Os Circuitos Dos Jovens Urbanos

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  • 5/27/2018 Os Circuitos Dos Jovens Urbanos

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    Os circuitos dos jovens urbanos*

    Jos Guilherme Cantor Magnani

    Introduo

    Este artigo apresenta os resultados de um trabalho sobre os jovens e suasprticas culturais e de lazer, redes de sociabilidade e relaes de troca (e

    tambm conflito) no contexto urbano de uma grande metrpole, no casoa cidade de So Paulo. As pesquisas que esto na base das reflexes aquiapresentadas foram realizadas no mbito do Ncleo de Antropologia Ur-

    bana (NAU/USP)1, mas devem ser levados em conta tambm muitos dostrabalhos feitos na disciplina Pesquisa de Campo em Antropologia, minis-trada por mim no curso de graduao de Cincias Sociais da FFLCH da

    Universidade de So Paulo2. Nessa disciplina, os alunos so iniciados nasartes da etnografia, desde a escolha do objeto e a discusso do tema, pas-

    sando pela elaborao do projeto e idas a campo, at a entrega do relatriofinal. Muitos projetos de pesquisa de ps-graduao (e carreiras acadmi-cas) tiveram a seu incio e incentivo.

    So justamente algumas dessas pesquisas de iniciao cientfica e de

    mestrado, desenvolvidas como continuao de trabalhos de graduao, asaqui mostradas para expor o tema e a forma como ele foi tratado no enfo-que da antropologia urbana.

    A primeira observao a fazer exatamente sobre a questo mais geralque vincula este texto aos outros apresentados nesta revista, a juventude.

    *Este artigo consti-tudo por dois captu-los (inicial e final) que

    escrevi para a coletneaorganizada por mim epor Bruna Mantese sobo ttuloJovens na me-trpole: uma anlise an-

    tropolgica dos circuitos

    de lazer, encontro e so-

    ciabilidade, no prelo, epelo resumo de algu-mas das etnografias quecompem essa colet-

    nea, para que o argu-mento do texto pudes-se ser desenvolvido.

    1.Elas integram meuprojeto de pesquisa Oscaminhos da metrpo-le, realizada com fi-nanciamento da bolsaProdutividade em Pes-quisa do CNPq.

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    Existe uma tradio nas cincias sociais, tanto na antropologia como na

    sociologia, preocupada com a delimitao e a conceituao dessa, digamosassim, etapa de um processo. Essa etapa pode ser marcada tanto por fatoresbiopsicolgicos como por rituais de passagem, de mudana de status e in-

    gresso em esferas especficas, como o mercado de trabalho, a constituiode famlia, o pertencimento a grupos etc.3. Entretanto, no foi esse o enfo-que adotado pelas pesquisas desenvolvidas no Ncleo: neste caso, ser jo-

    vem foi tomado menos como uma categoria explicativa do que como umponto de partida, emprico, para os recortes.

    Para justificar tal deciso, ponderou-se que tomar um amplo conjunto

    de recortes com as mais diferentes preocupaes lazer, sociabilidade, pos-turas afirmativas, religiosidade, ao poltica, transgresso, gostos musicaisetc. , ligados a segmentos que se apresentavam, de forma genrica, como

    jovens aos pesquisadores, e reduzir toda essa multiplicidade visvel na paisa-gem urbana a um comportamento padro ditado por determinado recortede faixa etria, seria perder importantes dimenses explicativas que a etno-

    grafia poderia revelar. Dessa forma, ao deixar de lado a varivel que tradi-cionalmente tem sido tomada como o denominador comum, a opo foibuscar outro ponto de articulao entre temas e recortes aparentementedesconexos.

    Tribos urbanas versuscircuitos de jovens

    Revisando a literatura atual sobre jovens, no h como deixar de men-cionar, logo de incio, o termo pelo qual sua presena, seu comportamento

    e suas prticas, sobretudo nas grandes cidades, so comumente nomeados:tribos urbanas. A expresso, divulgada principalmente por influncia dolivro O tempo das tribos, de Michel Maffesoli (1987), tem apelo e imedia-

    tamente reconhecida, especialmente pela mdia. Nessa obra, o socilogo

    francs analisava os comportamentos dos jovens nos centros urbanos sob agide do nomadismo, da fragmentao e de um certo tipo de consumo. O

    ponto central era mostrar o lado afetual de microgrupos caracterizadoscomo um tipo de comunidade emocional: so efmeros, de inscrio local,desprovidos de organizao. Com essa postura, o autor trazia para o cam-

    po da anlise social a perspectiva que ento caracterizava uma srie de trans-formaes que vinham ocorrendo no campo da literatura, da arquitetura,da moda, das comunicaes, da produo cultural, como ps-modernas.No caso da emergncia desses pequenos grupos, volteis, altamente dife-

    2.E tambm pelo prof.

    Vagner G. da Silva.

    3.Ver, a propsito, Car-doso e Sampaio (1995).

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    renciados, a novidade que apresentavam era sua contraposio homoge-

    neidade e ao individualismo caractersticos da sociedade de massas, bemcomo s identidades bem marcadas da modernidade.

    [...] o neotribalismo caracterizado pela fluidez, pelos ajuntamentos pontuais

    e pela disperso. E assim que podemos descrever o espetculo da rua nas

    megalpoles modernas. O adepto do jogging, o punk, o look retr, os gente-

    bem, os animadores pblicos, nos convidam a um incessante travelling. Atra-

    vs de sucessivas sedimentaes constitui-se a ambincia esttica da qual fala-

    mos. E no seio de uma tal ambincia que, pontualmente, podem ocorrer

    essas condensaes instantneas (Hocquenghem-Scherer), to frgeis, masque, no seu momento so objeto de forte envolvimento emocional (Maffesoli,

    1987, p. 107).

    Cabe lembrar que j se vo quase duas dcadas desde que o texto deMaffesoli surgiu4; impe-se uma releitura de seu pioneiro insight. Num tra-

    balho chamado Tribos urbanas: metfora ou categoria?, de 1992, fiz umacrtica utilizao dessa expresso, mostrando as limitaes, para a anlise,de seu uso mais metafrico do que conceitual. Isso no quer dizer que nose possa empregar o termo com algum proveito, mas necessrio estar aten-to para as limitaes e as particularidades inerentes a essa forma de utiliza-o. Uma dessas limitaes deve-se a um mal-entendido entre o sentido

    que se atribui ao termo tribo nos estudos tradicionais de etnologia queaponta para alianas mais amplas entre cls, segmentos, grupos locais etc. e seu uso para designar grupos de jovens no cenrio das metrpoles, que

    evoca exatamente o contrrio: pensa-se logo em pequenos grupos bem deli-mitados, com regras e costumes particulares, em contraste com o cartermassificado que comumente se atribui ao estilo de vida das grandes cida-

    des. No se pode descartar, ademais, a carga de preconceito em leituras que

    vem disputas de gangues como conflitos tribais5.Alm das matrias de jornal, das reportagens de televiso e de docu-

    mentrios sobre a vida na metrpole em que a expresso tribos urbanasgeralmente empregada de forma unvoca e acrtica, ela pode ser encon-trada tambm, com diferentes graus de elaborao, em teses, livros e arti-

    gos acadmicos6.Recentemente, o antroplogo espanhol Carles Feixa referiu-se a ela na

    introduo ao nmero especial da Revista de Estudios de Juventud(n. 64,2004), que trazia textos majoritariamente de autoria de pesquisadores da

    4.H uma controvrsiasobre a data da publica-o deste livro: a edioem portugus, da edito-ra Forense Universitria,

    vem com a data de 1987,enquanto o original emfrancs de 1988.

    5.Para uma discussomais ampla, consultarMagnani (1992). Vertambm Goldman(1999, p. 94).

    6.Por exemplo, Pais eBlass (2004) e Guer-reiro (1994).

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    pennsula ibrica7, fazendo um contraponto com outra expresso, cultu-

    ras juvenis, para demarcar linhas de interpretao diferentes. Ao mesmotempo em que se registra a presena macia, na mdia, da temtica jovem,desde os anos de 1960, nas modalidades punks, mods, skinheads, heavies,

    rockers, grunges, nuevaoleros etc., no teria havido a devida correspondn-cia nas pesquisas acadmicas, as quais teriam ficado restritas a aspectosestruturais escola, trabalho, famlia ou a temas clssicos como o asso-

    ciacionismo, a participao, as atitudes polticas. Por outro lado, as meto-dologias quantitativas teriam relegado a um segundo plano as abordagensde corte etnogrfico.

    Ainda segundo Feixa, nesse perodo houve estudos empricos e al-guns at tericos, que no entanto no tiveram a devida difuso. Nosltimos anos, essa situao tendeu a mudar e o tema das tribos urba-

    nas comeou a despertar interesse no meio acadmico de forma maissistemtica. A idia do nmero especial daquela revista foi retomar aquesto e propor uma nova perspectiva para tratar o assunto, que est

    resumida no prprio ttulo: Das tribos urbanas s culturas juvenis:

    O primeiro termo (tribos urbanas) o mais popular e difundido, ainda que esteja

    fortemente marcado por sua origem na mdia e por seus contedos estigmatizantes.

    O segundo termo (culturas juvenis) o mais utilizado na literatura acadmica

    internacional (vinculada normalmente aos estudos culturais). Essa mudana ter-

    minolgica implica tambm uma mudana na forma de encarar o problema, que

    transfere a nfase da marginalidade para a identidade, das aparncias para as estra-

    tgias, do espetacular para a vida cotidiana, da delinqncia para o cio, das ima-

    gens para os atores (Feixa, 2004, p. 6; trad. minha).

    O autor prossegue dizendo que o termo culturas juvenis aponta mais

    para as formas em que as experincias juvenis se expressam de maneira

    coletiva, mediante estilos de vida distintivos, tendo como referncia prin-cipalmente o tempo livre8. Esses estilos distintivos, identificados por meio

    do consumo de determinados produtos da cultura de massa, como roupas,msica, adereos, formas de lazer etc., remetem idia das subculturas,to ao gosto da tradio inaugurada pelo Centro de Estudos de Cultura

    Contempornea9, referncia obrigatria dos atuais cultural studies. Por outrolado, ainda nessa tradio, as experincias no interior das subculturas eramvistas como rituais de resistncia dominao de uma cultura hegemnica;da o carter chocante e desafiador da presena, do visual e da atuao

    7.Carles Feixa antro-

    plogo, professor da Uni-versitat de Lleida e autordo livro De jvenes, ban-das y tribus: antropologa

    de la juventud (1998).

    8.No obstante a mu-dana de perspectiva queessa nova expresso pre-tende trazer, ainda assimpersiste a indiferenciaoentre esses termos, comoo atesta a citao de umartigo no prprio nme-ro especial da revista or-

    ganizado por Feixa: Po-demos entender as tri-bos da cultura juvenilglobal como a expressodo instinto [sic] de for-mar e reinventar as co-letividades primordiaispara proporcionar umasensao de segurana efechamento em ummundo inseguro (Ni-

    lam, 2004, p. 46).

    9.Fundado em 1964por Richard Hoggart, naUniversidade de Birmin-gham, tornou-se desdeento um importantencleo de pesquisa sobrequestes relativas cul-tura e identidade naatualidade.

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    dos skinheads, por exemplo, manifestao tida como paradigmtica de uma

    subcultura juvenil tpica (cf. Hall e Jefferson, 1976).Com o objetivo, porm, de oferecer uma alternativa a esses enfoques e

    assim poder dialogar com eles na forma de contraposio e/ou complemen-

    taridade, proponho outra denominao, circuitos de jovens, e outro pontode partida para a abordagem do tema do comportamento dos jovens nosgrandes centros urbanos. Em vez da nfase na condio de jovens, que

    supostamente remete a diversidade de manifestaes a um denominadorcomum, a idia privilegiar sua insero na paisagem urbana por meio daetnografia dos espaos por onde circulam, onde esto seus pontos de en-

    contro e ocasies de conflito, e os parceiros com quem estabelecem relaesde troca.Mais concretamente, o que se busca com essa opo um ponto de vista

    que permita articular dois elementos presentes nessa dinmica: os compor-tamentos (recuperando os aspectos da mobilidade, dos modismos etc., en-fatizados nos estudos sobre esse segmento) e os espaos, as instituies e os

    equipamentos urbanos que, ao contrrio, apresentam um maior (e mais di-ferenciado) grau de permanncia na paisagem desde o pedao, maisparticularista, at a mancha, que supe um acesso mais amplo e de maiorvisibilidade. O que se pretende com esse termo, por conseguinte, chamara ateno (1) para a sociabilidade, e no tanto para pautas de consumo eestilos de expresso ligados questo geracional, tnica das culturas juve-

    nis; e (2) para permanncias e regularidades, em vez da fragmentao e donomadismo, mais enfatizados na perspectiva das ditas tribos urbanas.

    Essa propostatem como base uma reflexo anterior, formulada em arti-go da Revista Brasileira de Cincias Sociais(cf. Magnani, 2002), sobre a ne-cessidade de recortar e diferenciar uma antropologia urbana no interior davaga e pouco operativa expresso antropologia das sociedades complexas.

    A idia era levar em conta tanto os atores sociais com suas especificidades

    (determinaes estruturais, smbolos, sinais de pertencimento, escolhas,valores etc.), como o espao com o qual interagem mas no na qualidade

    de mero cenrio, e sim como produto da prtica social acumulada dessesagentes, e tambm como fator de determinao de suas prticas, constituin-do, assim, a garantia (visvel, pblica) de sua insero no espao10.

    A escolha de circuito, dentre as outras categorias da famlia, deve-se particularidade de ser a mais abrangente delas, pois, ao mesmo tempo quepossibilita identificar e construir totalidades analticas mais consistentes ecoerentes com os objetos de anlise, permite tambm extrapolar o espao

    10. Esta escolha implicouainda deixar o campo da

    juventude e as discus-ses sobre os atuais limi-tes dessa faixa etria quepodem oscilar, no casodos grupos aqui estuda-dos, entre os 13 e os 30anos em favor da op-o de v-los em sua in-terao com a cidade, seusespaos, equipamentos etrajetos.

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    fsico, mesmo na metrpole, proporcionando recortes no restritos a seu

    territrio. Tendo em vista que essas categorias iro aparecer em vrias pas-sagens deste artigo, vale a pena retom-las numa viso de conjunto, aindaque resumida.

    Assim,pedaodesigna aquele espao intermedirio entre o privado (a casa)e o pblico, onde se desenvolve uma sociabilidade bsica, mais ampla doque a fundada nos laos familiares, porm mais densa, significativa e estvel

    do que as relaes formais e individualizadas impostas pela sociedade. Man-chasso reas contguas do espao urbano, dotadas de equipamentos quemarcam seus limites e viabilizam cada qual com sua especificidade, com-

    petindo ou complementando uma atividade ou prtica predominante. Essacategoria foi proposta para descrever um determinado tipo de arranjo espa-cial, mais estvel na paisagem urbana se comparado, por exemplo, com a

    categoria pedao, mais estreitamente ligada dinmica do grupo que comela se identifica. A qualquer momento os membros de um pedaopodemeleger outro espao como ponto de referncia e lugar de encontro. A man-

    cha, ao contrrio, resultado da relao que diversos estabelecimentos e equi-pamentos guardam entre si, e que o motivo da afluncia de seu pblico,est mais ancorada na paisagem do que nos eventuais freqentadores. A iden-tificao destes com a mancha no da mesma natureza que a percebidaentre opedaoe seus membros. A mancha mais aberta, acolhe um nmeromaior e mais diversificado de usurios, e oferece a eles no um acolhimento

    de pertencimento, mas, a partir da oferta de determinado bem ou servio,uma possibilidade de encontro, acenando, em vez da certeza, com o impre-visto: no se sabe ao certo o que ou quem se vai encontrar na mancha, ainda

    que se tenha uma idia do tipo de bem ou servio que l oferecido e dopadro de gosto ou pauta de consumo dos freqentadores.

    J o termo trajetosurgiu da necessidade de categorizar uma forma de

    uso do espao que se diferencia, em primeiro lugar, daquele descrito pela

    categoriapedao. Enquanto esta remete a um territrio que funciona comoponto de referncia e, no caso da vida no bairro, evoca a permanncia de

    laos de famlia, vizinhana, origem e outros , trajeto aplica-se a fluxosrecorrentes no espao mais abrangente da cidade e no interior das manchasurbanas. a extenso e, principalmente, a diversidade do espao urbano

    para alm do bairro que impem a necessidade de deslocamentos por re-gies distantes e no contguas.

    Com relao a circuito, trata-se de uma categoria que descreve o exer-ccio de uma prtica ou a oferta de determinado servio por meio de

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    estabelecimentos, equipamentos e espaos que no mantm entre si uma

    relao de contigidade espacial; ele reconhecido em seu conjunto pelosusurios habituais. A noo de circuito tambm designa um uso do espa-o e dos equipamentos urbanos possibilitando, por conseguinte, o exer-

    ccio da sociabilidade por meio de encontros, comunicao, manejo decdigos , porm de forma mais independente com relao ao espao,sem se ater contigidade, como ocorre na mancha ou no pedao. Mas

    ele tem, igualmente, existncia objetiva e observvel: pode ser identifica-do, descrito e localizado11.

    Uma vez delineado o quadro e estabelecido o fio condutor para a an-

    lise, cabe agora um contato mais direto com os diversos circuitos de jovens,tais como aparecem nas etnografias aqui apresentadas de forma resumida.

    As etnografias

    Straight edge

    Analisados por Bruna Mantese em sua dissertao de mestrado, os straight

    edgesforam includos no contexto da pesquisa Os caminhos da metrpo-le devido sua particular forma de uso do espao e das trocas que man-tm com outros grupos e personagens urbanos. Em vez de constituir um

    grupo extico, isolado e confinado a algum gueto (como uma viso dosenso comum tenderia a considerar), eles tm, ao contrrio, presena vis-vel no cenrio urbano e participao ativa em sua dinmica. Claro, seu

    comportamento bastante distintivo e se diferencia do que comumente seespera de um grupo de jovens. Originalmente uma variante do movimen-topunk(com o qual ainda compartilham o estilo musical e algo do visual

    agressivo), apresentam, porm, diferenas significativas: contrrios aoconsumo de drogas e lcool, e avessos permissividade sexual e homofobia,

    tm como trao mais acentuado a adeso ao vegetarianismo e, em algunscasos, a uma verso mais radical, o veganismo.

    Essa variante probe no apenas a ingesto de carne, mas o consumo detodo e qualquer produto de origem animal ou que esteja vinculado, em

    seu processo de fabricao e pesquisa, a algum tipo de utilizao de ani-mais domsticos ou silvestres. Coerentes com esse princpio, as festas dogrupo so denominadas verduradas em contraposio s costumeiras

    churrascadas ou cervejadas. justamente essa adeso que explica o vnculoaparentemente paradoxal que os straight edges mantm nada mais nada

    11.Para uma discussomais ampla , ver Mag-nani (2002).

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    menos que com os Hare Krishna, muitas vezes encarregados da comidaque servida em suas festas.

    Os jovens identificados com esse movimento constituem um bom exem-plo de trocas e encontros surpreendentes: alm do contato com os HareKrishna, freqentam espaos vinculados ao movimento anarquista e ambien-talista, devido a uma opo poltica. No entanto, para as festas, os encontros

    e at mesmo para as opes de moradia, tm seus pontos de preferncia nacidade, conhecidos por todos e difundidos em contatos diretos e nas listas dediscusso pela internet. A pesquisa de campo realizada por Bruna mostra a

    existncia de um extenso circuito freqentado pelo grupo, formado por res-taurantes vegetarianos, determinadas sorveterias, lojas de disco, de produtosnaturais e orgnicos, casas de show, espaos culturais anarquistas etc.

    Entre os vrios aspectos a considerar com relao aos straight edges, caberessaltar aqueles que justificaram sua incluso na pesquisa: duas formas derelao com espaos e equipamentos da cidade com os quais estabelecem

    vnculos e onde melhor expressam as particularidades de seu estilo de vida. Aprimeira delas mostra a ocupao de um espao institucional j existente no caso, a Associao de Grupamento de Resgate Civil, cuja sede, alugada

    para as verduradas, passava a ser regida, durante o evento, pelas normas evalores do grupo: s se consumia comida vegan, nada de bebidas alcolicas,drogas ou cigarro; no se contratavam seguranas; as fitas cassete, cds, livros

    O sinal caracterstico dos straight edges. Foto: Paulo Fehlauer.

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    e objetos de consumo venda eram claramente identificados com os valores

    do grupo.A outra forma de relao, que permitiu um interessante acompanha-

    mento etnogrfico, mostra a transformao de um estabelecimento co-

    mercial, inicialmente sem nenhum vnculo com os ideais do grupo, numponto de referncia para o movimento. Trata-se da sorveteria Soroko, narua Augusta, que, com a freqncia dos straight edges, comeou a fornecer

    sorvetes sem os ingredientes interditos principalmente o leite, que foisubstitudo por soja e terminou constituindo um point para os mem-bros do grupo no apenas da capital, mas de todos os lugares, incluindo o

    exterior. A rua Augusta, onde est situada a sorveteria, vem se tornandouma regio de referncia para os straight edges, em parte pelo preo relativa-mente baixo do aluguel dos apartamentos, em parte pela prpria localiza-

    o, que permite fcil e rpido acesso a duas centralidades urbanas de inte-resse para os jovens do movimento: o centro da cidade propriamente dito(com sua oferta de restaurantes vegetarianos, produtos das lojas das Gran-

    des Galerias, mais conhecidas como Galeria do Rock, os preos popula-res de muitos artigos de consumo) e a avenida Paulista.

    Pode-se dizer que os straight edgesconstituem um circuito bem delimi-tado na cidade, estabelecem linkscom outros circuitos e seus freqentado-res, e, em sua movimentao por esses circuitos, descrevem alguns trajetosque permitem conhecer um aspecto da dinmica da cidade, apropriada

    por um segmento jovem que, em vez de dissolver-se em categorias abran-gentes e redundantes, marcam sua presena e seu estilo de vida de formapblica e visvel na paisagem da metrpole.

    Baladas black e rodas de samba

    O trabalho de campo sobre este tema foi iniciado por Mrcio Macedo

    na disciplina A pesquisa de campo em antropologia, por mim ministradano curso de graduao de Cincias Sociais da FFLCH/USP. Esse estudo foi

    depois retomado por Mrcio, que buscou rastrear, historicamente, a pre-sena negra no centro da cidade e, a partir dessa ocupao, descrever trajetosdentro de um circuito especfico de jovens negros na noite paulistana.

    O centro black, man!, e no de hoje. Sem ir muito longe, toman-do como referncia apenas a ocorrncia de sales de dana, possvel re-montar at antes do perodo da Frente Negra Brasileira (FNB), nos anosde 1930, com seus bailes sociais, nos moldes dos clubes recreativos e so-

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    ciais dos imigrantes ou da elite paulistana: por volta de 1910, j se tem

    notcia da expresso negro de salo para designar o freqentador de clu-bes que, em eventos familiares e bailes caseiros, se diferenciava pelas ma-neiras e indumentria mais refinadas, adquiridas nos sales de baile do

    centro da cidade.O exerccio etnogrfico proposto por Mrcio para a pesquisa Os cami-

    nhos da metrpole foi partir da presena significativa de jovens negros no

    centro da cidade no final da jornada de trabalho de sexta-feira, reunidosnuma roda de samba coloquialmente denominada Samba de Bandidoou Samba da Dom Jos (referncia rua Dom Jos Gaspar, local do

    evento), e a partir dela rastrear o circuito blackem alguns pontos de dife-rentes regies da cidade. Esse ponto de encontro no centro, no calado deuma das ruas at essa hora tomada por camels e seus produtos de origem

    duvidosa (roupas, tnis, bons, DVDs etc.) que aos poucos vo cedendoespao para vendedores de cds de rap, R&B, samba, e carrinhos com bebi-das, situa-se em frente a uma lanchonete sem nome. E a rua ferve! uma

    espcie de happy hourpara os jovens trabalhadores da regio e ponto departida para a noite que, em sua verso black, promete...

    So trs os espaos pesquisados e que se diferenciam pelo entorno, pelotipo de msica e de dana, pela roupa dos freqentadores, por seu poderaquisitivo e pela, digamos, proporo entre jovens negros e brancos. O pri-meiro, chamado Sala Real, fica na Boca do Lixo (zona de prostituio),

    ainda na regio do centro; os ingressos so mais baratos, a maioria dos fre-qentadores constituda por negros, h forte presena do hip-hop e amsica predominantemente internacional. O outro o Sambarylove,

    no Bixiga: o pblico tambm majoritariamente negro, provm de toda acidade e tambm do interior do estado (trazidos em nibus de excurso); asopes musicais so mais variadas: samba, samba-rock, ax music, rap,

    R&B, raggamufine melodia (lenta). Se na Sala Real o som considerado

    underground, aqui mais comercial. A terceira casa o Mood Club, nobairro de Pinheiros: mais elitizada, conta com manobristas e tem pgina na

    internet. A maioria do pblico de jovens brancos. Ainda que a interaoentre negros e brancos seja pequena, consenso de que as atraes da casaso a possibilidade de encontros e paqueras inter-raciais e uma musicalida-

    de mais refinada, entendida como underground. A seleo de msicas R&B, rape raggamufin privilegia as internacionais, no h pagode nemmsica lenta. Outro atrativo da Mood, voltada para negros de classe mdia, que espaos como o dessa casa podem ser associados a uma noo de

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    distino laBourdieu, ou seja, busca-se criar um estilo de vida queseja representativo de uma condio de classe. Dentro dessa lgica, estar

    num local mais refinado, caro, confortvel, heterogneo do ponto de vistaracial, entre outras coisas, faz todo o sentido.

    A Vila Madalena propriamente dita no possui casas diretamente iden-

    tificadas com a black music: algumas delas oferecem esse estilo em determi-nados dias da semana e, nesse sentido, tambm fazem parte do circuito

    blackjovem , para um pblico mais heterogneo. Algo muito interessante

    observado nesse circuitofoi a tenso entre uma postura de afirmao e a

    apropriao do estilo black internacionalizado por parte de um pblicomais amplo, o que possibilita, de certa forma, encontros e contatos.

    Mas no se pode esquecer que, na ponta do circuito, instaurando traje-tosespecficos na noite black, est o Samba de Bandido, que remete noapenas a uma ocupao histrica do centro da cidade pelos negros, como

    tambm a um tipo de afirmao que joga duplamente com o estigma: operigo atribudo presena macia de negros e, em menor medida, o sam-ba, apenas um item a mais (e nem sempre o mais valorizado) na cena black

    jovem e nas suas formas de afirmao.

    Casal dana samba-rock no salo Green Express, na regio central de So Paulo. Foto: Luciane Silva.

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    B. boyse streeteiros na estao Conceio do metr

    Dois foram os pontos de interesse para a incluso deste tema desenvol-vido por Fernanda Noronha, Renata Toledo e Paula Pires na pesquisa Os

    caminhos da metrpole: em primeiro lugar, a ocupao por parte dessesatores da estao do metr Conceio, na zona sul da capital, seguindo atradio do hip-hop paulistano que, inicialmente, nos anos de 1980, ocu-

    pou a estao So Bento, na regio central: tanto em um caso como nooutro, trata-se de um espao ideal para os ensaios/exibies tpicos dessaforma de manifestao. O outro aspecto o contato e as trocas entre dois

    grupos japase manos que, a julgar pela procedncia, classe social, prefe-rncias estticas, trajetos na cidade, dificilmente se poderia imaginar quepudessem estabelecer algum vnculo.

    Os japas so adeptos da street dancee os manos, da break dance; osprimeiros so de classe mdia, descendentes de japoneses, alunos de escolasparticulares; os outros, da periferia da zona sul, j no mercado de trabalho.

    B. boys realizam parada de mo, movimento de break, durante treino

    na estao de metr Conceio. Foto: Paulo Fehlauer.

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    Os manos, ou b. boys, que esto j h cinco anos no Centro Empresarial

    Ita/metr Conceio, cultivam como estilo de dana o break(ou batidaquebrada), que ligada ao hip-hop. uma modalidade que exige mais forafsica, alongamento prvio e as apresentaes so mais individuais, culmi-

    nando nos rachas ou desafios. Os b. boyscriticam os streeteiros, cuja danano passaria de uma mistura de estilos, sem o rigor do break; ademais, elesno teriam o conhecimento, elemento fundamental do estilo hip-hop.

    Os streeteiros, h trs anos freqentando o Centro, desenvolvem umadana mais coreografada, em grupo, que exige menos condicionamentofsico e mais sincronizao dos movimentos: os espelhos do Centro Em-

    presarial so fundamentais para o aprimoramento dessa modalidade. En-saiam principalmente nas manhs e tardes de sbado, para depois se apre-sentarem em campeonatos nos eventos da colnia. No se identificam com

    o estilo que eles prprios denominam de japinha (franjas dos cabelosdesfiadas, mechas coloridas, as nucas raspadas), preferindo as calas big,camisetas Pixa-In Hip Hop Wear, tags etc., identificados com a esttica

    hip-hop. As meninas do grupo, contudo, no dispensam os bichinhos echaveirinhos nas mochilas e os celulares estilizados so a regra.

    No entanto, compartilham o mesmo espao e as inevitveis tensescom seguranas e funcionrios, por causa do barulho e do uso das instala-es em um espao onde o pblico e o privado no apresentam fronteirasntidas e tambm a mesma denominao genrica de dana de rua. As

    diferenas, alm das j apontadas, ficam por conta das formas de desloca-mento na cidade, do calendrio letivo, das frias escolares, da durao da

    jornada de trabalho.

    Mas o especfico desse recorte que o Centro Empresarial Ita/metrConceio constitui um ponto de interseco entre dois circuitos que emprincpio pouco teriam por que se encontrar. No entanto, seus atores divi-

    dem o mesmo espao, entram em contato, estabelecem vnculos. A relao

    hierrquica, mas inversa que se esperaria tomando como base nos indi-cadores sociais costumeiros de renda, escolaridade etc.: aqui, so os japas

    que reconhecem a superioridade dos b. boyse aprendem com eles os truquese manhas da dana de rua.

    A mancha de lazer da Vila Olmpia

    O interesse desse recorte, escolhido por Clara Azevedo e Ana LuzaBorges, reside em sua tpica caracterizao de manchae na dinmica da

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    ocupao do espao num bairro remodelado, de classe mdia. Faz con-

    traponto com o Bixiga, a primeira mancha estudada pelo NAU quepermanece, s que mais voltada para o teatro e a gastronomia. A baladamigrou: nos anos de 1990, a Vila Madalena tornou-se o ponto de refe-

    rncia e, mais recentemente, a Vila Olmpia. Existe uma marcante dife-rena desta ltima com relao primeira: seguindo a tradio do bair-ro, conhecido reduto de jovens universitrios, artistas underground e

    bichos-grilos em geral nos anos de 1970, na Vila Madalena o clima cabea, cult, cool, roots... J a Vila Olmpia mais freqentada por umamoada apreciadora de shopping centers, desfiles de moda, roupas e aces-

    srios de grife, carros do ano.A regio toda foi objeto de uma operao urbana que modificou e am-pliou o traado da avenida Faria Lima, em 1995, com o objetivo de abrir

    um novo centro de negcios e comrcio, o que evidentemente despertou ointeresse do setor imobilirio. Com efeito, a nova Faria Lima virou umcentro empresarial com prdios de escritrios de vidros espelhados, lojas

    de grife que, noite, se transforma: no final da avenida e adjacncias,contam-se aproximadamente cinqenta estabelecimentos voltados para olazer, a diverso, os encontros.

    Circular pela rea a p, de carro ou de moto, mostrar-se e apreciar omovimento fundamental. A rua, ento, torna-se espao de uma sociabi-lidade amistosa que se intensifica com o vaivm em frente s casas notur-

    nas. A prpria fila para a compra de ingresso, ocasio para exibir-se, obser-var e comparar, cumpre mais do que o mero papel de esperar a vez deentrar: se ela for longa e demorada, sinal de que a casa est bombando.

    Um elemento determinante nesse processo de exibio constitudo peloscarros, seja os importados, seja os tunados, isto , aqueles com modifica-

    Interior de carro tunado: painel exibido no posto em uma noite de balada na Vila Olmpia.

    Foto: Paulo Fehlauer.

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    es em seu visual: com os vidros abertos, numa flagrante inverso da

    lgica de segurana que impera no dia-a-dia da cidade, permitem os pri-meiros contatos, as paqueras, os xavecos.

    As casas apresentam uma espcie de estabilidade efmera, abrem e fe-

    cham num ritmo que lembra sazonalidade ou obsolescncia programada:duram de dois a trs anos ou ento mudam de nome. No interior dos esta-belecimentos, com ingresso e consumao caros, destacam-se alguns perso-

    nagens especiais, como os promoteurs e tambm os convidados vip, quefuncionam como garantia do nvel da casa. A distino comea pela rou-pa; nos siteseflyers, comum a clara referncia proibio da entrada de

    pessoas com camiseta regata ou de time de futebol, chinelos, bons, o que,nas conversas pela nete at em artigos na mdia, assume formas de claraestigmatizao: a baianada de chinelo, o povo, os poluidores do am-

    biente, em contraposio aos selecionados, os bem-nascidos etc.No entanto, existe umaparticularidade nessa mancha: a presena de

    um posto de gasolina na esquina da avenida Juscelino Kubistchek com a

    Brigadeiro Faria Lima. Diferentemente do que se esperaria desse tipo deestabelecimento local de passagem para abastecimento ou rpida paradapara compra de algum item na loja de convenincia , ele se transformouem local de encontro e at de lazer. Para muitos, a balada na Vila Olmpiacomea e termina no prprio posto. A turma da Mfia do Posto, porexemplo, tem a seus privilgios para estacionar os carres: o posto seu

    pedao, com seus cdigos, normas, regras de cumplicidade.Em suma, como est no Blog Vila Olmpia, este no apenas o local,

    mas tambm o local de quem sabe o que balada em So Paulo. Sinais

    de distino, preconceitos e mecanismos de excluso/incluso ocorrem tantono interior dos estabelecimentos noturnos como fora, nas filas, nos carrose no posto: como a etnografia mostrou, as estratgias de diferenciao, por

    meio das quais as identidades so construdas e demarcadas, ganham des-

    de formatos amistosos at formatos violentos. Trata-se, enfim, de um grandecenrio, uma mancha em movimento, pois como bem definiram as au-

    toras da pesquisa, suas bordas j avanam sobre outros bairros, incorpo-rando trechos de ruas adjacentes.

    Galeria Ouro Fino, ponto de encontro e sada das raves

    A Galeria Ouro Fino, estudada por Carolina Abreu ponto de refern-cia e articulao de um circuito especfico, o das raves, pode ser vista

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    tanto como um exemplo de permanncia como de renovao. Est locali-

    zada na rua Augusta, ela prpria um cone em seu pioneirismo como refe-rncia de moda e comportamento quem no lembra da Jovem Guarda e,mais especificamente, daquela msica do Roberto Carlos? Ademais, situa-

    se no centro de uma manchana regio dos Jardins que tambm abriga arua Oscar Freire, cujo sofisticado comrcio de grifes de luxo estabeleceuma clara contraposio aos shopping centers. A exemplo de sua similar no

    centro da cidade, a Galeria do Rock (Grandes Galerias, na rua 24 de Abril),a Galeria Ouro Fino, projetada no final dos anos de 1960, pode ser consi-derada umpedaopara seus atuais freqentadores.

    Aps um perodo de decadncia e estagnao nos anos de 1980, a galeria,a partir de 1995, tornou-se referncia para as raves que comearam a aconte-cer no Brasil, acompanhando movimentos estticos, comportamentais e

    musicais aprendidos em Londres, Paris, Nova York. So festas que duramaproximadamente catorze horas, movidas por msica eletrnica e drogaspsicoativas (em especial o ecstasy). Esses eventos, embora freqentados por

    jovens urbanos, caracterizam-se por ocorrer em reas rurais (stios ou fazen-das com muito verde, cachoeiras, praia, lagos) ou em galpes desativados,alugados na periferia de grandes cidades. Nesses espaos, palcos so monta-dos para abrigar vrias atividades: msica e dana, chill out (descanso e relax),espaos de convivncia, procurando criar um ambiente de efervescncia ecomunidade com fragmentos de esttica indgena, oriental, indiana, csmi-

    ca, Nova Era.Enquanto as ravesescolhem repetidamente novos espaos para festejar,

    revelando certa natureza efmera, mantm na Galeria Ouro Fino uma re-

    ferncia espacial fixa, que articula a mobilidade das festas e sustenta seu

    circuito. nessa galeria onde se encontram os flyers, os acessrios, aindumentria e os ingressos antecipados para as raves; de onde saem

    tambm os nibus de caravanas rumo ao local da festa. L, e apenas l,

    encontram-se reunidos num nico espao roupas com desenhos psicodlicosfluorescentes, lightsticks, tnis plataforma, discos de vinil com gravaes de

    msicas eletrnicas, agulhas para pick-ups, malabares, maquiagem com

    glitter, culos estilosos, servio de body piercings, tatuagens, colorao decabelo; alm de alguns dos amigos que danaram juntos na balada e os

    DJs que discotecam nas festas.Embora nos ltimos dez anos a Galeria Ouro Fino tenha se tornado

    ponto de referncia para a cena eletrnica em geral com suas subdivi-ses: techno, trance, house, com todos os seus matizes em termos de vocabu-

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    lrio oral/gestual/escrito, modelos, cores, marca e composio das roupas,acessrios, penteados,piercingse tatuagens (nmero, tamanho, formas),idias, atitudes e opinies , no territrio exclusivo dos adeptos da msi-

    ca eletrnica. Muitos so os personagens que a freqentam: estilistas emincio de carreira, clubbers, tranceiros, techneros, cybermanos (clubbersdeperiferia, que vo s ravesa p ou de conduo), pessoas do bairro, clien-

    tes antigos, artistas,gays, pessoal da moda e, mais recentemente, rockeiros ea galera do hip-hop. Dessa forma, a galeria veio a ser no apenas um centrode compras, mas tambm de convivncia: o adjetivo moderno que lhe

    atribudo representa a vanguarda em moda e comportamento, ditados porum circuito global Paris, Londres, Nova York, Madri, San Francisco ,que rene descolados e antenados com essas tendncias.

    Em suma, a galeria pertence ao mundo da moda e abriga um dos

    pontos do circuito global da msica eletrnica entre as grandes metrpolescontemporneas. tambm referncia fixa para as itinerantes ravese seu

    circuito especfico tambm global que inclui localidades to diferentescomo Ibiza, Trancoso e Goa.

    Forr universitrio

    Daniela Alfonsi trabalha neste tema desde quando cursava a graduao,

    com bolsa Fapesp de Iniciao Cientfica, e agora, no mestrado, tambm

    Loja de botas Zowie, na Galeria Ouro Fino. Foto: Paulo Fehlauer.

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    com bolsa da mesma instituio, ampliou seu recorte emprico. O forr

    universitrio entrou no conjunto das pesquisas agrupadas no projeto Oscaminhos da metrpole por sua insero num determinado espao dacidade, configurando uma mancha, ao mesmo tempo em que, como cir-

    cuito, se expande e extrapola So Paulo, incluindo outras capitais e cidadesdo sudeste, praias do sul da Bahia e norte do Esprito Santo, especialmenteItanas, de onde, como diz uma das verses sobre as origens do forr

    universitrio, tudo comeou...Trata-se de um exemplo de inveno de padres de comportamento

    envolvendo gosto musical, locais de entretenimento, dana, que muito

    difundido entre um pblico universitrio e secundarista de classe mdia,entre 15 e 20 anos, e visto como um caso de apropriao e glamourizaode uma tradio musical prpria da populao migrante de origem nor-

    destina, a qual mantm seus prprios espaos de forr, como o TropicalDance, o Patativa, o Centro de Tradies Nordestinas etc.

    O interessante a forma como jovens de classe mdia terminaram por

    adotar essa tradio, descoberta como opo de lazer em lugares de frias everaneio em praias do sul da Bahia e norte do Esprito Santo, cultivada emalguns colgios de ensino mdio de elite na capital paulistana e que passoupor uma srie de adaptaes, sendo reconhecida por msicos, produtores epblico como uma forma nova de curtir a dana e a msica, que norenega a origem mas a modifica.

    Os locais onde se desfruta esse tipo de entretenimento, na cidade de SoPaulo, localizam-se no largo de Pinheiros, zona oeste da cidade, centro co-mercial popular, movimentado, e ponto de confluncia de nibus e came-

    ls. A tambm existem casas de forr (Tropical Dance, Sandlia de Prata,Asa Branca) freqentadas pela populao migrante nordestina, mas queno so bem-vistas pelos moradores de classe mdia da regio, para quem

    essas casas abrigam predominantemente porteiros e empregadas doms-

    ticas. Eles aceitam a verso universitria desse estilo de dana, aqueleque sua me deixa ir, e no os mal-afamados sales risca-faca. Essa nova

    verso surgiu na dcada de 1990 e configura uma mancha, na conflunciadas ruas Teodoro Sampaio e Cardeal Arcoverde, que abrigou e abriga asprincipais casas desse estilo na capital paulistana, como os extintos Projeto

    Equilbrio e Centro Cultural Elenko KVA e os atuais Remelexo Pinheiros eCanto da Ema.

    Os bailes comeam s 23 horas, quando as ruas da mancha j estofervendo com trailers e ambulantes vendendo acessrios e bebidas

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    xiboquinha, catuaba, pinga com mel, cip-bravo , e os grupos j ensaiam

    passos de dana. Nas casas, a msica fica a cargo de alguma banda ou trio,e cultiva-se uma forma de danar com estilo prprio, diferente do queacontece no CTN ou no Patativa, por exemplo: muitas voltinhas, giros,

    rodopios, mesclados com passos de samba-rock, gafieira e salsa. Caracte-rsticas da indumentria feminina so as bolsas pequenas a tiracolo queno precisam ser retiradas na hora da dana e sapatilhas estilo chinesinha,

    de pano e solado baixo, que, segundo as freqentadoras, facilitam os pas-sos da dana.

    Mas no s pela criao de espaos prprios para os bailes, pelos mo-dos especficos de danar ou pela indumentria caracterstica que o forruniversitrio se destaca no circuito jovem paulistano. H, por trs desseselementos, um discurso a respeito do que venha a ser a verdadeira origem

    do forr, o forr raiz, p-de-serra, objeto, segundo produtores, msi-cos e freqentadores dos bailes, de resgate por meio do forr universit-rio. Novas bandas, formadas por jovens, surgiram para defender essa idia

    e se diferenciar, mais uma vez, dos forrs risca-faca, freqentados pormigrantes nordestinos e pela populao de mais baixa renda.

    Casal dana forr em Itanas, Esprito Santo. Foto: Daniela do Amaral Alfonsi.

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    Fundamental para a conformao desse conjunto de idias a respeito

    das origens e do verdadeiro forr a ligao dos bailes em So Paulo coma vila de Itanas, no litoral norte do Esprito Santo. Conhecer Itanas,danar e tocar em suas praias tido como um valor para quem curte esse

    forr. L, jovens turistas vindos das capitais do sudeste encontram-se etrocam informaes, msicas, passos de dana. Nesse encontro, os pr-prios bailes de Itanas, bem como os das cidades de origem desses turistas,

    se modificam.Em So Paulo, por trs da aparente homogeneidade dos bailes h sutis

    diferenas que configuram diferentes trajetosdentro da cidade, como des-

    creve Daniela:

    [...] se a pessoa tem interesse em casas que toquem forr e reggaeela certamente

    freqentar o KVA s sextas e aos sbados, quando se tem, na chamada Sala do

    Nosso Ministro, discotecagem de reggae, alm do forr no ambiente ao lado, na

    Sala de Reboco. Ela ainda poder freqentar uma balada chamada Jamming,

    que ocorre, desde junho de 2002, todas as sextas-feiras no Clube Ip, no bairro do

    Ibirapuera. uma festa onde h discotecagem e apresentao de bandas de reggae

    e forr, ou, melhor dizendo, de forreggae. E, muito provavelmente, essa pessoa

    freqenta tambm o Projeto Equilbrio, que tambm se dedicava a essa modalida-

    de antes do encerramento de suas atividades no primeiro semestre deste ano.

    Outros trajetos so delineados levando-se em conta o grau de autenti-cidade determinado pelos forrozeiros para o forr que ouvem e danam.

    Assim, diante da disseminao do gnero e de sua apropriao pelo merca-

    do, surgiu a tendncia, por parte de algumas pessoas que realizam bailes spara convidados, de recuperar o forr das antigas como forma de preca-ver-se da vulgarizao e da espetacularizao. O contato faz-se por e-mail e

    s para os conhecidos, para os que gostam de forr; os bailes ocorrem

    em espaos no convencionais, como casas de amigos ou sales alugadospor apenas uma noite.

    Desse modo, na pesquisa sobre o forr universitrio operam tanto acategoria de mancha(no estudo na cidade de So Paulo) como as de trajeto(Idem) e de circuito, que inclui So Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,

    Braslia, Vitria, Campinas, Carava (BA), Itanas (ES). A partir dessascategorias so mostradas as relaes operadas entre as diversas formas deusufruir o forr em So Paulo, com os migrantes nordestinos ou com osuniversitrios.

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    Jovens instrumentistas

    Da pesquisa de Iniciao Cientfica j concluda por Camila Iwasaki,sobre sociabilidade de um determinado grupo de jovens baseada em gostomusical e lazer, com nfase na categoria de circuito, caberessaltar o recorteespacial e a insero dessa prtica numa mancha, a partir da qual se podedescrever um modo de vida diferenciado, que combina lazer e trabalho.

    Sbado tarde, rua Teodoro Sampaio, bairro de Pinheiros, zona oeste

    da capital paulistana: num palco improvisado, na calada em frente a umaloja de instrumentos musicais, a Matic, rola um som especial de msicainstrumental, caracterizado pela improvisao. Seus protagonistas sojo-vens que se dedicam de forma individual (no formam bandas) msicainstrumental e fazem dela seu meio tanto de lazer e de encontro como devida. As apresentaes nesse local revestem-se de um carter ldico e so

    marcadas por regras particulares: acompanhados pelas namoradas ou espo-sas, tocam para eles mesmos, para os amigos, exibem suaperformance, docanjas; seu momento de lazer, de construo dos laos e de conhecer

    outros msicos desse circuito. Perto dali, na praa Benedito Calixto, au-mentando o agito, acontece nesse mesmo dia uma concorrida e tradicionalfeira de antiguidades.

    Apresentao de jovens instrumentis tas em frente loja Matic Instrumentos Musica is, So Paulo.

    Foto: Paulo Fehlauer.

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    Essa loja um ponto de referncia e local de encontro para esses jovens,

    entre 19 e 30 anos, para os quais a msica instrumental motivo de diver-so, meio de sustento e estilo de vida. So guitarristas, bateristas, pianistas,contrabaixistas, saxofonistas que mostram um paradoxo: so jovens mas

    apreciam e praticam uma msica por muitos considerada de velho. Doaulas, apresentam-se em casas noturnas e, justamente por ganharem muitopouco nessas apresentaes, insuficiente para seu sustento e o de suas fam-

    lias, tocam de forma profissional em conjuntos que acompanham cantoresde sucesso na mdia, como Fbio Junior, Famlia Lima, Vanessa Camargo eoutros. Nutrem profundo desprezo, contudo, por esse tipo de msica, que

    consideram comercial, apelativa, de baixa qualidade: nesse caso, trata-se detrabalho, no de lazer.Em geral eles comearam a se interessar pela msica puramente instru-

    mental como diverso, hobby, no tempo livre, mas terminaram sendo ab-sorvidos por ela: muitos at abandonaram os estudos no nvel secundrio,para dedicar-se integramente ao que chamam de msica de boa qualida-

    de, de difcil execuo, complexa, que exige dedicao. Formam suas pa-nelinhas, orientam-se por hierarquias (tm seus eleitos, os melhores, queficam no topo da pirmide), tm cdigos de etiqueta que regem a ordemde apresentao, as canjas e os convites.

    Alm da Matic, nessa mancha formada por lutherias e por lojas quevendem partituras, cds, acessrios, instrumentos etc., h outros pontos de

    referncia que integram um circuito, como o conservatrio Souza Lima,alm de outros estabelecimentos como bares e casas noturnas, o SupremoMusical, The Hall (Jardins), Blen Blen Brasil (Vila Madalena), Villaggio

    Caf (Bixiga), Garoa (Moema). Esse circuitose expande num plano esta-dual (Tatu, Campinas), nacional e at internacional, que onde os me-lhores (Egberto Gismonti, Airto Moreira, Hermeto Pascoal) atuam e so

    reconhecidos.

    Como membros de um conjunto reconhecvel na paisagem metro-politana, os jovens instrumentistas pesquisados apresentam uma regula-

    ridade de comportamento que vai alm de sua prtica musical, aindaque dependente dela. Eles vivem na e da noite, inclusive para atividadese necessidades do cotidiano, como estudar, fazer compras em estabele-

    cimentos abertos 24 horas, usar caixas eletrnicos, freqentar academiasetc.; So Paulo permite, com mais facilidade, essa inverso dia/noite.

    Assim, sua articulao de trabalho e lazer, feita com relao msica quepraticam, e o uso dos equipamentos urbanos conformam um determinado

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    estilo de vida marcado pela imprevisibilidade do dia-a-dia, diante da qual

    preciso improvisar, tal como fazem com o estilo de tocar que cultivam; masmesmo nessa imprevisibilidade h um fio condutor, que a msica.

    Os pichadores

    Objeto de estudo de Alexandre Barbosa Pereira desde a graduao at o

    mestrado, o fenmeno da pichao foi includo no conjunto de pesquisasabrangidas pelo projeto Os caminhos da metrpole, do NAU, em virtu-de no apenas do uso das categorias circuito, trajeto e pedao, mas pela

    identificao de duas categorias nativas, o point e a quebrada, e o co-meo de uma reflexo sobre elas. um tema de ampla visibilidade as pichaes esto estampadas em

    fachadas de prdios, monumentos, janelas e muros de toda a cidade eque gera diversas (e sempre negativas) reaes, assim como tentativas deexplicao, desde sua reduo a atos de vandalismo puro e simples, at seu

    entendimento como manifestao de rebeldia adolescente. As pichaes,que se caracterizam pela ausncia de mensagens inteligveis ao restante dapopulao, seja elas de protesto, declaraes de amor etc., consistem nainscrio de nomes e apelidos, com letras estilizadas e de difcil compreen-so, preferencialmente em locais de ampla visibilidade e difcil acesso. Almda assinatura do autor e da referncia regio da cidade de onde provm

    (ZO, zona oeste, por exemplo), a pichao possui ainda a grife, que uma marca de pertencimento a um grupo mais amplo de pichadores.

    Um elemento correlato pichao o grafite, que, entretanto, visto

    como forma de arte, no como sujeira ou poluio. Tanto uma como ou-tro tm suas origens na Nova York dos anos de 1970. Nessa mesma dca-da, em So Paulo, apareceram as intervenes de Alex Vallauri e, nos anos

    de 1980, comeou a predominar o grafite americano, isto , ligado

    esttica hip-hop. Apesar de a maioria das anlises enfatizarem a contrapo-sio entre essas duas formas de interveno urbana, as relaes entre gra-

    fite e pichao so mais estreitas e mais complexas.O principal ponto de encontro dos pichadores paulistanos o Centro

    Cultural So Paulo, equipamento da Secretaria de Cultura do municpio

    que fica ao lado da estao Vergueiro do metr. Entre suas funes bi-blioteca, espao de estudo, de ensaios e apresentaes teatrais, local dereunio de praticantes de RPG, entre outras , certamente no estava pre-vista a de ser um ponto de encontro de pichadores. At o ano 2000, o

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    point dos pichadores localizava-se na ladeira da Memria, local que setornou impraticvel para eles em razo da constante presena da polcia,

    depois que esse espao passou por um processo de restaurao.Os jovens migraram ento, inicialmente, para a praa Rodrigues Alves

    e, depois, para as imediaes do Centro Cultural, locais prximos esta-

    o Vergueiro do metr. Esse uso de espaos pblicos associados a estaesdo metr comum por parte de jovens ligados a atividades de rua, como o

    hip-hop; nesse sentido, a estao So Bento uma referncia e, mais recen-temente, a estao Conceio, onde se renem os b. boyse os streeteiros.Os pichadores, nessa mudana, encontraram o espao da praa j ocupadopelos artesos os alternativos, como se denominam , com seu forr,

    sua MPB e seu rock, com os quais passaram a dividir o espao, a bebida etambm a maconha.

    No point, a etiqueta marcada pela atitude de humildade, quesignifica cumprimentar a todos com aperto de mo e trocar folhinhas(folhas guardadas em pastas com assinaturas, inclusive de pichadores

    Pichadores assinam suas folhinhas no po in t em frente ao Centro Cultural

    So Paulo. Foto: Paulo Fehlauer.

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    famosos), e pela apreciao de colees de artigos e matrias de jornal so-

    bre fatos ligados pichao, que so exibidas como verdadeiros trofus. a que combinam os rols (sadas coletivas para pichar em determinadoponto da cidade), contam suas faanhas, estabelecem alianas em torno de

    grifes, tiram as diferenas e resolvem os conflitos, geralmente causadospor atropelo, ou seja, o ato de pichar sobre outra pichao. Na origemdo conflito entre duas grifes famosas, os Registrados (RGS) e a Mais

    Imundos, por exemplo, est um atropelo cuja narrativa corre em vriasverses entre os pichadores. Eles tambm costumam organizar festas deaniversrio que so realizadas no contexto do bairro. O material que utili-

    zam comprado na galeria da rua 24 de Maio, conhecido espao de en-contro de muitos grupos e membros das mais diversas cenas dos jovens.O melhor lugar para pichar, segundo eles, o centro da cidade, porque

    por l passam pichadores de todas as regies: d mais ibope, dizem. Asociabilidade desses jovens comea no bairro mais precisamente na que-brada, recorte algo similar aopedao e se estende por toda a cidade, em

    diferentes trajetos. O termo quebrada traz uma conotao tanto de per-tencimento como de perigo, e um convite para pichar na quebrada dooutro visto como um gesto amistoso.

    Assim, portanto, o circuitoda pichao constitudo pelo point cen-tral, pelos points regionais, pelas quebradas, pela galeria e pelos eventos,sendo que o point da Vergueiro o local de articulao desse circuitoe

    de partida para vrios trajetos. E mesmo verdade que o significado daspichaes ininteligvel para quem no do pedao,pois, como os pr-prios pichadores afirmam explicitamente, eles no querem se comunicar

    com todo mundo, mas apenas entre si: as inscries so para aqueles quesabem ler o muro.

    Fechando o circuito

    Por limitaes de espao, no puderam ser includos os resumos de duas

    pesquisas: uma sobre o circuito de festas e espaos de danas de jovensevanglicos e carismticos (estes ltimos ligados Igreja Catlica), que, ano ser pela meno explcita de termos bblicos ou de referncias a santos

    nas letras das msicas, em nada se diferenciam de qualquer outra baladada noite paulistana12. A outra sobre os gticos e voltou-se para a presenadesse grupo na internet, por meio de listas de discusso e revistas eletrni-cas que constituem o que a autora denomina pedaos eletrnicos13.

    12.O ttulo da pesquisa justamente A baladado Senhor: o circuitogospel na metrpole esua autora, Ariana Rums-tain, que a apresentoucomo trabalho de conclu-

    so para a disciplina dePesquisa de Campo emAntropologia, em 2004,desenvolveu o trabalho decampo no mbito da li-nha de pesquisa Din-mica religiosa na regiometropolitana de SoPaulo, coordenada porRonaldo de Almeida, doprojeto CEM Centro

    de Estudos na Metrpo-le (Cebrap).

    13. A autora Adla Bour-doukan e o ttulo da pes-quisa, tambm realizadano mbito da disciplinaPesquisa de Campo emAntropologia, Carpenoctem: gticos nainternet.

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    A primeira coisa que as etnografias mostram, quando lidas em conjunto,

    que o circuitoengloba as demais categorias, e que estas aparecem no deforma independente, mas combinadas, de modo a captar a complexidadedas prticas culturais estudadas. Pde-se perceber que a aplicao das cate-

    gorias deu-se, assim, de uma forma inovadora: em vez do uso pontual deuma ou de outra, o que ocorreu foi a tentativa de captar a articulao entrevrias delas, permitindo que cada grupo fosse visto de forma mais abran-

    gente e em relao com outros. No bastava, por exemplo, identificar al-gumpedaodos gticos ou a manchado forr universitrio: suas manifesta-es e o uso que fazem da cidade se apresentam na forma de estratgias e

    escolhas mais amplas. Ademais, esses grupos no podem ser vistos de formaindependente, fechados em seus redutos ou confinados a algumas reas,pois nos trajetospela urbe eles estabelecem uma gama mais variada de cone-

    xes e contatos.Essa a dinmica dos circuitos de jovens: nem pulverizados, ou isolados,

    nem deriva na cidade. Assim, passou-se das categorias consideradas indi-

    vidualmente (pedaos, manchas,trajetosetc.), para arranjos que articulam ehierarquizam duas ou mais delas em padres estveis, reconhecveis: em al-guns casos, regimes de trocas entre diversos atores sociais e, em outros, pa-dres de insero no espao e circulao por ele, ou de uso de equipamen-tos, de freqncia a pontos de encontro e at de ocorrncias de conflitos.

    Em muitos estudos sobre jovens, a cidade tomada como pano de

    fundo para suas prticas culturais apresentada como um cenrioindiferenciado para seus fluxos ou ento atomizado, repartido em frag-mentos; em ambos os casos, como um ambiente inspito para as formas

    mais amplas de troca e de comunicao. Ora, o que os protagonistas dasdiferentes prticas descritas neste artigo evidenciam a ocorrncia de for-mas de uso do espao no limitadas a uma inscrio local, nem soltas ao

    sabor da movimentao sem rumo pela cidade. De pouco adiantaria, para

    a anlise, enumerar as ditas tribos pichadores,punks, gticos, skatistasetc. em uma lista aberta, vinculadas a este ou quele marco espacial (rua,

    beco), ou ento flanando de forma aleatria, como nmades sem direo.Ao contrrio, parece muito significativo o que a prpria pesquisa de cam-po revelou: esses grupos se apropriam da cidade e utilizam seus equipa-

    mentos de acordo com normas e valores que fundamentam escolhas mui-to precisas.

    Um exemplo, entre outros, pde ser visto na etnografia dos straight

    edges e seus trajetos, que incluem determinados restaurantes vegetaria-

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    nos, sorveterias (que no usam ingredientes interditos pelo iderio ve-

    gan), lojas de produtos sem agrotxicos ou conhecidas por seus preosbaixos (o que est de acordo com sua postura anticonsumista), eventos,casas de shows e centros culturais s vezes o Sesc Pompia ou o Cen-

    tro Cultural Vergueiro , quando se apresentam artistas ou bandas afi-nadas com seu gosto esttico-musical. Isso um arranjo, um conjuntode escolhas nada aleatrio e que se concretiza em trajetoselaborados e

    trilhados de forma coletiva.Alm do mais, os straight edgesmantm padres de troca com os Hare

    Krishnas (o elemento em comum a opo por uma alimentao sem in-

    gredientes de origem animal) e com os anarquistas (identificam-se comsuas propostas polticas, lem sua literatura), e o fazem em alguns pontosespecficos que podem ser considerados enlaces , onde se articulam

    circuitosdiferentes, como mostrou Bruna Mantese em seu estudo. Ou seja,aquilo que numa viso apressada, de fora, podia apresentar-se como maisum exemplo de contatos eventuais, reforando o esteretipo de exotismo

    associado a esse grupo, na verdade tem sua lgica e razo de ser, pois secoaduna com os princpios que regem o ethosdos straight edges.

    O mesmo ocorre com os japas e os b. boys, cada qual com seu circuito:o point da estao de metr Conceio, contudo, um enlace nainterseco entre ambos, por sinal bastante alheios um ao outro. Nessepoint comum, onde estabelecem um padro hierarquizado de trocas,

    cada qual cultiva seu pedao, conforme pde ser visto na etnografia deRenata Toledo, Paula Pires e Fernanda Noronha.

    E assim por diante com os gticos, os pichadores, os evanglicos e/ou

    catlicos identificados com o estilo gospel, os jovens instrumentistas, osforrozeiros, a turma da balada black, os cybermanos, os descolados etc.: to-dos tm seus prprios circuitos, mas circulam com os devidos cuidados

    por points de outros grupos que funcionam como ns de uma rede mais

    ampla;so trajetosconhecidos, podendo at haver treta em razo da pre-sena no desejada ou inoportuna nospedaosde outros. Nada, portanto,

    de um comportamento tido como espontneo, livre e solto, h sim regula-ridades, aes de conseqncias previsveis, como foi possvel constatar emcada uma das etnografias apresentadas.

    Assim, com base em dados sobre essa movimentao regime de tro-cas, passagens por circuitosafins e at conflitos entre alguns grupos , agora possvel sugerir um quadro classificatrio em torno de dois eixos:relaes de aproximao e de evitao.

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    Relaes de aproximao

    1.Por afinidade de estilo de vida e/ou classe social, e tambm por afinidadede interesse especfico: o caso dos evanglicos de distintas denomina-

    es em eventosgospelou entre evanglicos e jovens catlicos de orien-tao carismtica.

    2. Por afinidade de estilo de vida e/ou classe social, mas com diferenas de

    interesse especfico. Por exemplo: pichadores/skatistas/hip-hop: o vi-sual, os gostos musicais e at as grias utilizadas so parecidas, mas cadaqual se dedica a uma prtica diferente; outro exemplo a relao entre

    trancese adeptos da msica tecno.3. Por afinidade de interesse especfico, mas com diferenas de estilo devida e/ou classe social: japas (street dance) e b. boys (break); os descola-

    dos e cybermanos, nas raves; straight edges e Hare Krishnas; straightedgese anarquistas; jovens negros (para os quais a balada black lugar deafirmao) e jovens brancos (que freqentam os espaos dessas baladas

    porque curtem a black music).

    Relaes de evitao

    1. Sem enfrentamento: selecionados versus baianada de chinelo, namancha da Vila Olmpia, pondo s claras o preconceito; jovens

    instrumentistas versusmsica comercial, que detestam, mas com a qualso obrigados a entrar em contato por razes de trabalho e sobrevivn-cia; forrozeiros p-de-serra versusforr eletrnico; forr comercializa-

    do versusforrozeiros das antigas.2. Com enfrentamento: carecas versusstraight edges; carecas versusgticos;

    pichadores de grifes rivais, em razo de atropelos.

    Esse um esquema provisrio, surgido a partir da leitura das etnografiasem conjunto, mas mostra que, no obstante o investimento em termos et-

    nogrficos em cada uma delas, em busca da especificidade de seu arranjo, possvel transcender as particularidades e aspirar a modelos mais gerais.

    Por ltimo, cabe mencionar que, alm do emprego de uma ou mais

    categorias em cada etnografia14, houve identificao de novos termos emseu uso nativo. Foi o que ocorreu compoint, rol, quebradae cena. Algunsdeles aparecem na fala de vrios dos grupos estudados (como point, cena,

    rol); outro, quebrada, aparece em um grupo particular, o dos pichadores,

    14.Em princpio, issoseria mesmo de esperar,pois seus recortes com-binam sempre dois ele-mentos: um grupo deatores sociais claramen-te identificados por si-nais de pertencimentoe sua insero e/ou cir-culao no espao ur-bano.

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    que, ademais, do um contedo especfico ao termo rol uma sada cole-

    tiva para pichar em determinado ponto da cidade. Alexandre Barbosa, au-tor dessa etnografia, aponta algumas caractersticas de quebrada: esse ter-mo alude tanto a uma forma de pertencimento bastante semelhante ao

    que se verifica empedao, como traz uma conotao de perigo, associada periferia.

    Dessa forma, quebradapode ter duas leituras: uma que aponta para a

    distncia, as carncias, as dificuldades inerentes vida na periferia, mastambm a que permite o reconhecimento, a exibio de laos de quem dessa ou daquela localidade, bairro, vila. A aluso ao perigo, por sua vez,

    traz, surpreendentemente, uma conotao positiva, pois no para qual-quer um aventurar-se pelas quebradas da vida. preciso humildade,procedimento, estar relacionado, e esse sentido est presente entre pi-

    chadores, nas letras de rap, nas falas de seguidores das vrias modalidadesdo hip-hop, como uma forma de valorizao de seus estilos de vida, supe-rando a estigmatizao da pobreza, da delinqncia e da violncia geral-

    mente associadas periferia.O termopoint, que aparece em vrias etnografias, empregado sempre

    que se quer referir a um nico equipamento, geralmente de grande porte eocupado por vrios grupos, servindo como enlace entre eles, como aGaleria do Rock, a Galeria Ouro Fino, o Centro Cultural So Paulo, oSesc Pompia, a estao de metr Conceio etc.

    Com relao ao termo cena, cabe uma primeira aproximao com cir-cuito, categoria com a qual guarda algum paralelo: ambos supem um re-corte que no se restringe a uma insero espacial claramente localizada.

    No caso do circuito, ainda que seja constitudo por equipamentos fsicos(lojas, clubes), inclui tambm acesso e freqncia a espaos virtuais como

    chats, grupos de discusso e foruns na internet, ademais de eventos e cele-

    braes. Como j foi assinalado, o que distingue circuitode mancha o fato

    de o primeiro no apresentar fronteiras fsicas que delimitam seu mbito desociabilidade. Cena, entretanto, apesar de compartilhar com o circuitoessa

    caracterstica de independncia diante da contigidade espacial, maisampla que ele, pois denota principalmente atitudes e opes estticas eideolgicas, articuladas nos e pelos circuitos. Se estes so formados por

    equipamentos, instituies, eventos concretos, a cena constituda peloconjunto de comportamentos (pautas de consumo, gostos) e pelo universode significados (valores, regras) exibidos e cultivados por aqueles que co-nhecem e freqentam os lugares certos de determinado circuito. Em

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    suma, pode-se freqentar o circuito, mas pertence-se a tal ou qual cena;

    enquanto aquele alude rede, esta tem como referente os atores sociais,suportes dos sinais de pertencimentos e escolhas no prprio corpo, na rou-pa, no discurso; um identificvel na paisagem, enquanto a outra se mani-

    festa nas atitudes15.

    Concluso: as modulaes do espao pblico

    As etnografias apresentadas neste artigo no apenas mostraram algumasformas por intermdio das quais os jovens se relacionam entre si e com a

    cidade, mas tambm permitem pensar, de uma maneira geral, como osdiferentes atores sociais se apresentam no espao urbano, circulam por ele,usufruem seus equipamentos e, nesse processo, estabelecem padres de

    troca e encontro no domnio pblico.Diferentemente do que muitas vezes ocorre em anlises nas quais a opo-

    sio pblicoversus privado tomada como princpio classificatrio, no se

    pode reduzir as diferentes formas de suas destinaes e ocupaes com basenessa dicotomia, como se ela operasse de forma unvoca: na realidade, tantoum como outro termo apresentam nuanas e modulaes. Se se toma, porexemplo, casa e rua como representaes concretas dessa dicotomia, v-seque casa admite gradaes; em seu domnio, possvel distinguir varan-da/sala/quarto/cozinha/quintal como diferentes posies entre os plos p-

    blico/privado: a sala, por exemplo, o espao mais pblico do interior dacasa (cf. Da Matta, 1979) E, s vezes, a rua vira casa, como bem mostraramCarlos Nelson Ferreira dos Santos et al. (1985). Penso, contudo, que no se

    trata de um continuum, com pontos fixos, mas de posies numa relao;perder de vista esse carter relacional da oposio significa reific-la, tor-nando-a, por conseguinte, inoperante como princpio classificatrio.

    O mesmo ocorre com rua: apesar de seu carter emblemtico, lugar

    por antonomsia da realizao do valor pblico, no lhe esgota o senti-do. Nem se pode decretar o desaparecimento ou retrao desse valor no

    contexto das grandes cidades contemporneas, sob o argumento de a ruater-se tornado inspita, em algumas circunstncias, para o convvio oucirculao. Ou por ter sido substituda por outras variantes:

    A prpria escala de uma megacidade impe uma modificao na distribuio e na

    forma de seus espaos pblicos, nas suas relaes com o espao privado, no papel

    dos espaos coletivos e nas diferentes maneiras por meio das quais os agentes (mo-

    15.Cabe ressaltar a dife-rena entre esse entendi-mento do termo cenae o dado por HelenaAbramo em seu pionei-ro Cenas juvenis: punks edarks no espetculo urba-

    no(1994). Nesse traba-lho, a autora d a cenaum sentido mais prxi-mo idia de espetcu-lo: Prefiro usar o termo,presente na literatura in-glesa, de estilos espetacu-lares. A idia do espeta-cular permite ressaltar oque para mim constituio ncleo central desses fe-nmenos juvenis: a idiade uma encenao, comoatuao para levantar pro-blematizaes e provocarreaes (p. 148).

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    radores, visitantes, trabalhadores, funcionrios, setores organizados, segmentos

    excludos, desviantes etc.) usam e se apropriam de cada uma dessas modalidadesde relaes espaciais. Para alm da nostalgia pela velha rua moderna de Berman

    (1989, p. 162) ou do bal das caladas de Jane Jacobs (1992, p. 50), certamente

    haveria que se perguntar se o exerccio da cidadania, das prticas urbanas e dos

    rituais da vida pblica no teriam, no contexto das grandes cidades contempor-

    neas, outros cenrios: para tanto, necessrio procur-los com uma estratgia ade-

    quada (Magnani, 2002, p. 15).

    As categorias sugeridas para pr em prtica essa estratgia apontam para

    outras formas de realizao do espao pblico, diferentes das usualmenteassociadas com a idia tradicional (e restritiva) de rua. Circuitos, trajetos,

    manchas e atpedaos(estes com seus laos mais particularistas, ao estilo de

    comunidade) constituem distintas modulaes de uso e desfrute do espa-o pblico: so diferentes verses da rua como suporte do atributo p-blico. Cada um desses arranjos corresponde a uma forma especfica de se

    expor, estabelecer laos, marcar diferenas, fazer escolhas, colocar-se, en-fim, na paisagem urbana diante dos outros e em relao a eles. A experin-cia dos vnculos que essas categorias descrevem no se restringe ao interiorde grupos fechados e a espaos guetificados, protegidos, mas , em vriosgraus (e com todas as ressalvas que determinados fatores de ordem estru-tural impem s condies de vida em cidades do porte de So Paulo),

    metropolitana, cosmopolita.E como j de praxe, ao trmino de cada artigo, livro ou coletnea volta-

    dos para questes urbanas, surge a famosa dicotomia antropologia naou dacidade (s vezes coma inescapvel obrigao de filiar-se a uma ou a outradessas alternativas) quem sabe no se poderia arriscar e... ficar com as duas?Com mais exerccios como os que foram apresentados neste artigo, clara-

    mente identificados com a perspectiva de uma antropologia nacidade por

    seus alcances, recortes etc. , mas articulados com perguntas mais gerais so-bre a dinmica urbana contempornea, talvez seja possvel caminhar com

    mais segurana em direo a uma antropologia dacidade, que j no podeencerrar-se nos limites de suas fronteiras poltico-administrativas.

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    Resumo

    Os circuitos dos jovens urbanos

    Este artigo apresenta os resultados de um trabalho sobre o tema dos jovens e suas

    prticas culturais e de lazer, redes de sociabilidade e relaes de troca (e tambm de

    conflito) no contexto urbano da cidade de So Paulo. Aps a apresentao e a discus-

    so dos termos tribos urbanas e cultura juvenil, proponho outra denominao,

    circuitos de jovens, para a abordagem do tema. Em vez da nfase na condio de

    jovens, que supostamente remete a diversidade de manifestaes a um denominador

    comum, a idia privilegiar sua insero na paisagem urbana por meio da etnografia

    dos espaos por onde eles circulam e onde se encontram, e das ocasies de conflito e

    dos parceiros com quem estabelecem relaes de troca. Com isso, busca-se articulardois elementos presentes nessa dinmica: os comportamentos e os espaos, instituies

    e equipamentos urbanos. O que se pretende chamar a ateno (1) para a sociabilida-

    de, e no tanto para pautas de consumo e estilos de expresso ligados questo geracio-

    nal, e (2) para as permanncias e as regularidades, em vez da fragmentao e do

    nomadismo.

    Palavras-chave: Circuitos de jovens; Cultura juvenil; Metrpole; Etnografia urbana.

    Abstract

    Youngsters and their routes in town

    This article presents the results of a research on youth and their cultural and leisure

    practices, sociability networks and exchange relations (as well as those of conflict) in

    the context of urban So Paulo. After introducing and discussing the terms urban

    tribes and juvenile culture, I propose another term, juvenile circuits to deal with

    the theme. Instead of emphasizing the fact that they are youths, which would suppos-

    edly link a diversity of manifestations to a common denominator, the idea is to high-

    light their insertion in the urban scenario through an ethnography of the spaces where

    they circulate and meet, the occasions where there is conflict, and the partners with

    whom they establish exchange relationships. By adopting this approach, I intend to

    articulate two elements that are present in this dynamic: the behaviors and the spaces,institutions and urban equipment. The idea is to call the attention to (1) sociability

    and not to consumption and styles of expression linked to the generational issue, (2)

    to the permanence and regularity rather than fragmentation and nomadism.

    Keywords: Youth circuits; Juvenile culture; Metropolis; Urban ethnography.

    Texto recebido e apro-vado em 9/9/2005.

    Jos Guilherme CantorMagnani professor-doutor do Departamen-to de Antropologia daUSP, coordenador doNcleo de Antropolo-gia Urbana (NAU/USP)e membro da comissoeditorial da Revista de

    Antropologia. E-mail:[email protected]