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Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6 Cadernos PDE OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE NA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE Artigos

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OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE

Artigos

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A compreensão da identidade: uma abordagem baseada em Mia Couto (Implementação da Lei 10.639/03)

Lucinéia Aparecida de Angelis 1

Orientadora: Profa. Dra. Maria Carolina de Godoy 2

Resumo

O presente artigo representa o cumprimento de um dos requisitos para a conclusão do Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE - 2013. Serão apresentados os resultados obtidos na aplicação do projeto de intervenção, cujo objetivo foi promover uma reflexão sobre a abordagem da Lei 10.639/03 em sala de aula, uma vez que sua obrigatoriedade não tem garantido a realização de um trabalho consistente. O estudo baseou-se na questão identitária, cujo aporte teórico foi Hall (2011) e a implementação destinou-se a professores e funcionários, a fim de atingir o aprofundamento da discussão e maior abrangência. Para efetivação dos objetivos, foram utilizados contos do autor moçambicano Mia Couto dos livros Vozes anoitecidas (1997) e Cada homem é uma raça (2013), cuja abordagem ocorreu numa perspectiva cultural. Os resultados apresentados demonstrarão se a resistência e dificuldade de manutenção da lei se mantêm atualmente e se a literatura e as discussões proporcionadas pelo curso podem alterar antigas convicções, sensibilizar o docente de forma que altere sua postura e corrobore no rompimento de preconceitos e mudança profissional. A coleta dos dados, cuja abordagem foi qualitativa, ocorreu através das observações da participação oral durante o desenvolvimento das oficinas temáticas presenciais e do registro escrito em ambiente moodle das impressões e conhecimentos adquiridos no decorrer das apresentações teóricas. É importante dizer que os resultados foram satisfatórios, mas precisariam ser estendidos a mais escolas, a fim de que outros professores tivessem acesso às discussões efetuadas.

Palavras-chave: Lei 10.639/03. Identidade. Literatura. Mia Couto. Hibridismo. 1 INTRODUÇÃO A busca pelo reconhecimento da história e da cultura africana e dos

afrodescendentes na História do Brasil caracterizou uma luta constante e esta culminou

na aprovação da Lei 10.639/2003 que garantiu a inclusão das mesmas na Educação

Nacional, bem como inúmeras ações afirmativas.

Sem dúvida, esse foi um grande passo na tentativa de conquistar a igualdade de

direitos aos afrodescendentes e minimizar o preconceito. Não garante, porém, que a

realidade seja modificada de forma imediata, pois dados estatísticos mostram que,

embora os negros representem 97 milhões dos brasileiros (Censo 2010), a supremacia

1 A autora é professora de Língua Portuguesa da SEED, PDE 2013/2014, pós-graduada em nível de

especialização em Língua portuguesa pela Universidade Estadual de Londrina. 2 Professora Doutora Adjunta do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual

de Londrina, atuando na graduação, pós-graduação e orientadora PDE. Coordena o projeto de pesquisa “Literatura afro-brasileira e sua divulgação em rede”, financiado pelo CNPq e pela Fundação Araucária.

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do branco prevalece em níveis de escolaridade, cargos bem remunerados, dentre

outros.

É evidente que a educação precisa de outros suportes para garantir a alteração

desse perfil de desigualdade, mas é inquestionável que tem um papel fundamental na

discussão e na formação de uma nova identidade brasileira, que faça com que os

cidadãos do presente compreendam que não há uma verdadeira História do Brasil se

ela não for contada também pelos afrodescendentes. Negar a influência destes é negar

parte da cultura, consequentemente, fazer a manutenção da desigualdade e do

preconceito. Como afirmou Cunha Jr (2006, p.87):

[...] a educação figura como uma das formas mais importantes de mudança da estrutura social dos afrodescendentes. Para o combate a esta desigualdade é que a educação precisa teorizar, realizar práticas efetivas e específicas que modifiquem concretamente a situação dos afrodescendentes.

Também como propõe Matilde Ribeiro ( 2005, p.7):

A educação constitui-se um dos principais ativos e mecanismos de transformação de um povo e é papel da escola, de forma democrática e comprometida com a promoção do ser humano na sua integralidade, estimular a formação de valores, hábitos e comportamentos que respeitem as diferenças e as características próprias de grupos e minorias. Assim, a educação é essencial no processo de formação de qualquer sociedade e abre caminhos para ampliação da cidadania de um povo.

Dessa forma, se por um lado aprovação da Lei 10.639/2003 garantiu a discussão

sobre o tema, por outro gerou uma certa inquietação nos docentes da Educação

Básica. A insuficiência de aporte teórico do professor, também a falta de identificação

com o assunto têm sido os grandes vilões do processo. A obrigatoriedade, embora seja

um ponto relevante, na prática tem se mostrado insuficiente, pois o que se presencia é

um tratamento pontual e superficial do tema, com discussões que giram em torno de

questões que veem o afrodescendente apenas como vítima, não como um produtor de

ações e pensamentos que influenciaram e formaram a cultura brasileira. Muitas vezes,

abordagens embasadas no senso comum e repetitivas que pouco acrescentam no

esfacelamento do preconceito são levadas para a sala de aula. A história dos africanos

e dos afrodescendentes é vista como a história do outro e não como a História do

Brasil. Como afirmou Cunha Jr. (2006, p.85):

A falta de conhecimentos sobre a história e cultura africana formava uma barreira intelectual e mental que impedia a compreensão completa da história e da cultura brasileira a partir da visão dos afrodescendentes. A história do Brasil

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sem o conhecimento da história africana era uma história unilateral, branca, marcada por concepções eurocêntricas. Por vezes essas concepções eurocêntricas eram marcadas pelos preconceitos e por concepções históricas racistas. Para termos uma história brasileira ampla e justa se necessita da imersão na história e na cultura africana.

A barreira citada continua impedindo que um trabalho eficaz seja realizado, uma

vez que o docente tem internalizadas as concepções eurocêntricas de que sempre foi

vítima e o processo de mudança é lento e só se dá a partir do aprofundamento do

conhecimento. Isso justificou a relevância do trabalho, a preocupação em garantir a

promoção de leituras numa tentativa de deslocamento de abordagem da temática de

forma que o professor reconhecesse de fato na sua identidade traços de alteridade. E

assim compartilhasse com seus alunos experiências sociais que os fizessem

responsáveis pela mudança e pela superação das diferenças. Outro ponto foi a

superação do trabalho com o tema como um recorte dentro do conteúdo, mas que

tomasse parte dele, como a forma real de se contar a história que até então não fora

contada por todos os seus autores.

Para tanto, buscou-se o processo de identificação do professor, a compreensão

de que falar de afrodescendência é falar sobre si mesmo, sobre a cultura brasileira,

sobre a identidade da nação e precisa fazer sentido para ele e para o aluno, como

afirmou Moscovici (ARRUDA,1998), “o desenvolvimento do vínculo social e das

capacidades intelectuais e afetivas começam quando o indivíduo vem a perceber que o

outro tem uma significação no seu próprio mundo interior.”

Quotas nas universidades, nos concursos, nas novelas, nas propagandas são

medidas paliativas, a verdadeira consciência do Brasil como país da diversidade e,

portanto, espaço de todos é algo que deve ser buscado através do livre acesso aos

bens culturais e simbólicos. A educação representa o espaço ideal, uma vez que tem a

função de produzir e transmitir saberes sobre os quais deve promover uma intensa

reflexão.

Dentre os inúmeros caminhos a serem percorridos, o da literatura foi escolhido,

pois como afirma Candido (1972, p.82), a literatura mostra sua “força humanizadora,

não como sistema de obras. Como algo que exprime o homem e depois atua na própria

formação do homem.”

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No que se refere à cultura africana, foi abordada a literatura a partir do final do

século XX, pois é nesse período, principalmente, que autores moçambicanos

consolidam a autonomia como escritores de sua literatura, uma literatura africana de

expressão portuguesa, com características de seu povo e de suas raízes. Para isso,

foram selecionados contos dos livros Vozes anoitecidas (1997) e Cada homem é uma

raça (2013), de Mia Couto devido a suas aproximações com autores brasileiros, com os

quais foram desenvolvidas as atividades do projeto. Como cita o próprio em entrevista

feita por Ricardo Prado, publicada da Revista Carta Capital em 08/10/2010:

Marcou-me especialmente (o conto) A terceira margem do rio. Aquilo foi um abalo sísmico na minha alma, porque ali estava o que eu e outros estávamos procurando. Havia ali não só uma relação com a língua, mas também com outras coisas que estão para além dela, uma tentação de criar na linguagem um universo próprio, como se a linguagem se apropriasse da história, da geografia, criando outra realidade. E essa outra realidade também era importante para nós, que estávamos vivendo a lógica de um estado centralizador, que esmagava as lógicas rurais, esse mundo do sertão, que não é da ordem da geografia, mas da soma de várias culturas.

2 ELEMENTOS TEÓRICOS

2.1 A relevância da Lei 10.639/2003

Em princípio é necessário traçar um breve percurso das estratégias afirmativas

que envolvem a afrodescendência no Brasil, verificar se as mudanças pretendidas se

efetivaram e transformaram os índices de desigualdade para, posteriormente,

compreender a importância da lei e de seus desdobramentos, bem como do trabalho

desenvolvido.

O documento “Manifesto à nação brasileira”, resultado da Convenção Nacional

do Negro Brasileiro, realizada no Rio de Janeiro em 1945-1946 representou a primeira

manifestação formal pela igualdade racial. As reivindicações apresentadas foram

publicadas no jornal Quilombo, dirigido por Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos.

Propunham a valorização do negro nos setores sociais, culturais, educacionais,

políticos, econômicos e artísticos. Já reivindicavam nesse documento, a garantia de

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oportunidade de acesso à educação em todos os níveis. Apenas 50 anos depois, em

1995, após a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida,

um documento entregue ao então presidente Fernando Henrique Cardoso, novamente

reivindica ações concretas de acesso dos negros à escolarização. A partir de então, os

ideais negros passam a se constituir em política afirmativa de valorização e

reconhecimento da população africana e afrodescendente do Brasil. Dentre as políticas

podemos citar o sistema de quotas, iniciado em 2002 pela Universidade do Estado do

Rio de Janeiro.3

O reconhecimento legal da causa é representado pela aprovação da lei

10.639/03 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9394/96, garantindo a

obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana nos

estabelecimentos de ensino, bem como instituiu o dia 20 de novembro como “Dia

Nacional da Consciência Negra”, conquista alcançada pela legitimação do Movimento

Negro. A partir dela, criou-se em março de 2003 a SEPPIR (Secretaria Especial de

Políticas de Promoção de Igualdade Racial) com o objetivo de traçar metas e caminhos

para promover a igualdade de direitos e condições para a população negra.

Em 2004, a SEPPIR e o Ministério da Educação trazem ao conhecimento de

todos as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais

e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana que embasam e

direcionam a abordagem do tema nos estabelecimentos de ensino, sob

responsabilidade do corpo docente.

A superação de antigos paradigmas tornou-se objeto de discussão e reflexão, o

tema obteve o caráter de legalidade, portanto ocupou o seu espaço no ambiente

educativo. E os educadores ganharam a missão de concretizar a lei e colaborar com a

mudança do perfil de desigualdade através do reconhecimento da contribuição do

africano e do afrodescendente na construção da identidade nacional.

Após mais de 10 anos da lei, transformações ocorreram, porém a situação atual

do negro no Brasil ainda carece de profundas mudanças, o que pode ser evidenciado

pela análise apresentada a seguir dos dados que se encontram em anexo.

3 Manifesto em defesa da justiça e da constitucionalidade das cotas -2008 – Folha de São Paulo,

14/05/2008. IPEAFRO - Ações – seção TEN ( Teatro Experimental Negro).Disponível em www.ipeafro.org.br.

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Para melhor compreensão, é importante destacar que, conforme denominações

usadas pelo IBGE, as terminologias para cor ou raça são preto, pardo, branco, amarelo

e indígena. E a terminologia negro engloba os pretos e pardos.

Os primeiros dados a serem apresentados foram retirados da publicação

Indicadores Sociais Municipais-2010, resultados do Censo Demográfico 2010, realizado

pelo IBGE (p.47), conforme figura 1 em anexo, e apresenta a seguinte distribuição: a

população brasileira que se declarou negra equivalia a 50,7%, apresentando um

aumento de 6% em relação ao ano 2000. A população branca apresentou um índice de

47,7%. O que isso significa? Que hoje o Brasil se reconhece como um país

predominantemente negro.

Um dado alarmante sobre a taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou

mais idade por cor ou raça da mesma publicação (2010,p.53), neste trabalho

demonstrado pela figura 2 em anexo: 13,7 % da população negra do Brasil é

analfabeta, contrapondo a 5,9% da população branca, ou seja, mais que duas vezes

maior que a branca.

É relevante demonstrar também a porcentagem da distribuição das pessoas de

18 a 24 anos de idade que frequentam a escola, por cor ou raça, segundo o nível de

ensino apresentado pelo SIS-2012 (p.116). Os índices apontam que os jovens da

população branca encontram-se 4,5% no Ensino Fundamental, 24,1% no Ensino Médio,

5,6% em curso supletivo, pré-vestibular ou Educação de jovens e adultos, e 65,7% no

Ensino Superior. Os jovens da população preta ou parda encontram-se 11,8% no

Ensino Fundamental, 45,2% no Ensino Médio, 7,2% em curso supletivo, pré-vestibular

ou Educação de jovens e adulto e apenas 35,8% no Ensino Superior. É possível

destacar que enquanto a grande maioria do jovens brancos está cursando o Ensino

Superior, a grande maioria dos negros está ainda cursando o ensino regular. Há uma

defasagem do jovem negro em relação a idade/série. Embora a taxa de negros no

Ensino Superior tenha aumentado de 10,2 em 2001 para 35,8 em 2011, a desvantagem

em relação ao branco continua muito grande. Há ainda um outro dado que merece

nossa atenção, enquanto apenas 28,6% dos jovens brancos cursam o ensino regular,

57% dos negros estão no mesmo nível, quando deveriam estar cursando o Ensino

Superior, dados revelados pela análise da figura 3 em anexo.

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Vejamos outro dado do SIS 2012 (p.133) que mostra a porcentagem de pessoas

de 15 anos ou mais que frequentam cursos de educação de jovens e adultos ou

supletivo, demonstrada pela figura 4 em anexo, 61,8% é preta ou parda e 37,2 branca

em cada 1000 pessoas. Isso evidencia a dificuldade de tal população em concluir

estudos regulares, havendo a necessidade de buscar meios alternativos.

Cabe ressaltar dados que evidenciam a diferença entre o rendimento médio de

pessoas de cor branca e negra de acordo com os anos de estudo e idade de 16 anos

ou mais, demonstrados pela figura 5 em anexo. Os dados totais mostram que os negros

ganham em média 60% do que ganham os brancos, taxa que subiu 9,5% em 10 anos.

Apresentando dados mais específicos, pessoas negras com 8 anos de estudo ganham

74,5% do que ganham os brancos, entre 9 a 11 anos ganham 76,7% e 12 anos ou

mais 67,2%. Sintetizando, uma democracia racial comprovadamente é um mito, visto

que mesmo com o acesso a escolaridade, a discriminação continua ocorrendo. (SIS-

2012, p.141)

Tais fatores culminam na seguinte realidade, 82,3% da população negra

encontra-se entre os 10% mais pobres do país e entre 1% mais ricos, encontra-se

16,3% da população negra. Dessa forma, o índice de desigualdade é evidente e

assustador, principalmente quando relacionarmos este ao fato de mais da metade da

população do Brasil ser negra. (SIS-2012, p.167), conforme figura 6 em anexo. Embora

tenha havido mudanças nos dados dos últimos 10 anos, é notório e inquestionável que

os níveis de desigualdade são insustentáveis para um país que afirma ter a democracia

racial.

Diante dos dados e do reconhecimento da importância e poder da educação no

processo de mudança social, surgiu a necessidade de se refletir sobre a temática e

compartilhar com os demais educadores.

2.2 Uma questão de identidade

Partindo do pressuposto de que a compreensão da necessidade da abordagem

da temática envolve o processo de alteridade, de reconhecimento de traços do negro

no eu identitário, torna-se necessária a discussão prévia de como a identidade se

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reorganiza na pós-modernidade e de que forma isso beneficia o trabalho com a

superação da desigualdade racial.

Para o estudo da questão identitária, foi adotado o aporte teórico de Hall (2011)

que debate o tema, abordando aspectos que caracterizam o que chama de

modernidade tardia e suas implicações no sujeito.

Os caminhos trilhados pela sociedade atual têm despertado inúmeras discussões

acerca do conceito de identidade. A relativa estabilidade e unificação do homem vêm

perdendo espaço à medida que suas bases estão sendo alteradas. A religião, as

classes sociais, o espaços geográficos e culturais perderam sua linha divisória, o que

desestabiliza a noção de sujeito.

Segundo Hall, a mudança estrutural iniciada no final do século XX “está

fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e

nacionalidade.” Isso tem modificado as identidades sociais e a ideia que cada um tem

de si. Hall chama esse processo de descentralização ou deslocamento do sujeito, que

não mais tem uma ideia única e definida de sua identidade, podendo afirmar, portanto,

que se vive uma crise de identidade. (HALL, 2011, p.9).

A fim de entender o processo, Hall aponta três concepções para o processo da

identidade: a) O sujeito do iluminismo: sujeito unificado, centrado no eu, num núcleo

interior presente desde o nascimento e por toda a vida, baseado na razão, no

individualismo, b) O sujeito sociológico: visão de que esse núcleo interior, não é

autônomo, mas se constitui nas relações sociais, na interação com o espaço social e

cultural ocupado, assim o sujeito representa um elemento na sociedade, não mais seu

centro, c) O sujeito pós-moderno: cuja identidade é um processo histórico, portanto

sofre alterações constantes à medida que o sujeito é interpelado por diferentes

sistemas culturais, ou seja, está em permanente construção; dessa forma, a visão do

sujeito do iluminismo é superada, uma vez que os processos de sua identificação têm

assistido a um intenso processo de mudança cultural, social e espacial. A matéria que

garantia sua estabilidade se modifica, portanto sua identidade também, caracterizando

o sujeito pós-moderno, que apresenta um contínuo deslocamento de traços de seu eu

identitário.

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A globalização tem influenciado diretamente nesse deslocamento, pois a

mudança rápida e constante da sociedade moderna (diferente da tradicional) tem

atingido a muitos, encurtando espaço e tempo, ocasionando alterações de crenças,

comportamentos, relações, entre outros. Tais mudanças evidenciam que não há mais

uma única identidade, mas sim várias identidades articuladas e em constante processo

de alteração.

Tal desarticulação por um lado perturba o sujeito, por outro oportuniza que novos

sujeitos e novas identidades sejam criada, superando os sujeitos estáticos do passado.

A fragmentação e descentralização do sujeito influenciam e são influenciadas

diretamente pelas identidades culturais nacionais, que também passam por uma busca

de caminhos seguros. O próprio conceito de nação, forma de representação e união de

um grupo que caracterize a cultura nacional, passa por grandes conflitos, uma vez que

suas fronteiras foram superadas pelo advento da pós-modernidade, portanto a ideia de

nação e seu caráter simbólico unificado já não são mais compartilhados pelos sujeitos.

Esse caráter simbólico da cultura nacional caracteriza a visão que o sujeito tem

de si mesmo, caracteriza sua identidade. Como afirma Hall (2011, p.51) “Esses sentidos

estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam

seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas”. Porém, a

unificação da cultura nacional caracteriza-se como uma utopia, uma vez que o passado

de lutas violentas, diferenças sociais e processos dolorosos de colonização impedem

que a homogeneidade seja estabelecida e superada pela ideia da diferença como

unidade, ou seja, representá-la através da etnia (língua, costumes, tradições) de cada

povo não representa uma solução fácil.

Além disso, vive-se uma época de sociedades híbridas, o que também dificulta a

ideia da unificação. Essa multiplicidade de identidades coabita, no mundo virtual, o

mesmo espaço e vivencia o mesmo tempo, perturbando a antiga teoria do sujeito

unívoco.

Há que acrescentar ainda as formações identitárias que se referem àqueles que

romperam as fronteiras naturais, que estão ligados a sua origem, porém sofrem a ação

das novas culturas com que têm contato, assim devem negociar a assimilação do novo

com a manutenção da cultura de origem. Porém, como afirma Hall:

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Essas pessoas retêm fortes vínculos com as tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. [...] Elas carregam traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas [...]. (HALL, 2011, p.89).

Pelo exposto fica claro que a identidade na pós-modernidade não poderá

retornar à unicidade de seu caráter da sociedade tradicional, porém também opondo-se

ao que se imaginava com o processo de globalização, não estará fadada à

desvalorização total das culturas de raiz. Pelo contrário, o que se tem percebido é uma

busca constante pelo fortalecimento da tradição e o ressurgimento do nacionalismo

como formas de negação das identidades universalistas. A reafirmação e retomada do

conceito de etnia têm caracterizado as identidades de forma a manter sua união como

forma de sobrevivência histórica e política, contrapondo-se à homogeneização global.

Hall afirma ainda que

Os deslocamentos ou os desvios da globalização, mostram-se mais variados e contraditórios do que sugerem seus protagonistas ou seus oponentes. Entretanto, isso também sugere que, embora alimentada, sob muitos aspectos, pelo Ocidente, a globalização pode acabar sendo parte daquele lento e desigual, mas continuado, descentramento do Ocidente. (HALL, 2011, p.97).

A desestabilização das identidades oportunizou a superação de verdades

impostas, de modelos estabelecidos, e a alteridade passa a ganhar espaço, uma vez

que o “eu” se constrói e se modifica na interação.

No Brasil, a descentralização identitária promoveu um retorno e valorização do

africano e do indígena em sua cultura. De fato, a crise de identidade abre

possibilidades de readequação cultural, em que as minorias estigmatizadas ganham

espaço para reafirmação de seus valores na construção da ideia de nação brasileira. O

fortalecimento da etnia brasileira representa uma forma de conhecer seu povo, de

subsistir no mundo globalizado, de não ser sufocado pelas ideias universalistas.

Dessa forma, a literatura africana e afro-brasileira (e seu caráter discursivo e

ideologicamente marcado) passa a ocupar gradativamente seu espaço social e interferir

no modo como o brasileiro reconhece sua identidade, que para ser positiva e

harmoniosa, necessita da aceitação da diversidade.

As literaturas de língua portuguesa, portanto, adquirem um caráter

especialmente importante nas questões identitárias, sobretudo as relações Brasil e

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África entrecruzam-se através de processos históricos e literários semelhantes.

Escritores africanos afirmam descobrir em autores brasileiros formas de reencontro com

sua cultura e seu povo, por identificar o Brasil como uma África distante, portanto capaz

de auxiliá-los na promoção do sentimento de nação. Como afirma Couto:

Havia pois uma outra nação que era longínqua mas não nos era exterior. E nós precisávamos desse Brasil como quem carece de um sonho que antes nunca soubéramos ter. [...] Descobríamos essa nação num momento histórico em que nos faltava ser nação. (COUTO,2011, p.65-71):

Para Couto, os escritores brasileiros modernistas não escreviam livros,

escreviam um país, ideal do qual compartilhavam os escritores africanos.

No Brasil, a ideia de mestiçagem harmoniosa presente nas obras do modernismo

brasileiro, com a qual se identifica Couto, vai se fortalecer com reconhecimento da

existência de uma literatura negra e de sua ligação ao movimento negro objetivando

redefinir a ideia de cultura brasileira e, consequentemente, de sua identidade. Como

destaca Ianni:

A literatura negra está profundamente marcada pelo movimento negro. Um movimento múltiplo, diversificado, atravessando cidades, regiões, histórias e nações. Isto é, o tema do negro brasileiro implica desvendar, desmistificar, resgatar e emancipar o negro do fantástico véu ideológico que o recobre, mescla, submerge, esconde, ignora.(2011, p.195).

Ao assumir o processo da enunciação e demonstrar sua resistência à

marginalização social, novos processos identitários fazem-se necessários. Pois vozes

que não foram ouvidas fazem-se presentes e tornam vital a reelaboração da identidade,

que para ser coesa e unificada em suas diferenças, que para ocupar seu espaço social

no mundo globalizado, necessita de igualdade de oportunidades e de valorização de

seus diversos e diferentes aspectos culturais. Assim, é preciso aceitar que o Brasil é

formado por identidades híbridas a fim de que todas as vozes possam ser ouvidas com

igual intensidade e poder de decisão.

2.3 A literatura africana, Mia Couto e os processos identitários

É imprescindível reconhecer que o surgimento da literatura africana trouxe

consigo as marcas da dominação efetuada pelo europeu a partir do século XV,

especificamente quando se deu o início da expansão dos portugueses para a África,

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esta literatura, restrita à escrita por portugueses, tem, portanto, marcas da

superioridade branca e pouco se vinculou ao homem africano. A narrativa centrou-se no

europeu, no seu poder de conquista e dominação, enquanto o africano foi apresentado

num processo de coisificação e animalização. Assim, uma literatura, que semelhante a

do Brasil do século XVI, foi marcada pela visão e pelos interesses do colonizador,

funcionando muito mais como registro de suas conquistas do que propriamente marcas

literárias de uma época e de um povo. Como destaca Ferreira (1977, p.10):

No contexto da literatura colonial por décadas exaltada, o homem negro aparece como que por acidente, por vezes visto paternalisticamente e, quando tal acontece, é já um avanço, porque a norma é a sua animalização ou coisificação. O branco é elevado à categoria de herói mítico, desbravador de terras inóspitas, o portador de uma cultura superior.

Somente a partir do século XX, através do maior conhecimento da língua

portuguesa, o que princípio poderia extinguir a cultura local, unificou os elos de

comunicação entre os africanos e oportunizou uma forma de expressão cultural mais

autônoma.

Porém, tal autonomia se consolidou gradativamente, passando por um processo

inicial em que as produções seguiram os padrões portugueses, depois um processo de

compreensão do sentimento nacional, em que o discurso passou a revelar a percepção

de sua cultura e de seu espaço. Iniciou-se, portanto, um processo de desalienação, em

que a consciência de ser negro e colonizado revelou-se num discurso de revolta,

passando a se transformar num discurso de resgate da individualidade com a

independência nacional.

Dessa forma, a literatura caracterizou-se como um instrumento de busca do que

seria genuinamente africano com o intuito de reencontrar o passado, antes da influência

ocidental. A literatura como uma forma de resgate da cultura e da história de tal povo,

por isso foi objeto de análise deste trabalho. Como bem destaca Chaves (2004, p.148):

Compreender a relevância da proposta de recuperação do passado, mesmo que tal processo se faça através da reinvenção, pressupõe desvendar a natureza do colonialismo, atentando-se para dados que, ao ultrapassar a esfera da exploração econômica a que foram submetidos os povos oprimidos, exprime a política de despersonalização cultural própria da empresa.

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[...] o processo de submissão demanda ações que conduzam a uma total desvalorização do patrimônio cultural do dominado. No limite, ele deve ser desligado de seu passado, o que significa dizer, exilado de sua própria cultura.

Da necessidade de recuperação de um passado pré-colonial é que ressurgiu na

literatura a procura pelos homens, pela terra, pelos valores, pelas crenças daqueles que

até então foram esfacelados pela cultura do outro. Esse resgate buscou nas raízes

africanas os temas de seus escritos e na tradição oral as marcas de sua origem a fim

de revelar e reconstruir a identidade nacional, ainda que fosse um processo de

renovação. O passado se atualiza com o intuito de atender as necessidades da

complexidade do mundo atual. Convém citar Afonso (2004 apud MARTINS, 2006,

p.37), que bem explicita:4

[...] o conto oferece, em África, um verdadeiro espaço de criatividade, explorando os níveis e limites do ser, ultrapassando quaisquer obstáculos ideológicos, captando todas as realidades que dizem respeito ao homem, fixando a imagem do caos do mundo moderno, a fragilidade da felicidade e a

precariedade dos destinos humanos.

Mia Couto consolidou-se como escritor neste contexto. Nascido em 1955, em

Moçambique, filho de portugueses. Aos 20 anos, na década de 80, estreou com o livro

de poemas Raiz de Orvalho (1983), posteriormente os livros de contos Vozes

anoitecidas (1986) e Cada homem é uma Raça (1990). Obras com as quais foram

desenvolvidas as atividades do projeto. Neste período, a literatura moçambicana

passou ao status de sistema literário institucionalizado e reconhecido, embora ainda o

país estivesse sob o processo de consolidação de sua independência que se deu no

ano de 1975.

Tal autor é um representante da literatura como um sistema consolidado e

independente, pois criou um estilo narrativo que pôde registrar e marcar traços da

verdadeira literatura moçambicana com características próprias de seus representantes.

Mia Couto traz um resgate da ancestralidade de seu povo e as marcas da

oralidade, tão relevantes para o povo africano que tem na tradição oral suas bases e

suas origens, característica que por muito tempo fora considerada como traço cultural

ilegítimo. Como afirma Laranjeira (2001, p.202):

A (re)criação verbal, com neologismos e inovações sintáticas (que se encontrariam também no português do Brasil), advém do gozo da língua e de

4AFONSO, Maria Fernanda. O conto moçambicano: escritas pós coloniais. Lisboa: Editorial Caminho, 2004.

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aproveitar o contacto entre várias delas, mas também da necessidade de criar e relatar novas realidades, rurais e urbanas, numa língua literária que, sendo urbana e cosmopolita, retoma práticas orais com origem no enraizamento da ruralidade.

Dessa forma, o autor faz da linguagem em sua literatura uma arma de protesto e

de resgate da cultura de seu povo, pois apresenta traços inventivos como a

poeticidade, neologismos, termos nativos, dentre outros. É por meio de sua escrita que

se percebe a tensão entre a cultura local e a cultura europeizante, ou seja, o

ressurgimento daquela em detrimento desta. Laranjeira (2001, p.203) destaca:

O discurso de Mia Couto entrelaça culturas e registros, num equilíbrio que permite falar do racismo, da guerra, da vida e da morte, do amor e do ódio, da política e do comércio das almas, sempre com o gosto de contar desempenhando o papel de farol do leitor, redefinindo seus gostos e suas visões de mundo, como se a ficção pudesse devolver à realidade a fantasia da verdade.

O resgate cultural proposto pela literatura coutiana também se revela pelos

traços considerados sobrenaturais por algumas interpretações de sua obra. Tais traços

povoam suas histórias e se originam das crenças do povo, que apresenta em sua

ancestralidade uma visão animista da realidade, segundo a qual todos os elementos da

natureza, fenômenos naturais, elementos do cosmos possuem “ânima”, portanto, são

passíveis de sentimentos e vontades. O que para muitos são acontecimentos mágicos,

para os costumes africanos, são acontecimentos aceitáveis e possíveis na realidade. A

coparticipação de elementos reais e insólitos é perfeitamente verídica, não apenas

verossímil.

Dessa forma, é importante destacar que a terminologia adequada à característica

da obra literária escolhida é o realismo animista, termo proposto por Pepetela (1997) e

Garuba (2003), conceito aplicado por Wittimann (2012). Segundo tal concepção, há

convivência harmoniosa entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos, entre passado

e presente e futuro. “No imaginário africano os elementos míticos e históricos convivem

em harmonia, paradoxalmente, o mítico na África é também “real” e “histórico”.

(WITTIMANN, 2012, p.33, grifo do autor). Na cultura africana, os elementos

sobrenaturais estão intimamente ligados à crença religiosa e costumes, por isso tratá-

los como elementos mágicos seria adotar uma postura ocidental de análise, que pouco

acrescentaria na identificação da identidade africana, presente na sua literatura.

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Ao utilizar o realismo animista, Mia couto busca a recuperação da ancestralidade

dos moçambicanos, mostrar quem foi e quem é o africano e qual a sua cultura, bem

como demonstrar o encontro desse passado com a modernidade. Enfim, compreender

a obra desse autor pressupõe a compreensão das representações animistas presentes.

Que elementos representam a força da cultura moçambicana, a força do homem

africano, suas crenças, como essas ideias aparecem materializadas no texto literário e

de que forma sensibilizam o professor-leitor para sua abordagem em sala de aula?

3 DA TEORIA À PRÁTICA A implementação do projeto ocorreu através de oito encontros presenciais

temáticos, além de questionamentos apresentados no ambiente moodle sobre os temas

discutidos. O processo iniciou-se pelo rompimento de qualquer abordagem que se

baseasse no senso comum. Primeiramente, apresentou-se a lei e as políticas

afirmativas e, para discutir sua relevância, foram apresentados dados estatísticos sobre

a situação atual do negro no Brasil a fim de promover uma reflexão mais aprofundada.

A seguir, o objetivo foi desencadear um processo intenso de questionamento

sobre o conceito de identidade e de como ela é constituída na pós-modernidade à luz

da teoria de Hall (2011). Neste momento, o objetivo foi mover antigas convicções sobre

os conceitos de identidade adquiridos ao longo da formação pessoal e profissional, bem

como a superação de versões únicas da História com vieses eurocêntricos que sempre

permearam a formação dos cursistas. A compreensão de que a identidade individual e

coletiva é constantemente reformulada e revisitada precisaria ser aceita a fim de que

novos saberes pudessem ser incorporados de forma satisfatória e ocorresse a

aceitação do afrodescendente como parte do eu identitário. Para isso, foram utilizadas

poesias sobre o tema, vídeo sobre a formação da identidade do afrodescendente desde

sua infância e os processos de identificação social e vídeo sobre o perigo de se confiar

em uma história única, todos permeados de discussão intensa e teoria apropriada.

A partir disso, o processo de desenvolvimento da implementação destacou as

características teóricas da Literatura Africana e do autor escolhido, com a finalidade de

preparar os cursitas para a interação com o texto literário. Todos os encontros foram

organizados em torno de um tema oriundo do conto selecionado, a partir do qual

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organizou-se um aporte teórico e uma estratégia para apreciação, análise e

extrapolação dos aspectos narrativos. O encadeamento das oficinas foi organizado de

forma que a cada leitura, o cursista fosse incorporando novos saberes que seriam

aplicados em leituras futuras.

Todas as etapas citadas foram planejadas com intuito de que o leitor penetrasse

verdadeiramente no universo de Mia Couto, identificasse em seus personagens e suas

histórias aspectos humanos que o tocassem, aguçassem sua percepção para traços da

cultura africana nele presentes e, além disso, reconhecesse que a verossimilhança dos

contos não pertencia a um único lugar nem a um único tempo, são comuns aos homens

de qualquer tempo e lugar. Assim, a proposta foi que o processo de identificação com

as temáticas: morte, mundo feminino, misticismo, ocorresse num processo natural,

culminado na proposta de trabalho pretendida, o hibridismo (HALL, 2011), também

apresentada através de um conto. O material elaborado no segundo semestre do PDE

foi disponibilizado ao professor, além da sugestão de abordagem dos demais contos

dos dois livros selecionados, utilizando-se as bases teóricas abordadas

presencialmente.

Também é importante destacar a quebra de paradigmas proporcionada por

aspectos teóricos apresentados. A importância da cultura oral como fonte legítima de

resgate histórico e literário (FERNANDES, 2012), valorização da visão mítica como

explicação para origem do mundo e base da religiosidade (ELIADE,1992) e importância

dos elementos simbólicos para compreensão do texto literário ( CHEVALIER, 1986).

Para finalizar os trabalhos, confeccionou-se uma camiseta (atividade inspirada

na obra Corpo Coletivo (2006) de Nardo Germano disponível em www.cult.ufba.br)

registrando diferentes traços identitários incorporados ao longo do curso com o fim de

reafirmar a ideia do trabalho com a afrodescendência baseado no hibridismo, ou seja, a

valorização dos aspectos culturais de diferentes etnias na formação brasileira,

sobretudo baseada na superação da hegemonia branca.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Os resultados finais foram coletados através das participações orais dos

cursistas nas oficinas presenciais e também da escrita registrada no ambiente moodle.

As atividades de registro oportunizaram a análise individual da percepção do

participante e de seu percurso ao longo do desenvolvimento de cada temática, bem

como a assimilação dos conceitos propostos. A análise dos dados deu-se de forma

qualitativa.

Nas oficinas iniciais, observou-se uma participação intensa e discussões

acaloradas sobre a lei e as políticas afirmativas. Quanto à análise dos dados

apresentados, uma reflexão aprofundada e rica foi desenvolvida com acréscimos

relevantes de professores de matemática e geografia.

Quanto ao trabalho com o conceito de identidade, além de reflexões

apresentadas oralmente, discutidas a partir de dados históricos, também o registro

escrito demonstrou a percepção de todos sobre sua intensa necessidade de

reconstrução. Através das atividades propostas, os cursistas revelaram que novos

traços são incorporados a todo momento e que, portanto, a afrodescendência é um

traço da cultura brasileira que necessita ser naturalizado. A partir da perspectiva de

cada um sobre si, foi possível uma sensibilização sobre como ocorre tal processo para

o afrodescendente que, desde a infância, está diante de um país preconceituoso que

lhe oferece processos degradantes de identificação.

Muitas questões levantadas pelo curso foram apontadas pelos cursistas como

pontuais, como por exemplo: a falta de referência para a criança negra, a história única

de que sempre foram vítimas, a cultura mítica diferente da que conhecem, ou seja, uma

visão de mundo que difere da qual estão habituados, mas não menos lógica, menos

importante, menos racional. Ou seja, mencionaram que, envolvidos pelo processo de

trabalho, acabam não refletindo sobre conceitos errôneos, deturpados e

preconceituosos que foram incorporados e reconheceram o curso como um momento

válido de formação com a finalidade de superar paradigmas.

A sensibilização pretendida pela escolha atenta dos contos pôde ser confirmada

por relatos registrados de experiências pessoais. Momentos vividos foram revisitados e

redimensionados a partir da cultura revelada pela leitura, especialmente o conceito de

morte.

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Outro ponto a ser destacado consiste na reação dos cursistas diante dos contos

apresentados. Demonstraram-se tocados com as histórias dos personagens e com os

conhecimentos da cultura africana oriundos dos contos lidos, extrapolaram muitas

vezes as narrativas para suas experiências pessoais e sensibilizaram-se com a

problemática que envolve o tema. Além disso, demonstraram surpresa ao lerem trechos

das primeiras obras literárias que descreviam os negros como animais e bestas.

Também convém destacar que as discussões promovidas pelo curso se

estenderam para outros ambientes da escola, incentivaram a elaboração de aulas com

enfoques diferentes dos que havia se realizado até então e a socialização com os

demais funcionários da escola que não estavam participando do curso.

Os cursistas demonstraram comoção após alguns vídeos e revelaram que a

superação da visão negativa que acompanha a criança negra desde a infância é algo

difícil de ser superado, porém a criação de processos de identificação positivos

desencadeados pela escola seriam caminhos para tal mudança.

O reconhecimento da identidade híbrida representou o ponto culminante do

projeto, pois nesta perspectiva acredita-se na valorização das diferentes etnias que

formaram o Brasil, na equiparação de suas relevâncias. Ou seja, não há mais espaço

para a supremacia de um povo sobre o outro, mas sim a aceitação de que cada um

contribuiu para que a ideia de nação fosse criada e, portanto, carecem do mesmo grau

de importância. É preciso superar antigos paradigmas e aceitar que a miscigenação

significa valorizar igualmente a contribuição de todos os povos

REFERÊNCIAS

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ANEXOS FIGURA 1

FIGURA 2

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