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OS CONTOS DE FADAS DE PERRAULT: UMA LEITURA DE AS FADASRenata Kelen da ROCHA 1 Vilma Araújo da SILVA 2 Este trabalho apresenta resultados de pesquisa analítica acerca do conto de fadas As Fadas de Charles Perrault, partindo da análise centrada, na teoria literária dos gêneros e, em seguida, nos três pilares constitutivos de gêneros discursivos conteúdo temático, estilo e estrutura composicional , para apreender as características do gênero conto de fadas, segundo os conceitos da teoria literária expandidos para os conceitos de Bakhtin (1992). Traçou-se, assim, um percurso de análise da narrativa literária baseado na conceituação de gêneros literários e expandido para o conceito de gêneros do discurso. O resultado de nosso trabalho contribui para a formação de um processo de análise capaz de elucidar as potencialidades da narrativa literária francesa de Charles Perrault. Palavras-chave: Charles Perrault; Gêneros; Contos. Introdução Neste trabalho apresentamos resultados de discussão sobre os gêneros literários embasados nas teorias de Coelho (1987), Machado (2005) Aragão (1986), Bakhtin (1997), Moisés (1967), Soares (2007), entre outros. Buscamos compreender a evolução dos gêneros desde as definições propostas por Platão, Aristóteles e Horácio até a expansão do conceito de gêneros apresentada por Bakhtin. Para tanto, descrevemos alguns traços peculiares dos gêneros contos de fadas e contos maravilhosos para, em seguida, apresentarmos a análise do conto de fadas Les Fèes, de Charles Perrault, a partir dos três pilares constitutivos dos gêneros discursivos construção composicional, tema e estilo, embasados ainda nos pressupostos analíticos da narrativa sugeridos por Gancho (1991). O Gênero literário A história dos gêneros literários pode ser exemplificada com a obra clássica de Platão, nos livros III e X da República; em Aristóteles na Poética e na Retórica e 1 Graduanda de Letras, Português/Francês, na Universidade Estadual de Maringá-UEM. E-mail: [email protected] 2 Graduanda de Letras, Português/Francês, na Universidade Estadual de Maringá-UEM. E-mail: [email protected]

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OS CONTOS DE FADAS DE PERRAULT: UMA LEITURA DE “AS FADAS”

Renata Kelen da ROCHA1

Vilma Araújo da SILVA2

Este trabalho apresenta resultados de pesquisa analítica acerca do conto de fadas As

Fadas de Charles Perrault, partindo da análise centrada, na teoria literária dos gêneros e,

em seguida, nos três pilares constitutivos de gêneros discursivos – conteúdo temático,

estilo e estrutura composicional –, para apreender as características do gênero conto de

fadas, segundo os conceitos da teoria literária expandidos para os conceitos de Bakhtin

(1992). Traçou-se, assim, um percurso de análise da narrativa literária baseado na

conceituação de gêneros literários e expandido para o conceito de gêneros do discurso.

O resultado de nosso trabalho contribui para a formação de um processo de análise

capaz de elucidar as potencialidades da narrativa literária francesa de Charles Perrault.

Palavras-chave: Charles Perrault; Gêneros; Contos.

Introdução

Neste trabalho apresentamos resultados de discussão sobre os gêneros literários

embasados nas teorias de Coelho (1987), Machado (2005) Aragão (1986), Bakhtin

(1997), Moisés (1967), Soares (2007), entre outros. Buscamos compreender a evolução

dos gêneros desde as definições propostas por Platão, Aristóteles e Horácio até a

expansão do conceito de gêneros apresentada por Bakhtin. Para tanto, descrevemos

alguns traços peculiares dos gêneros contos de fadas e contos maravilhosos para, em

seguida, apresentarmos a análise do conto de fadas Les Fèes, de Charles Perrault, a

partir dos três pilares constitutivos dos gêneros discursivos – construção composicional,

tema e estilo, embasados ainda nos pressupostos analíticos da narrativa sugeridos por

Gancho (1991).

O Gênero literário

A história dos gêneros literários pode ser exemplificada com a obra clássica de

Platão, nos livros III e X da República; em Aristóteles na Poética e na Retórica e

1 Graduanda de Letras, Português/Francês, na Universidade Estadual de Maringá-UEM. E-mail:

[email protected] 2 Graduanda de Letras, Português/Francês, na Universidade Estadual de Maringá-UEM. E-mail:

[email protected]

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também com os tradados de Horácio, os quais estabelecem as categorias literárias em

poesia épica, poesia dramática e a poesia lírica.

Os estudos sobre os gêneros prosseguiram, historicamente, até meados do século

XIX, sendo marcados pelos estudos do francês Ferdinand Brunetière (1849-1906) e do

italiano Benedetto Croce (1902), mas surgem, com o tempo, teorias mais modernas,

como as de Warren e Wellek, em que se destaca a obra Teoria da Literatura, e há

também Staiger, com a obra Conceitos fundamentais da poética, que considera, pela

primeira vez, o hibridismo entre os gêneros.

Nas primeiras décadas do século XX, surge a teoria dos gêneros discursivos

proposta por Mikhail Bakhtin, que considera o dialogismo no processo produtivo de

linguagem. Os gêneros do discurso passam a ser vistos como esferas de uso da

linguagem verbal ou da comunicação fundada na palavra, e isso faz com que, no

processo comunicativo, o dialogismo seja concretizado.

Segundo Machado (2005, p. 154), Bakhtin distingue os gêneros em discursivos

primários relacionados à comunicação cotidiana dos gêneros discursivos secundários

referentes à comunicação produzida a partir de códigos culturais elaborados, como a

escrita. Mesmo com diferenças entre os gêneros, há um ponto de integração entre eles,

pois Bakhtin (1997, p. 282) afirma que “os gêneros primários, ao se tornarem componentes

dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular:

perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados

alheios”.

Com isso, podemos notar que, de acordo com Bakhtin (1997), os gêneros estão

sempre em evolução e transformação, porque, quando os gêneros secundários utilizam

os gêneros primários, transformam-se em outros gêneros e, nem sempre é possível

detectar sua primeira forma.

Origens do gênero literário conto e do conto de fadas

De acordo com Moisés (1967) a origem da palavra conto pode ter várias

proveniências. Em relação ao seu sentido numérico, podemos citar, como exemplo, “um

conto de réis” ou “conto de soldado”; em que o sentido da história, por sua vez, está

ligado à narração, à fábula, entre outros. Em literatura, para Moisés (1967), o conto

concerne a uma unidade dramática, e, devido a isso, contém apenas um conflito, já que

todos os seus elementos convergem para um mesmo objetivo.

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Os contos de fadas, por sua vez, de acordo com Coelho (1987), surgiram entre os

celtas e são caracterizados pela presença do elemento ”Fada”, cujo significado

etimológico vem do latim “Fatum”, que significa destino, fatalidade, oráculo. A partir

disso, os franceses criaram o termo Conte de Fée, que se tornou Fairy Tale, em inglês.

No Brasil os contos surgiram no século XIX, como contos da carochinha, que, hoje, são

conhecidos como contos de fadas ou contos maravilhosos.

As primeiras histórias foram produzidas e destinadas aos adultos e, com o

tempo, incorporaram à tradição oral popular, e, apenas posteriormente, elas foram

transformadas em literatura para crianças. Essa transformação ocorreu na França, com

Charles Perrault, escritor e poeta francês, do século XVII, maravilhado pela memória do

povo, dispôs-se a redescobri-la e descrevê-la, recontando as histórias da tradição oral

popular. Dessa forma, publicou a primeira coletânea de contos com o nome Contes de

Mère L‟Oye, destinado às crianças (COELHO, 1987).

Apesar do gênero conto de fadas se originar com Charles Perrault, são os irmãos

Grimm os responsáveis pela ampliação e divulgação desse gênero. Eles, no século

XVIII, na tentativa de determinar a autêntica língua alemã, iniciam uma profunda

pesquisa das invariantes linguísticas nas antigas narrativas, lendas e sagas de seu povo.

Assim, de acordo com Coelho (1987) o conto de fada só recebeu o sentido de forma

literária, quando os irmãos Grimm deram a uma coletânea de narrativas o título de

Contos para crianças e adultos, publicada em 1812.

Distinções entre Contos Maravilhosos e Contos de Fadas

Os contos de fadas, com ou sem fadas, desenvolvem seus argumentos dentro de

uma magia feérica, com reis, rainhas, príncipes, fadas, bruxas, gigantes, tempo e espaço

fora da realidade conhecida, além disso, têm uma problemática existencial expressada

por meio de provas e obstáculos que precisam ser vencidos (COELHO,1987).

A distinção entre o conto de fadas e o conto maravilhoso é difícil, porque ambos

trabalham com o mundo do maravilhoso, e o que distingue um do outro é a

problemática diferente, como Coelho mostra (2008, P. 85) “o conto maravilhoso tem

raízes orientais e gira em torno de uma problemática material/social/sensorial – busca de

riquezas; a conquista de poder; a satisfação do corpo – ligada basicamente à realização

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socioeconômica do indivíduo em seu meio”. Além disso, os contos de fadas e os contos

maravilhosos acabaram identificados como formas iguais, com problemáticas

diferentes, por isso, o maravilhoso necessita de um elemento fundamental: o

encantamento.

Portanto, o conto de fadas, com ou sem fadas, dispõe de elementos como a

bruxa, a fada, o rei, a rainha, a princesa e o príncipe, envoltos em magias e inseridos em

tempo e espaço diferentes do real, já o conto maravilhoso, por sua vez, possui outra

problemática e características, visto que os personagens precisam vencer certos

obstáculos para alcançarem seus objetivos, só que, para isso, contam com a ajuda de

elementos mágicos, presentes na história.

Análise

O conto Les Fées, de Charles Perrault, conta a história de vida de uma gentil

menina que, sendo filha de uma viúva camponesa, mal humorada e orgulhosa, tinha

uma irmã mais velha que, à semelhança da mãe, era preguiçosa e arrogante. Sendo a

filha mais nova da família que, ao contrário da mãe e da irmã, era doce, gentil e muito

bonita era obrigada a ir duas vezes ao dia à fonte buscar água, fazer todos os serviços da

casa e comer na cozinha, separada da família. Era uma espécie de gata borralheira.

Um dia, ao chegar à fonte, a bela menina encontrou uma camponesa que lhe

pediu um pouco de água, com gentileza, a garota ofereceu-lhe. Para recompensar sua

generosidade, a fada, que estava na figura de camponesa, concedeu à menina um dom,

que era o de expelir pela boca, a cada palavra dita, uma flor ou uma pedra preciosa.

Encantada pelo dom da filha caçula, a mãe impõe que a primogênita e sua

preferida vá ao encontro da fada para que esta lhe conceda também o mesmo dom. No

entanto, ao encontrar a fada transvestida de nobre dama, a menina é punida por suas

grosserias e cada palavra dita, lhe faz expelir pela boca uma cobra ou um sapo.

Ao retornar à casa, a mãe assustada com a punição, de imediato, culpa a filha

mais nova e lhe ameaça com uma surra. A pobre moça foge de casa, refugiando-se em

uma floresta e, por possuir um belo dom, ao encontrar-se com um príncipe, ele se

apaixona por ela e a pede em casamento. Já a outra irmã acaba sendo expulsa de casa e

morre sozinha em um bosque.

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Conteúdo temático, estilo e estrutura composicional

Bakhtin (1992), a partir da proposta sociointeracionista do discurso, propõe que

o estudo dos gêneros se faça a partir dos três pilares constitutivos de gêneros

discursivos, sendo o conteúdo temático, estilo e estrutura composicional.

A estrutura composicional concerne à estruturação e ao aspecto formal do

gênero, enquanto que o conteúdo temático diz respeito às escolhas e propósitos

comunicativos do autor em relação ao assunto abordado. O estilo, por sua vez, refere-se

a um modo de apresentação do conteúdo (formal, informal) traduzido no plano

composicional do gênero por meio da seleção de “recursos lexicais, fraseológicos e

gramaticais da língua” (BAKHTIN, 2003, p.261). É a partir desses pilares que

apresentamos, a seguir, a análise do conto Les Fées, de Charles Perrault.

Para Bakhtin (2003), os elementos conteúdo temático, estilo e a construção

composicional estão intimamente ligados no todo do enunciado e são determinados por

um aspecto singular, de uma situação. O conteúdo temático é um dos principais

elementos que caracterizam o enunciado relativamente estável, é também o domínio e o

sentido que um enunciado apresenta, isto é, o foco principal ou elemento que norteará o

gênero em sua composição e seu estilo linguístico. Além disso, o conteúdo temático só

se concretiza de modo simultâneo e dependente da estrutura composicional e estilo do

autor.

Ao levar isso em conta, notamos que em sua obra, Perrault buscava ensinar

valores, condutas e comportamentos para a nova geração e, para atingir essa finalidade,

o autor fez uso de expressões literárias como “Il était une fois” e “un jour”, que nos

remetem aos fatos ocorridos em um passado perdido no tempo e que poderia referir-se a

qualquer período histórico.

Assim, o tema do conto de Perrault – representado pela vida difícil de uma

garota que precisa vencer os obstáculos, que são impostas pela má-conduta da mãe e da

irmã mais velha - já que as duas são extremamente desagradáveis com ela – deixa claro

que o bem sempre é recompensado e mal punido. Essa problemática familiar, a qual a

filha mais nova está inserida e que tematiza o conto, pode ser comprovada na citação

“lorsque cette belle fille arriva au logis, sa mère la gronda de revenir si tard de la

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fontaine.” (PERRAULT, 1995, p. 135). Nessa perspectiva, percebemos que a presença

do mal constitui a prova iniciática pela qual a personagem principal deve passar a fim

de triunfar e encontrar a felicidade. A maldade e a bondade compõem a dicotomia

presente ao longo da narrativa, ou seja, desde o início, quando nos deparamos com as

características e atitudes de cada personagem, conseguimos inferir o tema tratado por

Perrault, no conto Les Fées. Podemos observar isso quando a menina boa vai à fonte e

recebe o dom, na seguinte citação:

un jour qu‟elle était à cette Fontaine, il vint à ele une pauvre femme

qui la pria de lui donner à boire. <Oui-da, ma bonne mère>, dit cette

belle fille; et rinçant aussi-tôt sa cruche, ele puisa de l‟eau au plus bel

endroit de la Fontaine, et la lui presenta, soutenant toujours la

cruche afin qu‟elle bût plus aisément (PERRAULT, 1995, p. 136).

Enquanto que a menina mal criada, ao tentar receber o mesmo dom da caçula,

depara-se com a maldade da fada, como é possível notar na seguinte citação:

elle prit le logis. Elle ne fut pas plus tôt arrivée à la Fontaine qu‟elle

vit sortir du bois une Dame magnifiquement vêtue qui avait pris l‟air

et les habits d‟une Princesse, pour voir jusqu‟où irait la mal-

honnêteté de cette fille. „Est-ce que je suis ici venue, lui dit cette

brutale orgueilleuse, pour vous donner à boire? Justement j‟ai

apporté un Flacon d‟argent tout exprès pour donner à boire à

Madame! J‟en suis d‟avis, buvez à même si vous voulez‟.

(PERRAULT, 1995, P. 137).

Além disso, é possível perceber que o teor dicotômico está inserido no conto. O

uso do número dois, que é muito trabalhado ao longo do texto, haja vista que a fada se

apresenta de duas formas diferentes, a mãe tem duas filhas, a história trabalha com duas

problemáticas, ou seja, o obstáculo que a mãe representa, e a fala de encantamento

mágico, que corresponde à fada; há dois desfechos, um para cada irmã, e, por fim,

Perrault produz e apresenta duas morais para seu conto.

O estilo é um elemento importante dentro da análise literária que consiste na

escolha linguística feita pelo autor, isto é, na escolha de estruturas sintáticas, sinal

gráfico e expressões usadas. Essas escolhas ocorrem de acordo com o gênero escolhido

que obedece a certa estrutura composicional e tema a ser abordado. Dessa maneira,

Bakhtin (2003, p. 260) afirma que os gêneros são essencialmente marcados por um

estilo de linguagem, ressaltando a ideia de que “a passagem do estilo de um gênero para

outro não só modifica o som do estilo nas condições do gênero que não lhe é próprio

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como destrói ou renova tal gênero” (BAKHTIN, 2003, p. 260). O autor define estilo

como “a unidade de procedimentos de informação e acabamento da personagem e do

seu mundo e dos procedimentos, por estes determinados, de elaboração e adaptação [...]

do material” (BAKHTIN, 2003, p. 186).

Em vista disso, Perrault utilizou certos recursos linguísticos e sinais gráficos,

para enriquecer sua narrativa, e muniu-se da seleção das palavras próprias para escrever

e expressar o que se pretendia, com intenção de que o expressado fosse entendido de

uma determinada maneira pelo leitor de sua época.

Um fator estilístico a ser destacado são os tempos verbais que dialogam com o

tempo cronológico da narrativa. O narrador onisciente usa de tempos pretéritos que nos

levam ao passado como o imparfait, passé composé, passé simple e plus-que-parfait,

enquanto os personagens utilizam do presente e do gerúndio no diálogo e, com isso,

explicita que as réplicas ocorrem em tempo verbal diferente da narração onisciente do

conto, fator que distância e aproxima o leitor da história narrada. Para exemplificar esta

ação, podemos citar a incidência de uso do o imparfait na construção verbal „il fallait‟,

por exemplo, assim como do passé simple em “elle puisa”, do presente em “vous êtes” e

do future simple em “vous direz”.

No entanto, os tempos presente e futuro são utilizados apenas nos diálogos,

fazendo com que o leitor consiga identificar a ação. Como nessa citação em que a

heroína utiliza o tempo presente “ je vous demande pardon, ma mére”. Quanto ao tempo

futuro, podemos observar na réplica da fada, no momento em que concede o dom à filha

mais velha: “je vous donne pour don qu‟à chaque parole que vous direz, il vous sortira

de la bouche ou une serpente, ou un crapaud”.

A construção composicional do enunciado, ou seja, a sua estruturação e

enquadramento formal, corresponde a um dos fatores que, segundo Bakhtin (2003, p.

262), caracterizam o gênero num dado campo da comunicação. Quando falamos em

conto de fadas, a estrutura composicional é formada pelo tempo, espaço, personagem,

narrador, enredo e moral. De acordo com Mendes (2000), os contos de fadas são

narrativas que se desenvolvem num cotidiano considerado mágico, pois o conto tem

como característica a personificação das personagens. Neste gênero, há a criação de

uma problemática social que, ao final de cada história, traz um conceito moral: uma

herança da estrutura original dos contos de fadas.

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Sendo assim, podemos afirmar que o conto selecionado é de fadas, porquanto

possui a presença de uma fada, personagem dotada de magia capaz de encantar a

personagem principal e há também a necessidade da protagonista superar obstáculos,

para encontrar sua auto realização existencial, que se dá por meio do casamento. Esses

elementos são de suma importância para a estrutura desse gênero literário.

Em Les Fées, a narrativa se inicia com o drama que a filha mais nova enfrenta, e

com as características das três personagens, que são as duas filhas e a mãe. A filha mais

velha e a mãe são descritas como “orgueilheuses et deságréables”, enquanto que a filha

mais nova é caracterizada como dotada de “douceur, l‟honnêteté” (PERRAULT, 1995,

p. 135). Em geral, no conto de fadas, o papel da mãe é aquele de quem cuida, que se

preocupa com a saúde, a segurança e o bem estar dos que estão sob sua

responsabilidade, e sempre deseja o melhor para seus filhos. Entretanto, no conto Les

Fées, podemos comparar a mãe a uma madrasta dos contos de fadas, que representa a

maldade, que explora a criança e obriga-a a desempenhar as tarefas domésticas sem

cessar, como ocorre em Cendrillon, conto do próprio autor francês.

Acreditamos que essas marcas de “maldade” e rigidez que a mãe demonstra, e a

diferença demarcada entre as filhas dizem respeito à época que o conto foi escrito, já

que, de certa maneira, os contos de fada são influenciados pela civilização em que

surgiram. Além disso, Perrault, no século XVII, encontrava-se em um momento

histórico muito importante, pois é um período no qual a Europa passa por uma

transformação e pela formação do Estado Nacional. A sociedade nessa época era

baseada no conservadorismo cristão, e, devido às reformas e contra reformas, inicia-se a

ascensão da burguesia, que mais tarde transformará o sistema Feudal em sistema

Capitalista (MITTERAND, 1988). Nesse momento, não havia a mistura das classes, já

que o plebeu vivia a margem da sociedade aristocrática. Entretanto, com o crescimento

burguês e do sistema capitalista, ocorreu a mistura social nas relações e a super

valorização do capital (MITTERAND, 1988)

Além disso, as personagens são sempre descritas com a oposição bem/mal, pelos

dons que recebem, sendo que a filha caçula recebe dom positivo e a mais velha

negativo. Para a menina boa, a fada concede pérolas, diamantes e rosas, que tem valores

simbólicos no texto literário: As pérolas representam o encantamento e a doçura, os

diamantes o símbolo da riqueza e as rosas a beleza e o amor. Em contrapartida, a

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menina mais velha recebe o dom de expelir pela boca serpentes e sapos, que

representam a maldade, a feiura e a repulsa.

Desse modo, a história gira em torno do conflito instaurado pelas diferenças de

personalidades, já que no decorrer do conto, as duas irmãs são o oposto uma da outra,

opondo “malhonnête/honnête -butale/douceur”, e, ao final do conto, o narrador se refere

à filha mais velha como “méchante” e a mais nova como “gentille”. Então, no decorrer

da narrativa, essa dualidade é muito marcada, pois, para caracterizar as personagens, o

narrador usa adjetivos positivos para citar a irmã mais nova e adjetivos negativos para

citar a menina má.

Além disso, por meio dos intensificadores, o narrador evidencia a heroína e

rebaixa a vilã, por exemplo, para a menina boa, os adjetivos empregados na descrição

são: “belle fille, si belle, si bonne, honnête, douceur, pauvre enfant, pauvre fille jeune

fille, bonne fille” e “vous êtes si belle, si bonne et si honnête”, enquanto que os

adjetivos negativos, como “l‟aînée lui ressemblait si fort d‟humeur” e “orgueilleuse,

désagréable, si brutale, si malhonnète, si peu obligeante” caracterizam a filha mais

velha (PERRAULT, 1995, p. 137).

A personagem fada, por sua vez, apresenta-se de duas formas, haja vista que,

para a menina boa, ela estava vestida como uma camponesa da vila, como descrito pelo

narrador “un jour qu‟elle était à cette Fontaine, il vint à ele une pauvre femme qui la

pria de lui donner à boire” (PERRAULT, 1995, p. 135), já para a menina má, a fada

aparece como uma linda moça, como notamos na citação “qu‟elle vint sortir du bois une

Dame magnifiquement vêtue qui vint lui demander à boire” (PERRAULT, 1995, p.

137).

Com isso, compreendemos que a fada, apesar de ser uma entidade mítica e boa,

também é dissimulada, já que, para empregar sua “punição”, ela mudou de

personalidade duas vezes, para, dessa maneira, estimular as características boas e más

dos indivíduos. Além disso, os personagens não tem nomes próprios, são caracterizados

de acordo com suas ações e situações familiares, aspecto que proporciona a

universalidade do conto.

O tempo da narrativa é dividido em três formas diferentes, sendo o tempo

cronológico, aquele que pode ser cronometrado; o tempo psicológico, que acontece no

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interior do personagem quando rememora suas emoções e lembranças; e o tempo

narrativo, que é o tempo de quando o narrador conta os fatos da narrativa.

É possível notar que no conto de fadas o tempo não é evidente, pois geralmente

começa com “era uma vez”. Todavia, na estrutura da narrativa do conto Les Fées,

temos o elemento tempo, que ocorre cronologicamente, pois há uma sequência de fatos

que proporciona um efeito linear, isto é, organiza-se segundo a concepção dominante de

tempo (passado, presente e futuro), compondo uma sequência cronológica dos fatos,

que nos ajuda a compreender o desenrolar das ações vividas pelos personagens.

Portanto, os fatos vividos pela heroína seguem uma ordem cronológica, visto

que ela sai do estado de infelicidade e de maus tratos infringidos pela mãe e, como

recompensa por seu sofrimento, recebe um dom precioso e se casa com o príncipe. Por

outro lado, a primogênita vive infeliz, pois, por ser má, é punida com um dom que causa

repulsa nas outras pessoas, morrendo no desfecho da história, tendo, portanto, um fim

mais trágico que sua existência.

Apesar de não se comprovar o espaço da narrativa, os contos de fadas tem início

em um meio familiar, onde é possível inserir o homem comum. Ao considerar isso,

notamos que o espaço em Les Fées é caracterizado pela casa da família, a fonte, a

floresta, o reino. Na história não há a descrição dos ambientes, no entanto podemos

pressupor que a fonte pode ser um espaço “mágico”, pois é lá que as personagens

recebem seus dons, e a floresta é o elemento estrutural fundamental para o desfecho da

narrativa, visto que é o lugar onde a filha mais nova se refugia da tristeza e encontra o

príncipe.

Como demonstramos acima, os ambientes não recebem descrições físicas, a casa

onde a “belle fille” morava não é descrita, porém a menina era obrigada a realizar todos

os afazeres domésticos e fazer suas refeições sozinha na cozinha, fato narrado no trecho

“cette mère était folle de sa fille ainée, et en même temps avait une aversion efroyable

pour la cadette. Elle la faisait manger à la cuisine et travailler sans cesse”

(PERRAULT, 1995, p. 135). Então, por meio dessa simples referência à casa e à

cozinha, sabemos que esses cômodos e o lar existem, só não podemos descrevê-los.

Considerações finais

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O estudo do conto Les Fées, de Charles Perrault, realizou-se a partir dos três

pilares constitutivos dos gêneros discursivos. Neste sentido, a análise literária, baseada

no estudo da estrutura composicional, do tema e do estilo, agregou diversos

conhecimentos, não apenas sobre a teoria literária do conto, mas também sobre as

dimensões culturais e sociais do contexto no qual foi escrita a obra. Contribuiu para o

desenvolvimento de um olhar científico, considerando a importância dos símbolos em

um texto literário, pois em sua temática narrativa há a presença de elementos

simbólicos, como os presentes no texto: pérolas, diamantes, flores, sapos, serpentes,

floresta, etc.

Além disso, outro ponto importante que observamos foi o despertar do

imaginário que o conto de fadas, por meio dos processos de vida dos personagens,

proporciona ao leitor, possibilitando que a moral obtida com as situações vividas pelas

personagens torne-se acessível ao leitor, visto que a bondade foi recompensada,

enquanto à maldade e a injustiça foram punidas. Os estereótipos empregados pelo autor

dão margem a uma moral válida em qualquer momento ou lugar, universalizando a

história, porquanto sabemos que a literatura do século XVII apreciava a moral nos

textos, já que eles eram curtos e carregados de moralidade. Sendo assim, nos contos de

Perrault é explícita essa moralidade e vemos que é utópica a tentativa de agregar

integralmente todas as virtudes.

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