públicos517.

Interessante notar que

[...] toda a legislação infraconstitucional (civil, penal, processual, econômica etc.), muitas vezes editada em contexto axiológico diverso, mais individualista ou mais totalitário, terá de ser revisitada pelo operador do direito, a partir de uma nova perspectiva, centrada na Constituição e em especial nos direitos fundamentais que esta consagra.518

Destarte, a legislação infraconstitucional passa a ser lida à luz dos direitos

fundamentais, daí que a Constituição e o Direito Privado estão em constante diálogo e

interseção.

Também o Direito Autoral sofre essa irradiação.

Impende a releitura da LDA à luz do matiz constitucional e dos direitos fundamentais

ali consagrados, proporcionando sua adequação ao contexto atual.

516 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 124 517 SAMPAIO, Maríliade Ávila e Silva. Aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares e a boa-fé objetiva. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 79. 518 SARMENTO, Daniel. op. cit. p. 125

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183

O Direito Autoral deve ser, pois, norteado pela Carta Magna e os direitos ali

consagrados, voltando-se à promoção do acesso à cultura por parte da coletividade como um

todo.

6.1.2.4 A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais

E mais, a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais519 é outro ponto que

reforça a ligação entre o autor e o exercício dos seus direitos voltado ao bem comum e aos

direitos fundamentais de acesso à cultura e à informação.

A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais não depende da edição de

norma infraconstitucional – não se havendo de falar que, por não haver na LDA previsão

acerca da funcionalização do Direito Autoral, inexistiria essa eficácia entre os particulares nas

relações autorais.

Isso porque o art. 5º, da CF é claro ao estatuir a maximização da eficácia dos direitos

fundamentais, não fazendo qualquer ressalva quanto à sua aplicabilidade entre os particulares.

Desta forma, a vigente Carta Magna impôs a aplicabilidade dos direitos fundamentais

às relações privadas, não sendo possível concebê-los – inclusive os sociais – como meros

informantes à atuação do Estado, porque conformam também o comportamento dos

particulares520.

Ainda que dirigidos ao Estado, seja como limite à atuação estatal – na qualidade de

direitos de defesa – seja como imposição de atividade estatais – como direitos a prestações – é

também possível exigir dos particulares a observância dos direitos fundamentais de acesso à

cultura e à informação.

Corrobora este entendimento, Ciro de Lopes e Barbuda, para quem:

Os bens culturais não podem ser, destarte, encarados como direitos meramente programáticos, tampouco compreendidos como legislação álibi, de cunho dilatório dos compromissos sociais. Nesse sentido, os autores e os empresários da indústria cultural têm de assumir responsabilidades constitucionais derivadas do fato de se colocarem como veículos difusores da cultura521. (sem grifos no original)

519 Autores como Robert Alexy adotam a expressão “eficácia horizontal”, a qual prefere-se não empregar no presente trabalho, por haver relações entre particulares em que não há a igualdade entre as partes e em que há o predomínio do poder econômico de uns em relação a outros. Nestes casos, a relação acaba por ser verticalizada, assim como ocorre nas travadas entre Estado-indivíduos. 520 SARMENTO, Daniel. op. cit. p. 235. 521 BARBUDA, Ciro de Lopes e. op. cit. p. 110

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Com isso, não se retira do Estado a responsabilidade pela concretização de tais

direitos, mas, sim, reconhece-se também a sua influência nas relações interprivadas.

A promoção do ingresso aos bens culturais vincula não apenas o Estado – que atua por

incentivos e políticas públicas –, mas também os particulares nas relações travadas entre si –

especialmente os autores, titulares dos direitos conexos e titulares derivados das obras.

6.1.2.5 A hierarquia à partida entre os direitos de autor e de acesso à cultura e à informação

Não bastasse o fato de os particulares estarem vinculados aos direitos fundamentais,

há outro ponto de relevo que merece destaque. Trata-se da diferenciação de tratamento

conferida ao direito fundamental do autor e aos direitos fundamentais de acesso aos bens

culturais.

No que tange ao direito fundamental do autor, percebe-se que a Carta Magna traz um

enfoque predominantemente patrimonialista, quando estatui no inciso XXVII do art. 5º que o

criador da obra detém o direito exclusivo de sua exploração econômica.

Prevalece no citado dispositivo da Constituição Federal a concepção individualista do

Direito Autoral.

Por sua vez, os direitos de acesso à cultura e à informação têm relevante repercussão

social, sendo voltados à dignidade humana e ao desenvolvimento cultural do país.

Desta forma, inicialmente, poder-se-ia sustentar a prevalência dos segundos em

detrimento do primeiro.

É o que traz José de Oliveira Ascensão:

Ora, o acesso à cultura tem um evidente fundamento de interesse social e de desenvolvimento, neste caso, cultural do país. A proteção meramente patrimonial do direito de autor coloca-o em inferioridade hierárquica perante os direitos ligados à promoção cultural. Independentemente daquilo a que por interpretação conseguimos chegar, à partida a posição hierárquica do direito de autor é inferior à do direito de acesso à cultura.522

Obviamente que o fato de se atribuir superior hierarquia aos direitos que consagram a

pessoa e sua dignidade em detrimento dos voltados aos dotados de enfoque

predominantemente patrimonialista não pode esvaziar estes últimos, mormente se considerado

que, de alguma forma, também dos direitos patrimoniais – no caso, aqui, os direitos

522 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito fundamental de acesso à cultura e direito intelectual. in SANTOS, Manoel J. Pereira dos. Direitos de autor e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, p. 19

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185

patrimoniais do autor – estão ligados à consagração de sua dignidade, na medida em que

consistem na remuneração pelo trabalho desenvolvido pelos criadores intelectuais.

Como destacado acima, não se propõe aqui aniquilar os direitos do autor, mas

compatibilizá-los com o direito de democratização do conhecimento, com o acesso às obras.

Neste sentido, a despeito de haver – inicialmente – a citada hierarquia, a primazia de um ou de

outro somente poderá ser conferida no caso concreto.

6.1.2.6 A reconstrução do discurso

Por tudo o que se expôs, diante das responsabilidades constitucionais advindas do

princípio da solidariedade social, e fazendo-se uma leitura sistemática de toda a Constituição

Federal, não se há de falar em responsabilização exclusiva do Estado para a promoção dos

direitos de acesso à cultura e à informação.

É de se concluir que a soberania do autor e vinculação apenas do Estado aos direitos

fundamentais de acesso à cultura e à informação é posicionamento não condizente com a

realidade atual, de funcionalização dos institutos do Direito Privado, de consagração da

dignidade da pessoa humana, de solidariedade social, de irradiação dos direitos fundamentais

e de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.

Nesta toada, pelos reflexos diretamente produzidos no Direito Autoral pelos direitos

fundamentais de acesso à cultura e à informação, é imperiosa uma releitura deste ramo

jurídico de modo a fazer com que a proteção do autor persista, mas não de forma isolada e

individualista, como se os direitos do autor fossem absolutos e merecedores de ser colocados

em redoma.

O exercício dos direitos pelo autor (e demais titulares – dos direitos conexos e dos

direitos patrimoniais) persiste assegurado, porém, impõe-se sua leitura à luz do consagrado

pela Carta Magna, afastando-se o individualismo e patrimonialismo que ainda se insiste em

atribuir a tal ramo jurídico.

Destarte, esta nova modalidade interpretativa é necessária, permeando-se os valores

consagrados constitucionalmente com os direitos subjetivos assegurados ao autor.

Aqui se propôs uma releitura do Direito Autoral à luz das normas constitucionais que

devem ser lidas em conjunto – e não isoladamente. Nos próximos tópicos, são apreciadas

situações em que o acesso à cultura e à informação já vem sendo promovidos, assim como

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186

também serão tratadas máculas do ordenamento brasileiro, que acabam por comprometer esta

promoção.

6.2 MEDIDAS QUE JÁ VEM SENDO ADOTADAS NA PRÁTICA E QUE RESULTAM NA PROMOÇÃO DO ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO: OS SOFTWARES LIVRES E A LICENÇA CREATIVE COMMONS

A inclusão digital é, nos moldes analisados no capítulo anterior, uma das funções

desempenhadas pelo Direito Autoral, no contexto em que se vive523, seja no que pertine ao

acesso aos programas de computador, seja no que tange ao ingresso ao próprio conteúdo

disponibilizado na rede.

Como dito alhures524, para que haja a inclusão digital, não é suficiente a

disponibilização das máquinas/ instrumentos e a aprendizagem do seu manuseio. Necessário

se faz que o acesso ao conteúdo seja oportunizado.

Tem-se vislumbrado a internet como uma ameaça aos direitos do autor525. Todavia, é

ela uma realidade social que deve ser considerada, e como tal devem ser procurados

mecanismos que possam proporcionar a compatibilização entre os recursos digitais

disponíveis, o acesso às obras e a proteção autoralista.

Como alternativas criadas para a acessibilidade das obras protegidas, surgem o

software livre e as licenças creative commons, referentes, respectivamente, aos programas de

computador, e às obras literárias, artísticas e científicas na rede virtual.

Software nada mais é do que o programa de computador, que faz com que o sistema

funcione, determinando as tarefas a serem desempenhadas pelo computador.

Nos dizeres de Leonardo Poli,

A parte intelectual do sistema informático é internacionalmente conhecida como software e funciona como um conjunto de instruções dado ao computador (sentido estrito) para que ele efetue o processamento e o armazenamento desses dados de uma forma determinada. É o software, que fornece ao computador os comandos necessários à realização das mais diversas tarefas. Sem o programa, o computador em sentido amplo, nada faria, ‘seria apenas uma caixa de metal e plástico’. 526

523 Nos dizeres de Edevaldo Alves da Silva, “vive-se hoje a era da mais importante revolução tecnológica, jamais antes experimentada. Revolução pós-industrial, de dimensão planetária. Novo poder foi criado, o poder tecnológico, que encurta distâncias de tempo e espaço”. SILVA, Edevaldo Alves da. Apresentação. in PAESANI, Liliana Minardi. (coord.) O direito na sociedade da informação. São Paulo: Atlas, 2007. p. XI. 524 Remete-se o leitor para o capítulo quinto, item 5.2.5 525 Este posicionamento já foi examinado no capítulo 5, no item 5.2.5. 526 POLI, Leonardo Macedo. Direitos de autor e software. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 9.

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187

A proteção conferida ao software no ordenamento jurídico brasileiro é equiparada ao

tratamento jurídico dado às obras literárias, artísticas e científicas. Ou seja, o legislador optou

por proteger o software pelo regime jurídico do Direito Autoral, estando regulamentada a sua

proteção pela Lei 9.609/98.

São estas, pois, as considerações preliminares reputadas necessárias para esclarecer o

que seja software e seu tratamento legal.

Interessa a este trabalho destacar que, seja pela proteção legal conferida aos programas

de computador, seja pelo contexto social em que é disponibilizado – altos valores cobrados

para sua aquisição, por exemplo – acaba-se por inviabilizar a sua aquisição, e, em

consequência, a própria inclusão digital.

O software livre surge, assim, como uma alternativa ao modelo prévio.

João Cassino ensina que o software livre é “um programa de computador com o

código-fonte aberto, possibilitando que qualquer técnico possa estudá-lo, alterá-lo, adequá-lo

às suas próprias necessidades e redistribuí-lo, sem restrições”527.

Segundo leciona Carlos Alberto Rohrmann:

O software livre é um tipo de programa de computador comercializado de forma alternativa ao chamado ‘software proprietário’, ou seja, aos programas de computador que são licenciados, a título oneroso, e que mantêm a proteção dos direitos autorais ou do regime do copyright.

O software livre é distribuído por meio das chamadas General Public Licenses – GLPs, que autoriza, a utilização e a própria melhoria no código-fonte do programa de computador, sob condições tais que as eventuais melhorias feitas por terceiros sejam disponibilizadas na forma de código-fonte, para que tais inovações possam ser integradas, novamente, aos programas de computador e, desta forma, fiquem disponíveis para que outros as possam conhecer.528

Trata-se de programa de computador desenvolvido por pessoas do mundo inteiro

visando a facilitar o ingresso aos programas de computador e a consequente inclusão digital

de pessoas excluídas do acesso à tecnologia.

O movimento do software livre é instrumento viabilizador do desenvolvimento

sustentável e do combate à pobreza e à desigualdade social529.

527 CASSINO, João. Cidadania digital: os telecentros do município de São Paulo. in SILVEIRA, Sérgio Amadeu da; CASSINO, João (orgs.) Software livre e inclusão digital. São Paulo: Conrad, 2003. p. 50. 528 ROHRMANN, Carlos Alberto. Curso de direito virtual. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 241. 529 SILVEIRA, Sergio Amadeu da Silveira. Inclusão digital, software livre e globalização contra-hegemônica. in SILVEIRA, Sérgio Amadeu da; CASSINO, João (orgs.) Software livre e inclusão digital. São Paulo: Conrad, 2003. p. 17-18.

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188

Também as licenças creative commons integram este movimento de publicação

facilitada e proporcionam maior acessibilidade às obras licenciadas sob uma das modalidades

disponíveis.

Segundo informado no sítio virtual da licença creative commons no Brasil, por esta

licença, são oportunizadas opções flexíveis para que artistas e autores possam ter seus direitos

reservados e, ao mesmo tempo, divulgar suas obras com maior liberdade.530

É-lhes dado escolher, por exemplo, qual licença preferem dentre as opções

disponibilizadas, que vão desde a proibição total dos usos sobre uma obra – com todos os

direitos reservados – até a situação de domínio público – em que nenhum direito é

reservado531.

Manuella Santos aduz que pela creative commons, o autor de obra intelectual

protegida pelo Direito Autoral a licencia, na modalidade que julgar mais adequada,

permitindo o acesso à sua criação532. Nos dizeres da citada autora, licenciar uma obra pelo

creative commons consiste em “oferecer alguns dos direitos para qualquer pessoa, justamente

os que melhor atendam aos seus interesses, mediante condições escolhidas pelo próprio

autor”.533

Vale ressaltar que o acesso e uso da obra se limitam aos termos e condições da licença

dada pelo seu criador.

Há quem impugne a utilização livre propiciada através destes mecanismos.

Hildebrando Pontes, por exemplo, sobre os creative commons, considera tratar-se de

um retrocesso, sustentando que

Os princípios filosóficos que embasam o sistema Creative Commons tentam fragilizar as instituições jurídicas autorais, na medida em que são elas que tornam efetiva a possibilidade de proteção das obras, garantem os direitos exclusivos de sua exploração patrimonial em favor dos criadores, promovem a sua limitação no tempo, permite a sua transmissão por ato inter vivos, em consonância com a evolução natural do processo criativo.534

Mais adiante, assevera o autor que, como os autores pela licença creative commons

não têm a segurança de que as suas obras serão empregadas pelos usuários da rede no modo

avençado no contrato, “o sistema de licenças Creative Commons pela sua própria fragilidade,

530 Disponível em http://www.creativecommons.org.br/, acesso em 01 de mar. de 2012. 531 Disponível em http://www.creativecommons.org.br/, acesso em 01 de mar. de 2012. 532 SANTOS, Manuella. Direito autoral na era digital: impactos, controvérsias e possíveis soluções. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 138-139. 533 ibidem. p. 140-141. 534 in PONTES, Hildebrando. op. cit. p. 154-155.

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189

em vez de constituir-se em meio seguro de contratação, contribui indisfarçavelmente para a

desconstituição dos direitos autorais na internet.”535.

Não há como, em que pese todo o respeito que merece este posicionamento, com ele

concordar.

Em ambos os casos – o do software livre e o das licenças creative commons –, inexiste

renúncia aos direitos autorais, e tampouco a sua extinção. A obra chega livremente ao

conhecimento de todos, porém, isto se dá com o respeito aos direitos subjetivos do seu

criador.

O autor poderá firmar negócios jurídicos posteriores, caso queria tirar proveito

econômico daquilo que concebeu, além de defender seus direitos morais, acaso vilipendiados.

Em verdade, tanto os direitos patrimoniais como os direitos morais continuam sendo

reservados ao autor, a quem fica assegurada a defesa integral de seus interesses individuais.

Vale observar que a afronta ao direito subjetivo do autor não se configura apenas no

âmbito virtual. Inúmeras situações de plágio, pirataria etc. são verificadas fora do ambiente da

rede, sendo assegurada ao autor a defesa dos seus direitos.

No meio digital também seria assim. Acaso configurada lesão aos direitos subjetivos

do autor, a este é dado ingressar com as ações pertinentes na proteção de seus interesses

porventura vilipendiados.

Por fim, o software livre e as licenças creative commons proporcionam o acesso ao

âmbito digital, com a democratização do conhecimento, tratando-se de instrumentos que, ao

contrário de serem combatidos, devem ser estimulados, por majorarem o poder de propagação

das informações no meio virtual.

Apreciando o software livre e as licenças creative commons, Guilherme Carboni

sustenta que

Podemos dizer que tanto o software livre como as licenças creative commons não destroem o sistema de proteção autoral construído pelos tratados internacionais e pelas legislações internas dos diversos países, no qual estamos todos ‘condenados a ser autores’, já que não podemos escapar a esta condição. Na verdade, ambos têm como mérito questionar um dos aspectos mais relevantes do direito de autor nos dias de hoje, que é exatamente o poder da indústria do entretenimento e da comunicação na distribuição das obras intelectuais. É nesse sentido que o software livre e as licenças creative commons também contribuem para que o direito de autor seja orientado para a sua função social.536

535 Ibidem. p. 156. 536 CARBONI, Guilherme. Função social do direito de autor. Curitiba: Juruá, 2008. p. 95.

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190

É de se concordar com tal posicionamento, vislumbrando-se tais movimentos

alternativos como mecanismos que muito contribuem para o cumprimento da função social do

Direito Autoral de promoção do acesso à cultura e à informação.

6.3 LIMITAÇÕES AO DIREITO DE AUTOR E A PROMOÇÃO DO ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO

No ordenamento jurídico brasileiro são previstas limitações aos direitos patrimoniais

do autor, seja no que se refere ao período de proteção que, uma vez esgotado, resulta no que

se denomina domínio público, seja no que tange às hipóteses elencadas na LDA, como

situações em que não se configura afronta aos mencionados direitos do criador da obra

intelectual.

Inicialmente, será examinado o domínio público e seus reflexos no acesso às obras,

com a promoção do acesso à cultura e à informação. Em um segundo momento, é proposta a

reflexão da insuficiência das limitações trazidas no art. 46 e ss. da vigente LDA, posto que

não são aptas a, por si só, resultarem na funcionalização do Direito Autoral, como ocorre com

a cópia privada, por exemplo, que será apreciada mais detidamente em subtópico apartado.

6.3.1 O domínio público

Já restou assinalado no segundo capítulo que o princípio da temporalidade dos direitos

patrimoniais do autor está consagrado no art. 5º XXVII da Constituição Federal de 1988.

Trata-se de norma de eficácia contida que delega ao legislador ordinário a delimitação do

prazo de duração da citada proteção.

A norma infraconstitucional – no caso, a LDA – estabelece, seguindo os ditames da

Carta Magna, a proteção dos direitos subjetivos de ordem patrimonial, os quais são

transferidos aos herdeiros do autor, acaso existentes. Neste sentido, os herdeiros do autor

falecido podem explorar economicamente a obra pelo prazo delimitado em lei.

Como já visto também no segundo capítulo, a proteção alcança toda a vida do criador

da obra e, após a sua morte, perdura por mais 70 anos, computados a partir de 1º de janeiro do

ano subsequente ao óbito. Essa é a regra.

Existem situações, porém, em que o lapso de 70 anos é computado de forma distinta. É

o que ocorre, por exemplo, com as obras em coautoria, em que não seja possível dividir a

contribuição de cada um. Nesta hipótese, o prazo de 70 anos é computado a partir de 1º de

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191

janeiro do ano subsequente à morte do último coautor vivo. Para as obras audiovisuais e

fotográficas, os 70 anos são contados desde a publicação destas.

Ultrapassado este interregno, a obra cai em domínio público, podendo ser explorada

por qualquer indivíduo livremente – desde que respeitados os direitos morais do autor, tais

como o direito de paternidade.

A obra anônima, por sua vez, já nasce em domínio público.

6.3.1.1 O domínio público e a promoção do acesso à cultura e à informação

Como destaca Rodrigo Moraes, “o domínio público é um dos pilares filosóficos do

direito de autor, existente tanto no sistema europeu (droit d’auteaur) quanto no sistema de

copyright”.537 Isso porque a sua caracterização é vislumbrada sob a ótica do interesse público,

de acesso ao conhecimento.

Em se tratando de obra caída em domínio público, tem-se como não mais incidente a

proteção patrimonial do autor. Isso porque, os direitos patrimoniais do autor não são eternos e

os benefícios econômicos de sua criação são limitados no tempo.

Assim, tratando-se de obra caída em domínio público, a utilização é livre e

independente de prévia autorização ou qualquer pagamento.

Deste modo, o titular da obra caída em domínio público pode ser a própria

coletividade.

Em verdade, o domínio público é instrumento existente em prol do acesso à cultura e à

informação, posto que, uma vez caracterizado, a obra pode ser acessada livremente pela

sociedade como um todo, seja como simples ingresso ao bem cultural – acesso ao

conhecimento – seja como ponto de partida para criação de novos bens culturais intelectuais –

produção do conhecimento.

Nesta segunda hipótese, restam viabilizadas inovações contínuas – obras criadas a

partir de outras – com o constante desenvolvimento cultural do país, ou mesmo traduções e

adaptações. Todas independentes de prévia autorização.

Oportuniza-se, com isso, o acesso aos bens culturais, ressaltando-se o relevo das obras

integrantes do patrimônio histórico-cultural do país, e a recriação de obras derivadas.

537 MORAES, Rodrigo. Direito fundamental à temporalidade (razoável) dos direitos patrimoniais de autor. in SANTOS, Manoel J. Pereira dos. (coord.) Direito de autor e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 272.

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192

Tudo voltado ao desenvolvimento cultural!

6.3.1.2 O prazo de duração versus acesso à cultura e à informação

Ponto crucial debatido na doutrina autoralista diz respeito ao prazo de duração da

proteção patrimonial do autor.

Há os que, a exemplo de Clóvis Beviláqua538, consideram que tal proteção deveria ser

perpétua. Nesta hipótese, não haveria de se falar em obra caída em domínio público. Para esta

corrente doutrinária, a seara patrimonial do Direito Autoral tem característica de propriedade

e, como tal, deveria assumir as mesmas características, dentre elas, a de perpetuidade.

Não há como, porém, comungar com tal posicionamento, parecendo mais razoável a

teoria segundo a qual deve ser imposta aos direitos patrimoniais, limitação de caráter

temporário.

Isso porque, trata-se de uma modalidade peculiar de propriedade, cujo tratamento é

distinto do conferido às propriedades sobre bens móveis e imóveis. Em verdade, a

característica patrimonial assumida pelo Direito Autoral refere-se ao “direito de exclusivo”,

que nada mais é do que o direito de exploração econômica da obra.

Não bastasse tal fato, assim como as marcas, patentes de invenção etc. – às quais são

impostos prazos de duração de proteção – também os direitos patrimoniais do autor assumem

uma função social, voltada à coletividade, assumindo os bens culturais intelectuais abarcados

pelo Direito Autoral caráter essencial para a propagação do conhecimento.

Neste sentido, a estipulação de prazo de duração é defendida, como forma de se

promover a proteção do autor e, concomitantemente, estimular a criação intelectual,

compatibilizando-se tal abrigo patrimonial com o acesso da coletividade ao saber.

Contudo, ainda nesta corrente, há dissenso quanto ao prazo de duração.

Rodrigo Moraes aduz que o prazo de 70 anos consagrados na vigente LDA é razoável,

devendo ser mantido. Para ele,

O direito de autor não pode ser considerado o bode expiatório para a falta de acesso ao conhecimento, à cultura e à educação. A sociedade não pode fazer ouvidos mochos ao criador intelectual. O direito de autor não é raiz de todos os males.

538 É de se ressaltar que, inicialmente, o Código Civil de 1916, que tratou sobre a propriedade intelectual, previa a proteção perpétua, atribuindo ao direito patrimonial do autor as mesmas características da propriedade incidente sobre os bens corpóreos.

Page 194: OS DIREITOS DE ACESSO À CULTURA E À INFORMAÇÃO COMO ...

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Rechaça-se, pois, qualquer tentativa de diminuição do prazo de 70 anos post mortem auctoris em prol do acesso à cultura.539

A redução do prazo de 70 anos não implicaria em considerar o Direito Autoral como a

“raiz de todos os males”. Provocaria, apenas, a adequação de tal prazo às finalidades

precípuas deste ramo jurídico.

Daí que outros, a exemplo de Guilherme Carboni, posicionam-se no sentido de ser tal

prazo longo, propondo a sua redução.

Para ele, a proteção ao autor permaneceria íntegra. Com a redução do prazo de 70

anos, o autor continuaria sendo prestigiado pelo seu trabalho durante toda a sua vida. Ter-se-

ia, apenas, a diminuição de proteção dos titulares derivados – no caso, os herdeiros – que não

são os criadores das obras (e, portanto, não são os destinatários da proteção).

Assim, toma-se partido da segunda corrente, que defende a redução do prazo, nos

moldes do apregoado por Carboni, valendo destacar que, ainda assim, os herdeiros poderiam

continuar explorando economicamente a obra, por força da sucessão, mas por período

inferior, de modo a prestigiar o acesso à cultura e à informação.

6.3.2 A insuficiência do rol taxativo das limitações dos direitos de autor para a promoção do acesso à cultura e à informação

Não há direito absoluto. Isso é fato.

Neste sentido, também os direitos subjetivos assegurados ao autor não o são. Daí que

aos direitos patrimoniais do autor são impostas exceções, pelas quais, o criador é obrigado a

tolerar o uso de sua criação intelectual, independente de autorização prévia.

A vigente LDA estatui em seu art. 46 uma listagem – reputada taxativa pela

doutrina540 – de limites dos direitos patrimoniais do autor.541

Restou apreciado acima, que são três os objetivos das limitações constantes do rol em

apreço. A primeira é a promoção da informação da coletividade. A segunda, está relacionada

com o desenvolvimento da educação. A terceira, por sua vez, diz respeito aos usos técnicos e

judiciais.542

539 MORAES, Rodrigo. op. cit. p. 287. 540 Como visto no capítulo segundo, item 2.9.1. 541 Para melhor entendimento do tema, vide item 2.9.1, no capítulo segundo. 542 MENEZES, Elisângela Dias. Curso de direito autoral. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

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194

As situações foram devidamente tratadas no segundo capítulo, não comportando nova

análise, para evitar repetição. O que se propõe aqui é demonstrar que a listagem apresentada

pelo legislador ordinário não é apta a alcançar os objetivos para ela delineados.

Além de se tratar de um rol reduzido, na forma em que delineado, não é abarcada a

pluralidade tecnológica hodierna, comprometendo o acesso à cultura e à informação.

Em verdade, é de se considerar que o Brasil caminhou na contramão de direção do

estabelecido no art. 8º do TRIPS, que assegura aos países a possibilidade de alteração de suas

legislações para privilegiar o desenvolvimento interno social, econômico, tecnológico e

cultural, além de estatuir o combate ao abuso dos direitos de propriedade intelectual.

Isso porque, tal como posta, a legislação atual não se compatibiliza com a sociedade

da informação e o mundo digital em que se vive.

Segundo informam Guilherme Carboni, Pablo Ortellado e Carolina Rossini, em

matéria Publicada na Folha de São Paulo, “em recente comparação entre 16 países, a lei

brasileira foi considerada a quarta pior no que diz respeito ao acesso ao conhecimento”.543

As hipóteses previstas na listagem em apreço não são aptas a abarcar a gama de

situações de acesso ao conhecimento, advindas do desenvolvimento tecnológico perpetrado

nos últimos tempos. Ao contrário, sob o argumento de prestigiar o criador da obra intelectual,

acaba por favorecer os detentores do poderio econômico, titulares dos direitos de exploração

das obras.

É interessante notar que adotando postura analítica, o legislador, que em regra não

consegue acompanhar o desenvolvimento social para elaboração das leis, acaba por engessar

o ordenamento, que se torna retrógrado em relação ao contexto em que está posto.

Há, em verdade, um nítido disparate entre a proteção nitidamente individualista do

autor e o direito da coletividade de acesso à cultura e à informação.

Na conjuntura hodierna, é mister uma regulamentação mais ampla da função social do

Direito de Autor, que abarque, além das limitações já positivadas, restrições outras à própria

estrutura e exercício do direito, objetivando-se a correção de distorções e abusos praticados

pelos particulares no gozo desse direito544.

543 CARBONI, Guilherme; ORTELLADO, Pablo; ROSSINI, Carolina. Direitos autorais e acesso ao conhecimento. Folha de São Paulo, 27 de abril de 2010. disponível em HTTPS://outrapolitica.wordpress.com/2012/05/01/direitos-autorais-e-acesso-ao-conhecimento/. acesso em 01 de agosto de 2012. 544 CARBONI, Guilherme. Aspectos gerais da teoria da função social do direito de autor. disponível em http://www.gcarboni.com.br/pdf/G6.pdf, acesso em 01 de agosto de 2012.

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195

Daí que no item 6.6.2, abaixo, se propõe a adoção de modelo similar ao norte-

americano, com previsão de cláusulas abertas que melhor poderão se colmatar aos casos

concretos.

6.3.2.1 A título de exemplo: uma análise da situação atual da cópia reprográfica privada

A cópia privada está prevista como hipótese de não configuração de violação ao

direito patrimonial do autor, nos moldes do art. 46, II, da vigente LDA. Para tanto, nos termos

da vigente legislação autoral, são impostos requisitos, que, se cumpridos, afastam a dita

trangressão. Necessário, nos moldes legais, que a reprodução seja de pequenos trechos e feita

para o âmbito e fins privados, sem o intuito de lucro.

Esta disposição acaba por ecoar o discurso protetivo do autor – ao qual subjaz a

proteção dos detentores do poderio econômico – segundo o qual é necessário o combate à

cópia privada, admitida integralmente no diploma legal anterior – Lei 5988/73 – desde que

não objetivado o lucro.545

A alteração legal perpetrada – cujo principal fundamento é o advento das novas

tecnologias a baixo custo, que resultou no acesso de boa parte da população a tais cópias,

repercutindo diretamente nos ganhos econômicos dos detentores do poderio econômico e

singelamente, do autor – resultou em grave retrocesso, indo de encontro às garantias

constitucionais de acesso à informação, direito à cultura, função social da propriedade etc.546

Ora, a reprografia é fato corriqueiro no contexto coletivo, sendo, inclusive, necessária,

no âmbito da sociedade da informação em que se vive.

Neste sentido, José de Oliveira Ascensão aduz:

Do ponto de vista cultural e sociológico o fenômeno é constitutivo de nossa sociedade de informação e deve ser saudado sem reservas. Os meios de informação multiplicam-se e difundem-se. O exemplar raro que exigia marcação para leitura presencial na biblioteca está agora ao alcance de todos. Seríamos loucos e retrógrados se a nossa preocupação fosse levantar barreiras a este fenômeno. [...] A reprografia e a cópia privada são assim elementos básicos da sociedade de informação para que caminhamos. [...] Portanto, do ponto de vista cultural apresenta-nos uma exigência: os regimes jurídicos que forem traçados devem respeitar e até favorecer este fenômeno, e de nenhum modo trazer-lhe barreiras547.

545 O art. 49, II da Lei 5988/73 estatuía ser permitida a “reprodução, em um só exemplar, de qualquer obra, contanto que não se destine à utilização com intuito de lucro”. 546 TEIXEIRA, Diogo Dias. A legalidade da reprodução integral de obra protegida por direito de autor para uso privado. in ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; MORAES, Rodrigo. (coord.) Propriedade intelectual em perspectiva. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. p. 39 547 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 246.

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É de se concordar com Ascensão, pois a limitação da reprografia548 a pequenos trechos

de obra, para uso exclusivo particular acaba por restringir o acesso individual à cultura e à

informação, devendo ser combatida, com a imperiosa adequação do vigente diploma autoral.

Não se está a fazer apologia à reprodução maciça, para fins lucrativos, em grandes

quantidades e não autorizada de obra abarcada pela proteção autoralista. Pelo contrário, nestes

casos, a cópia é ilegal e deve ser efetivamente combatida.

Todavia, há situações em que, ainda que a cópia seja integral da obra – em desacordo

com a exigência legal de se resumir a pequenos trechos – esta deveria ser permitida pelo

ordenamento, quando apta a proporcionar o acesso e democratização do conhecimento.

O domínio proprietário – aqui inserido o do autor – deve ser exercido de modo a se

converter não apenas em benefício do seu titular, como também em prol da coletividade,

afastando-se a concepção egoística do direito.549

Nos dizeres de Bruno Carneiro Maeda:

[...] deve-se reconhecer que direitos patrimoniais de autor não são concedidos somente para favorecer os benefícios econômicos de seus titulares, mas têm por finalidade o crescente acesso a obras pelo público em geral e o enriquecimento cultural da sociedade.550

Destarte, a cópia integral, desde que privada e resultando na promoção do acesso à

cultura e à informação – ainda que de trecho integral de obra – deveria ser permitida.

Nesta toada, Guilherme Carboni propõe que “a cópia privada, sem intuito de lucro

direto ou indireto, escapa ao direito de autor e deve ser liberada”551, o que se justifica pelo

interesse público em matéria de educação, cultura e investigação científica.

A título de exemplo, cite-se a situação de estudantes que não têm condições de arcar

com o elevado valor atribuído às obras doutrinárias, necessárias para seus estudos. Nestes

casos, a limitação à limitação do direito patrimonial do autor não se coaduna com os

interesses dos demais particulares.

548 Pede-se licença para usar este neologismo que designa os processos de reprodução gráfica. 549 MAEDA, Bruno Carneiro. A cópia privada no direito autoral e o impacto do desenvolvimento tecnológico. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2006. Orientadora: Silmara Juny de Abreu Chinellato e Almeida. p. 74 550 Ibidem. p. 80. 551 CARBONI, Guilherme. Aspectos gerais da teoria da função social do direito de autor. Disponível em http://www.gcarboni.com.br/pdf/G6.pdf, acesso em 01 de agosto de 2012.

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Em verdade, para a situação acima ilustrada, com finalidade exclusivamente

acadêmica, o acesso à totalidade do exemplar seria o ideal, posto que voltada à educação e

pesquisa.

Segundo Bruno Carneiro Maeda “é de interesse público, constituindo um dos objetivos

primordiais da sociedade, ter um povo educado e instruído, bem como estimular o

desenvolvimento do conhecimento e da cultura”.552 Para esse mister, o ingresso ao

conhecimento no contexto acadêmico é de fundamental importância.553

Outra hipótese que merece reflexão é a de obras esgotadas, não mais editadas – muitas

vezes, por falta de interesse econômico das editoras – e que não se acham em domínio

público. Ditas obras esgotadas não se encontram disponíveis no mercado, o que torna o seu

acesso dificultado.

Para estas situações, também é injustificada a limitação da cópia a pequenos trechos da

obra, haja vista que, por não estarem disponíveis para aquisição no mercado, não haveria

qualquer prejuízo financeiro ao autor – que não deixaria de ter exemplar vendido.

Seja em um como em outro caso, a necessidade de reforma legislativa é patente.

6.3.2.2 A cópia privada, a reprografia e o projeto de lei do Ministério da Cultura

O Projeto do Ministério da Cultura traz inovação legislativa quanto à cópia privada,

revertendo o retrocesso legal advindo com a LDA/98, que a limitou significativamente em

relação à LDA/73.

Tem-se que as propostas de alteração da lei autoral objetivam balancear o interesse

privado – do autor e titulares dos direitos conexos e patrimoniais – com o interesse público,

em especial o de acesso à cultura e à informação.

A cópia privada passa a ser permitida com outros parâmetros, preservando-se a

exigência da inexistência de finalidade econômica.

Em um primeiro momento, para a cópia privada como um todo, exige-se que a

reprodução seja feita em relação a obra legitimamente adquirida, como se vê dos incisos I e II

do art. 46554. Pode ser feita cópia em um único exemplar, para o uso do próprio copista – o

552 MAEDA, Bruno Carneiro. op. cit. p. 128 553 Ibidem. p. 128. 554 É teor dos incisos I e II do art. 46 do Projeto de alteração da LDA: “I – a reprodução, por qualquer meio ou processo, de qualquer obra legitimamente adquirida, desde que feita em um só exemplar e pelo próprio copista, para seu uso privado e não comercial”

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que se estende também a CD’s e DVD’s, para não estragar o original – desde que sem fins

lucrativos. Permite-se, ainda, a mudança de suporte, como ocorre com a transferência de

músicas de um CD legitimamente adquirido para um iPod, por exemplo.

No tocante à reprografia, propriamente dita, está trazida previsão no art. 88-A do

projeto555, em que são delimitados os requisitos para a sua legitimidade.

Passa-se a permitir a cópia, inclusive integral dos livros.

Isso é extremamente positivo, haja vista que, como examinado alhures, muitas vezes

as obras encontram-se esgotadas, ou mesmo não estando, têm elevado valor, inviabilizando

sua aquisição.

Porém, o projeto propõe que seja onerada a cópia de livros, ao se cobrar uma taxa dos

estabelecimentos que oferecem tal serviço. Para tanto, é imposto registro das obras

fotocopiadas, a fim de que autores e editoras possam ter controle e cobrar pelos seus direitos

autorais.

É interessante notar que se estatui a tanto a arrecadação individual, a ser feita pelo

próprio autor ou editora, assim como a arrecadação por entidade coletiva a ser criada para

esse desiderato, similar ao ECAD, que representaria os interesses do autor e dos titulares dos

direitos patrimoniais556.

Todavia, enquanto as alterações legais não são levadas a efeito, impõe-se a adoção de

interpretação extensiva da lei no caso concreto, de modo a oportunizar o acesso às obras como

um todo, aplicando-se como elemento justificador a função social do Direito Autoral.

“II – a reprodução por qualquer meio ou processo, de qualquer obra legitimamente adquirida, quando destinada a garantir a sua portabilidade ou interoperabilidade, para uso privado e não comercial” 555 É conteúdo da proposta: “Art. 88-A. A reprodução total ou parcial, de obras literárias, artísticas e científicas, realizada por meio de fotocopiadora ou processos assemelhados com finalidade comercial ou intuito de lucro, deve observar as seguintes disposições: I – A reprodução prevista no caput estará sujeita ao pagamento de uma retribuição aos titulares dos direitos autorais sobre as obras reproduzidas, salvo quando estes colocarem à disposição do público a obra, a título gratuito, na forma do parágrafo único do art. 29; II – Os estabelecimentos que ofereçam serviços de reprodução reprográfica mediante pagamento pelo serviço oferecido deverão obter autorização prévia dos autores ou titulares das obras protegidas ou da associação de gestão coletiva que os representem; § 1º Caberá aos responsáveis pelos estabelecimentos citados no inciso II do caput manter o registro das reproduções, em que conste a identificação e a quantidade de páginas reproduzidas de cada obra, com a finalidade de prestar tais informações regularmente aos autores, de forma a permitir-lhes a fiscalização e o controle do aproveitamento econômico das reproduções; § 2º A arrecadação e distribuição da remuneração a que se refere este capítulo serão feitas por meio das entidades de gestão coletiva constituídas para este fim, as quais deverão unificar a arrecadação, seja delegando a cobrança a uma delas, seja constituindo um ente arrecadador com personalidade jurídica própria, observado o disposto no Título VI desta Lei; § 3º Cabe ao editor receber dos estabelecimentos previstos no inciso II do caput os proventos pecuniários resultantes da reprografia de obras literárias, artísticas e científicas e reparti-los com os autores na forma convencionada entre eles ou suas associações, sendo que a parcela destinada aos autores não poderá ser inferior a cinquenta por cento dos valores arrecadados; § 4º Os titulares dos direitos autorais poderão praticar, pessoalmente, os atos referidos neste artigo, mediante comunicação prévia à entidade a que estiverem filiados”. 556 Aqui, assim como ocorre com o ECAD, poderão surgir questionamentos acerca da efetividade da arrecadação e distribuição do que foi recebido, mas que fogem ao objeto do presente estudo, em que apenas se pretende apresentar as alterações perpetradas pelo Projeto de Lei de Alteração da LDA.

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199

6.4 OS DIREITOS MORAIS DO AUTOR E A DEMOCRATIZAÇÃO DO SABER

Restou enfatizado no segundo capítulo que ao autor são assegurados direitos de ordem

moral, ligados à sua personalidade e que assumem características de indisponibilidade,

inalienabilidade, impenhorabilidade, dentre outras557.

São eles os direitos de paternidade, ao nome, ineditismo, integridade, modificação,

arrependimento, acesso a exemplar único e raro em poder de terceiro.

Como já ficou enfatizado no segundo capítulo, tratam-se de direitos cujo rol é

apresentado pela lei, mas em listagem exemplificativa, pela sua natureza de direitos de

personalidade558.

Não obstante a relevância de todos eles, nesta oportunidade, será dada ênfase aos

direitos de inédito e de retirada, os quais, pelo exercício, podem acabar por esvaziar a função

social do Direito Autoral de promoção de acesso à cultura e à informação.

Neste ponto, não se objetiva propor soluções, mas reflexões acerca da eventual

incompatibilidade existente entre os direitos morais de inédito e de arrependimento, de

titularidade do autor, e o direito de acesso à cultura e à informação, assegurados à coletividade

como um todo.

6.4.1 Direito de inédito

Dentre os objetivos da criação, para o autor, tem-se a propagação do conteúdo da obra.

Em verdade, não raro, quer o autor se tornar conhecido, divulgado a sua criação, que

manifesta o seu pensamento, a sua personalidade.

É a ele dado, porém, ao autor manter a obra não revelada.

Trata-se do que se costuma denominar de direito de inédito (em seu aspecto negativo)

ou de direito à divulgação da obra (terminologia que enfoca tal direito em seu âmbito

positivo).

Nos dizeres de José Antonio Veja Veja,

El derecho moral a la divulgación de la obra se manifesta em um doble aspecto: positivo y negativo. Desde el punto de vista positivo, el autor tiene la facultad de ‘decidir si la obra há de ser divulgada y em qué forma’, em tanto que deste el punto

557 Sobre o tema, vide 2.8.2 supra. 558 Este assunto já foi tratado no item 2.8.2.6, para o qual remete-se o leitor.

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200

de vista negativo viene representado por el poder que tiene el autor de ‘prohibir su comunicación al público’.”559

O direito de inédito consiste em direito moral do autor, pelo qual, a ele é dado manter

a obra não publicada, em sigilo, segundo seus critérios pessoais. Ou seja, o autor não

apresenta a obra, que fica mantida oculta, não divulgada para o público em geral.

Este direito se encontra previsto tanto na Carta Magna, no art, 5º, IX, em sua dimensão

positiva – como direito de publicação da obra – na medida em que estatui a livre expressão da

atividade intelectual e criativa, independente de censura prévia ou licença. Está tratado, ainda,

no mesmo art. 5º, em seu inciso XXVII, já citado no presente trabalho, ao estatuir que

pertence ao autor o direito exclusivo de exploração, publicação e reprodução de sua criação

intelectual.

No âmbito infraconstitucional, está regulamentado na vigente LDA, pelo art. 24, III,

que prevê ser direito moral do autor conservar a obra inédita.

A justificativa do direito moral em comento é a exposição da personalidade do criador

da obra intelectual, que passa a se submeter à opinião pública como um todo, estando sujeito

às críticas, positivas ou não.

Neste sentido, diante da perspectiva desta exposição, é conferida ao autor a

discricionariedade de levar ou não a obra ao conhecimento da coletividade.

6.4.2 Direito de retirada ou arrependimento

Também o denominado direito de retirada ou de arrependimento560 é faculdade

discricionária concedida ao autor.

É dado ao criador de obra literária, artística ou científica arrepender-se e retirar a obra

por ele criada e já publicada de circulação, nos moldes do art. 24, VI, da vigente LDA.

Levada a obra ao conhecimento do público em geral, pode ocorrer de o autor não mais

ter interesse em permitir a sua ulterior divulgação. Pelo direito de arrependimento, é dado ao

autor retirar a obra de circulação, pelos mais diversos motivos.

559 VEJA, José Antonio Veja. Derecho de autor. Madri: Editorial Tecnos, 1990. p. 119. 560 Como bem leciona Rodrigo Moraes, o arrependimento seria a fase subjetiva ou interna, em que o autor se arrepende da obra por ele criada, a repudiando. Já a retirada seria a fase externa, em que efetivamente a obra é retirada de circulação. in MORAES, Rodrigo. Os direitos morais do autor: repersonalizando o direito autoral. p. 209. Não obstante haja esta diferença, no presente trabalho, serão tratadas indiferentemente.

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201

Isto pode se dar por questões ideológicas, religiosas ou políticas, “que levam muitos

autores a repudiar sua própria obra, especialmente quando mudam de posição ou galgam o

poder, necessitando rever posições para servir a novos senhores”.561

Nestes casos, mediante justificativa, o autor pode se opor à continuidade da publicação

e divulgação de sua criação, pagando, se for o caso, a devida indenização àquele que explora

economicamente a obra.

6.4.3 Direitos de inédito e de retirada versus função social do Direito de Autor de promoção do acesso à cultura e à informação

No presente trabalho, o exame sobre a compatibilização dos direitos morais do autor e

a promoção do acesso à cultura e à informação é feito quanto aos direitos de inédito e de

retirada porquanto, por se tratarem de direitos de personalidade, cuja disponibilidade é

afastada, estes são os que poderiam resultar em óbice à funcionalização do Direito Autoral.

Isto porque, como bem destacado por Rodrigo Moraes, “sem o público, perde-se a

finalidade maior do ato de criação”562.

Ora, tanto em um (ineditismo) quanto em outro caso (arrependimento), a obra não é

disponibilizada ao público, que fica impedido de ter ingresso ao seu conteúdo.

Ao manter a obra inédita, deixa o autor de apresentar à coletividade a produção de seu

intelecto, obstando a propagação do conhecimento.

Não é demais lembrar, como já tratado no quarto capítulo563, que os homens são, ao

mesmo tempo, seres individuais e sociais, integrantes da sociedade, nela desempenhando os

seus papéis em prol da coletividade. O que ocorre também com o autor que desempenha

relevante função de propagação do conhecimento.

Da mesma forma, não se pode descurar que a obra é voltada para a coletividade como

um todo e não somente para a satisfação pessoal daquele que a concebeu, com as influências

do meio em que vive.

561 CABRAL, Plínio. A nova lei de direitos autorais: comentários. 4. ed. São Paulo: Harbra, 2003. p. 45 562 MORAES, Rodrigo. Os direitos morais do autor: repersonalizando o direito autoral. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. p. 143. 563 No item 4.5.1.

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202

Assim, ao se permitir, de forma incondicionada, o exercício do direito de inédito por

parte do autor, tem-se significativa perda para a sociedade, a quem resta inviabilizado o

ingresso à obra564.

Neste prisma, oportunos os dizeres de Rodrigo Moraes, para quem:

Uma obra inédita ‘dormindo na gaveta’, não cumpre o seu papel de arauto da beleza e do conhecimento. A criação intelectual nasce para ser revelada. Essa é a sua vocação. Toda obra só cumpre, de fato, a sua missão quando entregue à apreciação de outros olhos e ouvidos humanos.565

É de se observar que a permissão de ineditismo da obra pode resultar em abuso de

direito, na medida em que seu exercício passa a sobrepor interesses particulares a interesses

da coletividade, atentando diretamente contra o progresso cultural, científico ou técnico566.

Já quanto ao direito de retirada, o prejuízo deve ser visto em dupla perspectiva.

Primeiro, aquele que comercializa a obra acaba por ficar a mercê do autor arrependido,

que pode retirar a obra de circulação, desde que justificadamente567. O outro prisma é o de

prejuízo da coletividade, que deixa de ter a obra disponibilizada, sendo-lhe suprimido o

acesso ao seu conteúdo.

Não obstante a relevância das consequências contratuais advindas do exercício do

direito moral de arrependimento, é este segundo aspecto que interessa ao presente trabalho.

Como visto, o exercício do direito de arrependimento implica na retirada de circulação

da obra que esteja disponível para a comercialização, que passa a não mais ser reproduzida –

no caso dos livros e afins, e divulgada.

Certo é que a alteração perpetrada pela vigente LDA quanto a este direito já acaba por

limitar o seu exercício. Isto porque no diploma anterior – LDA-73 – não havia qualquer

condição para que a obra fosse retirada de circulação. Ou seja, não se exigia que o autor

declinasse os motivos pelos quais se arrependeu e não mais permite a divulgação de sua obra;

564 A título de exemplo, cite-se o exercício do direito de inédito por parte de Jorge Amado, quanto à obra Boris – O Vermelho. Inacabado, Jorge Amado não permitiu a publicação do livro, que assim como as inúmeras outras obras por ele concebidas, poderia vir a integrar o patrimônio cultural brasileiro, enriquecendo-o. 565 MORAES, Rodrigo. op. cit. p. 143. 566 Neste sentido, vejam-se os ensinamentos de José Antonio Veja Veja para quem “Estimamos que la LTI debería Haber restringido de forma expresa este derecho moral, incluso em vida de autor, cuando el mismo entra]nase um evidente abuso de derecho o ejercicio antisocial del mismo, porque los intereses generales deben de estar por encima de los particulares. Sin embargo, somos de la opinión que cuando este derecho atente gravemente contra el progreso cultural, cientifico o técnico, los jueces, basados em el artículo 7º del Código civil y com fundamento em el artículo 44 de la CE, podrán restringir este derecho. Bien es cierto que deberá ser em casos excepcionales y de suma transcendencia social”. VEJA, José Antonio Veja. op. cit. p. 121. 567 Como já visto, para que a obra seja retirada de circulação, o art. 24, VI da vigente LDA prevê que deva implicar em afronta à sua reputação e imagem.

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203

e na vigente LDA, exige-se, para a retirada, que a obra macule a reputação e imagem do seu

criador.

Todavia, tal limitação, por si só, não afasta a possibilidade de exercício egoístico de tal

direito, podendo, também quanto ao arrependimento, resultar em exercício irregular de direito

e em os possíveis prejuízos da coletividade, que fica impedida de acessar o conteúdo da obra.

Mesmo porque o autor não está obrigado a provar a mudança de convicção ideológica,

política ou religiosa.

Evidentemente, o acesso à cultura e à informação ficam sacrificados nestas hipóteses,

diante da indisponibilidade das obras ao público em geral.

6.5 A LICENÇA COMPULSÓRIA

Tomando-se por base os ensinamentos de De Plácido e Silva, licença exprime, em

sentido geral, a autorização ou permissão dada a alguém para que possa fazer ou deixar de

fazer algo568. Ou seja, dá-se a permissão para que seja ou não praticado determinado ato.

Pode tal permissão ser dada através de negócio jurídico a que se costuma denominar

de contrato de licença – muito empregado em matéria de propriedade industrial (licença para

uso de patentes de invenção, de modelos utilidade etc.).

Em matéria autoral, além dos contratos de cessão e concessão, é dado ao criador da

obra intelectual, artística, científica ou literária – ou ao titular derivado do direito patrimonial

– firmar o denominado contrato de licença.

Por este negócio jurídico, o autor permite a utilização de sua obra por terceiro, para

determinada finalidade. Neste caso, exercendo o seu direito de exclusivo, o autor ou o titular

permite que terceiro pratique determinado ato de utilização da sua obra.

Modalidade muito comum deste tipo de contrato é a denominada licença de uso, muito

corriqueira no merchandising – situação em que uma obra autoral é incluída em outra do

mesmo ou de gênero diverso.

Há casos, porém, em que a licença é realizada independentemente da autorização do

interessado. São os casos das licenças legais e das licenças compulsórias.

568 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. V. III. São Paulo: Forense, 1973. p. 943.

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204

Quanto às primeiras, as legais, tem-se a intervenção do legislador no exercício do

direito patrimonial do autor e a utilização da obra independe da autorização prévia, em regra

exigida para a sua exploração.

Em verdade, nestes casos, a lei estabelece uma restrição ao exercício do direito. Daí

que para o presente trabalho, prefere-se, seguindo o escólio de José de Oliveira Ascensão,

denominá-las de limitações aos direitos patrimoniais do autor.

A ênfase que se pretende dar nesta oportunidade, diz respeito às segundas – as

nomeadas licenças compulsórias – objeto de estudo deste tópico, previstas na legislação

internacional, mas, infelizmente, não inseridas no ordenamento jurídico pátrio. Estas, assim

como as legais, independem da anuência do criador da obra intelectual. Por outro lado,

requerem a intervenção estatal, seja por órgão administrativo, seja pelo Judiciário.

Sobre elas, serão destinados os próximos tópicos. Antes, porém, apreciar-se-á a

inadequação da desapropriação tradicional, em matéria autoralista.

6.5.1 O descabimento da desapropriação em matéria autoral

Como visto no segundo capítulo, houve uma evolução acerca da natureza jurídica do

Direito Autoral, passando-se do enfoque meramente patrimonialista, para o reconhecimento

de que, além desta perspectiva, este ramo jurídico assume também feição de direito de

personalidade, no que tange aos direitos morais conferidos ao criador da obra literária,

artística ou científica. Evolução que repercute diretamente no instituto de desapropriação em

matéria autoral.

É a desapropriação o procedimento administrativo pelo qual o Poder Público

compulsoriamente retira do particular um bem determinado, em regra, adquirindo-lhe a

propriedade, mediante o pagamento de indenização569.

Seu fundamento basilar é a preponderância do interesse coletivo em detrimento do

singular, correspondendo à ideia de domínio eminente de que dispõe o Estado sobre a

totalidade dos bens existentes em seu território.570

Nos dizeres de Maria Sylvia Zanella di Pietro:

569 Não comporta aqui, maiores digressões acerca do tema. Para maior aprofundamento, remete-se o leitor à leitura de MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2005; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003. 570 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 797

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205

A desapropriação é o procedimento administrativo pelo qual o Poder Público ou seus delegados, mediante prévia declaração de necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, impõe ao proprietário a perda de um bem, substituindo-o em seu patrimônio por justa indenização571.

Inicialmente prevista como possível – diante da concepção de que o Direito Autoral

seria uma modalidade de direito de propriedade – a desapropriação das obras intelectuais, nos

moldes do art. 660, do revogado Código Civil de 1916, poderia ser realizada pela União ou

pelos Estados, sob a justificativa da utilidade pública.

Nestes casos, pagava-se a devida indenização, para que a obra, com negativa de

reedição por parte do autor, pudesse ser novamente publicada. Esta possibilidade foi também

repetida na legislação esparsa pertinente à desapropriação em geral. O art. 5º, l, do Decreto-

Lei 3365/1941572, estatuía a possibilidade de desapropriação de arquivos e bens de valor

histórico ou cultural, desde que voltada à utilidade pública.

Todavia, com a evolução legislativa573 e a definitiva mudança de perspectiva quanto à

concomitante existência dos direitos morais do autor, consolidou-se o entendimento de não

ser possível a desapropriação das obras.

Um primeiro argumento apresentado pela doutrina574 é no sentido de que ao autor é

concedido pela vigente Carta Magna – especificamente no art. 5º, XXVII – o direito de

explorar exclusivamente sua criação.

Chega-se a afirmar que seria inadmissível a ingerência estatal em temas de direitos

fundamentais da pessoa humana, com o que não se pode concordar, haja vista que, como bem

leciona Robert Alexy, inexistem direitos fundamentais absolutos575.

O segundo ponto destacado – e este merece acolhida – pertine ao reconhecimento dos

direitos morais ao autor – como visto, direitos de personalidade – e de suas características, em

especial, a inalienabilidade e irrenunciabilidade.

Tratando-se de direitos personalíssimos a serem exercidos pelo autor, não passíveis de

transferência a terceiros – ainda que ao Estado, sob a justificativa de interesse público – a

desapropriação das obras – abrangendo a totalidade dos direitos subjetivos de titularidade do

autor – não é, de fato, possível.

571 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 153. 572 É teor da alínea l: “ l) a preservação e a conservação adequada de arquivos, documentos e outros bens moveis de valor histórico ou artístico;”. 573 A vigente LDA veda expressamente a desapropriação em matéria autoral. 574 Sobre o tema, leia-se Carlos Alberto Bittar, Direito de Autor. 575 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. passim.

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206

Examinando o que pode ser objeto de desapropriação, Celso Antônio Bandeira de

Mello aponta os bens corpóreos, móveis ou imóveis, e os incorpóreos, aqui inseridos os

direitos em geral. Todavia, enfatiza o administrativista que não são desapropriáveis os direitos

personalíssimos, que se definam como verdadeiras projeções da personalidade do

indivíduo.576

Como dito alhures, maiores problemas não haveria se o instituto expropriatório

alcançasse apenas os direitos patrimoniais – estes disponíveis – do autor. Todavia, como a

desapropriação abarcaria os direitos subjetivos como um todo – aqui atingindo os direitos

morais – não é esta possível em matéria autoral, posto que não se pode “estatizar” o indivíduo

a este ponto.

Sobre o tema, Carlos Alberto Bittar se manifesta no sentido de que “não se pode, com

efeito, entender como se conciliaria o exercício do poder expropriatório com os dos direitos

personalíssimos do autor, à luz da evolução, inclusive legislativa, havida quanto à concepção

e à natureza dos direitos autorais”.577

Assim, com base no segundo argumento, o de existência dos direitos morais do autor,

a desapropriação é instituto que não pode atingir a obra em sua plenitude, ficando esvaziado o

instituto neste caso.

Porém, as necessidades da coletividade permanecem existentes, a exemplo da

disseminação da cultura e da informação.

Diante disso, outras possibilidades se abrem, como é o caso da licença compulsória, a

incidir apenas na seara patrimonial, que se passa a examinar, mas que não está regulamentada

em matéria autoral, na legislação brasileira.

6.5.2 Licença compulsória

Prevista expressamente no ordenamento jurídico pátrio para salvaguarda dos interesses

coletivos em matéria de Propriedade Industrial, v.g. licença de patentes de medicamentos,

falhou o legislador interno, ao deixar de utilizar a autorização estipulada em tratados

internacionais – Convenção de Berna e Convenção Universal – não tratando do tema para o

Direito Autoral.

576 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. op. cit. p. 802. 577 BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. 4. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 110.

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207

Voltada ao interesse público, em especial, quanto aos aspectos econômicos e sociais, a

licença compulsória em matéria autoral é espécie de exceção ao direito patrimonial do autor,

como se verá a seguir.

Já ficou enfatizado em diversas passagens do presente trabalho que os direitos

subjetivos patrimoniais do autor não são absolutos, motivo pelo qual a eles são impostos

limites internos e externos.

Mecanismo de restrição ao direito patrimonial do autor, voltado a objetivos políticos e

sociais, a licença compulsória é concedida pelo Estado a terceira pessoa, que irá explorar a

criação intelectual, sem a prévia autorização do criador da obra, mediante o pagamento de

valor reputado razoável.

Segundo lição de Eduardo Lycurgo Leite, “Através da licença compulsória, força-se o

titular de direitos de propriedade intelectual a permitir que terceiros utilizem o objeto dessa

propriedade por um valor ou taxa pré-determinado pelo Estado”578.

Ainda nos dizeres de Eduardo Lycurgo Leite

Através das licenças compulsórias, o poder de negociação conferido pelo prospecto obrigacional ou outra modalidade de mecanismo coercitivo é substituído por uma retribuição pecuniária destinada a permitir a aproximação do valor razoável e da boa-fé que poderiam ser pleiteados por uma licença voluntária ao valor razoável que poderia o titular dos direitos de autor, de boa-fé, aceitar pela referida licença579.

Ou seja, pelas licenças compulsórias, há a intervenção no direito de exclusivo do

autor, mediante atuação do Estado, que permite a exploração econômica da obra, visando-se à

disseminação do conhecimento, a supressão da falta da obra no mercado (em caso de negativa

de novas publicações) e a redução dos custos da transação.

Neste diapasão, tem-se a promoção de políticas sociais, atendendo-se aos anseios da

coletividade como um todo, de modo a promover e difundir o acesso às criações intelectuais

objeto do Direito Autoral.

Obviamente, que a licença compulsória, diante dos fundamentos acima mencionados,

é instrumento promotor dos direitos de acesso à cultura e à informação, uma vez que

possibilita a difusão do conhecimento, satisfazendo o interesse da coletividade.

578 LEITE, Eduardo Lycurgo. A licença compulsória sobre os direitos de tradução de obras literárias. in ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; MORAES, Rodrigo. Propriedade intelectual em perspectiva. p. 62 579 Ibidem. p. 62.

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208

6.5.3 Licença compulsória de tradução

Vive-se em um contexto mundial em que se verifica a bipolaridade entre países

desenvolvidos e países em desenvolvimento, impondo-se uma globalização mais ética e

solidária – o que significa a necessidade de colaboração entre as nações.

Mediante uma cooperação internacional, é possível avançar-se no campo cultural, com

a promoção do acesso ao conhecimento.

Como bem enfatiza Eduardo Lycurgo Leite,

Os países em desenvolvimento, em sua maioria, almejam alcançar o desenvolvimento econômico. Porém, uma das formas possíveis para se alcançar o referido objetivo é através da promoção cultural, da disseminação do conhecimento e de informações (educação), o que implica na premente necessidade de acesso a uma ampla variedade de informações e materiais educacionais, muitos dos quais, além de estarem protegidos por direitos de autor, possuem, como país de origem, um país diverso daquele que necessita do acesso a tais obras. Este acesso, em razão das condições econômicas dos países em desenvolvimento, nem sempre revela-se possível, uma vez que os custos transacionais para a aquisição de exemplares das obras necessárias, ou uma licença voluntária para a sua tradução, superam a capacidade econômica do próprio país.580

Maristela Basso narra que nas décadas de 70 e 80 houve intenso debate para

adequação dos tratados internacionais em matéria de Propriedade Intelectual. De um lado, os

países desenvolvidos o tratavam como um Direito Privado, buscando mecanismos para

otimizarem e majorarem a proteção aos criadores. De outro, os países em desenvolvimento

defendiam que a Propriedade Intelectual “é um bem público que deve ser usado para

promover o desenvolvimento econômico”.581

Diante de tal fato, e levando-se em conta a pressão dos países em desenvolvimento, a

Convenção de Berna e a Convenção Universal foram alteradas, após rodadas de negociações,

passando-se a prever a licença compulsória do direito de tradução para fins educacionais582.

Modalidade de licença compulsória, a licença compulsória de tradução está prevista no

Anexo II da Convenção de Berna, tratando-se de benefício concedido aos países em

desenvolvimento, para fins específicos583.

580 Ibidem. p. 69. 581 BASSO, Maristela. O direito internacional da propriedade intelectual. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2000. p. 148. 582 Delia Lipszyc narra que o debate sobre as licenças obrigatórias concedidas a favor dos países em desenvolvimento constituiu-se em um dos mais “espinhosos e extensos” já existentes em tema de Direito Autoral. LIPSZYC, Delia. Derecho de autor y derechos conexos. Buenos Aires: Zavalia, 1993. p. 782. 583A finalidade é limitada ao uso educacional, acadêmico ou para fins de pesquisa.

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209

Trata-se de uma espécie de medida que visa à remoção de barreiras em prol do sistema

educacional, capaz de viabilizar não apenas o desenvolvimento cultural, mas o crescimento

econômico e a redução da pobreza.

É, em verdade, uma maneira através da qual a sociedade pode satisfazer determinadas

necessidades, em caso de demanda por uma obra publicada em idioma distinto do empregado

no país em que ocorrerá a licença – e no qual será traduzida a obra584. Mister, porém, para que

seja concedida a licença compulsória de tradução, que essa demanda social não seja satisfeita

pela publicação da obra traduzida depois de decorrido do prazo de 3 (três) anos, contado a

partir de sua publicação na língua primígena.

É interessante notar, ainda, o caráter restritivo da medida, uma vez que somente pode

ser aplicada às obras em versão impressa ou análoga, ou seja, que já esteja publicada. Esta é,

pois, outra condição para a sua efetivação.

Não bastassem, há outros requisitos que devem ser observados quando da tradução.

São eles: a fidelidade ao conteúdo da obra e a menção expressa ao nome do autor e título em

todos os exemplares585.

Isso se justifica porque a licença compulsória de tradução abarca apenas os direitos de

exploração econômica da obra, para fins educacionais, não abrangendo os direitos morais, no

caso em apreço o direito de paternidade, que em qualquer situação deve ser respeitado

6.5.4 Ausência de regulamentação da matéria no Brasil: deficiência legislativa

Prevista nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, poderia ser

introduzida a licença compulsória no nosso ordenamento, haja vista que presentes os

requisitos para tanto. Todavia, não há na atual LDA qualquer previsão acerca do tema, o que é

de se considerar uma grave fenda na legislação autoral.

Como sabido, não é possível a aplicação direta no ordenamento interno dos tratados e

convenções internacionais. Faz-se necessário, a fim de que seja inserido no sistema jurídico

interno e passe a ter eficácia jurídica no Brasil, procedimento legislativo próprio.

584 LEITE, Eduardo Lycurgo. op. cit. p. 68. É de se observar que tal prazo de sete anos pode ser reduzido para 1 (um) ano da primeira publicação, nos casos dos países em desenvolvimento, desde que a língua a ser traduzida não seja inglês, francês ou espanhol. 585 É o que leciona Delia Lipszyc: “La reproducción efectuada bajo linencia deberá respetar fielmente la obra y llevar impresos el nombre del autor y el título em todos los ejemplares”. in LIPSZYC, Delia. Derecho de autor y derechos conexos. Buenos Aires: Zavalia, 1993. p. 785.

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210

Assim, para possam produzir efeitos as normas constantes da Convenção de Berna e

da Convenção Universal, faz-se mister que a norma seja transposta para o âmbito do

ordenamento doméstico brasileiro.

Destarte, diante da ausência de normatização, resta impossibilitado licenciar

compulsoriamente obra estrangeira para fins de tradução. Isto é confirmado, ainda, com o fato

de que a listagem apresentada como limitação ao direito patrimonial de autor, constante do

art. 46 da LDA é reputada numerus clausus586.

A sociedade brasileira deixou de ser beneficiada (e muito!) diante da inércia do

legislador que não trouxe para o âmbito do ordenamento jurídico interno a colocação à

disposição do público em geral da tradução das obras estrangeiras pela modalidade da licença

compulsória de tradução.

Como destaca José de Oliveira Ascensão, “mais uma vez, a lei atual não encontrou o

ponto de equilíbrio entre os vários interesses que devem ser compostos pelo direito de

autor”587.

Porém, tal lacuna pode ser suprida, com a modificação da vigente legislação autoral

brasileira, e a previsão de possibilidade de obtenção da citada licença588, desde que

respeitados os direitos morais do autor, especificamente, o de paternidade, o de inédito e o de

arrependimento – cuja compatibilidade com a função social será apreciada a seguir.

Desta forma, estar-se-á possibilitando a promoção o desenvolvimento sociocultural, e

a disseminação da cultura e informação.

6.5.5 O projeto do Ministério da Cultura

O projeto de Lei de iniciativa do MinC, que estabelece mudanças na atual LDA,

propõe no art. 52-B e seguintes589 a possibilidade de concessão de licença não voluntária e

586 Novamente é de se registrar a crítica quanto à taxatividade da listagem, que não consegue abarcar a totalidade de situações de promoção de acesso à cultura e à informação. Fato confirmado pela situação ora examinada, em que se inviabilizou licenciar compulsoriamente para fins de tradução, obras imprescindíveis para o desenvolvimento social. 587 ASCENSÃO, José de Oliveira. op. cit. p. 167. 588 Sobre o tema, Eduardo Lycurgo Leite se manifesta que ”A legislação autoral brasileira reúne todas as condições para estabelecer tal modalidade de licenciamento como válvula de escape de futuras tensões que venham a ser causadas pelo conflito entre o interesse público sobre uma obra escrita e publicada em língua estrangeira e a sua não tradução e publicação no idioma pátrio”. op. cit. p. 76. 589 É teor dos citados artigos: “Art. 52-B. O Presidente da República poderá, mediante requerimento de interessado legitimado nos termos do § 3º, conceder licença não voluntária e não exclusiva para tradução, reprodução, distribuição, edição e exposição de obras literárias, artísticas ou científicas, desde que a licença atenda necessariamente aos interesses da ciência, da cultura, da educação ou do direito fundamental de acesso à informação, nos seguintes casos: I – Quando, já dada a obra ao conhecimento do público há mais de cinco anos, não estiver mais disponível para comercialização em quantidade suficiente para satisfazer as necessidades do público;

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211

não exclusiva para tradução, reprodução, distribuição, edição e exposição de obras literárias,

artísticas ou científicas.

Para tanto, impõe-se como requisito para a licença a necessidade de atendimento dos

interesses científicos, culturais, educacionais ou do acesso à informação.

É interessante notar que a proposta alarga a finalidade da licença, detinando-a não

apenas aos fins educacionais e didáticos, mas voltada ao desenvolvimento científico, cultural

e de acesso à informação. Assume, pois, caráter abrangente, adstrito à funcionalização do

instituto.

Destarte, nos moldes dos artigos ora apreciados, o Direito Autoral estaria

funcionalizado ao acesso à cultura e à informação, tese defendida no presente trabalho, sendo

louvável a iniciativa. II – Quando os titulares, ou algum deles, de forma não razoável, recusarem ou criarem obstáculos à exploração da obra, ou ainda exercerem de forma abusiva os direitos sobre ela; III – Quando não for possível obter a autorização para a exploração de obra que presumivelmente não tenha ingressado em domínio público, pela impossibilidade de se identificar ou localizar o seu autor ou titular; ou IV – Quando o autor ou titular do direito de reprodução, de forma não razoável, recusar ou criar obstáculos ao licenciamento previsto no art. 88-A. § 1º No caso das artes visuais, aplicam-se unicamente as hipóteses previstas nos incisos II e III. § 2º Todas as hipóteses de licenças não voluntárias previstas neste artigo estarão sujeitas ao pagamento de remuneração ao autor ou titular da obra, arbitrada pelo Poder Público em procedimento regular que atenda os imperativos do devido processo legal, na forma do regulamento, e segundo termos e condições que assegurem adequadamente os interesses morais e patrimoniais que esta Lei tutela, ponderando-se o interesse público em questão. § 3º A licença de que trata este artigo só poderá ser requerida por pessoa com legítimo interesse e que tenha capacidade técnica e econômica para realizar a exploração eficiente da obra, que deverá destinar-se ao mercado interno. § 4º Sempre que o titular dos direitos possa ser determinado, o requerente deverá comprovar que solicitou previamente ao titular a licença voluntária para exploração da obra, mas que esta lhe foi recusada ou lhe foram criados obstáculos para sua obtenção, de forma não razoável, especialmente quando o preço da retribuição não tenha observado os usos e costumes do mercado. § 5º Salvo por razões legítimas, assim reconhecidas por ato do Ministério da Cultura, o licenciado deverá obedecer ao prazo para início da exploração da obra, a ser definido na concessão da licença, sob pena de caducidade da licença obtida. § 6º O licenciado ficará investido de todos os poderes para agir em defesa da obra. § 7º Fica vedada a concessão da licença nos casos em que houver conflito com o exercício dos direitos morais do autor. § 8º As disposições deste capítulo não se aplicam a programas de computador. Art. 52-C. O Poder Executivo, observado o disposto nesta Lei, disporá, em regulamento, sobre o procedimento e as condições para apreciação e concessão da licença não voluntária de que trata o art. 52-B, com obediência aos preceitos do devido processo legal. § 1º O requerimento de licença não voluntária será dirigido ao Ministério da Cultura, acompanhado da documentação necessária, nos termos do regulamento. § 2º Caberá ao Ministério da Cultura, na forma do regulamento, oportunizar ao autor ou titular da obra o direito à ampla defesa e ao contraditório. § 3º Se não houver necessidade de diligências complementares ou após a realização destas, o Ministério da Cultura elaborará parecer técnico, não vinculativo, e o encaminhará, juntamente com o processo administrativo referente ao requerimento, para apreciação do Presidente da República. § 4º Da decisão que conceder a licença não voluntária caberá pedido de reconsideração, recebido apenas no efeito devolutivo, para que, no prazo de até quinze dias contado do recebimento desse pedido, seja proferida decisão definitiva. § 5º O ato de concessão da licença não voluntária deverá estabelecer, no mínimo, as seguintes condições, além de outras previstas em regulamento: I – o prazo de vigência da licença; II – a possibilidade de prorrogação; e III – a remuneração ao autor ou titular da obra pelo licenciado. § 6º O regulamento deverá estabelecer a forma de recolhimento e destinação dos recursos pagos pelo licenciado a título de remuneração, na hipótese de licença não voluntária decorrente do inciso III do art. 52-B. § 7º É vedada a cessão, a transferência ou o substabelecimento da licença não voluntária. § 8º As obrigações remuneratórias do licenciado para com o autor ou titular cessam quando a obra cair em domínio público. III – a remuneração ao autor ou titular da obra pelo licenciado, compatível com o valor de mercado. Art. 52-D. Durante o período de sua vigência, a licença não voluntária poderá ser revogada quando: I – o licenciado deixar de cumprir com as condições que o qualificaram; ou II – houver descontinuidade do pagamento da remuneração ao autor ou titular da obra. Parágrafo único. A revogação da licença poderá ser de ofício ou mediante requerimento do autor ou titular da obra ou do Ministério Público, na forma definida em regulamento”.

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212

Apreciando-se os incisos, verifica-se que o prazo de 5 anos estabelecido no projeto de

lei é superior ao mínimo estatuído nos tratados internacionais (de 3 anos), podendo tal medida

ser considerada como uma concessão legislativa em favor do autor da obra intelectual.

Vale observar que nos moldes do §2º do artigo em apreço, assim como nos termos do

art. 52-C, §2º, está previsto o devido processo legal e os direitos à ampla defesa e ao

contraditório em favor do criador da obra intelectual, que poderá se opor, por exemplo, caso o

montante indenizatório arbitrado não seja condizente com os interesses morais e patrimoniais.

E mais, tal licença não é concedida por prazo indefinido. Nos termos da proposta, a

redação do art. 52-C, §5º estatui que no ato de concessão da licença, deve ser estatuído o

prazo de sua vigência – passível de prorrogação.

Louvável, ainda, a proposta na medida em que impede a transferência da licença a

terceiros, impedindo a especulação com direitos patrimoniais alheios – pertencentes ao autor

da obra ou ao titular derivado.

Acaso aprovado na forma proposto, restará caracterizado relevante avanço legislativo,

em que se oportunizará o acesso a obras pela população em geral, com a propagação da

cultura e informação.

6.6 O MODELO DO FAIR USE NORTE AMERICANO E DE ADOÇÃO DE CLÁUSULAS ABERTAS PARA REGULAMENTAR O USO PRIVADO

No capítulo segundo, foi, em linhas gerais, apresentado o modelo norte americano,

denominado fair use, pelo qual, através do princípio geral do uso justo são estabelecidas as

limitações aos direitos do autor.

Diferentemente do que ocorre no Brasil, nos Estados Unidos, não há previsão em

listagem taxativa das limitações aos direitos do autor. Pelo contrário, adota-se o modelo do

fair use¸ em que, as diversas utilizações das obras são apreciadas pelo intérprete, verificando-

se se houve ou não uso, com a finalidade de propagação do conhecimento.

Neste sentido, no direito norte-americano, adota-se norma aberta em matéria autoral,

sendo moldado pelo intérprete no caso concreto.

A citada doutrina é considerada neste trabalho como parâmetro para a adoção de

cláusulas abertas em matéria autoral, no Brasil, substituindo-se a listagem taxativa de

limitações, inadequada à efetiva funcionalização do Direito Autoral.

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213

6.6.1 O modelo do fair use norte americano

A doutrina do fair use norte americano tem por desiderato proporcionar o equilíbrio

entre dois interesses legítimos: os do autor da obra intelectual e os da coletividade. De um

lado, tem-se a proteção autoral. De outro, oportuniza-se o acesso à criação intelectual.

Segundo o modelo do fair use, terceiro tem acesso direto à obra protegida, podendo

usá-la, sem que haja a necessidade de autorização prévia do autor para tanto, desde que a

referida utilização se caracterize como justa.

A diferença primordial entre a doutrina do fair use e a utilizada no Brasil é que para a

primeira não há uma previsão exaustiva das situações de limitação dos direitos patrimoniais

do autor, ao contrário do que ocorre no ordenamento pátrio, em que as situações de exceção

são previstas em listagem taxativa.

Trata-se de um princípio geral que permite maior flexibilidade ao intérprete na

concretização do interesse público na utilização das obras. Destarte, não se aplica um rol

fechado – em listagem reputada taxativa – mas o denominado uso justo, a ser averiguado em

cada situação concreta submetida à apreciação do Poder Judiciário590.

Nos dizeres de Lee Wilson:

Fair use is a kind of public policy exception to the usual standart for determining copyright infringement; that is, there is an infringing use of a copyrighted work but because of countervailing public interest, that use is permitted and is not called infringement. Any use that is deemed by the law to be ‘fair’ typically creates some social, cultural, or political benefit that outweighs any resulting harm to the copyright owner591.

Interessante notar que tal princípio não esvazia os direitos subjetivos do autor. Pelo

contrário, eles persistem previstos no ordenamento, sendo necessária, em regra, para a

exploração / utilização, a prévia autorização do criador da obra. Todavia, por tal doutrina,

determinados usos passam a ser exceção à necessidade de autorização, não se configurando

utilização ilegal da obra.

590 Kenneth D. Crews, registra que o fair use surgiu inicialmente como uma doutrina judicial, aplicada a casos concretos submetidos à apreciação do Judiciário. Apenas posteriormente, foram editadas normas regulamentando a questão. São dizeres do citado autor: “Fair use originated exclusively as a judicial doctrine, uniquely applicable to the facts of each case and without strict precision” CREWS, Kenneth D. Copyright, Fair use, and the Challenge for Universities: Promoting the Progress of Higher Education. Chicago: The University of Chicago Press, 1993. p. 30. 591 WILSON, Lee. Fair use, free use and use by permission. New York: Allworth Press, 2005. p. 67. Tradução livre: “O uso justo é uma espécie de política pública que excepciona o standart usual, sobre o que seja violação de direitos autorais; ou seja, há uma utilização inicialmente ilícita de um trabalho com direitos autorais, mas por causa do interesse público, tal uso é permitido e não é caracterizado como infração. Qualquer uso que é considerado pela lei para ser "justo" normalmente cria algum benefício social, cultural ou político que supera qualquer dano resultante para o proprietário dos direitos autorais”.

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214

De se destacar, ainda, que o magistrado, no modelo do fair use norte americano, não

tem discricionariedade ilimitada para decidir o que é ou não o uso justo, apto a excepcionar os

direitos subjetivos.

O interesse público é o norte para as decisões, estando ele vinculado a determinadas

circunstâncias, tais como o propósito do uso, a natureza e tamanho utilizado da obra, que o

uso seja privado ou acadêmico (neste caso, voltado para o incremento científico e/ou

educacional).

O fair use resulta em avanços para a educação e pesquisa, tendo ampla aplicação, por

exemplo, para reproduções educacionais, sendo possível, até mesmo, que se façam várias

cópias para o ensino, desde que sem fins lucrativos592.

É também permitido o uso justo para fins comerciais, como nos casos de paródias,

críticas, ilustrações sobre as observações de determinado autor, dentre outros593.

Tanto para fins educacionais como para comerciais são estabelecidos parâmetros para

aferição do cumprimento do uso justo: a) o propósito e caráter do uso (em que se inclui,

também, o uso comercial); b) a natureza da obra protegida; c) a quantidade utilizada da obra,

comparada com o todo da criação; d) o efeito do uso no mercado em potencial; e) o valor da

obra protegida.594

Em verdade, o uso justo ganhou reconhecimento legal, sendo previstos na legislação

norte-americana os parâmetros a serem considerados pelo intérprete.

Nestes termos, empregando o princípio do uso justo, pautado por essa orientação, o

intérprete verifica, no caso concreto, se restou configurada hipótese de exceção ao direito do

592 Sobre o tema, Kenneth D. Crews explica que são traçadas diretrizes para as cópias a serem feitas com a finalidade de ensino. Segundo ele, “In summary, the guidelines allow single copies of articles and parts of larger works for research or classroom preparation. They also allow multiple copies for classroom distribuition, if the copying meets meticulous standarts regarding "brevity", "spontaneity" and "cumulative effect". Tradução livre: “Em síntese, as diretrizes permitem cópias únicas de artigos e partes de obras maiores, para pesquisa ou preparação de sala de aula. Também são permitidas múltiplas cópias para distribuição em sala de aula, desde que sejam respeitados os requisitos meticulosos sobre "concisão", "espontaneidade" e "efeito cumulativo". CREWS, Kenneth D., Copyright, Fair use, and the Challenge for Universities: Promoting the progress of Higher education. Chicago: The University of Chicago Press, 1993. p. 35 593 No livro, Bound by law? Tales from the public domain, é explicado, através de uma história em quadrinhos, como se dá o uso justo em obras audiovisuais, em que se utilizam obras alheias, sendo citados inúmeros conflitos judiciais e soluções levadas a efeito nos EUA. A título de exemplo, cite-se a seguinte passagem: “The rap group 2 Live Crew made a song called ‘Pretty Woman’ that borrowed the bass riff, much of the tune and some lyrics from Roy Orbison’s ‘Oh, Pretty Woman”. 2 Live Crew seemed to have 2 strikes agaist them. They used a lot of the song, and their use was ‘commercial’. The Supreme Court said thet even so, this could be fair use. They saw the song was a parody. It ‘juxtaposes the romantic musings of a man whose fantasy comes true, with degrading taunts, a bawdy demand for sex, and a sigh of relief from paternal responsibility’. Because the song was a parody, 2 Live Crew was also aloowed to copy more of ti – as effective parodies nees to ‘conjure up the original’. AOKI, Keith; BOYLE, James; JANKINS, Jennifer. Bound by law? Tales from the public domain. Creative Commons. 2006. p. 38. 594 WILSON, Lee. Fair use, free use and use by permission: How to handle copyrights in all media. New York: Allworth Press, 2005. Passim.

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215

autor, afastando-se eventual indenização e/ou outras consequências, em caso de a utilização

da obra ser justificada.

6.6.2 A adoção de cláusulas abertas em matéria autoral

Como visto acima, a vigente LDA estabelece limites aos direitos patrimoniais do

autor, seja no tocante ao tempo de duração da proteção, seja quanto a situações em que o uso

pelo particular é permitido sem autorização do criador, sem que se consubstancie afronta.

Ficou evidenciada, ainda, a insuficiência da listagem taxativa constante da LDA, sob o

fundamento que as situações ali elencadas não são aptas a abarcar o calidoscópio de usos

possíveis na atualidade.

Assim, tomando-se por base o regime norte-americano do fair use, pelo qual, o uso da

obra independente de autorização do autor é permitido visando à propagação do

conhecimento, preenchidos os requisitos – uso particular, sem intuito de lucro e para acesso

ao conhecimento, já mencionados – propõe-se, nesta oportunidade, a adoção de cláusulas

abertas orientadoras do aplicador da legislação autoralista.

Isso porque o modelo do fair use é muito interessante e de valia significativa, haja

vista que harmoniza a proteção autoral com a demanda da sociedade de acesso à informação.

Daí que se propõe que tal teoria poderia vir a somar ao sistema autoral pátrio595.

Não se quer aqui substituir o sistema autoral brasileiro vigente, mas, apenas,

complementá-lo, a ele conferindo maior maleabilidade às situações concretas.

Como sabido, a função social desempenha, dentre outros, o papel de cláusula aberta,

tratando-se de proposição normativa de conteúdo abstrato e genérico, apta a disciplinar um

amplo número de casos. Ela confere ao intérprete a força criadora do direito, diante de sua

inicial indeterminação596.

Destarte, o legislador, através das cláusulas gerais, “deixa a decisão jurídica

dependente, não de uma descrição taxativa da situação a que corresponde a estatuição

jurídica, mas de uma valoração por parte do intérprete”597.

Assim, não há uma descrição taxativa resultado de decisão legislativa prévia, mas uma

posterior valoração a ser realizada pelo aplicador do direito.

595 SANTOS, Manuella. op. cit. p. 137. 596 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar. p. 72. 597 ASCENSÃO, José de Oliveira. Cláusulas gerais e segurança jurídica no Código Civil de 2002. Revista Trimestral de Direito Privado. v. 28. out/dez de 2006.

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216

Nesta senda, dever-se-ia tratar de forma expressa que o Direito Autoral deve atender à

função social, seja na seara constitucional598, seja no âmbito infraconstitucional, afastando-se

qualquer possível argumento contrário a esta vinculação.

Ou mesmo adotarem-se normas abertas que propiciem ao intérprete, no caso concreto,

proporcionar que o Direito Autoral alcance tal desiderato. É o que se propõe no projeto de

alteração da atual LDA, como se verá a seguir.

6.6.3 O projeto de lei de alteração da LDA – e a previsão da função social dos direitos do autor

Como visto alhures, o projeto de reforma da lei do Direito Autoral traz inúmeras

modificações na vigente LDA.

Dentre elas, merece ser apreciada, nesta oportunidade, a sugestão de modificação que

traz de forma expressa a regulamentação da função social, objetivando-se a adoção de normas

abertas, a serem aplicadas pelo intérprete, no caso concreto.

É interessante notar que na proposta de reforma, persiste a previsão das limitações aos

direitos autorais em listagem taxativa, que restou ampliada, nos moldes do caput do artigo 46,

cuja redação é a seguinte599: “Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais a utilização de

obras protegidas, dispensando-se, inclusive, a prévia e expressa autorização do titular e a

necessidade de remuneração por parte de quem as utiliza, nos seguintes casos”.

O caput do artigo 46 permanece estabelecendo as limitações aos direitos patrimoniais

do autor em listagem taxativa, assim como previsto no art. 46 da atual LDA.

A redação foi alterada, porém, especificando-se a dispensa de prévia autorização e

remuneração do criador da obra intelectual, o que não está estabelecido de forma expressa na

vigente LDA600, que se propõe alterar.

É interessante, ainda, notar que houve uma ampliação do rol. Na vigente LDA estão

previstos oito incisos, no projeto de reforma da lei, são, ao todo, dezoito.601

598 Isto porque, em verdade, na Constituição Federal de 1988 já há expressa previsão de necessidade de cumprimento da função social da propriedade, mas nada dispõe sobre a funcionalização do Direito Autoral. Não obstante, pela leitura sistemática do conteúdo constitucional, e diante da funcionalização dos institutos de Direito Privado, tem-se direta repercussão na seara patrimonial do Direito Autoral. 599 Os incisos do citado projeto serão apresentados em nota de rodapé, a fim de enxugar as citações no corpo do trabalho. 600 É redação do caput do art. 46, da LDA ainda em vigor: “Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais” 601 I – a reprodução, por qualquer meio ou processo, de qualquer obra legitimamente adquirida, desde que feita em um só exemplar e pelo próprio copista, para seu uso privado e não comercial; II – a reprodução, por qualquer meio ou processo, de qualquer obra legitimamente adquirida, quando destinada a garantir a sua portabilidade ou interoperabilidade, para uso privado e não comercial;

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217

Também as paródias e paráfrases permanecem livres, desde que não sejam verdadeiras

reproduções da obra originária e não tragam descrédito para esta, nos moldes do art. 47 do

Projeto de reforma.

Por sua vez, adotando-se um modelo aberto, a exemplo da teoria do fair use, e

buscando-se harmonizar os interesses dos autores, titulares dos direitos autorais e da

sociedade como um todo, consta da proposta, especificamente do parágrafo único do citado

art. 46, o que se segue:

Parágrafo único. Além dos casos previstos expressamente neste artigo, também não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução, distribuição e comunicação ao público de obras protegidas, dispensando-se, inclusive, a prévia e expressa autorização do titular e a necessidade de remuneração por parte de quem as utiliza, quando essa utilização for:

I – para fins educacionais, didáticos, informativos, de pesquisa ou para uso como recurso criativo; e

III – a reprodução na imprensa, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos; IV – a utilização na imprensa, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza ou de qualquer obra, quando for justificada e na extensão necessária para cumprir o dever de informar sobre fatos noticiosos; V – a utilização de obras literárias, artísticas o científicas, fonogramas e transmissão de radio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização; VI – a representação teatral, a recitação ou declamação, a exibição audiovisual e a execução musical, desde que não tenham intuito de lucro e que o público possa assistir de forma gratuita, realizadas no recesso familiar ou nos estabelecimentos de ensino, quando destinadas exclusivamente aos corpos discente e docente, pais de alunos e outras pessoas pertencentes à comunidade escolar; VII – a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova judiciária ou administrativa; VIII – a utilização, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes visuais, sempre que a utilização em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores; IX – a reprodução, a distribuição, a comunicação e a colocação à disposição do público de obras para uso exclusivo de pessoas portadoras de deficiência, sempre que a deficiência implicar, para o gozo da obra por aquelas pessoas, necessidade de utilização mediante qualquer processo específico ou ainda de alguma adaptação da obra protegida, e desde que não haja fim comercial na reprodução ou adaptação; X – reprodução e colocação à disposição do público para inclusão em portfólio ou currículo profissional, na medida justificada para este fim, desde que aquele que pretenda divulgar as obras por tal meio seja um dos autores ou pessoa retratada; XI – a utilização de retratos, ou de outra forma de representação da imagem, feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada ou, se morta ou ausente, de seu cônjuge, seus ascendentes ou descendentes; XII – a reprodução de palestras, conferências e aulas por aqueles a quem elas e dirigem, vedada a publicação, independentemente do intuito de lucro, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou; XIII – a reprodução necessária à conservação, preservação e arquivamento de qualquer obra, sem finalidade comercial, desde que realizada por bibliotecas, arquivos, centros de documentação, museus, cinematecas e demais instituições museológicas, na medida justificada para atender aos seus fins; XIV – a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e as origens da obra; XV – a representação teatral, a recitação ou declamação, a exibição audiovisual e a execução musical, desde que não tenham intuito de lucro, que o público possa assistir de forma gratuita e que ocorram na medida justificada para o fim a se atingir e nas seguintes hipóteses: a) Para fins exclusivamente didáticos; b) Com a finalidade de difusão cultural e multiplicação de público, formação de opinião ou debate, por associações cineclubistas, assim reconhecidas; c) Estritamente no interior dos templos religiosos e exclusivamente no decorrer de atividades litúrgicas; ou d) Para fins de reabilitação ou terapia, em unidades de internação médica que prestem este serviço de forma gratuita, ou em unidades prisionais, inclusive de caráter socioeducativas. XVI - a comunicação e a colocação à disposição do público de obras intelectuais protegidas que integrem as coleções ou acervos de bibliotecas, arquivos, centros de documentação, museus, cinematecas e demais instituições museológicas, para fins de pesquisa, investigação ou estudo, por qualquer meio ou processo, no interior de suas instalações ou por meio de suas redes fechadas de informática; XVII – a reprodução, sem finalidade comercial, de obra literária, fonograma ou obra audiovisual, cuja última publicação não estiver mais disponível para venda, pelo responsável por sua exploração econômica, em quantidade suficiente para atender à demanda de mercado, bem como não tenha uma publicação mais recente disponível e, tampouco, não exista estoque disponível da obra ou fonograma para venda; e XVIII – a reprodução e qualquer outra utilização de obras de arte visuais para fins de publicidade relacionada à exposição pública ou venda dessas obras, na medida em que seja necessária para promover o acontecimento, desde que feita com autorização do proprietário do suporte em que a obra se materializa, excluída qualquer outra utilização comercial.

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218

II – feita na medida justificada para o fim a se atingir, sem prejudicar a exploração normal da obra utilizada e nem causar prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.

Assim, percebe-se a tendência de elastecer as atuais limitações e exceções aos direitos

autorais, ampliando-se as situações em que não é necessária a autorização prévia do autor para

a utilização da obra e em que a utilização é feita independentemente de pagamento pela

exploração patrimonial.

Destarte, sem afastar o sistema autoral vigente, com previsão de exceções em listagem

taxativa, adotou-se, concomitantemente, a estrutura de norma aberta de modo a dar maior

amplitude às restrições aos direitos subjetivos do autor.

Busca-se, desta forma, equacionar-se o direito subjetivo do autor com os demais

direitos constitucionalmente assegurados em prol da coletividade, de modo a enfatizar que o

direito patrimonial do criador da obra intelectual não é absoluto, comportando limitações

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219

7 CONCLUSÕES

Na introdução do presente trabalho, foram traçadas as diretrizes metodológicas

empregadas no decorrer da pesquisa. Formulado o problema e traçados os objetivos, passou-

se, ao longo dos capítulos, à exposição das premissas fundantes da resposta ao

questionamento proposto, examinada no sexto capítulo.

Destarte, chegou-se a diversas conclusões no decorrer do presente trabalho, as quais

são apresentadas de forma sistematizada nesta oportunidade:

1. O Direito Autoral é ramo jurídico que traça prerrogativas de ordem moral e

patrimonial em favor do autor e dos titulares dos direitos conexos.

2. É autor a pessoa física que idealiza e externaliza a obra, independente de idade, sexo

ou estado, tratando-se do titular originário dos direitos patrimoniais da criação. Por força da

lei, as pessoas jurídicas também poderão ser titulares originárias. Além do autor, também são

abarcados pela proteção pelo Direito Autoral os titulares dos direitos conexos, assim como os

titulares derivados dos direitos patrimoniais.

3. São assegurados direitos patrimoniais ao autor, que consistem na possibilidade a

este dada de explorar economicamente a obra criada, de diversas formas, dentre elas a

reprodução, a distribuição e a representação ou comunicação. Também direitos morais lhe são

garantidos, visando à proteção de sua personalidade, com a ligação indissolúvel do criador à

obra.

4. O direito à cultura é multidimensional, porque a depender do enfoque a ele dado,

assumirá caráter de direito fundamental de primeira, segunda e terceira dimensões. Assim, no

que tange à cultura, vislumbra-se uma característica peculiar, haja vista que a cada dimensão

subsequente, este direito permanece com a feição anterior, assumindo, porém, novo enfoque.

5. A multiplicidade de significados do vocábulo cultura repercute diretamente no

tratamento a ela dado pela Constituição Federal de 1988, que traz em seu âmbito uma gama

de artigos a enfocando nas mais variadas concepções. Para o presente trabalho, a despeito da

relevância de todas as nuances dadas ao tema, selecionou-se o direito de acesso à cultura,

como sendo direito de acesso aos bens culturais, especificamente as obras abarcadas pelo

Direito Autoral.

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220

6. A informação é direito fundamental diretamente relacionado à liberdade – de

manifestação do pensamento, de expressão e de ser informado. Daí ser um direito

fundamental de primeira dimensão.

7. Os direitos de acesso à cultura e à informação são mecanismos que podem propiciar

a transformação da realidade social e sua efetivação contribui para a consecução do ideário

democrático, com o desenvolvimento humano nos mais variados enfoques. Isto porque, o

acesso aos direitos de acesso à cultura e à informação é mecanismo hábil a redução das

desigualdades sociais e de promoção da liberdade.

8. Os direitos de acesso à cultura e à informação devem ser promovidos pelo Estado,

vinculando, também os particulares, com fundamento nos princípios da supremacia da

Constituição, da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da aplicação imediata dos

direitos fundamentais e da unidade do ordenamento jurídico.

9. O enfoque individualista dado aos ramos jurídicos integrantes do denominado

Direito Privado, arquitetado como influência direta do movimento de codificação do séc.

XIX, não mais se coaduna com a realidade atual, tendo repercutido em todo o sistema

jurídico, inclusive no denominado Direito Privado.

10. A análise estrutural do Direito passa a ser insuficiente e concomitantemente, sua

análise funcional é também realizada, levando-se em consideração o todo e a função que o

Direito desempenha perante o sistema social e a repercussão no âmbito individual.

11. A teoria da solidariedade social de León Duguit, que consagra a concepção

realista, repercutiu diretamente nos institutos do Direito Privado, em especial no direito de

propriedade, vinculando o exercício dos direitos à consagração da função social, em prol do

desenvolvimento máximo do indivíduo (que é, inclusive, concebido como um dever) e do

bem-estar da sociedade.

12. Com o advento do Estado social, vê-se o afastamento da postura individualista. Os

indivíduos, antes considerados de forma atomizada, passam a ser enfocados como sujeitos

dotados de dignidade e componentes do espaço social que integram. Por isso, têm que atuar

na esfera social de modo colaborativo, e não apenas em favor dos seus próprios e egoísticos

interesses. Vê-se, assim, a funcionalização dos principais institutos do Direito Privado: o

contrato, a propriedade e a posse, e a família.

13. A despeito de historicamente o Direito Autoral ser caracterizado como um direito

privatístico, este ramo gera interesses individuais e coletivos. Daí que desempenha função sob

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duas óticas diferenciadas: a primeira é a do autor, dos titulares dos direitos conexos e dos

titulares dos direitos patrimoniais, a que se chamou de função individual. A segunda leva em

consideração o interesse da coletividade, daí ser chamada de função social do Direito Autoral.

14. Dentre as funções sociais do Direito Autoral podem ser elencadas: a promoção da

produção intelectual e o desenvolvimento cultural; a promoção do desenvolvimento

econômico; a inclusão digital; e a promoção dos direitos de acesso à cultura e à informação.

15. Ao se afirmar que o autor desempenha uma função social, não se pretende anular

sua pessoa em prol da coletividade; continua ele sendo dotado de dignidade e merece proteção

legal, como ser humano que é. Porém, deve ele atuar de forma responsável e solidária perante

a sociedade, porquanto é um difusor do conhecimento.

16. As obras ultrapassam os territórios em que foram criadas, sendo relevantes para

toda a humanidade. Neste sentido, é voltada para a coletividade como um todo e não apenas

para a satisfação pessoal daquele que a concebeu, sob pena de perder a sua razão de ser.

17. Tanto os direitos subjetivos do autor como os direitos de acesso à cultura e à

informação são direitos fundamentais consagrados pela ordem constitucional brasileira. Os

três coincidem funcionalmente para o incremento da cultura. Os direitos do autor, por

fomentarem a criação intelectual e os direitos de acesso à cultura e à informação, porque

estimulam a democratização do saber.

18. Impende a releitura da LDA à luz do matiz constitucional e dos direitos

fundamentais consagrados na Carta Magna, voltando-se à promoção do acesso à cultura e à

informação.

19. O software livre e as licenças creative commons proporcionam o acesso ao âmbito

digital, com a democratização do conhecimento, e são instrumentos que devem ser

estimulados, por majorarem o poder de propagação das informações no meio virtual.

20. O domínio público é modalidade de limitação aos direitos do autor. Pode-se

afirmar que é instrumento existente em prol do acesso à cultura e à informação. Isso porque,

uma vez caracterizado, a obra é passível de utilização livre pela sociedade como um todo, seja

como simples ingresso ao bem cultural, seja como ponto de partida para criação de novos

bens culturais intelectuais.

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21. A redução do prazo de proteção, hoje de 70 (setenta) anos, é medida que se impõe

para que sejam alcançadas as finalidades precípuas do Direito Autoral, em prol do acesso à

cultura e à informação.

22. Não há direito absoluto. Também os direitos do autor não o são. Por isso, são

previstas limitações expressas em listagem pela LDA, no art. 46. Ali se elencam situações em

que o princípio monopolístico é excepcionado, em atendimento a interesses de ordem pública.

Todavia, tal listagem, reputada taxativa, é insuficiente, porque traz um rol reduzido e não

abarca a pluralidade tecnológica hodierna, comprometendo o acesso à cultura e à informação.

24. A limitação da reprografia a pequenos trechos da obra, para uso exclusivo

particular acaba por restringir o acesso individual à cultura e à informação, sendo necessária a

adequação do vigente diploma autoralista.

25. Os direitos de inédito e de retirada são direitos morais do autor e como tais, não

são passíveis de disposição. Todavia, o seu exercício pode resultar em afronta aos direitos de

acesso à cultura e à informação, uma vez que resta inviabilizado o acesso à obra mantida

inédita ou retirada de circulação.

26. O ordenamento jurídico brasileiro deixou a desejar ao não trazer previsão expressa

sobre a licença compulsória, mecanismo incidente apenas sobre os direitos patrimoniais e que

é apto a contribuir na difusão do conhecimento.

27. A doutrina norte-americana do fair use, tem por desiderato proporcionar o

equilíbrio entre os interesses do autor e da coletividade. Tratando-se de uma cláusula geral,

não traz rol taxativo de hipóteses que excepcionam os direitos do autor, permitindo maior

flexibilidade ao intérprete na concretização do interesse público na utilização das obras.

28. O modelo do fair use norte-americano é deveras interessante e deveria informar o

ordenamento brasileiro. O ideal seria a previsão de cláusulas gerais no diploma autoralista a

serem conformadas no caso concreto pelo aplicador do direito, de modo a afastar de vez a

postura codicista do aplicador do Direito.

A função social do Direito Autoral não está prevista expressamente no ordenamento

jurídico brasileiro. Tal fato não implica óbice à sua aplicação, pela leitura sistemática das

normas postas no Brasil e a radiação dos princípios constitucionais às normas

infraconstitucionais.

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223

Certo é que seria ideal tal previsão, o que acabaria por afastar os posicionamentos

retrógrados, que insistem no ranço individualista deste ramo.

Até que sejam feitas as adequações legislativas, com a vigência do Projeto de Lei

proposto pelo Ministério da Cultura e que traz modificações substanciais voltadas à

funcionalização deste ramo, mister se faz proceder sua leitura à luz da Constituição Federal,

diante da constante comunicação entre os ramos privado e público.

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