Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta

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Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta Simão Mendes de Sousa * I. Razão de Ordem Ao longo dos últimos anos tanto a Doutrina como a Jurisprudência têm vertido muita tinta sobre a exceção de jogo e aposta e a sua aplica- ção aos instrumentos financeiros derivados. Ainda que o culpado seja, em grande medida, o contrato de swap de taxa de juro e a excessiva litigiosidade que tem sido alvo no último trié- nio, esse desvalor pode ser importado para qualquer derivado de estrutura diferencial. Des- se modo, as considerações que faremos ao lon- go do presente estudo terão sempre em mente a gama de derivados diferenciais, partindo do contrato de swap de taxa de juro, não fosse este a estrela da companhia da gama de derivados diferenciais. A exceção de jogo e aposta é, grosso modo, uma questão pacífica em outros ordenamentos jurídicos sendo, em Portugal, um tema tabu, sobretudo porque para muita doutrina as noções de risco, rendibilidade do ativo e especulação são, ainda, um demónio de muitas cabeças. Contribui em larga medida a desconfiança que, desde sempre, mereceu ao direito o jogo e a aposta. Assim, tentaremos, ao longo das linhas desmistificar um pouco os derivados diferenci- ais, como também, demonstrar as nossas posi- ções no debate. Focaremos a nossa análise apenas na considera- ção como aposta dos derivados diferenciais, mesmo sabendo que estes podem ver as mais variadas invalidades decorrerem do período de formação do negócio. Institutos como a usura, o erro-vício, o dolo e a responsabilidade pré- contratual, mereciam igualmente uma cuidada avaliação, impossível de fazer dado o escopo deste trabalho. II. Os Derivados I. O primeiro desígnio que assumimos é ten- tar explicitar o que entendemos não só por ins- trumento financeiro derivado, como também por derivado diferencial. Nessa linha, é neces- sário um breve excurso teórico introdutório que ajudará a perceber a realidade estudada ao lon- go deste texto. Estudaremos a relação de deri- vação do instrumento, a definição de contrato diferencial, estudaremos as funções dos deriva- dos diferenciais, bem como, a aleatoriedade deste tipo de contratos. As linhas que se se- guem, são assim, teóricas e explanatórias deste tipo de instrumentos. A primeira nota de relevo é a inexistência, ao longo de todo o articulado do Código dos Valores Mobiliários de uma proposta de definição de instrumento financeiro derivado 1 , prevendo-se apenas algumas categorias (como sejam os futuros, as opções, os swaps), não se impondo nenhuma lista taxativa de * - Mestre em Direito e Gestão de Empresas pela Universidade Nova de Lisboa; Advogado. 1- Encontramos na Doutrina e na Jurisprudência definições de instrumentos financeiros derivados, como também de instrumento financei- ro, definição essa que deve ser tida como o ponto de partida. Assim, uma possível definição de instrumento financeiro, é-nos fornecida por ENGRÁCIA ANTUNES, dizendo que os instrumentos financeiros são um conjunto de instrumentos juriscomerciais suscetíveis de criação e/ou a cobertura do risco da atividade económica das empresas”. Cfr. Os Derivados, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º30, Agosto de 2008, P.96. Pela parte da jurisprudência, pode-se ler que os instrumentos financeiros são um conjunto de instrumentos juriscomerciais suscetíveis de criação e/ou negociação em mercado de capitais, que têm por finalidade primordial o financiamento e/ou a cobertura do risco da atividade económica das empresas. Tais instrumentos financeiros encontram-se expressamente consagrados no artigo 2.º, n.ºs 1 e 2 do CVM, sendo os instrumentos derivados um dos tipos ou categorias dos instrumentos financeiros contradistinguindo-se dos demais (instrumentos mobiliários e instrumentos monetários) por serem instrumentos típicos do mercado de capitais a prazocfr. Ac. TRL 08-05-2014 (ILÍDIO SACARRÃO MARTINS), Processo n.º 531/11.7 TVLSB.L1-8.

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1 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta Simão Mendes de Sousa *

I. Razão de Ordem

Ao longo dos últimos anos tanto a Doutrina

como a Jurisprudência têm vertido muita tinta

sobre a exceção de jogo e aposta e a sua aplica-

ção aos instrumentos financeiros derivados.

Ainda que o culpado seja, em grande medida, o

contrato de swap de taxa de juro e a excessiva

litigiosidade que tem sido alvo no último trié-

nio, esse desvalor pode ser importado para

qualquer derivado de estrutura diferencial. Des-

se modo, as considerações que faremos ao lon-

go do presente estudo terão sempre em mente a

gama de derivados diferenciais, partindo do

contrato de swap de taxa de juro, não fosse este

a estrela da companhia da gama de derivados

diferenciais.

A exceção de jogo e aposta é, grosso modo,

uma questão pacífica em outros ordenamentos

jurídicos sendo, em Portugal, um tema tabu,

sobretudo porque para muita doutrina as noções

de risco, rendibilidade do ativo e especulação

são, ainda, um demónio de muitas cabeças.

Contribui em larga medida a desconfiança que,

desde sempre, mereceu ao direito o jogo e a

aposta. Assim, tentaremos, ao longo das linhas

desmistificar um pouco os derivados diferenci-

ais, como também, demonstrar as nossas posi-

ções no debate.

Focaremos a nossa análise apenas na considera-

ção como aposta dos derivados diferenciais,

mesmo sabendo que estes podem ver as mais

variadas invalidades decorrerem do período de

formação do negócio. Institutos como a usura, o

erro-vício, o dolo e a responsabilidade pré-

contratual, mereciam igualmente uma cuidada

avaliação, impossível de fazer dado o escopo

deste trabalho.

II. Os Derivados

I. O pr imeiro desígnio que assumimos é ten-

tar explicitar o que entendemos não só por ins-

trumento financeiro derivado, como também

por derivado diferencial. Nessa linha, é neces-

sário um breve excurso teórico introdutório que

ajudará a perceber a realidade estudada ao lon-

go deste texto. Estudaremos a relação de deri-

vação do instrumento, a definição de contrato

diferencial, estudaremos as funções dos deriva-

dos diferenciais, bem como, a aleatoriedade

deste tipo de contratos. As linhas que se se-

guem, são assim, teóricas e explanatórias deste

tipo de instrumentos.

A primeira nota de relevo é a inexistência,

ao longo de todo o articulado do Código dos

Valores Mobiliários de uma proposta de

definição de instrumento financeiro derivado1,

prevendo-se apenas algumas categorias (como

sejam os futuros, as opções, os swaps), não

se impondo nenhuma lista taxativa de

* - Mestre em Direito e Gestão de Empresas pela Universidade Nova de Lisboa; Advogado. 1- Encontramos na Doutrina e na Jurisprudência definições de instrumentos financeiros derivados, como também de instrumento financei-ro, definição essa que deve ser tida como o ponto de partida. Assim, uma possível definição de instrumento financeiro, é-nos fornecida por ENGRÁCIA ANTUNES, dizendo que “os instrumentos financeiros são um conjunto de instrumentos juriscomerciais suscetíveis de criação e/ou a cobertura do risco da atividade económica das empresas”. Cfr. Os Derivados, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliár ios, n.º30, Agosto de 2008, P.96. Pela parte da jurisprudência, pode-se ler que “os instrumentos financeiros são um conjunto de instrumentos juriscomerciais suscetíveis de criação e/ou negociação em mercado de capitais, que têm por finalidade primordial o financiamento e/ou a cobertura do risco da atividade económica das empresas. Tais instrumentos financeiros encontram-se expressamente consagrados no artigo 2.º, n.ºs 1 e 2 do CVM, sendo os instrumentos derivados um dos tipos ou categorias dos instrumentos financeiros contradistinguindo-se dos demais (instrumentos mobiliários e instrumentos monetários) por serem instrumentos típicos do mercado de capitais a prazo” – cfr. Ac. TRL 08-05-2014 (ILÍDIO SACARRÃO MARTINS), Processo n.º 531/11.7 TVLSB.L1-8.

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instrumentos financeiros derivados tidos como

aceitáveis. É de aplaudir este tipo de técnica

legislativa, uma vez que permite mediante a

verificação das principais características de um

determinado instrumento financeiro, se possam

criar novos instrumentos financeiros2. Este tipo

de técnica legislativa, permite uma maior adap-

tabilidade do Código e resistência ao decurso

do tempo e aos movimentos de inovação finan-

ceira, permitindo que não se excluam do seu

âmbito, todos os instrumentos que mediante

pontuais modificações se consigam eximir ao

escopo de proteção do código.

II. Simplisticamente, até poder íamos encer -

rar este breve excurso dizendo que ao estudar

um instrumento financeiro derivado, estudamos

aqueles instrumentos financeiros cujo valor de-

riva de um outro ativo subjacente3. Sucede que,

deixaríamos de parte uma fatia muito importan-

te das características destes instrumentos, uma

vez que, as possíveis dificuldades apresentadas

pela estrutura própria deste tipo de instrumentos

contribui para que haja quem na Doutrina con-

sidere que estes se devem ter como a “figura

mais misteriosa de todas quantas neste domínio

se defrontam”4.

Um dos aspetos essenciais deste tipo de instru-

mentos encontra-se no facto de estes não pode-

rem, sem mais, existir de uma forma isolada,

estando sempre indexados a um outro ativo

subjacente que lhes dá vida e fundamenta a

“técnica de derivação”5.

III. Os instrumentos financeiros der ivados

que são aptos a levantar a questão de existência

ou não de uma aposta, são os que são formados

com base num contrato diferencial, os chama-

dos derivados diferenciais.

Uma definição possível de contratos diferenci-

ais6 é aquela, consoante a qual estamos diante

de um contrato diferencial, quando encaramos

um contrato “em que é devida uma só prestação

em dinheiro, igual à diferença entre o valor de

referência inicial de um bem (real ou nocional),

de um indicador de mercado [elemento comum

aos futuros e às opções diferenciais] ou da rela-

ção entre dois bens ou indicadores de mercado

[elemento especifico dos swaps diferenciais] e

o valor do mercado em data futura do mesmo

bem, indicador de mercado ou relação de valo-

res. A prestação beneficia aquela das partes

que, podendo exigi-la, tenha previsto correta-

mente a alta ou a baixa do valor de mercado ou

a valorização de um dos bens em relação ao

outro”7. O pagamento desta diferença tem, co-

mo opções, uma única prestação ao momento

do fecho da operação (próprios ou puros) ou,

contrariamente, uma conta corrente mediante

determinados ajustes periódicos (impróprios ou

2- No mesmo sentido, RENATO GONÇALVES, Nótulas Comparatísticas Sobre os Conceitos de Valor Mobiliário, Instrumento do Mercado Monetário e Instrumento Financeiro na DMIF e no Código dos Valores Mobiliários, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º19, Dezembro de 2004, Lisboa, P.102. 3- Cfr, STEVEN EDWARDS, The Legal Principles of Derivatives, in Journal of Business Law, January Issue, 2002, London, Sweet&Maxwell, P.2 e ENGRÁCIA ANTUNES, Os Instrumentos Financeiros, 2009, Coimbra, Almedina, P.119. 4- Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, Derivados, in Direito dos Valores Mobiliários, Vol. IV, 2003, Lisboa, Coimbra Editora, P. 41. 5- A expressão é da autoria do saudoso AMADEU FERREIRA, in Direito dos Valores Mobiliários, 1997, Lisboa, A.A.F.D.L., P.239. Rejeitando a possibilidade dos instrumentos financeiros nascerem ou subsistirem de forma isolada, cfr. CALVÃO DA SILVA, Swap de Taxa de Juro: Sua Legalidade e Autonomia e Inaplicabilidade da Exceção de Jogo e Aposta, in Revista de Legislação e Jur isprudência, Ano 142.º, n.º 3979, Março-Abril de 2013, Coimbra, Coimbra Editora, P. 268. 6- ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA, não entende os contratos diferencias como uma categoria autónoma de derivados, mas sim uma forma de liquidação/compensação de outros contratos de derivados. Cfr. Instrumentos Financeiros: Os Swaps, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, 2011, Coimbra, Almedina, P. 41. 7- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos Diferenciais, in Estudos Comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Vol. II, 2008, Coimbra, Almedina, P. 93-94 e notas 34 e 35.

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impuros)8, sendo o seu objeto, apenas e só, di-

nheiro9. Os contratos diferenciais, à semelhança

de todos os outros derivados, também assumem

finalidades de cobertura de risco ou especulati-

vas10, sendo aptos a serem celebrados para re-

gistar um ganho ou evitar uma perda, ou seja,

não se limitam a uma ação de cobertura de risco

podendo também incluir especulação11. Sobre

estas duas refletiremos em seguida.

IV. Pela banda da gestão ou cobertura de

risco, importa salientar que as par tes quando

celebram um derivado diferencial procuram,

tendencialmente12, acautelar-se contra a volati-

lidade do mercado e suas variações negativas

ou positivas13. Não se afigura descabido afirmar

que as empresas lidam, diariamente, com todo

um universo de desafios relacionados com o

risco. A variação de indicadores ou tendências

no mercado fazem com que as empresas umas

vezes registem ganhos, registando perdas nou-

tros, assim diluindo a sua exposição ao risco.

Do mesmo modo, não se afigura despicienda a

afirmação segundo a qual ser do interesse de

qualquer equipa de gestão, que gira os seus ati-

vos de forma racional, uma limitação do risco a

que se encontra exposta. É este o contexto, sa-

bendo que a volatilidade do mercado vai sem-

pre existir, em que surge a necessidade de co-

bertura de risco (hedging). O que as partes pro-

curam é precaverem-se contra as consequências

adversas da volatilidade do mercado. Na procu-

ra de alguma segurança, afigura-se natural que

as partes percam algumas oportunidades que

lhes sejam favoráveis em face da volatilidade

do mercado. Dada a aleatoriedade típica deste

tipo de instrumentos, sempre existirá o risco de

perda, ou seja, aqueles casos em que o instru-

mento aumenta o valor dos pagamentos a reali-

zar, encontrando-se assim, out-of-the-money14,

no caso contrário, aquele em que o investidor

regista ganhos com a previsão efetuada, diz-se

que, para ele, o instrumento se encontra in-the-

money.

Pelo lado da função especulativa, sempre mere-

cerá importância a referência de que o resultado

obtido dependerá sempre da direção em que o

mercado e os seus preços se movimentem, mas

também, da incerteza que se cria durante o perí-

odo de tempo compreendido até à maturidade

do instrumento15. Quando todos os movimentos

do mercado decorrerem conforme o projetado,

o investidor obtém um ganho de gestão que lhe

pode facilitar, por exemplo, o financiamento da

empresa, em função das dificuldades na conces-

são de crédito, assegurando, deste modo, a li-

quidez no mercado. Poderá, igualmente, ser

vista como o reverso da medalha da gestão ou

cobertura de risco, o risco coberto por uma das

partes é assumido, pela outra parte16. A especu-

lação deve ser vista como a deliberada e consci-

ente exposição do investidor às incertezas do

mercado, com a intenção de retirar dessas

8- Cfr. ENGRÁCIA ANTUNES, Os Instrumentos Financeiros, 2009, cit., P.189. 9- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, Contratos de Cooperação e de Risco, 2.ª Edição, 2013, Lisboa, Almedina, P. 281 10- Cfr. ENGRÁCIA ANTUNES, Os Derivados, cit., P.126. 11- Cfr. ALASTAIR HUDSON, The Law of Finance: a Comprehensive Treatise for Practitioners, 2010, London: Sweet & Maxwell, P. 1122. Nos instrumentos financeiros derivados que não tenham estrutura diferencial, ainda se acrescenta a função arbitragista. Por seu turno, MENEZES CORDEIRO acrescenta ainda a função seguradora enquanto função dos instrumentos financeiros derivados. Manifestamos humildemente a nossa discordância do distinto Professor, sobretudo por considerarmos que a função seguradora não possui a autonomia nesta sede que o Autor defende, propondo por isso que a mesma seja parte da função de gestão ou cobertura de risco. Cfr. MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Bancário, 2014, 5.ª Edição, Lisboa, Almedina, P. 885. 12- Tendencialmente, uma vez que pode haver uma outra motivação, como seja, por exemplo uma tendência de mercado contra a qual se pretendem acautelar. 13- Cfr. PAUL GORIS, The Legal Aspects of Swaps, 1994, London, Graham & Trotman, pp. 78-79 14- Cfr. JOHN-PETER CASTAGNINO, Derivatives: The Key Principles, 2009, London, Oxford, P.57. 15- Cfr. PAUL GORIS, cit., P.81. 16- Cfr. PAUL GORIS, cit., P.82. Para este Autor, tudo aquilo que não deva ser qualificado como gestão ou cobertura de risco, deverá ser qualificado de especulação. Cfr., no mesmo sentido, ENGRÁCIA ANTUNES, Os Instrumentos Financeiros, cit., P.125, nota 253.

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4 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

incertezas um benefício económico. Em síntese,

o objetivo do especulador é obter um ganho

pela abertura de uma posição de mercado que

lide com o risco17.

V. Uma caracter ística essencial dos der iva-

dos diferenciais prende-se com a sua aleatorie-

dade. Ou seja, o risco e a incerteza são os forne-

cedores da causa e objeto contratuais18. Ao mo-

mento da celebração, as partes não têm conhe-

cimento sobre qual recairá o prejuízo, nem tão-

pouco a sua medida. A consciência das partes

está na possibilidade de existir uma desvanta-

gem ou prejuízo agindo, e naturalmente gerindo

as suas expectativas, em sentido inverso, acre-

ditando que vão registar um ganho com a ope-

ração19. O risco de variação é o combustível dos

contratos aleatórios, a determinação da presta-

ção a realizar acontece no fim do período con-

tratual, sendo esse o momento em que as partes

percebem quem registou um ganho e quem re-

gistou uma perda com a operação. Uma boa

definição é aquela que vê nos contratos aleató-

rios, “aqueles em que uma das atribuições patri-

moniais, ou ambas, está dependente de uma

álea, ou seja, de um facto incerto quanto à sua

verificação (incertus an) ou quanto ao momento

da sua verificação (incertus quando)”20. Impor-

ta, ainda, referir que a álea do contrato deve ser

tida como bilateral, sendo os contratos, no caso

estudado dos derivados diferenciais, onerosos.

VI. Importa ainda, em jeito de síntese, deixar

algumas breves notas finais. Uma primeira, pa-

ra referir que os derivados obedecem às regras

de direito bancário, por se tratarem na maioria

dos casos de instrumentos negociados por insti-

tuições de crédito. Para além disso, tratam-se

ainda de contratos bancários – ainda que, em

sentido amplo. Convocam-se, a este propósito,

todas aquelas regras informativas, contratuais e

pré-contratuais, mas também ao respeito pela

confiança como vetor essencial da relação ban-

cária21. Uma segunda para alertar que o leque

de ativos subjacentes aos quais um instrumento

financeiro derivado possa ser indexado são,

praticamente ilimitados. Uma terceira, para

alertar para o efeito de alavancagem financei-

ra22 que a utilização deste tipo de instrumentos

permite, uma vez que mediante uma pequena

parcela de investimento feito para a contratuali-

zação do instrumento financeiro base, represen-

tante apenas de uma pequena parte do investi-

mento total, se aumenta exponencialmente a

exposição ao risco do investidor, podendo o

investidor amplificar, positiva ou negativamen-

te, os seus resultados23. Uma quarta e última

nota¸ para estabelecer que os instrumentos fi-

nanceiros derivados se dividem naqueles que se

negoceiam em mercado regulamentado, e aque-

les que se negoceiam em mercado de balcão

(Over-The-Counter, OTC), estes últimos são

iminentemente marcados pela autonomia priva-

da, negociados individualmente mediante as

necessidades e intentos de cada investidor, sen-

do precisamente esta característica que mais

cativa os investidores.

III. O Jogo e Aposta

I. Importa refer ir que, o jogo e a aposta são

regulados pelos artigos 1245.º e seguintes do

CC. Interessam, fundamentalmente, para o nos-

so estudo, os artigos 1245.º e 1247.º do CC. O

primeiro, refere que “o jogo e aposta não são

contratos válidos nem constituem fonte de

17- Cfr. PAUL GORIS, cit., P.80. 18- Cfr. Ac. STJ, de 10-10-2013, Processo n.º 1387/11.5 TBBCL.G1.S1 (GRANJA DA FONSECA) e ENGRÁCIA ANTUNES, Os Instrumentos Financeiros, cit., P.129-130. 19- Cfr. CATARINA MONTEIRO PIRES, Entre um Modelo Corretivo e um Modelo Informacional no Direito Bancário e Financeiro, in Cadernos do Direito Pr ivado, n.º 44, Outubro-Dezembro, 2013, Braga, Coimbra Editora, P.6. 20- Cfr. JOÃO DE CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, Lisboa, A.A.F.D.L.¸ Pp. 485-486. 21- Cfr. MENEZES CORDEIRO, cit., P.853. 22- Cfr. AMADEU FERREIRA, cit., P.235. 23- Cfr. HÉLDER MOURATO, O Contrato de Swap de Taxa de Juro, 2014, Lisboa, Almedina P.23.

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5 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

obrigações civil; porém, quando lícitos, são

fonte de obrigações naturais, exceto se neles

concorrer qualquer outro motivo de nulidade

ou anulabilidade, nos termos gerais de direito,

ou se houver fraude do credor na sua execu-

ção”. Por seu turno, o segundo artigo enunciado

refere-nos que, “fica ressalvada a legislação

especial sobre a matéria de que trata este capí-

tulo”.

II. A distinção entre as duas figuras não é de

fácil cotejo, razão pela qual o legislador optou

sempre por não a fazer24. Aliás, a forma como o

Direito Civil aborda a matéria é repleta de som-

bras e zonas cinzentas, uma vez que, a principal

preocupação se prende com a efetiva invalidade

qua tale do jogo e da aposta25, ou seja, o seu

desvalor jurídico, faltando sempre um conceito.

O regime do jogo e aposta no Código Civil de

1966, sintetiza-se facilmente, “segundo a tradi-

ção e por compreensíveis razões de moralida-

de, estabeleceu-se o princípio de que o jogo e

aposta não constituem contratos válidos. Eles

não são modos admissíveis de aquisição. Não

têm a proteção da lei, porque a sua causa, o

seu fim, não é de molde a justifica-la. Não pro-

duzem pois efeitos jurídicos, não são fonte de

obrigações civis: o contratante que ganhou não

pode reclamar judicialmente ao outro o que

este perdeu”26.

Não devemos olvidar que, grosso modo, o trata-

mento jurídico que lhes é concedido decorre do

interesse económico conexionado com o resul-

tado que obtém, ou seja, “a contingência de

uma perda ou de um lucro”27. Amplamente, dir-

se-á que o contrato tem um risco endógeno, ou

seja, o risco deriva do contrato, sendo o seu

custo certo quanto à sua verificação, incerto

quanto à parte sobre a qual recai, ou seja, con-

tratos de risco puro28. Estritamente, o jogo coin-

cide com a aposta sobre factos que se situam

fora da esfera de controlo do apostador29.

Uma noção possível de contrato de jogo é aque-

la segundo a qual, as partes (jogadores), volun-

tariamente30 num momento competitivo entre

os próprios31 de fim recreativo32 regido por re-

gras próprias previamente estabelecidas, subor-

dinado a um evento fortuito de verificação futu-

ra, convencionam a obrigação de uma prestação

pecuniária (ou um qualquer prémio com valor

patrimonial33) no caso de perda, em função da

parte vencedora. Neste contrato, as partes têm

uma influência fundamental no desenrolar dos

acontecimentos34, sendo as próprias a ditar a

sua sorte futura, com a jogada que pretendam

24- Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Volume III, Contratos em Especial, 9.ª Edição, 2014, Coimbra, Almedina, P.523. Ainda que o STJ, no caso que analisamos, a propósito do disposto no artigo 1245.º do CC, refira que o preceito “faz o «distinguo» entre jogo e aposta sendo comum a ambos a natureza aleatória – possibilidade de ganhar ou perder por fatores em absoluto alheios à intervenção do jogador/apostador” – Cfr. Ac. STJ de 11-02-2015, Processo n.º 309/11.8TVLSB.L1.S1 (SEBASTIÃO PÓVOAS). 25- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, cit. P. 273. 26- Itálicos nossos. Cfr. INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Contratos Civis: Projecto Completo de um Título do Futuro Código Civil Português e Respectiva Exposição de Motivos, in B.M.J, n.º 83, 1959, P.182. 27- Cfr. PIRES DE LIMA/ ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. II (Artigos 762.º a 1250.º), 4.ª Edição, Reimpressão, 2010, Coimbra, Coimbra Editora, P. 927 28- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, cit. P. 272 e 273. 29- Cfr. RUI PINTO DUARTE, O Jogo e o Direito, in Themis, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, N.º3, Ano II, 2001, Lisboa, Almedina, P. 70 30- Cfr. RUI PINTO DUARTE, cit., P.70. 31- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, cit., P. 274. 32- Cfr. PAULO MOTA PINTO, Contrato de Swap de Taxas de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág. 413) in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 143.º, N.º 3988, Setembro-Outubro de 2014, Coimbra, Coimbra Editora, P. 16 33- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, cit. P. 275. 34- Cfr. PAULO MOTA PINTO, Contrato de Swap de Taxas de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág. 413), cit., P.16

Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta : 05

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6 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

efetuar. As regras a observar são percetivas35,

uma vez que, apenas estabelecem ou determi-

nam o comportamento a observar no decurso do

jogo, propriamente dito.

Por seu turno, o contrato de aposta – simplisti-

camente –, queda-se pelo interesse económico

aliado ao jogo. Ou seja, quem erre acerca da

previsão, ou veracidade de um certo evento36,

qualquer que ele seja37, obriga-se a efetuar a

prestação patrimonial a favor de quem tenha

conseguido prever corretamente o desfecho so-

bre o qual recaiu a aposta, sendo esta que atri-

bui o interesse jurídico ao jogo38. O foco aqui

não está na atividade exercida, mas sim, no de-

senrolar da verificação do facto incerto e futuro.

Como bem refere o Supremo Tribunal de Justi-

ça, cumprindo a sua função de esculpir a dife-

renciação entre uns e outros, refere-nos que,

“enquanto no jogo existe um acordo segundo o

qual uma das partes se obriga a pagar à outra

certa quantia, sendo que o vencedor participou,

teve intervenção na lide; na aposta há um desa-

cordo inicial relativamente à verificação de um

evento (passado ou futuro) e o apostador inves-

te determinada quantia, ou valor, no sentido de

que se o evento em que apostou se verificar (ou

tiver ocorrido) auferir uma vantagem económi-

ca”39. Ou seja, a aposta implica a obrigação de

prestar algo que recairá sobre a parte que falhar

a previsão40. Sumarizando, para existir jogo ou

aposta, não pode deixar de se referir a necessi-

dade de existência de um animus de jogo e

aposta41, mormente, a verificação de uma ver-

tente recreativa ou de entretimento42, sem a

qual não se pode defender a existência de jogo

ou aposta.

III. Ainda que a jur isprudência levantada

seja relativa ao contrato de swap de taxa de

juro43, vale a pena olhar para os principais argu-

mentos, contra e favor, que esta esgrime. Por

um lado, argumenta-se que a existir uma aposta,

esta não visará uma ocorrência dependente ape-

nas da sorte, ou seja um evento fortuito, enten-

dendo-se que se trata antes de um prognóstico

acerca da evolução de uma determinada taxa de

juro44. Igualmente se refere que, a especulação

adveniente de um derivado que não tenha liga-

ção direta a um outro instrumento financeiro,

possa ser colocada no domínio do abstrato, não

podendo deixar de ser desconsiderada, em vir-

tude da sua criação de riqueza artificial45. Ainda

se defende, para que não se considere o instru-

mento enquanto jogo ou aposta que a relação de

derivação se verifique ao longo de todo o con-

trato, sem a qual haverá uma situação de jogo

ou aposta, admitindo-se, no limite, uma manu-

tenção dos níveis de endividamento durante

todo o período do instrumento46.

35- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, cit. P. 276. 36- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, cit. P. 277. 37- Cfr. HÉLDER MOURATO, O Contrato de Swap de Taxa de Juro, cit., P.70. 38- Cfr. PIRES DE LIMA/ ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. II, cit., P. 927 39- Cfr. Ac. STJ de 11-02-2015, Processo n.º 309/11.8TVLSB.L1.S1 (SEBASTIÃO PÓVOAS). 40- Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Volume III, cit., P.523. 41- Cfr. PAULO MOTA PINTO, Contrato de Swap de Taxas de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág. 413), cit., P.18 42- Cfr. PEDRO BOULLOSA GONZALEZ, Interest Rate Swaps: Perspectiva Jurídica, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliár ios, n.º44, Abril de 2013, Lisboa, P. 20 43- Cfr., para um levantamento completo dos argumentos aduzidos na Jurisprudência Nacional, o nosso Contrato de Swap de Taxa de Juro: Validade ou Invalidade do Contrato no Ordenamento Jurídico Nacional, in ROA, Ano75, Vol. III/IV, Junho/ Dezembro de 2015, Lisboa, P. 708 e segs. 44- Cfr. Ac. STJ de 29-01-2015, Processo n.º 531/11.7TVLSB.L1.S1 (BETTENCOURT DE FARIA). 45- Idem, idem. 46- Cfr. Ac. TRL de 21-03-2013, Processo n.º 2587/10.0TVLSB.L1.6 (ANA AZEREDO COELHO).

Page 7: Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta

7 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Por outro lado, entende-se que, quando o inves-

tidor procura este tipo de instrumentos o faz

baseando-se numa operação de cobertura de

risco (ou hedging), já se encontrando sujeito a

riscos de variações da taxa de juro procurando,

deste modo, atenuar o risco ao invés de criar

mais risco47. Além do mais, o instrumento fi-

nanceiro derivado basta-se a si próprio, não ne-

cessitando de um outro instrumento financeiro

do qual este derive48. Ainda se defende, com

interesse que a principal distinção entre um

contrato de derivados e o jogo e aposta, radica

nas finalidades económico-financeiras das par-

tes e a racionalidade económica na assunção de

um determinado risco, baseado em avaliações e

análises ao mercado49. A própria liberdade de

celebração mediante as cláusulas apresentadas,

sugere que as partes quiseram que o contrato

tivesse o conteúdo que acabou por ter, afastan-

do-se igualmente o jogo ou aposta50. Reputa-se,

ainda, a especulação tida como inerente a estes

instrumentos como própria dos agentes de mer-

cado e motivada por razoes económico-

financeiras racionais, opondo-se aos fundamen-

tos irracionais típicos do jogo e da aposta51. De-

fendendo-se, na mesma linha, que as taxas de

juro EURIBOR enquanto indexante se encon-

tram fortemente condicionadas pelo Banco

Central Europeu, e só com base nos elementos

destas entidades se pode fazer uma previsão

racional de movimentação do indexante52. Por

último, defende-se que a previsão legal do art.

2.º, n.º1 do Código dos Valores Mobiliários é

quanto basta para afastar o regime do art. 1245.º

do CC, acrescentando-se, ainda que, para a

existência de uma situação de jogo ou aposta é

necessária que ambas as partes manifestem essa

intenção53.

Não podemos deixar de referir os argumentos

aduzidos pelo Acórdão do Commercial Court

de Londres54 no caso dos contratos de swap de

taxa de juro das empresas públicas de transpor-

tes portuguesas, considerando ainda existirem

razões que permitam concluir que os referidos

contratos visavam, na sua génese, a redução dos

custos de financiamento das empresas, reconhe-

cendo a gestão de custos efetuada como um

fundamento válido e indiciador de uma função

de gestão de risco por parte das empresas. Mas

mesmo que assim não fosse, e estes fossem pu-

ramente especulativos, apoiando-se em algumas

decisões dos Tribunais Superiores Portugueses,

o Commercial Court de Londres, não considera

a especulação uma atividade ilegítima sobretu-

do num terreno altamente regulado como este,

entendendo como válidos os referidos contra-

tos, afastando assim a nulidade por serem

contratos de jogo ou aposta, conforme o petici-

onado55.

IV. Do lado da Doutr ina os argumentos –

também eles relativos ao contrato de swap de

taxa de juro –, com algumas nuances, não di-

vergem substancialmente dos argumentos esgri-

midos pela Jurisprudência. Assim, temos quem

pronunciando-se a favor da consideração como

jogo e aposta defenda que, se devem reconduzir

47- Cfr. Ac. STJ de 11-02-2015, Processo n.º 309/11.8TVLSB.L1.S1 (SEBASTIÃO PÓVOAS). 48- Cfr. Ac. STJ de 11-02-2015, Processo n.º 309/11.8TVLSB.L1.S1 (SEBASTIÃO PÓVOAS), Ac. TRP de 28-10-2015, Processo n.º 27/14.5TVPRT.P1 (SOUSA LAMEIRA). 49- Cfr. Ac. STJ de 03-05-2016, Processo n.º 27/14.5TVPRT.P1.S1 (SILVA SALAZAR). 50- Cfr. Ac. TRL de 15-01-2015, Processo n.º 876/12.9TVLSB.L1.6 (MANUELA GOMES). 51- Cfr. Ac. TRL de 08-05-2014, Processo n.º 531/11.7TVLSB.L1.8 (ILÍDIO SACARRÃO MARTINS). 52- Cfr. Ac. STJ de 26-01-2016, Processo n.º 876/12.9TVLSB.L1.S1 (GABRIEL CATARINO). 53- Cfr. Ac. TRL de 13-05-2013, Processo n.º 309/11.8TVLSB.L1.7 (MARIA DO ROSÁRIO MORGADO). 54- Cfr. BST v. Transport Companies [2016] EWHC 465 (Comm). 55- Cfr. BST v. Transport Companies [2016] EWHC 465 (Comm), PART G: THE “GAME OF CHANCE” ISSUE, (c) Conclusions.

Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta : 07

Page 8: Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta

8 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

a jogo e aposta sempre que sejam meramente

especulativos56, estendendo-se aos contratos

que não lhe vêm diretamente ligada uma opera-

ção financeira – indexados, por exemplo, a um

montante nocional57. Do mesmo modo, se con-

sidera como um contrato de jogo ou aposta,

quando o contrato é a fonte do risco, não exis-

tindo esse risco fora do contrato58. Um outro

argumento, prende-se com a inexistência, na

previsão do art. 2.º, n.º1 do CVM de uma defi-

nição legal ou autorização do mesmo em todas

as suas modalidades, sendo de aplicar o art.

1245.º do CC59. Mesmo que, apenas no decurso

do contrato este deixe de ter, primordialmente,

a função de cobertura de risco, devendo consi-

derar-se este como contrário à lei (cfr. art. 281.º

do CC) pela ilicitude da sua causa60, decorrente

do repúdio, que esta corrente defende encontrar

no nosso ordenamento jurídico, da especula-

ção61. Um outro argumento, com base na estru-

tura diferencial (v.g., a título de exemplo, os

swaps, futuros e opções diferenciais), defende

que sendo os diferenciais tendencialmente um

subtipo de aposta, assim deve ser considerado o

instrumento sempre que não cubra um risco de

mercado real e exógeno, sendo assim nulos62.

Finalmente, entende-se que não existindo uma

amortização, ao longo do período de subsistên-

cia do instrumento, do montante nocional o ris-

co vai-se modificando para um risco fictício,

transformando o contrato, em contrato pura-

mente especulativo63.

De outra banda, defende-se que não deve haver

uma confusão do jogo e aposta com instrumen-

tos financeiros derivados, uma vez que o con-

texto estrutural e finalidade de uns e outros, são

absolutamente distintas64, em virtude de ao jogo

e aposta se encontrar, na esmagadora maioria

das vezes, associada uma vertente lúdico-

recreativa65, sendo a vontade do contratante

dominado pela submissão à verificação de um

acontecimento incerto66, tendo ambas as partes

a mesma intenção, ou seja, a intenção de apos-

tar67, o que neste plano se afigura de particular

dificuldade em virtude de uma das partes se

tratar de um profissional de intermediação fi-

nanceira68. Aliás, considerar o contrato como de

56- Cfr. LEBRE DE FREITAS, Contrato de Swap Meramente Especulativo, Regimes de Validade e de Alteração de Circunstâncias, in R.O.A., Ano 72, Vol. IV Outubro/Dezembro, 2012, Lisboa. P.949 57- Cfr. HÉLDER M. MOURATO, Swap de Taxa de Juro: A Primeira Jurisprudência, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, N.º44, Abril de 2013, Lisboa, P.41. Ou seja, a inexistência de “(…)efeito jurídico direto, que não o risco”, não tendo, como tal, “(…) qualquer outro efeito que não a captura do produto do risco”. Cfr. MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Bancário, cit., P. 944 e LEBRE DE FREITAS, cit., P. 949. 58- Cfr. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Contratos de Risco e Contratos Especulativos em Direito Bancário, in I Congresso de Direito Bancário, Coordenação: L. MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS, 2015, Coimbra, Almedina, P.93 59- Cfr. LEBRE DE FREITAS, cit., P. 952. 60- Cfr. LEBRE DE FREITAS, cit., P. 953. 61- fr. LEBRE DE FREITAS, cit., P. 953, Nota 23. 62- Cfr. HÉLDER M. MOURATO, Swap de Taxa de Juro: A Primeira Jurisprudência, cit., P.39-42 e HÉLDER M. MOURATO, O Contrato de Swap de Taxa de Juro, cit., P.69. 63- Idem, idem. 64- Cfr. PEDRO BOULLOSA GONZALES, cit., P.21. 65- Cfr. PEDRO BOULLOSA GONZALES, cit., P.10 66- Cfr. CALVÃO DA SILVA, Swap de Taxa de Juro: Sua Legalidade e Autonomia e Inaplicabilidade da Excepção de Jogo e Aposta, cit., P.265. 67- Cfr. CLARA CALHEIROS, O Contrato de Swap no Contexto da Actual Crise Financeira Global, in Cadernos de Direito Pr ivado, N.º42.º, Agosto, 2013, Braga, Coimbra Editora, P.8. 68- Cfr. PAULO MOTA PINTO, Contrato de Swap de Taxas de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág. 413), cit., P.25.

Page 9: Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta

9 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

jogo ou aposta sem que as partes o tivessem

querido dessa forma, seria um desrespeito into-

lerável pela autonomia privada69. O simples

facto de uma das partes correr o risco de sofrer

uma perda, enquanto a outra recebe um ganho,

nada mais indicia do que a verificação da bila-

teralidade de prestações decorrente da vontade

das partes70. É, aliás, esse o papel da cobertura

de risco71, motivo mais do que suficiente para

defender a relevância desta para a gestão de

endividamento na economia mundial, o que,

desaconselha a sua recondução a jogo e aposta72

podendo, no limite, redundar no definhamento

do mercado de derivados73. Um último argu-

mento vê na previsão legal do art. 2.º, n.º1 do

CVM a legislação especial a que se refere o

disposto no art. 1247.º do CC74.

IV. Apreciação crítica

I. Noutra sede já, detalhadamente, tivemos a

oportunidade de dissecar os argumentos quer

Jurisprudenciais, quer Doutrinários que, com a

devida nota de se referirem ao contrato de swap

de taxa de juro, nos parecem ainda atuais, para

onde remetemos75.

Parece-nos possível afirmar que o tratamento

que o direito civil concede ao jogo e à aposta,

apenas se compreende numa lógica de reprova-

ção moral que o legislador fez destes, sobretudo

por ter considerado que a assunção de riscos

artificialmente criados, lúdica ou recreativa-

mente, com vista à obtenção de um lucro, re-

dunda numa atividade que não comporta, em si

mesmo, um objetivo sério não devendo merecer

proteção por parte do nosso ordenamento jurídi-

co76. Ou seja, o direito civil reprova a possibili-

dade de se encontrar qualquer finalidade econó-

mica, social ou moral justificada por quem

aposta, atropelando a vontade das partes e a

autonomia privada típica do direito privado, por

motivações ético-morais e por o resultado do

contrato de aposta relevar do acaso, de factos

ou valores externos e incontroláveis77.

A possibilidade de existência de uma aposta

num derivado diferencial78 decorre, das partes,

tentarem fazer um prognóstico sobre a movi-

mentação do ativo subjacente do derivado con-

tratado79. Ainda que exista quem defenda que,

estruturalmente, nos encontramos diante de

uma aposta80 – válida à luz do direito vigente –

69- Cfr. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Contratos de Risco e Contratos Especulativos em Direito Bancário, cit., P.92 70- Cfr. CALVÃO DA SILVA, Swap de Taxa de Juro: Sua Legalidade e Autonomia e Inaplicabilidade da Excepção de Jogo e Aposta, cit., P.265. 71- Cfr. PAULO MOTA PINTO, Contrato de Swap de Taxas de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág. 413), cit., P.25. 72- Idem, idem. 73- Cfr. CALVÃO DA SILVA, Swap de Taxa de Juro: Sua Legalidade e Autonomia e Inaplicabilidade da Excepção de Jogo e Aposta, cit., P.266. 74- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Swaps de Troca e Swaps Diferenciais, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, Ensaios de Homenagem a Amadeu Ferreira, Número Especial – Agosto de 2015, Volume I, Lisboa, P.17, estipulando o Autor que, não obstante a possível estrutura semelhante à do contrato de aposta – pela verificação de um evento futuro e incerto – em face da previsão legal do art. 1247.º do CC remeter a sua validade ou invalidade para legislação especial e ser este o direito vigente, não pode deixar de se tomar o Código dos Valores Mobiliários como essa legislação especial. Cfr., ainda, PAULO MOTA PINTO, Contrato de Swap de Taxas de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág. 413), cit., P.24 e 25. 75- Cfr., o nosso Contrato de Swap de Taxa de Juro: Validade ou Invalidade do Contrato no Ordenamento Jurídico Nacional, cit., P. 716 e segs. 76- Cfr. PAULO MOTA PINTO, Contrato de Swap de Taxas de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág. 413), cit., P.18. 77- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, cit. P. 273. 78- Para uma análise histórico-comparativa vide CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos Diferenciais, cit., Pp. 81-89. 79- Cremos na mesma linha ALASTAIR HUDSON, The Law of Finance: a Comprehensive Treatise for Practitioners, cit., P. 409. 80- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Swaps de Troca e Swaps Diferenciais, cit., P.17

Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta : 09

Page 10: Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta

10 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

entendemos que ainda compete falar num prog-

nóstico, seja ele para fins especulativos, ou de

cobertura de risco, de movimentação do ativo.

A recondução a uma aposta decorre da constan-

te inovação e evolução financeira global do

mercado, mas também do direito não nutrir uma

especial simpatia pela assunção cega do risco

de forma endógena ao contrato.

Outra nota de redobrado interesse, prende-se

com a avaliação da existência ou não de uma

aposta, e a desconsideração do elemento subje-

tivo do contrato nessa análise, com vista a des-

cortinar se este é, ainda que apenas estrutural-

mente, um contrato de aposta81. De facto, sem-

pre que o contrato vise a realização de uma ati-

vidade comercial legítima – como seja, por

exemplo, a gestão do risco – não concordamos

que possa existir uma aposta, uma vez que, o

resultado que as partes almejavam não dependia

única e exclusivamente da sorte82, dependendo,

isso sim, da movimentação de indicadores de

mercado que são, amplamente regulados. Aliás,

é necessário que o principal fundamento do

contrato para ambas as partes seja a aposta re-

creativa celebrada de forma autónoma e priva-

da, para que este possa ser considerado como

aposta, o que se afigura de particular dificulda-

de num mercado regulado, organizado e fiscali-

zado, onde uma das partes atua enquanto profis-

sional – o intermediário financeiro.

Entendemos que, em última instância esta con-

sideração vise a proteção dos investidores me-

nos experientes dos especuladores profissionais.

Esta corrente pretende, sobretudo, proteger o

investidor de si próprio e do “gangsterismo fi-

nanceiro” que, com a crise financeira global de

2008, se tornou evidente aos olhos de todos.

Sucede que, esta corrente se prejudica pelo sim-

ples facto de bastar que uma das partes procure

seguir uma das funções legítimas atribuídas aos

instrumentos financeiros derivados para que

estes não devam ser reconduzidos a uma mera

aposta83. O que importará, sobretudo, para a sua

qualificação como derivado diferencial lícito,

afastando-se o regime da aposta, será a tipicida-

de do contrato e a sua qualificação jurídica. Co-

mo se sabe, os contratos diferenciais são legal-

mente típicos conforme resulta do art. 2.º, n.º1,

al. d) do CVM. Esta sujeição ao Código dos

Valores Mobiliários dos derivados diferenciais,

pressupõe que a sua negociação é feita de forma

regulamentada com intervenção de um interme-

diário financeiro84. O intermediário financeiro,

encontrar-se-á vinculado, como bem se compre-

ende, a todas as obrigações informativas e pro-

cedimentos pré-contratuais exigidos pelo códi-

go (nomeadamente, os arts. 7.º, n.º1, 304.º,

304.º-A, 309.º, 312.º e seguintes, 314.º e se-

guintes e 317.º e seguintes todos do CVM) que,

quando não cumpridos dão lugar ao pagamento

de uma indemnização dos danos causados ao

investidor.

II. Pode-se debater e encontrar todo o tipo de

desvalores ético-morais na especulação e tentar

descobri-los no nosso ordenamento jurídico,

com maior ou menor criatividade, podemos

até encontrar na Constituição da República

Portuguesa85 justificação pela contrariedade à

ordem pública mas, é irrefutável a ideia de para

81- Como explicitamente se refere no Ac. STJ de 29-01-2015, Processo n.º 531/11.7 TVLSB.L1.S1 (BETTENCOURT DE FARIA). 82- Cfr. ALASTAIR HUDSON, The Law of Finance: a Comprehensive Treatise for Practitioners, cit., P.411 e ANDREA PERRONE, Contratti di Swap con Finalità Speculative ed Eccezione di Gioco, in Banca Borsa Titoli di Credito, Vol. LXIII, 5, Settembre-Ottobre, 2010, Giuffré Editore, 2010, P.85. 83- Cfr. PHILIP R. WOOD, Law and Practice of International Finance, 2008, London, Sweet & Maxwell, P.446. 84- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Swaps de Troca e Swaps Diferenciais, cit., P.17. Se assim não for, como bem ensina o Autor, não são “válidos, no direito português, os contratos diferenciais (diretos) em que nenhuma das partes esteja autorizada a exercer uma atividade de intermediação financeira no âmbito da qual se compreenda a celebração de contrato dessa natureza. Esta consequência pode parecer excessiva à luz de critérios de política legislativa, mas resulta de modo inexorável da aplicação conjugada das leis vigentes, suficientemente claras no âmbito das permissões e proibições que estabelecem”. Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos Diferenciais, cit., P.111. Itálicos Nossos. 85- Como é o caso do Ac. STJ de 29-01-2015, Processo n.º 531/11.7 TVLSB.L1.S1 (BETTENCOURT DE FARIA).

Page 11: Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta

11 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

se cobrir um risco, haverá sempre alguém que

se prontifique a assumir esse risco, não se de-

vendo entender como negativa essa situação

uma vez que esta permite uma maior liquidez e

um correto funcionamento do mercado. Do

mesmo modo que a diferença entre a especula-

ção e a aposta não deve ser distinguida em fun-

ção do “market-making” do intermediário fi-

nanceiro. Tanto o intermediário financeiro, co-

mo o corretor de jogos poderão ter essa função,

uma vez que, tanto um como o outro procuram

a realização de um negócio oportunista que visa

ganhos decorrentes de um certo evento (seja

uma competição desportiva, ou a variação de

um determinado ativo subjacente)86.

Se a especulação poderá ser similar, estrutural-

mente, a uma aposta é opinião que não partilha-

mos, mas mesmo que assim fosse ela seria sem-

pre legal por força do disposto no art. 1247.º do

CC, ao remeter para legislação especial, no ca-

so, o Código dos Valores Mobiliários87. Não

perfilhamos esta corrente precisamente, por

entendermos que as partes procuram efetuar um

prognóstico quanto à movimentação do ativo

subjacente que não se verifica na aposta – nem

que se entenda esta de uma perspetiva ampla –

para existir uma aposta, teria de ser um negócio

feito, por exemplo, entre dois particulares com

vista a obter um ganho decorrente de um evento

fortuito ou, simplesmente, da sorte. A partir do

momento em que é necessária a intervenção de

um intermediário financeiro que atua nessa qua-

lidade, mediante uma análise científica do mer-

cado, com intenção de contratar um instrumento

financeiro, não nos parece verosímil o trata-

mento como aposta dado a um instrumento fi-

nanceiro derivado na modalidade de derivado

diferencial. Contudo, não poderá deixar de se

dizer que, a solução encontrada é equilibrada –

a da sua validade em face do disposto no art.

1247.º do CC – em virtude do direito vigente88.

A principal diferença entre a aposta e os deriva-

dos diferenciais prende-se, como bem ensina

CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA89, no

facto de, nestes últimos, a natureza do evento

sobre o qual se celebra se prender com a cota-

ção no mercado de um bem de referência. Do

mesmo modo, o distanciamento para com a

aposta prende-se com a construção de um deri-

vado diferencial, se distanciar no modelo básico

da aposta, pelo seu conteúdo, função, qualifica-

ção jurídica e tipo social em que assenta.

III. De extrema importância parece a refe-

rência ao risco contratual como uma realidade

existente em todo e qualquer contrato. Todos

sem exceção encerram riscos diferentes, conso-

ante a sua natureza e, sobretudo, o seu clausula-

do. Do mesmo modo, um derivado diferencial

tem, ao longo dos seus períodos diferentes ris-

cos, maiores nuns períodos, menores noutros.

Pense-se, por exemplo, num contrato de swap

de taxa de juro que tem funções distintas – fun-

ções especulativas nuns, e de gestão ou cobertu-

ra de risco noutros – consoante o período con-

tratual90. Ora, se o contrato tem funções distin-

tas consoante o período, o plano de risco tam-

bém varia consoante o período. Assim como os

riscos assumidos, o plano de risco das partes

não é, também ele, estanque. O plano de risco

pode ser típico, quando é o que decorre daquele

tipo contratual, ou concreto, quando decorre do

convencionado pelas partes. Sucede que, como

nos situamos no domínio da autonomia

privada, as partes podem divergir, nos riscos

assumidos, em relação aos riscos típicos de um

86- Cfr. CHRISTOPHER C. CHEN, Dividing Hedging and Gambling: Legal Implications of Derivative Instruments, in Opticon 1826, Vol. I, n.º1, 2006, P.3. 87- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Swaps de Troca e Swaps Diferenciais, cit., P.18. 88- O contrato de jogo e/ou aposta que se enquadre no âmbito do art. 1247.º do CC é, para além de válido, fonte de obrigações civis válidas, ao contrário do disposto no art. 1245.º do CC. Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Volume III, cit., P.525. 89- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos Diferenciais, cit., Pp. 107-108. 90- O que até foi uma prática perfeitamente normal no período anterior à crise em que o acesso ao crédito começava a ser mais tortuoso, e que as empresas procuravam estratégias de financiamento empresarial e de cobertura de posições previamente assumidas. Ainda que esta noção de financiamento empresarial seja tomada em sentido amplo.

Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta : 11

Page 12: Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta

12 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

determinado contrato, sendo até normal que

isso aconteça91.

O julgador, ao avaliar este tipo de contratos e

com vista a descobrir se há ou não a intenção de

jogar, tem de recorrer às regras normais de in-

terpretação dos negócios jurídicos92, de modo a

discorrer sobre a vontade concreta das partes no

momento da celebração. Diz-nos o art. 236.º do

CC, no seu n.º1 que “a declaração negocial

vale com o sentido que um declaratário normal,

colocado na posição do real declaratário, pos-

sa deduzir do comportamento do declarante,

salvo se este não puder razoavelmente contar

com ele”, para, nos termos do n.º2, se estabele-

cer que, “sempre que o declaratário conheça a

vontade real do declarante, é de acordo com

ela que vale a declaração emitida”. Ou seja,

vale a vontade subjetiva comum de ambas as

partes, uma vez que o contrato, por definição, é

um exercício de consenso entre as partes. Quan-

to ao resto, nos casos em cujo entendimento de

uma questão seja do conhecimento de uma das

partes, aplicar-se-á a regra do n.º2 do referido

artigo. Assim, bastará que uma das partes pre-

tenda a gestão do seu risco de atividade, e essa

vontade seja conhecida da outra parte, ou pelo

menos cognoscível, para que o contrato não

levante dúvidas quanto ao querido e desejado

pelas partes.

Entendeu-se, muito por culpa da aleatoriedade

do contrato que as partes não tinham como

compreender os riscos e que se os conheces-

sem, não os aceitaram, nem tão-pouco celebra-

riam. Em primeiro lugar, se as partes celebra-

ram em erro-vício é matéria que não cabe no

âmbito do nosso estudo, contudo, sempre se

dirá que desde que verificados os requisitos do

erro-vício – seja ele sobre o objeto, sobre os

motivos ou sobre a base do negócio – não há

razão para que não se aplique o seu regime. So-

mos até, da opinião, que a grande maioria dos

contratos de swap de taxa de juro no período

anterior à crise, podem ter sido celebrados em

erro.

Sucede que, a álea própria deste tipo de contra-

tos consiste na diferença, positiva ou negativa,

do indexante – valor de referência ou preço de

mercado – contratual93. Assim, como já se dis-

se, é o risco que consubstancia o contrato. A

gestão deste risco é, naturalmente, racional. As

partes aceitam-no, gerindo o seu posicionamen-

to, na evolução que esperam que o mercado

faça, de modo a que este posicionamento lhes

seja favorável. Se assim não fosse, o contrato

seria puramente aleatório94, o que não é o caso.

As partes não arriscam, neste nível, de forma

cega, pela sensação e pelo gozo que retiram do

risco95, o raciocínio das partes assenta nos vá-

rios relatórios de análise financeira e métricas

aritméticas de variação dos indicadores de mer-

cado e em que circunstâncias, permitindo assim

que, com alguma precisão96, se consigam deter-

minar as possíveis e expectáveis movimenta-

ções de um determinado índice financeiro. Este

risco é procurado pelas partes, lindando estas

com ele da melhor maneira possível97.

91- Como bem ensina o Professor PEDRO PAIS DE VASCONCELOS. Cfr., Contratos de Risco e Contratos Especulativos em Direito Bancário, cit., P.91. 92- Cfr., PEDRO PAIS DE VASCONCELOS Contratos de Risco e Contratos Especulativos em Direito Bancário, cit., P.92. 93- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos Diferenciais, cit., P. 103. 94- Cfr. MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Bancário, cit., P.879. 95- Como o faz um apostador, recreativo ou profissional. Em bom rigor os jogadores e apostadores também podem ser profissionais, e nesse caso obedecem a alguma cientificidade nas jogadas efetuadas. Pense-se, por exemplo, nos jogadores de poker profissionais. Estes estudam, não só os possíveis adversários, como o tipo de jogadas efetuadas, tentando daí retirar um padrão que abranja um certo tipo de situações. Do mesmo modo, encontram métricas de cálculo que lhes permitam ter uma noção exata da probabilidade do adversário ter uma determinada carta que lhe permita uma determinada combinação, assim vencendo o jogo, gerindo com base nisso as jogadas a efetuar. 96- Ainda que estejam sempre sujeitas ao aparecimento de qualquer fator exógeno à matriz que levou à sustentação daquela conclusão. 97- Cfr. CATARINA MONTEIRO PIRES, cit., P.13.

Page 13: Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta

13 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Posicionamo-nos, deste modo, dentro daqueles

que consideram que os instrumentos financeiros

derivados diferenciais não devem ser considera-

dos como uma aposta nos termos do disposto

no art. 1245.º do CC. Não podem, em suma,

porque são legal e socialmente típicos, negocia-

dos por um profissional de intermediação finan-

ceira, respeitando as regras do Código dos Va-

lores Mobiliários e a liberdade de estipulação

das partes no contrato, assentando o prognósti-

co efetuado numa análise que fazem ao merca-

do regulado, mediante fins licitamente conven-

cionados e legítimos na prática negocial.

V. Conclusões

I. Os instrumentos financeiros der ivados fa-

zem parte do catálogo dos instrumentos finan-

ceiros. Chamam-se de derivados, por decorre-

rem de um outro ativo subjacente. Dentro des-

tes últimos, encontramos os chamados deriva-

dos diferenciais, ou seja, aqueles em que apenas

é devida uma prestação em dinheiro igual à di-

ferença entre um valor de referência de um

bem, de um indicador de mercado, ou da rela-

ção entre dois bens ou indicadores de mercado

e o valor de mercado desse indicador ou relação

de valores, em uma data específica no futuro.

Os derivados diferenciais têm como funções a

gestão ou cobertura de risco e a especulação,

tendo ainda como característica fundamental a

sua aleatoriedade, sendo legal e socialmente

típicos Assim, as partes não só querem o risco

contratual, como é esse risco que as faz celebrar

o contrato, na forma celebrada.

II. Os der ivados diferenciais não devem ser

tidos como integrando a exceção de jogo e

aposta, dado que, para que exista jogo e aposta

é necessário que ambas as partes tenham o

animus de jogo ou aposta. Ora, esta possibili-

dade fica extremamente enfraquecida quando

uma das partes atua enquanto profissional, de

forma organizada e regulada, prosseguindo am-

bas as partes, um fim comercialmente admissí-

vel. Não podemos deixar de referir, ainda, que o

jogador/apostador cria risco de forma recreativa

e para sua própria satisfação pessoal, destruindo

valor. Por seu turno, o investidor redireciona o

risco a seu favor, com vista à obtenção de um

ganho financeiro decorrente da volatilidade do

mercado ou da tendência de cotação de um

bem. Esta – errada – recondução ao regime do

jogo e aposta, decorre de estruturalmente, os

derivados diferenciais se assemelharem a apos-

tas.

III. O der ivados diferenciais – à semelhança

de todos os outros contratos bancários – possu-

em uma esfera de risco própria, composta por

riscos típicos e concretos conforme o concreto

consenso contratual. Esse risco decorre, em lar-

ga medida, da aleatoriedade contratual que con-

siste, fundamentalmente, na diferença, positiva

ou negativa, do indexante – valor de referência

ou preço de mercado – contratual. É esta álea

que consubstancia o contrato e o torna querido

pelas partes.

IV. Consideramos assim que, os instrumen-

tos financeiros derivados diferenciais não de-

vem ser considerados como uma aposta, uma

vez que se tratam de instrumentos financeiros

negociados por um profissional de intermedia-

ção financeira, vinculado às regras do Código

dos Valores Mobiliários, respeitando a liberda-

de de estipulação das partes no contrato, assen-

tando o prognóstico efetuado na análise que

fazem do mercado regulado, assente numa cui-

dada análise financeira, visando fins legítimos

na prática negocial.

Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta : 13