OS CICLOS DE APRENDIZAGEM NO COTIDIANO DA SALA DE AULA… OS CICLOS DE... · 2015-06-22 ·...

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OS CICLOS DE APRENDIZAGEM NO COTIDIANO DA SALA DE AULA: A RESSIGNIFICAÇÃO DA RELAÇÃO ENTRE O EDUCADOR E OS EDUCANDOS AGUIAR, Denise Regina da Costa Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC/SP Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo [email protected] Resumo O presente texto foi construído a partir de minha pesquisa de doutorado, que objetivou analisar a proposta da organização curricular em ciclos de aprendizagem, de acordo com referenciais freireanos, nos sistemas públicos de ensino. Foi desenvolvido também um estudo de caso ilustrativo, no Município de Diadema, para elucidar empiricamente a proposta curricular em ciclos de aprendizagem, numa perspectiva crítico-emancipatória fundamentada em Paulo Freire. A organização curricular em ciclos de aprendizagem, numa perspectiva crítico-emancipatória freireana, funda-se nos princípios de participação e autonomia e propõe um outro fazer pedagógico, um processo permanente de formação humana, que ressignifica o processo ensino-aprendizagem. Na visão de Freire, ensinar inexiste sem aprender, não há docência sem discência e vice-versa. Assim, ensinar é uma relação de A com B, entre dois sujeitos cognoscíveis, numa relação dialógica, mediatizados pelo mundo, por objetos de conhecimentos cognoscíveis. É uma proposta que se efetiva por meio de estratégias diversificadas para o cotidiano da escola: a organização de agrupamentos, da aula e rotina pedagógica diferenciada; constituição do percurso formativo do aluno, o registro nos diários de ciclo e a ressignificação do processo de avaliação da aprendizagem. É uma possibilidade de um quefazer diferenciado em sala de aula, onde o educador deve, permanentemente, de maneira dialógica, com rigorosidade metódica, reinventar a relação educador-educando, para que os educandos possam perguntar, pesquisar, criar, compartilhar, duvidar, aprender sem medo e com ousadia. Palavras-chave: Currículo em Ciclos; Relação Educador Educando; Paulo Freire. Introdução Com o período de redemocratização, no Brasil, ocorreram algumas iniciativas objetivando a democratização da educação nos sistemas públicos de ensino, municipais e estaduais, com a intencionalidade de reorganização e flexibilização do currículo escolar em contraposição ao currículo técnico-linear instituído pelo regime seriado. Tais iniciativas estruturaram-se na tentativa de ruptura e superação do caráter elitista, classificatório, seletivo e excludente que a escola seriada legitimou até então, Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola EdUECE- Livro 1 03354

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OS CICLOS DE APRENDIZAGEM NO COTIDIANO DA SALA DE AULA: A

RESSIGNIFICAÇÃO DA RELAÇÃO ENTRE O EDUCADOR E OS

EDUCANDOS

AGUIAR, Denise Regina da Costa

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC/SP

Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo

[email protected]

Resumo

O presente texto foi construído a partir de minha pesquisa de doutorado, que objetivou

analisar a proposta da organização curricular em ciclos de aprendizagem, de acordo com

referenciais freireanos, nos sistemas públicos de ensino. Foi desenvolvido também um

estudo de caso ilustrativo, no Município de Diadema, para elucidar empiricamente a

proposta curricular em ciclos de aprendizagem, numa perspectiva crítico-emancipatória

fundamentada em Paulo Freire. A organização curricular em ciclos de aprendizagem,

numa perspectiva crítico-emancipatória freireana, funda-se nos princípios de

participação e autonomia e propõe um outro fazer pedagógico, um processo permanente

de formação humana, que ressignifica o processo ensino-aprendizagem. Na visão de

Freire, ensinar inexiste sem aprender, não há docência sem discência e vice-versa.

Assim, ensinar é uma relação de A com B, entre dois sujeitos cognoscíveis, numa

relação dialógica, mediatizados pelo mundo, por objetos de conhecimentos

cognoscíveis. É uma proposta que se efetiva por meio de estratégias diversificadas para

o cotidiano da escola: a organização de agrupamentos, da aula e rotina pedagógica

diferenciada; constituição do percurso formativo do aluno, o registro nos diários de

ciclo e a ressignificação do processo de avaliação da aprendizagem. É uma

possibilidade de um quefazer diferenciado em sala de aula, onde o educador deve,

permanentemente, de maneira dialógica, com rigorosidade metódica, reinventar a

relação educador-educando, para que os educandos possam perguntar, pesquisar, criar,

compartilhar, duvidar, aprender sem medo e com ousadia.

Palavras-chave: Currículo em Ciclos; Relação Educador – Educando; Paulo Freire.

Introdução

Com o período de redemocratização, no Brasil, ocorreram algumas iniciativas

objetivando a democratização da educação nos sistemas públicos de ensino, municipais

e estaduais, com a intencionalidade de reorganização e flexibilização do currículo

escolar em contraposição ao currículo técnico-linear instituído pelo regime seriado.

Tais iniciativas estruturaram-se na tentativa de ruptura e superação do caráter

elitista, classificatório, seletivo e excludente que a escola seriada legitimou até então,

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negando o acesso e a permanência com qualidade a milhares de crianças das camadas

populares à educação.

Inicialmente o currículo em ciclos foi introduzido, na década de 80, com os

Ciclos de Alfabetização nas redes educacionais dos Estados de São Paulo (1983), Minas

Gerais (1983) e Paraná (1983), intitulados de ciclo básico.

O ciclo básico e a reforma curricular, pautados no princípio da democratização

do ensino, visaram combater os altos índices de evasão e repetência, flexibilizando o

tempo de aprendizagem dos alunos das antigas 1ª e 2ª séries do primeiro grau em um

continuum sem interrupção e assim eliminando e/ou limitando a repetência no primeiro

ano de escolaridade.

No final da década de 80 e início da década de 90 a organização curricular em

ciclos expandiu-se para todo o ensino fundamental (com duração de 8 ou 9 anos) com

uma outra lógica mais radical, como uma proposição de efetivar nas escolas públicas

uma proposta curricular político-pedagógica que considerasse a escola pública como um

espaço-tempo de práticas sociais populares e democráticas.

Pode-se afirmar por meio dos estudos acadêmicos que a experiência pioneira de

implantação do currículo em ciclos para todo o ensino fundamental, à época ensino de

1º Grau, ocorreu na gestão (1989 a 1992) de Luiza Erundina, quando assumiu a

Secretaria Municipal de Educação de São Paulo o Professor Paulo Freire. A proposta foi

denominada de Escola Democrática, tendo como principal ação o movimento de

reorientação curricular, a implantação curricular em ciclos de aprendizagem associados

a um processo de formação permanente de educadores.

A proposta curricular em ciclos de aprendizagem fundamentada em pressupostos

freireanos expandiu-se para outras redes de ensino, sendo mais frequentemente

denominada de ciclos de formação e reestruturada, de acordo com cada contexto,

realidade local, numa perspectiva de construção de uma escola pública, popular e

democrática.

Nessa perspectiva estruturou-se a Escola Plural em Belo Horizonte (1994), a

Escola Cidadã em Porto Alegre (1995), a Escola Cabana em Belém do Pará e a Escola

Sem Fronteiras em Blumenau, os Ciclos de Aprendizagem em Chapecó, os Ciclos de

Aprendizagem em Diadema/SP, dentre outras.

Cada sistema de ensino, estadual ou municipal, definiu a sua proposta político-

pedagógica para a implantação da organização da escola em ciclos, de acordo com sua

realidade, com diferentes caracterizações, concepções, conceitos e intencionalidades,

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cada qual com sua moldura educacional, não sendo possível definir um único conceito

ou maneira de implantar a organização curricular em ciclos de aprendizagem.

Dentre a variedade de propostas e referenciais existentes, sobretudo com a

expansão dessa organização, a partir da Lei nº 9394/96 – Lei de Diretrizes e Básicas da

Educação Nacional, foi escolhida a proposta da flexibilização curricular em ciclos de

aprendizagem fundamentada no referencial de Paulo Freire, para o aprofundamento

teórico deste texto.

Este texto deriva-se de reflexões/problematizações realizadas durante a pesquisa

que deu origem à minha tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em

Educação: Currículo, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP e que

objetivou analisar a proposta da organização curricular em ciclos de aprendizagem, de

acordo com referenciais freireanos, nos sistemas públicos de ensino. Foi desenvolvido

também um estudo de caso ilustrativo, no Município de Diadema, para elucidar

empiricamente a proposta curricular em ciclos de aprendizagem, numa perspectiva

crítico-emancipatória fundamentada em Paulo Freire.

Princípios da Flexibilização Curricular em Ciclos de Aprendizagem

A organização curricular em ciclos de aprendizagem, numa perspectiva crítico-

emancipatório freireana, funda-se nos princípios de participação e autonomia no

processo ensino-aprendizagem e propõe um quefazer crítico-reflexivo para o cotidiano

da escola, num processo de construção coletiva na elaboração, nas decisões e ações

sobre a proposta curricular da escola, entendendo a escola como uma comunidade

curriculista.

Articula teoria-prática por meio da ação-reflexão-ação sobre as práticas e

experiências curriculares, objetivando uma análise crítica do currículo, para localizar

pontos vulneráveis, que precisam de modificações e, a partir da fundamentação teórica

crítica, rever práticas para superá-las.

A organização da escola em ciclos de aprendizagem pressupõe o respeito ao

aluno, ao ritmo de desenvolvimento humano, ou seja, cognitivo, motor, social e afetivo.

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Para Freire educar é formar o ser humano, um sujeito histórico-social, consciente da sua

realidade, capaz de valorar, escolher, refletir, ler o mundo, criticar, mudar.

O objetivo dessa organização é assegurar ao educando o desenvolvimento de sua

autonomia, a continuidade e a articulação do processo ensino-aprendizagem,

respeitando seu ritmo, o seu saber de experiência feito, suas vivências, o conhecimento

que o educando traz, sua história de vida.

O regime em ciclos implica uma nova forma de trabalho do professor, com

articulação coletiva, adequando os conteúdos, a metodologia e uma nova concepção de

ensino-aprendizagem, vinculando a aprendizagem de cada educando, a partir de um

conhecimento significativo.

Na visão de Freire, ensinar inexiste sem aprender, não há docência sem

discência e vice-versa. Assim, ensinar é uma relação de A com B, entre dois sujeitos

cognoscíveis, numa relação dialógica, mediatizados pelo mundo, por objetos de

conhecimentos cognoscíveis.

Para Freire, ensinar, aprender e pesquisar não se dicotomizam e constituem os

dois momentos do ciclo gnosiológico: o em que se ensina e se aprende o conhecimento

já existente e o em que se trabalha a produção do conhecimento ainda não existente. A

do-discência e a pesquisa indicotomizáveis são práticas requeridas no ciclo

epistemológico. ( 2001, p.31).

Pôde-se constatar no trabalho desenvolvido pelos educadores, em Diadema, que

a organização curricular em Ciclos de Aprendizagem tem possibilitado o processo

ensino-aprendizagem, pela via do tema gerador, com apreensão do conhecimento já

existente e a produção de conhecimento pelos educandos.

Por fim, a flexibilização curricular em ciclos requer uma organização curricular

que respeita o desenvolvimento dos educandos.

Uma Organização Curricular que respeita o desenvolvimento dos educandos.

Pensar uma organização curricular que respeite o desenvolvimento dos

educandos significa pensar um outro fazer pedagógico, um outro jeito de se fazer a aula,

de se organizar a escola, de se fazer currículo na diversidade cultural, com outra

qualidade do processo ensino-aprendizagem.

A organização curricular precisa ser flexível para respeitar o educando, seu

ritmo de aprendizagem, de desenvolvimento humano, ou seja, cognitivo, motor, social e

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afetivo. Cada educando aprende de um jeito, de uma maneira, dependendo de suas

experiências, do conhecimento que o educando adquire anteriormente à escola, do seu

saber de experiência feito.

Para Freire educar é substantivamente formar (2001, p.37), formar o ser

humano, um sujeito histórico-social, consciente da sua realidade, capaz de valorar,

escolher, ler o mundo, criticar, de ser curioso e criativo. Nessa dimensão, todo ser

humano é inconcluso, inacabado e está em permanente processo de formação, em

desenvolvimento contínuo. Educar não se reduz ao puro treinamento técnico.

Para isso, a escola precisa diversificar e ampliar as possibilidades de modo a

contemplar os percursos formativos de cada educando. Flexibilizar o tempo e o espaço

para a aprendizagem, para que o educando na interação com outro educando e com o

educador vivencie diferentes experiências e diferentes formas e construa conhecimentos

significativos para sua vida.

Além do desenvolvimento cognitivo de construção de conhecimento

significativo, a escola tem a função de socialização das crianças e do desenvolvimento

afetivo, de formação de valores, de solidariedade, amorosidade, respeito, justiça, direito

de ser e estar no mundo.

Para Freire:

Outro testemunho que não deve faltar em nossas relações com os

alunos é o da permanente disposição em favor da justiça, da liberdade,

do direito de ser. A nossa entrega dos mais fracos, submetidos à

exploração dos mais fortes. É importante, também, neste empenho de

todos os dias, mostrar aos alunos como há boniteza na luta ética. Ética

e estética se dão as mãos. (2006, pág. 77).

A educação tem o compromisso histórico de denúncia de um mundo opressor e

de anúncio de um mundo mais solidário e mais justo, pela produção de uma consciência

ético-crítica.

Para Freire os homens são seres da busca e sua vocação ontológica é

humanizar-se. (2004, p.62). A ética humana é a essência da educação crítico-

libertadora, por isso, educadores e educandos devem se orientar no sentido de efetivar

sua vocação para a humanização.

Todo ser humano é incompleto, inconcluso, por isso, é inerente à vida humana

um permanente processo de busca, de conscientização de sua inconclusão, de

conhecimento de si mesmo, de reconhecimento do outro na relação eu-tu e de

conhecimento do mundo, para a formação da vocação ontológica de ser mais.

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Em Freire, a vocação ontológica de ser mais se relaciona com o sonho, a

esperança, o inédito viável, a utopia inerente à própria existência humana na história.

A utopia exige conhecimento crítico da realidade, implica na conscientização de

uma situação-limite e na problematização de uma situação opressora para superá-la.

A utopia é um ato de conhecimento que permite o desvelar da estrutura

desumanizante de uma situação opressora, para denunciá-la e superá-la, a partir do

anúncio de um mundo humanizante, por meio de uma práxis libertadora.

Nesse sentido, não basta apenas que educandos e educadores se conscientizem

do processo de opressão, que desvelem a realidade, é preciso, também, que a reflexão

seja conduzida para uma prática, uma ação de superação, na unidade dinâmica e

dialética entre o desvelamento da realidade e uma prática de transformação, por um

projeto de educação por meio de uma práxis crítica no cotidiano da sala de aula.

1. A Flexibilização do Tempo de Aprendizagem

Pensar em permanência do educando na escola significa uma reorganização do

tempo da escola, um tempo de permanência para aprendizagens, em que se efetive a

construção e reconstrução do conhecimento significativo, o ciclo gnosiológico, para

todos os alunos, como assinala Freire.

Não me parece possível pensar a prática educativa, portanto, a escola,

sem pensar a questão do tempo, de como usar o tempo para aquisição de

conhecimento, não apenas na relação educador-educandos, mas na

experiência inteira, diária da criança na escola. (2001a, p.54).

A prática educativa, numa concepção epistemológica freireana, parte do saber

de experiência feito, do conhecimento que o aluno traz, do saber popular, articulando-o

com o saber científico, para que a apreensão do conhecimento seja significativa e

relevante para o educando.

Não há hierarquização política do conhecimento, ou seja, todo conhecimento

tem valor, não há uma supervalorização do conhecimento científico em detrimento do

conhecimento popular ou a supervalorização de uma cultura em detrimento da outra.

A escola pública, popular, com essa concepção do conhecimento, deve estimular

o educando a perguntar, a criticar, a ser curioso, a construir e reconstruir

conhecimentos, a conviver com os diferentes, a pensar certo e a ler o mundo.

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O que se propõe é que o conhecimento com o qual se trabalha na escola seja

relevante e significativo para a formação do educando. [...] Proponho e

defendo uma pedagogia crítico-dialógica, uma pedagogia da pergunta. A

escola pública que desejo é a escola onde tem lugar de destaque a apreensão

crítica do conhecimento significativo através da relação dialógica. É a escola

que estimula o aluno a perguntar, a criticar, a criar; onde se propõe a

construção do conhecimento coletivo, articulando o saber popular e o saber

crítico, mediados pelas experiências no mundo. (FREIRE, 2001a, p.83).

Nesse sentido, a proposta de trabalho com os temas geradores permite o

levantamento de conteúdos, a partir do saber de experiência feito dos educandos, que

expressam as situações-limite vividas por eles na cotidianidade, situações

discriminatórias e opressoras da realidade. O momento deste buscar é que inaugura o

diálogo da educação libertadora. (FREIRE, 2003, p.87).

A partir do levantamento da temática significativa, educador e educandos

constroem o programa para trabalhar o conteúdo significativo, problematizando a

realidade. A problematização constitui-se em uma ação conscientizadora e

transformadora da realidade e busca a superação da situação opressora. Conhecer é um

meio para mudar o mundo.

Esta investigação implica necessariamente, uma metodologia que não pode

contradizer a dialogicidade da educação libertadora. Daí que seja igualmente

dialógica. Daí que, conscientizadora também proporcione ao mesmo tempo a

apreensão dos temas geradores e a tomada de consciência dos indivíduos em

torno dos mesmos. (FREIRE, 2003, p.87)

O diálogo entre educador e educando torna-se uma condição imprescindível,

pois não há possibilidade de construção de conhecimento e de uma educação libertadora

sem diálogo.

A construção do conhecimento se dá na relação com o outro, intermediado por

objetos de conhecimento. Todo conhecimento é construído numa relação dialética e

numa situação de diálogo, considerando a tríade A com B, mediatizados pelo mundo,

ou, na prática educativa, a tríade educador-educando, mediatizados por objetos de

conhecimento.

O que nas palavras de Freire significa dizer que: ninguém educa ninguém,

ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo

(2004, p.68).

Essa concepção de construção do conhecimento está imbricada com a concepção

de ensino-aprendizagem. Ensinar e aprender são práticas históricas e indissociáveis,

segundo Freire.

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Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente

que, historicamente mulheres e homens perceberam que era possível –

depois, preciso – trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar.

Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na

experiência realmente fundante de aprender. Não temo dizer que inexiste

validade no ensino de que não resulta um aprendizado em que o aprendiz

não se tornou capaz de recriar ou de refazer o ensinado, em que o ensinado

que não foi apreendido não pode ser realmente aprendido pelo aprendiz.

(2001, p.26).

A expectativa é a de que o conhecimento seja construído por educandos e por

educadores em comunhão, em sala de aula.

Para isso, a escola requer uma organização diferenciada, com rotina pedagógica

da escola e da sala de aula que ressignifiquem o tempo de aprendizagem para o uso

bem-feito do tempo escolar, superando a rotina anacrônica e descontextualizada da

escola seriada.

Na sala de aula, o educador deve, permanentemente, de maneira dialógica, com

rigorosidade metódica, reinventar a relação educador-educando, para que os educandos

possam perguntar, pesquisar, criar, duvidar, compartilhar, sem medo e com ousadia.

O educador deve envolver os educandos no planejamento dos trabalhos,

explicitando claramente seus objetivos e intencionalidades da aprendizagem, tornando-

os co-responsáveis pelo processo ensino-aprendizagem.

A organização da escola em ciclos exige a ruptura com a organização tradicional

da sala de aula, com carteiras enfileiradas, que caracterizam o trabalho individual. Há

necessidade de uma organização espacial diferenciada, que favoreça o trabalho coletivo

entre os educandos, em grupos.

2. Organização de Agrupamentos e Rotina Pedagógica Diferenciada.

A organização de agrupamentos diferenciados na realização das atividades pôde

ser observada, por meio da organização do agrupamento referência, agrupamento por

interesse, agrupamento por necessidade.

Conforme definido pela SME em Diadema, o agrupamento referência/turma foi

formado heterogeneamente, com educandos de uma mesma faixa etária, com um

mesmo professor referência. Nesse agrupamento, ocorre uma rotina pedagógica mais

fixa em sala de aula, ou seja, com o educador da turma, com objetivos a serem atingidos

ao longo do ano.

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Há uma rotina pedagógica definida na escola, que precisa ser observada por cada

educador para a organização da rotina da aula, no seu agrupamento referência.

Durante a observação no campo de pesquisa pode-se evidenciar em todas as

salas de aula acompanhadas, que, no início do turno, existia o hábito de o educador

dialogar com os educandos sobre a rotina pedagógica a ser desenvolvida, escrevê-la no

canto da lousa e fazer a leitura com o grupo.

Observou-se também, que a rotina é planejada e tem uma intencionalidade

educativa, com momentos de atividades individuais e coletivas, atividades que são

coordenadas pelo educador e atividades que são coordenadas pelas crianças,

favorecendo assim o desenvolvimento da autonomia do educando.

Além disso, foi observada, também, a organização da sala e disposição das

carteiras e cadeiras, em grupos de quatro ou em duplas. Todas as salas de aula possuem

um quadro mural, em que são fixados trabalhos, pesquisas das crianças, calendários,

curiosidades. Há sempre muitos materiais fixados nas paredes, de modo a favorecer os

questionamentos e as aprendizagens das crianças.

O agrupamento por interesse, também denominado oficinas, foi formado

heterogeneamente, com crianças com faixas etárias diferenciadas, com periodicidade de

uma vez por semana, organizado, de acordo com a manifestação do interesse da criança

em participar. A inscrição no agrupamento é feita mediante uma pesquisa com os

educandos, para identificar as atividades de que gostam. O educador organiza o

trabalho, de acordo com seu conhecimento e habilidade. Há o respeito da escolha pela

criança para participar da atividade, há o respeito à autonomia do educando.

O agrupamento por necessidade, também denominado de oficinas, foi formado

heterogeneamente, com crianças com faixas etárias diferenciadas, com periodicidade de

uma vez por semana. O educador organiza o trabalho, de acordo com seu conhecimento

e habilidade, porém, o educador do agrupamento turma estabelece a atividade para cada

educando, de acordo com o percurso de aprendizagem individual, considerando as

necessidades individuais de aprendizagens.

3. Constituição do Percurso Formativo do Educando.

O objetivo central da organização do sistema em Ciclos de Aprendizagem é

proporcionar a flexibilização curricular, para que todos os educandos possam aprender,

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tendo como premissa que todos são capazes de aprender, ou seja, todo ser humano é um

ser inconcluso em permanente processo de formação.

Para garantir isso, a Secretaria Municipal de Educação implantou a organização

curricular em ciclos, a partir de um grande debate e formação com todos os envolvidos

no processo, educadores e família, de modo que todos compreendessem a importância

da constituição de um processo de ensino-aprendizagem diferenciado, de um percurso

formativo para cada educando, na escola.

Além disso, tal mudança requer o compromisso e uma nova atitude de todos os

educadores, pois o educando passa a ser da escola, ou seja, de todos e não apenas do

educador responsável por aquela turma, portanto, a aprendizagem de todos os

educandos é da responsabilidade de todo os educadores da escola.

O princípio da participação e do diálogo entre a Secretaria Municipal de

Educação com os educadores da Rede, com os instituintes do processo, é condição sine

qua non para que a proposta dos Ciclos de Aprendizagem numa perspectiva freireana se

efetive num Sistema de Ensino.

A Secretaria Municipal de Educação de Diadema, primeiramente, organizou a

estrutura, a base, investiu em formação para os educadores, afim de que a proposta fosse

compreendida e, assim, tivesse adesão dos educadores e da comunidade, em geral, para,

posteriormente, com apoio dos educadores e comunidade implantar os Ciclos de

Aprendizagem. Trata-se de uma postura de respeito ao educador, aos educandos, ao ser

humano, ao processo de ensino-aprendizagem.

A proposta curricular por Ciclos de Aprendizagem, portanto, exige a discussão

pelos educadores do processo de formação, do percurso de aprendizagem de cada

educando e o registro desse processo. Consequentemente, uma nova postura do

educador perante o processo de ensino-aprendizagem e o processo de avaliação da

aprendizagem torna-se necessária.

O Diário de Ciclo foi instituído como um instrumento-referência para o registro

do percurso de aprendizagem de cada educando, dos objetivos de aprendizagem para o

trimestre, das atividades desenvolvidas nos agrupamentos, da avaliação, dos avanços e

intervenções.

A questão do registro do percurso de aprendizagem do educando é um processo

em construção e reconstrução permanente, em que cada educador, de acordo com seu

saber e com sua experiência imprime sua maneira de fazer.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

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Pôde-se observar que o registro foi uma dificuldade apresentada pelos

educadores, que, aos poucos, foi sendo superada. A dificuldade de registrar se deve ao

fato de o educador não ter construído o hábito, no seu tempo de formação. A boniteza

do processo é que o educador reconhece que precisa aprender, que precisa melhorar,

reconhece sua inconclusão, enquanto ser humano, em permanente processo de busca. O

educador traz para o grupo a sua dificuldade, no horário coletivo, para discussão.

Outro ponto observado foi que a Secretaria Municipal de Educação de Diadema

não culpabiliza o educador por não saber ou não saber fazer, pelo contrário, investe em

contratação de assessoria externa para sanar as dificuldades dos educadores, perante a

nova estrutura curricular em Ciclos de Aprendizagem.

Esse processo permitiu uma ressignificação do processo de avaliação da

aprendizagem, pois a avaliação centrada no produto, nos resultados, nas notas atribuídas

para a promoção ou retenção, foi substituída por um processo formativo, isso é, a

avaliação passou a subsidiar o processo de ensino-aprendizagem, a diagnosticar os

avanços e dificuldades de cada educando, para o planejamento de atividades

diferenciadas e intervenções do educador.

A avaliação da aprendizagem passou a ser um instrumento formativo e de

emancipação dos educandos e educadores. Permitiu um processo de reflexão sobre a

realidade, para busca de soluções, no coletivo de educadores.

A avaliação da aprendizagem deve ser diagnóstica, contínua, processual,

emancipatória, qualitativa e utilizada para ressignificar o uso bem-feito do tempo

escolar, para indicar intervenções, a fim de superar possíveis dificuldades, como aponta

Freire.

Os critérios de avaliação do saber dos meninos e meninas que a escola usa,

intelectualistas, formais, livrescos, necessariamente ajudam as crianças das

classes sociais chamadas favorecidas, enquanto desajudam os meninos e

meninas populares. E na avaliação do saber das crianças, quer quando

recém-chegam à escola, quer durante o tempo em que elas estão, a escola de

um modo geral não considera o saber de experiência feito que as crianças

trazem consigo [...] Democratizando mais seus critérios de avaliação do

saber, a escola deveria preocupar-se com preencher certas lacunas de

experiências das crianças, ajudando-as a superar obstáculos em seu processo

de conhecer. (2001a, p.22).

Essa avaliação permite identificar as aprendizagens já consolidadas pelas

crianças, as dificuldades, ao longo do processo, e as estratégias de intervenções

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necessárias, direcionando as ações do educador, durante o processo ensino-

aprendizagem para a construção do conhecimento.

Essa prática avaliativa é inerente ao processo de organização da escola em

Ciclos de Aprendizagem e tem por premissa não promover automaticamente, sem

aprendizagem, não classificar, não excluir, não quantificar, não burocratizar e não

reprovar.

Considerações finais

A proposta da organização curricular em ciclos de aprendizagem numa

perspectiva freireana, crítico-libertadora, caracteriza-se por outro fazer pedagógico, um

processo permanente de formação humana, que ressignifica o processo ensino-

aprendizagem.

É uma proposta que se efetiva por meio de estratégias diversificadas para o

cotidiano da escola: a organização de agrupamentos, da aula e rotina pedagógica

diferenciadas; constituição do percurso formativo do aluno; o registro nos diários de

ciclo e a ressignificação do processo de avaliação da aprendizagem.

É uma possibilidade de um quefazer diferenciado em sala de aula, onde o

educador deve, permanentemente, de maneira dialógica, com rigorosidade metódica,

reinventar a relação educador-educando, para que os educandos possam perguntar,

pesquisar, criar, compartilhar, duvidar, aprender sem medo e com ousadia.

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 38. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2004.

_____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 20. ed. São

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_____. A Educação na Cidade. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001a.

_____. Que Fazer: Teoria e Prática em Educação Popular. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,

2002.

_____. Professora Sim, Tia Não: cartas a quem ousa ensinar. 16. ed. São Paulo: Olho

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SHÖR, Ira; FREIRE, Paulo. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 10. ed. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 2003.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

EdUECE- Livro 103365

Fontes Documentais

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Introdutório: O movimento de reorientação curricular em Diadema.

DIADEMA, Secretaria Municipal de Educação de Diadema, 2007 – Caderno:

Diadema – Ensino Fundamental – Proposta Curricular: diretrizes político-pedagógicas.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

EdUECE- Livro 103366