Os amigos não se abandonam - .:Contos e Historias:. · Web viewpara Antónia. — Mal-educada —...

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A cadelinha Floss Floss era uma jovem cadelinha, da raça Pastor Escocês, que pertencia a um idoso que morava na cidade. Costumava passear com o dono pelas ruas e adorava jogar à bola com as crianças no parque. Um dia, o idoso disse à cadelinha: — O meu filho é lavrador e tem um cão-pastor que está demasiado velho para trabalhar. Precisa de um animal jovem como tu. Penso que poderia treinar-te para guardares ovelhas. Então, Floss viajou com o dono para longe da cidade, das suas ruas e casas, e para longe das crianças que jogavam à bola no parque. Viajaram até encontrar colinas cobertas de urze, que se abriam sobre um vale, no qual quase 1

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A cadelinha Floss

Floss era uma jovem cadelinha, da raça Pastor Escocês, que pertencia a um idoso que morava na cidade. Costumava passear com o dono pelas ruas e adorava jogar à bola com as crianças no parque.

Um dia, o idoso disse à cadelinha:— O meu filho é lavrador e tem um cão-pastor que

está demasiado velho para trabalhar. Precisa de um animal jovem como tu. Penso que poderia treinar-te para guardares ovelhas.

Então, Floss viajou com o dono para longe da cidade, das suas ruas e casas, e para longe das crianças que jogavam à bola no parque.

Viajaram até encontrar colinas cobertas de urze, que se abriam sobre um vale, no qual quase nada crescia à excepção das ovelhas.

Algures na sua memória, Floss sabia algumas coisas acerca de ovelhas.

Em breve, a velha cadelinha que ia substituir ensinou-

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lhe como as conduzir ao redil. O lavrador treinou-a para correr, deitar-se, levantar-se

sobre as patas traseiras, soltar e encurralar as ovelhas. Floss esforçou-se muito por ser um bom cão-pastor.

Mas, às vezes, acordava de noite, ao lado de Nell, a velha cadela, que dormia profundamente. E recordava os tempos em que brincava com as crianças e apanhava bolas no parque.

Um dia, o lavrador levou-a até ao cimo da colina, para ver se ela conseguia arrebanhar as ovelhas sozinha. A cadelinha já ia a meio da tarefa quando ouviu um som. Num canto do campo, os filhos do lavrador jogavam à bola, uma bola branca e preta novinha em folha.

Floss lembrou-se das crianças e correu para junto delas para jogar à bola. Mostrou-lhes os seus melhores pontapés com o nariz e os seus melhores passes. E nem se esqueceu de uma demonstração dos seus melhores saltos.

— Eh, pai, olha só! — gritaram as crianças. — Olha para a Floss!

As ovelhas começaram a dispersar e a escapulir-se pelo portão. Em breve havia ovelhas por todo o lado: no

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terreiro, no jardim e na estrada. — FLOSS! FICA QUIETA! A voz do lavrador parecia um trovão. — Nesta quinta tens de trabalhar, não podes brincar!O homem levou a cadela de volta para a casota. Floss ficou quieta, enquanto a sua mente se ocupava

com bolas e ovelhas. Sonhou com as ruas de uma cidade, as colinas de um vale, com crianças e lavradores, enquanto Nell se atarefava a recolher as ovelhas tresmalhadas.

Só que Nell estava demasiado velha para trabalhar todos os dias e Floss tinha de aprender a revezá-la.

Então, ocupou-se com afinco da sua tarefa e cedo ficou demasiado cansada para sonhar.

O dono sentia-se satisfeito e até a inscreveu em concursos.

— Finalmente, tornou-se uma boa trabalhadora — disse a Nell, com satisfação.

Mas as crianças continuavam a querer jogar à bola. — Pai! Será que a velha Nell já pode jogar?

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Mas a velha cadelinha nada sabia sobre crianças e brincadeiras.

— Ninguém brinca como a Floss! — disseram as crianças.

— Vai lá brincar — sussurrou o lavrador à cadelinha. As crianças chutaram a bola para o ar. Floss lembrou-se de tudo o que sabia sobre crianças e

correu para jogar à bola com elas. Mostrou-lhes os seus melhores pontapés de nariz, os seus melhores passes e deu os seus melhores saltos de sempre.

Kim LewisFloss

London, Walker Books, 1992(tradução e adaptação)

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Os amigos não se abandonam

A gatinha da Antónia desapareceu. Não estava em cima da árvore, nem na caleira da água, nem por debaixo da tábua de passar.

— Se calhar anda à caça na cave — sugeriu a mãe.— De certeza que está a dormir no sótão — disse o

pai.— Será que foi para o céu? — perguntou-se a avó,

preocupada.— Vou procurá-la — disse a Antónia. — Se calhar

aconteceu-lhe alguma coisa. E os amigos não se abandonam.

Só que na cave havia apenas bicicletas e, no sótão, sobretudo pó. A gatinha continuava desaparecida.

— Então vou procurá-la no céu — decidiu Antónia.E pôs-se a caminho.Antónia passou por uma cabeça no ar e perguntou-

lhe:— Sabes onde está a minha gata?

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A cabeça estava com muita pressa para chegar a casa e nem olhou para Antónia.

— Mal-educada — resmungou ela, continuando a andar.

Pouco depois, encontrou o polidor do sol ocupado a puxar o lustro a um raio de sol embaciado. Ele acenou-lhe com o pano do pó.

— Ah! Visitas, que bom! — exclamou alegremente. — Aproxima--te, minha filha!

— Ando à procura da minha gata. Pode ajudar-me? — pediu Antónia.

O polidor parou para pensar.— Não, não vi a tua gata.A rajada de vento dobrou a esquina a correr e a silvar.— Sabes onde está a minha gatinha? — perguntou-lhe

Antónia, tão alto quanto pode. — Nem vi gatos nem vi galos — silvou a rajada. E

fugiu dali abanando o leque. Antónia ainda ouviu, vindo de longe:

— Pergunta depressa ao vento! Podes perguntar-lhe agora mesmo. Cacei-o e meti-o dentro da manga — disse-lhe o Catavento por detrás dela.

— Viste a minha gatinha? — perguntou Antónia.O Catavento espreitou para dentro da manga. Lá de

dentro saíram sopros e assobios.— Aqui não está nenhuma gata, lamento. Mas vou

estar atento e, se a vir, digo-te.— Obrigada. Ela é minha amiga e eu estou

preocupada porque não a encontro em nenhum lado — explicou Antónia.

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Mais adiante, estava alguém sentado e, à sua volta, rodopiavam flocos de neve. Trabalhava com uma faca fina e aguçada e ia contando em voz baixa.

— O que está a fazer?— 1232. Estou a cortar cristais — explicou o talhador

de cristais. — 1233 cristaizinhos de gelo. Todos diferentes. Nenhum é igual ao outro.

E continuava a contar.— 1234, 1235… nem de mais, nem de menos —

observou. — Tudo tem de ter a sua ordem.Deitava carinhosamente o resultado do seu trabalho

para um montinho que ia crescendo ao seu lado.— Compreendo-te — prosseguiu ele, concentrado no

seu trabalho. — Os amigos não se talham. São raros, não caem do céu, como os cristais de neve. Mas, infelizmente, não vi a tua gatinha. 1236, 1237…

Antónia concordou num aceno de cabeça e continuou o seu caminho.

Caído do céu, surgiu à sua frente o atirador de raios. Estava de cócoras a fazer pontaria por entre duas pequenas nuvens. Um raio reluziu e, em seguida, chegou-lhes ao nariz um forte cheiro a enxofre.

— Trovãozinho, onde estás? — gritou o atirador, já impaciente.

— Já vou! — respondeu uma voz.Ouviu-se um ribombar e um trovejar fraco. De

seguida alguém tossiu.— Desculpe, constipei-me! Aqui há tantas correntes

de ar — queixou-se o trovão, rouco. — Às vezes, o ribombar não sai — acrescentou, cabisbaixo.

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E depois espirrou. — Raios e coriscos, que aborrecimento! — resmungou

o atirador de raios. — Eu aqui a esfalfar-me com os meus raios, e não consegues fazer nenhum barulho de jeito. E tu? — perguntou, virando-se para Antónia. — Por acaso não sabes trovejar e ribombar?

— Não, acho que não — desculpou-se Antónia. — Só vim à procura da minha gata.

O atirador de raios pôs-se a pensar.— Conheço carneirinhos de nuvens e castelos no ar —

respondeu. — Aqui, os gatos não são lá muito bem-vindos.

Pegou no raio seguinte e começou a dobrá-lo meticulosamente.

— Mas ela é minha amiga… — disse Antónia em voz baixa.

O dia passou pela calada da noite puxando a noitinha pela mão.

— Já chega por hoje! — murmurava ele.Atrás de si arrasta-se o anoitecer. O lusco-fusco agita-

se, impaciente.— Já está a chegar a noite e eu sem ter encontrado a

minha gata — lamenta-se Antónia.— Pois é, temos de prestar atenção aos amigos —

observou a noite. — Eles não aparecem da noite para o dia.

— Eh, ó lua! — chamou. — Viste a gatinha da Antónia?

A lua revirou os olhos.— Não sei. De noite todos os gatos são pardos… — e

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perguntou, dirigindo-se ao guardião de estrelas: — Viste uma gata por aí?

O guardião de estrelas agitou o bastão no ar. Nos seus lugares, a Ursa Maior e a Ursa Menor pararam de brincar, o Touro mugiu, o Sagitário deu um salto e os Peixes emudeceram.

O acendedor de estrelas passou então, e todos começaram a brilhar.

O guardião contou rapidamente as cabeças do seu rebanho.

— Estão aqui todos e não há nenhum a mais.Virou-se para Antónia e disse-lhe:— A tua gata não está no céu. Vê antes na Terra. Tu

vais voltar a encontrar a tua amiga, li nas estrelas — consolou-a.

E, triste, Antónia seguiu pela estrada de Santiago até casa.

Diante da porta da cozinha estava, enroscada, uma gata que ergueu a cabeça e bocejou.

— Por onde andaste este tempo todo? — perguntou-lhe Antónia, num tom um tanto ou quanto admoestador.

— Fui caçar ratos. Quando voltei, não te encontrei e pensei que te tinha acontecido alguma coisa. Então resolvi ir à tua procura. Os amigos nunca se abandonam.

Sigrid Laube; Silke LefflerFreunde läßt man nicht im StichWien, Annette Betz Verlag, 2003

(tradução e adaptação)

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Vende-se cachorrinhos

Um rapazinho olhou para ao letreiro de uma loja onde estava escrito: Vende-se cachorrinhos.

— Por quanto vai vender os cachorrinhos? — perguntou.

— Entre 30 e 50 euros — respondeu o dono da loja.— Tenho 2 euros e 37 cêntimos — disse o rapazinho.

— Posso vê-los?O dono da loja sorriu e assobiou, e do canil saíram

cinco bolinhas de pêlo. Um dos cachorrinhos ia ficando bastante para trás. O menino viu imediatamente o cachorrinho atrasado que coxeava, e disse:

— O que é que tem aquele cãozinho?O dono da loja explicou que ele não tinha o encaixe

da anca e que seria sempre coxo. O rapazinho ficou entusiasmado:

— É esse cãozinho que eu quero comprar. O dono da loja comentou:— O cão não está à venda. Se o quiseres, dou-to.

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O rapazinho ficou muito aborrecido. Olhou bem nos olhos o dono da loja e disse:

— Não quero que mo dê. Esse cãozinho vale cada cêntimo, tal como os outros, e vou pagar o preço total. Vou dar-lhe 2 euros e 37 agora e 2 euros por mês até o ter pago.

O dono da loja insistiu.— Não podes querer comprar este cãozinho. Nunca

vai conseguir correr e saltar contigo como os outros cães.A isto, o rapaz respondeu baixando-se e levantando a

perna da calça. Mostrou em seguida a perna esquerda muito torta e defeituosa, presa por um grande aro de metal. Olhou para o dono da loja e respondeu suavemente:

— Eu também não corro lá muito bem, e o cachorrinho vai precisar de alguém que o compreenda!

Dan ClarkCanja de galinha para a alma

Mem Martins, Lyon Edições, 2002

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Um cãozinho amoroso

— Entra, David! — diz a professora de piano. — Não tenhas medo. O Henrique é um cão muito bem-comportado.

— Não gosto de cães — diz David, parando na ombreira da porta.

A Sr.ª Messner segura o cão pela coleira para ele não se atirar ao David.

“Que nome mais esquisito para um cão”, pensa David. Depois diz:

— Uma vez um mordeu-me — David aponta para uma cicatriz minúscula na bochecha direita. — Aqui, quando eu era bebé.

— Mas o Henrique não morde! Só quer brincar contigo!

— Mas eu não quero brincar! Tenho medo. A mamã disse que a senhora tinha um cão pequenino, mas este é grande!

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— Mesmo assim, ainda é pequenino — explica a Sr.ª Messner. — Ele não te faz mal, só que um pastor alemão não é propriamente um caniche.

David já se tinha habituado aos caniches. Até já tinha feito festas a um. Mesmo assim, David prefere passar bem longe de cães que lhe cheguem aos joelhos ou mais acima. Pelo menos, Henrique parara de ladrar.

— Vai para o teu lugar! — ordena a Sr.ª Messner, para o grande Henrique parecer um pouco mais pequeno aos olhos do seu aluno. Agora o cão quer farejá-lo.

— Para o teu lugar! — repete a dona e dá-lhe uma palmada na parte de trás. A palmada foi tão forte que Henrique até deslizou um bocado no chão de parquet.

— Ai! — diz David. Ele não quer que a professora bata no cão por sua causa. De certeza que a palmada lhe doeu. Henrique gane um pouco e encolhe a cabeça. Olha para a Sr.ª Messner com grandes olhos amedrontados. Por vê-lo mostrar tanto medo, David fica com pena do cão.

De um momento para o outro, o medo que ele tinha do cão, por sua vez também tão amedrontado, tornou-se um pouquinho menor.

— Pronto, vamos então começar a aula!A professora senta-se ao piano e abre o livro de

música. Do canto onde Henrique está deitado sobre a sua manta, chegam ruídos de mascar, de salivar, rangidos e estalidos.

A Sr.ª Messner bate numa tecla, mas David só ouve o mascar e o salivar, os rangidos e os estalidos do cão.

— Está a roer no osso de plástico — diz ela.— Não lhe dá nada a sério para ele comer?

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— Claro que sim! Mas o osso é bom para os dentes e para o maxilar. E, além disso, ele gosta de morder.

David encolhe as pernas imediatamente.— Não tenhas medo. Ele só morde no que tem

autorização para morder.“Espero que saiba que não tem autorização para

morder nas minhas pernas”, pensa David.— O Henrique recebe boa carne, alguns vegetais e

vitaminas. Até lhe dou óleo de fígado de bacalhau.— Ugh! — David arrepia-se todo. Ele também tinha de

engolir uma colher daquele óleo horrível todos os dias pela manhã.

Coitadinho do cão! Dão-lhe palmadas, tem de tomar óleo de fígado de bacalhau e mascar ossos de plástico.

— Bom — diz a Sr.ª Messner. — Agora toca lá a música que estivemos a ver na última aula.

David toca nas teclas erradas. Hoje já aprendeu muitas coisas sobre cães que são grandes, embora ainda sejam pequeninos. Então, talvez os cães grandes que encontra na rua não sejam assim tão maus como ele pensa.

— Então, o que é desta vez? — a voz da Sr.ª Messner soa um pouco zangada. — O cão não te faz nada! Ele está só a ouvir. Gosta de ouvir tocar piano.

“Do que eu toco, de certeza que não”, pensa David. O medo voltou. “À primeira nota errada, ele morde-me…”

David toca, mas não sai nenhuma música de jeito porque ele vai deitando olhadelas constantes a Henrique. Henrique também parou de roer. Olha curioso para David, levanta-se e encaminha-se devagar para o piano.

— Garanto-te que o Henrique não faz mal. Ele

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também tem medo e precisa de muito carinho. Só lhe dou uma palmada de vez em quando porque ele tem de aprender a obedecer.

Dá-lhe palmadinhas no pêlo e bate-lhe suavemente no focinho.

— És um cão muito bonito, és um cão muito bem-comportado… Vai! Volta para a tua manta!

E, de facto, Henrique volta para o seu canto!— Uau! — exclama David. — Ele percebe o que lhe

diz!— Só tem de se repetir várias vezes as mesmas

frases.Isto também é novo para David: um cão com quem se

pode falar. David experimenta imediatamente:— És um cão muito bonito — diz, baixinho. Depois

mais alto:— Um cão muito bonito… um cão muito bonito…— Já vais ver; daqui a nada, volta outra vez. Ele é

como um bebé que está sempre à espera que lhe façam festas.

Henrique está de volta e deita-se aos pés de David.— Fui eu que o chamei cá — diz, com orgulho.De repente, a professora começou a falar de

Henrique.— Devias ter visto em que estado o recebi. Fui buscá-

lo a um canil. Lá, ninguém queria ficar com ele porque era muito magro e feio. E ainda por cima tem uma mania. Não entra em carro nenhum. Quando ainda era pequenino foi atropelado. Olha! — diz, virando-o suavemente de barriga para o ar. — Estás a ver, foi aqui

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que foi cosido.David consegue ver uma linha curva vermelho-

acastanhada, que atravessa ao comprido a barriga clara do cão. Pobre Henrique! David leva a mão à sua própria cicatriz. Aquilo é tão mau como o que se passou com ele próprio!

— E de quem era o cão antes de ser seu?— Não sei. Foi encontrado ferido na estrada. Alguém

o levou para o canil porque não estava identificado.— E ninguém foi procurá-lo?— Ninguém. Foi no Verão, talvez os donos tivessem

querido ir de férias e não soubessem o que fazer com ele.— E deixaram-no assim na rua, sem mais nem

menos?— É uma hipótese — diz a Sr.ª Messner — Também

pode ter-se perdido. Fosse como fosse, ninguém apareceu para o levar.

David tem uma vontade enorme de fazer uma festinha ao pobre do cão, mas ainda não se atreve a chegar mesmo à beira dele.

— Pronto! Agora vamos lá começar!David olha para o caderno, mas na sua cabeça um

cãozinho preto atravessa a estrada a correr. Não é suficientemente rápido. Ouvem-se travões a chiar. O cãozinho é projectado pelo ar e fica deitado debaixo das rodas, sem se mexer.

David range os dentes com as dores e fecha as mãos de repente.

— Assim não se pode tocar! — diz a Sr.ª Messner — Mas o que é que tens? Dói-te a barriga?

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— Nn…ão — gagueja David. Olha furtivamente para Henrique. O medo que David tem do cão, que também tem medo por ter sido atropelado por um carro, desapareceu definitivamente. Já nem a língua vermelha e comprida que lhe cai da boca o assusta.

— Espera um bocadinho. Vou buscar-lhe alguma coisa para beber. — A Sr.ª Messner corre para a cozinha.

Henrique pousa uma pata no pedal.— Toca tu por mim — diz David. — Ninguém vai notar

a diferença.O cão olha para ele com grandes olhos suplicantes.— Mas o que é que tu queres?— Quer que lhe faças festas — diz a Sr.ª Messner, ao

voltar para a sala com uma tigela cheia de água. — Repara como ele olha para ti.

David gostava muito de fazer festas ao cão, mas ainda não é capaz. Mesmo que Henrique seja diferente dos outros cães, David sabe muito bem que os cães mordem.

E o seu amigo Olaf, que tem um spaniel, disse-lhe que os cães cheiram melhor que os homens e ouvem muito melhor do que ele, David. E os cães percebem muito bem quando temos medo. Se um cão lhe aparecer na rua pela frente, David bem pode cantar e assobiar, a fingir que não tem medo, porque o cão consegue olhar para dentro da barriga de David e vê-la a tremer.

“Por mim, o Henrique bem pode deitar-se aqui em cima dos meus pés”, pensa David. “Mas tocar-lhe com as mãos, isso é que não.”

— És um cão muito bonito — diz-lhe outra vez, o mais amavelmente de que é capaz. David sente o bafo quente

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de Henrique no dedo grande do pé.— Ele gosta de ti — diz a Sr.ª Messner. — Vai ficar à

tua beira.David acha isso bonito.— Socorro! — grita ele de repente, levantando-se com

um salto tão violento que o banco do piano cai ao chão com grande estrondo. No mesmo instante, Henrique levanta-se assustado e desaparece por baixo do piano, encolhendo-se, a tremer, no canto escuro da parede.

— O que foi? — grita a Sr.ª Messner assustada.Nem sabe quem deve consolar primeiro, se David,

que está assustadíssimo, se o cão, que está a tremer.— Ele lambeu o meu dedo grande do pé! — diz David,

um pouco envergonhado.— Mas ele não queria fazer-te nada de mal! Só queria

mostrar que gosta de ti!“Que maneira mais esquisita de mostrar que se gosta

de alguém”, pensa David.David já se acalmou. Henrique não.A Sr.ª Messner gatinha para baixo do piano e fala

carinhosamente ao cão.— Pronto, não é nada.David gatinha também por baixo do piano ao

encontro da professora.— Desculpa — diz ele a Henrique. A Sr.ª Messner pega-lhe na mão e passa-a pelo dorso

de Henrique.— O David não queria assustar-te — diz. A professora

retira a mão e David continua sozinho a passá-la pelo pêlo, sempre, sempre, até o cão deixar de tremer, até

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ficar completamente calmo.É bonito fazer festas ao cão.Ainda é mais bonito mostrar que já não se tem medo.O que David mais queria fazer agora era dar-lhe outra

vez o dedo grande a lamber, como recompensa por terem feito as pazes e para mostrar que lamenta o que aconteceu.

Mas assim já está bem.Henrique pousa a cabeça no colo de David e David

fica sentado muito quieto.

Evelyne Stein-Fischer13 Geschichten vom Liebhaben

München, DTV Junior, 1990(tradução e adaptação)

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Porque maltratamos os animais?

O que se entende por maltratar os animais?

Durante milhares de anos, o homem matou animais para se alimentar e vestir, e por desporto. Mas há muitas pessoas que consideram que não devemos tratar os animais dessa maneira. Será que os animais sofrem, desnecessariamente, nas mãos dos seus donos, tratadores, agricultores, cientistas e caçadores? Estas páginas pretendem fazer-te pensar se teremos o direito de maltratar os animais como fazemos constantemente.

Será boa ideia ter animais de estimação?

Muitos de nós gostamos de ter animais de estimação.Porque é que gostamos deles? Talvez porque dependem de nós ou porque nos dão afecto. Mas, o que fazemos por eles? Ter um coelhinho pode ser muito bom. Mas será justo manter o animal fechado entre as paredes dum quarto? Observar peixes tropicais ou afagar um gato é agradável e pode ajudar-nos a acalmar quando estamos preocupados. Mas estará certo ter os animais só para nosso prazer? Sim, desde que olhemos bem por eles. No

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entanto, há pessoas que não o fazem. O cão é chamado “o melhor amigo do homem”. No

passado, os homens e os cães tomavam conta uns dos outros. Estes protegiam as pessoas dos seus inimigos, fossem eles animais ou outros homens, e caçavam para os seus donos. Hoje, nas cidades, há muitos cães a quem é dada muita comida e pouco exercício.

Como é que tratas os animais? Um animal de estimação requer muitos cuidados e atenções. Os hamsters são muito fáceis de cuidar embora precisem de um mínimo de espaço. Muitos animais sofrem em pequenas gaiolas ou por serem maltratados. Os animais não são brinquedos que se oferecem como presentes. Requerem uma alimentação regular e grandes cuidados, durante muitos anos.

As pessoas fazem mal aos seus animais de estimação?

Todos os anos, milhares de cachorros e de gatos, abandonados pelos seus donos que já não os querem, têm de ser abatidos pela polícia e pelos serviços de saúde.

Por vezes, os animais têm de ser deixados com outras pessoas. Se tiveres necessidade de o fazer, tenta deixar o teu animal com alguém que saibas que o tratará bem

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durante a tua ausência. Deixar o cão no canil quando vais de férias, pode ser

doloroso para ele.É crueldade mantermos os animais num jardim

zoológico?

Podermos observar os animais selvagens de perto é excitante e, ao mesmo tempo, permite-nos aprender muitas coisas com eles. Animais pequenos, como os esquilos, que não requerem um espaço muito grande, são ideais para permanecerem nos zoos. No entanto, animais maiores, como os elefantes, ursos polares e golfinhos ficam tristes com o encarceramento a que são sujeitos. Alguns deles precisam de companhia e de muito espaço, o que nem sempre têm nos jardins zoológicos. Algumas pessoas pensam que, se podemos ver os animais na televisão, não é necessário tê-los num zoo.

Muitos animais selvagens morreram já em consequência da actividade do homem e muitos mais estão ameaçados. Precisam de espaços naturais para sobreviver em liberdade. Temos de tentar equilibrar as nossas necessidades com as dos animais. Os jardins zoológicos podem salvar animais em perigo. Os bons zoos mostram como vivem os animais no seu habitat natural e como é importante preservá-lo. Isto poderá fazer com que os animais sejam protegidos no seu ambiente natural. Podem ainda desempenhar um importante papel na preservação de espécies em extinção, ao permitirem a reprodução e crescimento de animais que são, posteriormente, devolvidos à vida selvagem.

Os animais selvagens são maltratados pelas pessoas?

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Alguns animais, como o rinoceronte e o elefante, precisam de ser especialmente protegidos já que são muito procurados pelos seus chifres e dentes, que são usados como ornamentos. Em todo o mundo, os pássaros e animais selvagens são incomodados pelo homem que, ao invadir os seus domínios, os deixa sem local para viver.

Ao produzirmos resíduos que poluem os rios e os mares, estamos a matar muitos peixes e a tirar o alimento a outros, como as baleias, que dependem deles para viver. Felizmente que os gorilas da África Central foram salvos da extinção porque as florestas onde vivem são agora áreas protegidas.

Devemos usar peles de animais como vestuário?

Algumas pessoas gostam de usar peles de animais porque pensam que é bonito. No passado, o homem usava peles porque esse era o único material disponível para fazer agasalhos. Actualmente, podem fazer-se roupas quentes a partir de substâncias vegetais e de produtos sintéticos, como o poliéster e o nylon. Apesar disso, raposas, castores, martas e gatos selvagens continuam a ser capturados e mortos para se utilizar a sua pele.

E os animais da quinta?

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As pessoas comem carne desde há milhares de anos. Até há pouco tempo, os animais eram criados em pequenas quintas. Os criadores sabiam que, quanto melhor os tratassem, melhor seria a carne.

Actualmente, muita da carne é produzida em “quintas-fábricas”, nas quais o maior número de animais é metido no menor espaço possível, o que se traduz em carne, leite e ovos mais baratos e em maior quantidade.

Continuamos a usar as ovelhas para obtermos carne e lã e esquecemo-nos de que estes animais podem sofrer de falta de cuidados quando são encerrados nas quintas de criação intensiva. Os animais das quintas precisam que olhem por eles.

Quais são os custos da carne mais barata?

Nas modernas quintas de criação, os frangos são mantidos em gaiolas de arame demasiado pequenas, porque as galinhas em pequenas gaiolas põem mais ovos do que as que são mantidas nos tradicionais galinheiros.

Em alguns países, este tipo de criação está a ser proibido. Pequenos aperfeiçoamentos nas quintas melhorarão substancialmente a vida de milhões de animais. Mas como o criador e as empresas que fabricam alimentos pretendem manter as suas margens de lucro, estas medidas traduzir-se-ão num aumento do preço da carne.

Os animais devem ser usados em testes de medicamentos?

Os cientistas usam animais para observarem o funcionamento do corpo e para procurarem a cura para certas doenças. Se não o fizessem, teriam de ser pessoas a arriscar a sua vida e saúde para testar novos

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medicamentos.Certas pessoas afirmam que não deveríamos fazer

aos animais aquilo que não fazemos a nós próprios. Mas, será que os animais sentem do mesmo modo que nós? É indiscutível que são capazes de sentir a dor mas, por serem menos inteligentes do que o homem, há quem pense que o seu sofrimento é menor do que o do ser humano. Champôs, sabonetes e batons são testados em animais. Valerá a pena sacrificar coelhos por um novo champô? Alguns produtos não utilizam animais em testes.

Devemos usar animais em espectáculos?

Os animais são usados em espectáculos desde tempos remotos. Alguns mais cruéis, tais como as lutas de ursos e de galos, foram proibidos. No entanto, há animais que continuam a ser caçados por divertimento, havendo pessoas que pagam muito dinheiro para disparar sobre leões em África.

Por vezes, o número de animais duma determinada espécie torna--se demasiado elevado numa certa área, pondo em causa a sua própria sobrevivência e a de outros animais. Por essa razão, os caçadores afirmam que não maltratam os animais pelo facto de matarem alguns. Mas há muita gente que considera isto cruel.

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Muitos países não permitem o uso de animais no circo porque consideram que isso é uma forma de os maltratar.

Temos necessidade de maltratar os animais?

O relacionamento que temos com os animais está a mudar. Já não necessitamos tanto deles para nos protegerem ou para nos arranjarem alimentos. Em contrapartida, usamo-los mais para outros efeitos, como sejam os testes de novas drogas, a companhia e o fornecimento de carne.

As pessoas maltratam os animais quando põem os seus interesses à frente de tudo. Os animais, as plantas e o homem vivem todos no mesmo mundo e dependem uns dos outros. Temos de respeitar os animais no nosso próprio interesse.

Miles BartonPorque maltratamos os animais?

Porto, Edições Asa, 1990(adaptaçaõ)

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Um urso à caça

Esta história não é nenhum conto de fadas.Era uma vez um ursinho a quem faltavam pêlos na

cabeça.A sério! Quando o urso veio ao mundo, tinha um pêlo

maravilhoso no corpo todo. Só em cima, no cocuruto da cabeça, havia uma mancha redonda e despida.

— Oh, uma careca! — disse o pai. — De certeza que o pêlo ainda vai nascer. Tem tempo.

Mas não cresceu. Nem com o tempo.Então, a mãe pôs-lhe umas raízes na careca: rábano,

raízes de árvores, raízes de dente-de-leão, raízes de acanto.

— Das raízes é que nasce tudo — dizia a mãe — portanto, isto há--de ajudar!

Mas não ajudou. A mãe friccionou com água da chuva.

— A água da chuva faz nascer tudo.Nada. Esfregou estrume de galinha.

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— Os homens também o usam para as plantas crescerem.

Nada.Então o irmão do urso cuspiu-lhe na pelada.— Desculpa, mas teve de ser! — disse o irmão. —

Onde eu cuspo, medra sempre alguma coisa.Na cabeça do urso, contudo, não cresceu nada.— Não é tão mau como isso — disse a mãe. — Põe um

gorro.Mas o urso só o usava quando estava frio. No Verão

tirava-o, primeiro, porque tinha muito calor, e segundo, porque todos os outros ursos olhavam para ele com um olhar tão esquisito como quando lhe viam a careca.

— Faz tu alguma coisa! Um bom urso sabe sempre tirar-se de apuros — dizia o pai. — Caça um animal, arranca-lhe o pêlo e depois colamos-to na cabeça.

— Com cuspo — disse o irmão.O urso saiu para o bosque e encontrou um tigre que

bufava ferozmente e se preparava para lhe saltar. Zás! O urso saiu dali e foi a correr para casa.

— Não caçaste nada? — perguntou a mãe.— Não. No bosque só estava um tigre e eu não quis

caçá-lo. Não quero ficar com riscas na cabeça.No dia seguinte, o urso voltou ao bosque para ir caçar

e viu vir ao longe um lobo a lamber os beiços.O urso fugiu o mais depressa que pôde e correu para

casa.— Não caçaste nada? — perguntou a mãe.— Não, só encontrei um lobo e não quis caçá-lo. Tinha

pêlo cinzento e branco e eu não quero parecer assim tão

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velho.Na caçada seguinte, apareceu-lhe, de repente, uma

raposa, de boca aberta. O urso foi mais rápido e conseguiu chegar inteiro a casa.

— Voltaste a não caçar nada? — perguntou o irmão.— Não, só vi uma raposa e não quis apanhá-la.

Cheirava a carne podre e eu não quero ter maus cheiros na cabeça.

— Esta é a minha última tentativa — disse o urso, no dia seguinte, ao partir para o bosque.

Não encontrou ninguém e foi-se embrenhando nele cada vez mais. Procurava nos matagais, rastejou para dentro dos arbustos, subiu a uma árvore. Aí, na segunda ramificação, estava um esquilinho a dormir, e o seu pêlo era da mesma cor do pêlo do urso.

— Ora aqui está! — disse o urso, esfregando as patas de contente. Levantou-se para fulminar o esquilo com um golpe. O esquilinho abriu um olho e piscou-lho amigavelmente e sem medo.

— Desculpa! — disse o urso. — Não quero que seja assim. Não quero ficar com remorsos.

Baixou a pata, estendeu-a ao esquilinho e desceu do ramo. Sentou-se no musgo, encostou-se à árvore e, como estava cansado, adormeceu também.

Chegou depois junto dele um arganaz, ou melhor, uma mãe arganaz com uma barriga muito gorda. Passou furtivamente pelo urso, rastejou-lhe pelo braço e pelo ombro até que chegou à cabeça.

— Olá! — exclamou ela. — Este lugarzinho parece ter sido feito para mim. Não é lá muito macio, mas à volta é quentinho.

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Arrancou algum pêlo seu, com o qual almofadou a pelada, instalou-se e deu à luz os filhotes.

Quando o urso acordou, sentiu uma comichão esquisita na cabeça. Levou a pata à mancha branca – como ele lhe chamava – e viu que se encontravam lá um rato grande e quatro ratinhos que sentiu não terem pêlo. Levantou-se com muito, muito cuidado, e foi para casa pé ante pé.

A mãe, o pai e o irmão ficaram assombrados.— Agora já tens pêlos na cabeça — disseram.O urso passou a dormir de costas direitas, sentado

numa cadeira, até os pequenos arganazes saírem da pelada, rastejarem atrás da mãe pelos ombros e pelo braço do urso e, passando pela perna dele, seguirem na direcção do bosque.

Aos poucos, o vento frio soprando da cabeça do urso o pêlo do arganaz.

— Afinal, estou muito satisfeito com a minha careca — disse o urso. — Talvez alguém mais possa vir a precisar dela.

Hans Manz

Reinhard Michl (org.)Wo Fuchs und Hase sich Gute Nacht sagen

Hildesheim, Gerstenber Verlag, 2002(tradução e adaptação)

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A gata e o sábio

O sábio de Bechmezzinn (aldeia situada no norte do Líbano) era muito rico. Dedicava o melhor do seu tempo ao estudo e a tratar os doentes que o procuravam. A sua fortuna permitia-lhe socorrer os infelizes e toda a gente dizia que ele era a dedicação em pessoa.

Homem piedoso e recto, a injustiça revoltava-o. Muitas pessoas vinham consultá-lo quando tinham alguma divergência com vizinhos ou parentes. O sábio dava os melhores conselhos e desempenhava frequentemente o papel de mediador.

Tinha uma gata a quem se dedicava particularmente. Todos os dias, depois da sesta, ela miava para chamar o dono. O sábio acariciava-a e levava-a para o jardim, onde ambos passeavam até ao pôr-do-sol. Ela era a sua única confidente, diziam os criados.

A gata dirigia-se muitas vezes à cozinha, onde era bem recebida. O cozinheiro não escondia nem a carne nem o peixe, porque ela nada roubava, fosse cru ou cozinhado, contentando-se com o que lhe davam.

Ora, uma tarde, depois do passeio diário, a gata roubou furtivamente um pedaço de carne de uma panela. Tendo-a surpreendido, o cozinheiro castigou-a puxando-lhe severamente as orelhas. Vexada, a gata fugiu e não

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apareceu mais durante todo o serão.Intrigado, o sábio perguntou por ela na manhã

seguinte. O cozinheiro contou-lhe o que se passara. O sábio saiu para o jardim e durante muito tempo chamou a gata, que acabou por aparecer.

— Porque roubaste a carne? — perguntou o sábio. — O cozinheiro não te dá comida que chegue?

A gata, que tinha parido sem que ninguém soubesse, afastou-se sem responder e voltou seguida de três lindos gatinhos. Depois, fugiu e trepou à figueira do jardim. O sábio pegou nos três gatinhos e entregou-os ao cozinheiro que, ao vê-los, mostrou uma grande admiração.

— A gata não roubou comida a pensar nela. — declarou o sábio. — O seu gesto foi ditado pela necessidade. Portanto, não é de condenar. Para alimentar os filhos, qualquer ser, mesmo mais frágil do que um mosquito, roubaria um pedaço de carne nas barbas de um leão. A gata limitou-se a seguir o que lhe ditava o seu amor maternal. A conduta dela nada tem de repreensível. O pobre animal está a sofrer por a teres castigado injustamente. Fugiu para a figueira porque está zangada contigo. Deves ir lá pedir-lhe desculpa, para que se acalme e tudo volte ao normal.

O cozinheiro concordou. Tirou o turbante, dirigiu-se à figueira e pediu perdão ao animal. Mas a gata virou a cabeça. O sábio teve de intervir. Conversou longamente com ela e lá conseguiu convencê-la a descer da árvore. A gata desceu lentamente da figueira, veio a miar roçar-se nas pernas do sábio e foi para junto dos seus três filhotes.

Jean Muzi16 Contes du monde arabe

Paris, Castor Poche-Flamarion, 1998

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(tradução e adaptação)

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A ovelha generosa

Era uma ovelha muito generosa. Sabem o que é ser generoso? É gostar de dar, dar por prazer. Pois esta ovelha era mesmo muito generosa. Dava lã.

Dava lã, quando lhe pediam. Vinha uma velhinha e pedia-lhe um xailinho de lã para

o Inverno. A ovelha dava. Vinha uma menina e pedia-lhe um carapuço de lã

para ir para à escola. A ovelha dava.Vinha um rapaz e pedia-lhe um cachecol de lã para ir

à bola. A ovelha dava. Vinha uma senhora e pedia-lhe umas meias de lã para

trazer por casa. A ovelha dava. — Ó ovelha, não achas demais? Xailes, carapuços,

cachecóis, meias... É só dar, dar... — Não se ralem — respondia a ovelha. — Vocês não

aprenderam na escola que a vaca dá leite e a ovelha dá lã? É o que eu estou a fazer.

Apareceu a Dona Carlota, muito afadigada: — Eu só queria um novelozinho para fazer um saco

para a botija. Ainda chega? 37

Pois claro que chegava. A ovelha, a dar nunca se cansava.

Veio a Dona Firmina, muito preocupada: — Eu só queria um novelozinho para uma pega para a

cozinha. Ainda chega? Pois claro que chegava. A ovelha a dar nunca se

cansava. Veio a Dona Alda, muito atarantada: — Eu só queria um novelozinho para acabar uma

manta. Ainda chega?Pois claro que chegava. A ovelha, a dar nunca se

cansava. E eram coletes, camisolas, golas, golinhas, luvas...

que a gente até estranhava que a lã se lhe não acabasse. A ovelha sorria e tranquilizava:

— Não acaba. Nunca acaba. Conhecem aquele ditado: “Quem dá por bem, muito lhe cresce também”? Pois é o que eu faço.

E a ovelha generosa lá foi atender uma avó, que precisava de um novelo para um casaquinho de bebé, o seu primeiro neto que estava para nascer...

António Torradowww.historiadodia.pt

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Yudisthira às portas do céu

Esta história é tirada do Mahabharata que é, junto com o Ramayana,um dos grandes poemas épicos da Índia.

O bom Rei Yudisthira governava o povo de Pandava havia muitos anos e conduzira-o a uma guerra vitoriosa, porém muito longa, contra gigantescas forças do mal. Concluídos os seus esforços, Yudisthira percebeu que já passara muitos anos na terra e que era hora de partir para o reino dos Imortais. Depois de terminar o que planeara, dirigiu--se até à grande Montanha a fim de alcançar a Cidade Celestial. A sua linda esposa, Drapaudi, foi com ele, e também o acompanharam os seus quatro irmãos. Logo no início do caminho, juntou-se a eles um cão, que os seguia em silêncio.

Mas a jornada até à montanha era longa e penosa. Os quatro irmãos de Yudisthira foram morrendo pelo caminho, um a um, e, depois deles, a linda esposa

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Drapaudi. O Rei ficou totalmente só, exceptuando o cão, que o acompanhou fielmente por toda a árdua e demorada subida em direcção à Cidade Celestial.

Finalmente os dois, exaustos e enfraquecidos, chegaram diante das portas do Firmamento. Yudisthira curvou-se em humilde reverência, pedindo que fosse aceite.

O céu e a terra encheram-se de estrondoso ruído quando o Deus Indra, o Deus de Mil Olhos, chegou para receber o Rei no Paraíso. Mas Yudisthira ainda não estava pronto.

— Sem os meus irmãos e a minha querida esposa, a minha inocente Drapaudi, não desejo entrar no Céu, ó Senhor de todas as divindades.

— Não temas — respondeu Indra. — Encontrá-los-ás a todos no Céu. Eles chegaram antes e estão aqui!

Mas Yudisthira ainda tinha um pedido a fazer.— Este cão acompanhou-me por todo o caminho até

aqui. É devotado a mim. Pela sua fidelidade, não posso entrar sem ele! E além disso, o meu coração tem-lhe muito amor.

Indra balançou a enorme cabeça e toda a terra tremeu.

— Só tu podes ter a imortalidade — disse ele — e a riqueza, e o sucesso, e todo o júbilo do Céu. Conquistaste isso empreendendo a árdua jornada. Mas não podes trazer um cão para dentro do Céu. Livra-te do cão, Yudisthira. Não é nenhum pecado!

— Mas para onde irá ele? E quem irá acompanhá-lo? Ele desistiu de todos os prazeres da terra para ser meu companheiro. Não posso abandoná-lo agora.

O Deus irritou-se com aquilo e disse com firmeza:

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— Precisas de estar puro para entrar no Paraíso. Um simples toque num cão eliminará todos os méritos da oração. Reconsidera o que estás a querer fazer, Yudisthira. Deixa que o cão se vá.

Mas Yudisthira insistiu:— Ó Deus de Mil Olhos, é difícil para uma pessoa que

sempre tentou ser justa fazer algo que considere injusto – mesmo que seja para entrar no Firmamento. Não desejo a imortalidade se para tanto é preciso livrar-me de alguém que me é devotado.

Indra instigou-o mais uma vez:— Deixaste para trás, na estrada, quatro irmãos e a

mulher. Por que não podes deixar também o cão?Mas Yudisthira respondeu:— Abandonei-os apenas porque já tinham morrido e

eu já não poderia ajudá-los nem trazê-los de volta à vida. Enquanto estavam vivos, não os abandonei.

— Estás disposto a abandonar o Céu, então, por causa desse cão? — perguntou-lhe o Deus.

— Grande Deus de todos os Deuses — retrucou Yudisthira — sempre mantive a minha promessa: nunca abandonar quem tivesse medo e viesse à minha procura, quem estivesse aflito e desvalido ou quem estivesse fraco demais para se proteger sozinho e desejasse ainda viver. Acrescento agora um quarto elemento. Prometo não abandonar quem for devotado a mim. E não vou abandonar o meu amigo.

Yudisthira baixou-se para acariciar o cão e estava prestes a afastar-se tristemente do Céu quando, de repente, bem diante dos seus olhos, aconteceu um prodígio. O cão fiel transformou-se em Dharma, o Deus da Virtude e da Justiça.

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Indra disse:— És um bom homem, Rei Yudisthira. Demonstraste

fidelidade aos fiéis e compaixão por todas as criaturas. Mostraste-te capaz disso ao renunciares aos próprios Deuses em vez de renunciares a esse humilde cão que era o teu companheiro. Serás honrado no céu, ó Rei Yudisthira, pois não existe um acto que seja mais elevado e mais ricamente recompensado do que a compaixão para com os humildes.

Então, Yudisthira entrou na Cidade Celestial, tendo ao lado o Deus da Virtude. E lá tornou a encontrar-se com os irmãos e a querida esposa para desfrutarem da eterna felicidade.

William J. BennettO Livro das Virtudes

Editora Nova Fronteira, 1995(adaptação)

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Um gato debaixo do pinheiro de Natal

— O gato cinzento está com mau aspecto — observa Laura, empoleirada no alto do pequeno muro que separa o jardim do terreno baldio. Mas o pai está a cortar a sebe e não ouve o que ela diz.

— O gato cinzento está com mau aspecto; acho que está doente… — insiste ela.

A mãe não ouve, ocupada também a arrancar as ervas do passeio, o que Laura, aliás, também devia estar a fazer para a ajudar.

Então Laura repete para si, em voz baixa e grave:— Parece que o gato cinzento vai morrer.O gato sem nome nem casa tem o pêlo descaído e o

salto lento; não liga aos pássaros, já não tem fome, foge do sol e vai aninhar-se entre dois pés de urtigas.

— É preciso chamar o veterinário — sugere Laura.— Nem penses! Ele tem mais que fazer do que tratar

os gatos vadios.Desta vez, a mãe sempre resolvera responder.

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— Não é vadio, porque eu acolhi-o e gosto dele — retorquiu Laura.

Laura é teimosa. Amanhã, a caminho da escola, vai bater à porta do veterinário, como fez da outra vez por causa de um passarinho caído do ninho e de um ouriço-cacheiro meio esmagado por uma bicicleta. É um veterinário idoso muito simpático, que não a manda dar uma volta.

“Amanhã levo o gato escondido na minha pasta, está decidido.”

No dia seguinte, não consegue encontrar o gato em lado nenhum e já está atrasada para ir para a escola. Laura sai então sem o gato. Bate à porta do veterinário para pedir um conselho.

Mas é a mulher que vem à porta e lhe dá uma resposta seca:

— O meu marido está inundado de trabalho.“Inundado”? O rio inunda as terras; a banheira,

quando demasiado cheia, inunda o quarto de banho… mas um veterinário “inundado”? Então, quem há-de aconselhar Laura? Não quer que se riam dela, não quer ser motivo de troça.

Durante o recreio do meio-dia, Laura escapuliu-se do pátio. Se a professora soubesse! Se a mãe a visse! Laura sabe que pode ser suspensa por três dias: “Que falta de responsabilidade!”. Ela bem sabe, mas o gato cinzento está com tão mau aspecto…

Que surpresa! É um rapaz novo que vem atender.— O meu pai vai aposentar-se e sou eu que vou

substitui-lo — explica com gentileza, ao ver o espanto de Laura.

Ela gaguejou ao falar do gato e o veterinário

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compreendeu num ápice:— Esta tarde, Laura, não tenho muito trabalho, e por

isso vou dar uma volta para esse lado.Depois das quatro horas, ao regressar da escola,

Laura encontrou um bilhete que a mãe lhe leu: Lamento! Tive de ajudar o teu gato a partir

sem sofrer demasiado… Tive pena, mas era melhor para ele. Quando quiseres…

Até breve, Laura! Sérgio

Laura ouviu a mãe falar e concluir por fim:— Tens um amigo novo. Sérgio é um nome estranho,

que me faz pensar no tecido do casaco que eu usava quando tinha a tua idade e que…

Mas Laura não tinha vontade de ouvir as recordações da mãe. Foi chorar sozinha para cima do pequeno muro. Perguntou a si mesma para onde teria Sérgio levado o gato morto. Pareceu-lhe tê-lo visto, cinzento e de pêlo brilhante, escapar-se por entre as ervas altas; bem sabe que foi uma ilusão. Depois, o pintarroxo-que-tinha-medo-do--gato voltou para o terraço e Laura riu-se das suas bicadas ávidas. Saltou rapidamente do seu posto de observação para ir buscar migalhas frescas.

Junto do pinheiro de Natal, está um presente que dá

saltos. Contrariamente ao habitual, a mãe sugere que se abram as prendas de Natal antes da missa do galo. Laura nem quer acreditar. Há muitas coisas a mudar nesta casa, de há uns tempos para cá. Talvez desde que o pai “esteve às portas da morte”, como diz a avozinha. Laura aprendeu que isso significa escapar à morte. Terá ela suspeitado da gravidade do estado de saúde do pai,

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encontrado desmaiado no jardim enquanto ela estava na escola?

No entanto, ele está aqui esta noite, o pai, bem vivo e a rir-se, quando a mãe mostra à Laura a prenda que mexe: um gatinho cinzento.

— Parece filho do gato cinzento. Amanhã vou logo apresentá-lo ao Sérgio.

Colette Nys-MazureConte d’Esperance

Paris, Desclée de Brouwer, 1998(tradução e adaptação)

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O caçador de borboletas

Vladimir recebeu muitas prendas no Natal, entre livros, discos, legos, jogos de computador, mas gostou sobretudo do equipamento para caçar borboletas. O equipamento incluía uma rede, um frasco de vidro, algodão, éter, uma caixa de madeira com o fundo de cortiça, e alfinetes coloridos. O pai explicou-lhe que a caixa servia para guardar as borboletas. Matam-se as borboletas com o éter, espetam-se na cortiça, de asas estacadas, e dessa forma, mesmo mortas, elas duram muito tempo. É assim que fazem os coleccionadores.

Aquilo deixou-o entusiasmado. Ele gostava de insectos mas não sabia que era possível coleccioná-los, como quem colecciona selos, conchas ou postais, talvez até trocar exemplares repetidos com os amigos.

Nessa mesma tarde saiu para caçar borboletas. Foi para o matagal junto ao rio, atrás de casa, um lugar onde se juntavam insectos de todo o tipo. Já tinha apanhado cinco borboletas, que guardara dentro do frasco de vidro, quando ouviu alguém cantar com uma voz de algodão

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doce – uma voz tão doce e tão macia que ele julgou que sonhava. Espreitou e viu uma linda borboleta, linda como um arco-íris, mas ainda mais colorida e luminosa. Sentiu o que deve sentir em momentos assim todo o caçador: sentiu que o ar lhe faltava, sentiu que as mãos lhe tremiam, sentiu uma espécie de alegria muito grande. Lançou a rede e viu a borboleta soltar-se num voo curto e depois debater-se, já presa, nas malhas de nylon. Passou-a para o frasco e ficou um longo momento a olhar para ela.

— Agora és minha – disse-lhe. — Toda a tua beleza me pertence.

A borboleta agitou as asas muito levemente e ele ouviu a mesma voz que há instantes o encantara:

— Isso não é possível – era a borboleta que falava. — Sabes como surgiram as borboletas? Foi há muito, muito tempo, na Índia. Vivia ali um homem sábio e bom, chamado Buda…

Vladimir esfregou os olhos:— Meu Deus! Estou a sonhar?A borboleta riu-se:— Isso não tem importância. Ouve a minha história.

Buda, o tal homem sábio e bom, achou que faltava alegria ao ar. Então colheu uma mão cheia de flores e lançou-as ao vento e disse: “Voem!” E foi assim que surgiram as primeiras borboletas. A beleza das borboletas é para ser vista no ar, entendes? É uma beleza para ser voada.

— Não! – disse Vladimir abanando a cabeça. — Eu sou um caçador de borboletas. As borboletas nascem, voam e morrem e, se não forem coleccionadores como eu, desaparecem para sempre.

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A borboleta riu-se de novo (um riso calmo, como um regato correndo, não era um riso de troça):

— Estás enganado. Há certas coisas que não se podem guardar. Por exemplo, não podes guardar a luz do luar, ou a brisa perfumada de um pomar de macieiras. Não podes guardar as estrelas dentro de uma caixa. No entanto, podes coleccionar estrelas. Escolhe uma quando a noite chegar. Será tua. Mas deixa-a guardada na noite. É ali o lugar dela.

Vladimir começava a achar que ela tinha razão.— Se eu te libertar agora – perguntou – tu serás

minha?A borboleta fechou e abriu as asas, iluminando o

frasco com uma luz de todas as cores.— Já sou tua – disse – e tu já és meu. Sabes? Eu

colecciono caçadores de borboletas.Vladimir regressou a casa alegre como um pássaro. O

pai quis saber se ele tinha feito uma boa caçada. O menino mostrou-lhe com orgulho o frasco vazio:

— Muito boa – disse. — Estás a ver? Deixei fugir a borboleta mais bela do mundo.

José Eduardo AgualusaEra uma vez

Revista Pais e Filhos, s/d

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Remorso

O céu de súbito pôs-se negro e o vento à solta parecia querer derrubar montes, castelos e vidas.

— Eduardo, meu filho! — gritou a mãe.E o pequeno que deixara de brincar, cego pela poeira

e assustadíssimo pelo brusco desaparecimento da luz do sol, deitou a correr para casa. Batia-lhe de frente a ventania dificultando-lhe a corrida. Um remoinho de folhas secas ergueu-se descompassado. Eduardo chegou.

— Mas, vens a tremer, meu filho?— Sim, minha mãe, tenho frio.E, com efeito, nessa manhã suavíssima de Outono o

vento fez-se cortante como nos dias baços, chuvosos e doentios de Janeiro. Eduardo, a pouco e pouco, ia ficando tranquilo. Entretanto, o vento, numa lamúria, desgrenhava as árvores, partindo-as, e a chuva, torrencial, dava-nos a impressão de alagar o Universo.

Os relâmpagos iluminavam a terra e o céu. A casa estremecia e algumas telhas abalavam como flechas pelos ares.

— Não tenhas medo, meu filho. Deus protege o nosso ninho.

Eduardo, então, desatou a chorar, e por mais que a

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mãe lhe perguntasse a causa daquele choro, não respondia. E, sempre a chorar, lembrava-se, com certeza, do ninho de passarinhos que destruíra nessa manhã.

Os Contos de António BottoMarginália Editora, s/d

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O Grande Voo do Pardal

Henrique Gaspar possuía a casa mais linda das redondezas. Ninguém sabia onde ele ia buscar aquilo – árvores com flores cheirosas, relva lisa como carpete, uma piscina que parecia um espelho. Aos fins de semana, quem passasse por perto ouvia assim «Ahuf! Ahuf! Ahuf!». Era o Henrique Gaspar a cavar as plantas. Não fazia outra coisa. Mal terminava os seus afazeres domésticos, ia logo trabalhar no jardim.

Ora certo dia de Primavera, estava ele precisamente a podar uns arbustos, quando reparou num pequeno molho de penas que se movia. Era um molhinho cinzento pousado no chão, que parecia respirar, ali mesmo junto a uma aba de roseira.

«O que é isto?» — perguntou Henrique Gaspar, pondo os óculos de ver ao perto. Mas logo se endireitou, todo arreliado.

«Oh! Mais um! O estupor dum pardal!»É preciso dizer que nem sempre Henrique Gaspar

tinha bom génio. Como se sabe, ninguém é perfeito. Ora precisamente, se havia coisa com a qual ele embirrava era com pardais. Gostava de cotovias, melros,

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pintarroxos, rouxinóis, e outros de que nem sabia o nome, mas de pardais, isso não. Detestava esses pássaros, que dizia terem as penas enxovalhadas, cinzento encardido, além de serem, de entre todos os pássaros, os mais irrequietos, os mais glutões, os mais atrevidos. Tinha os seus motivos, pois por mais que fizesse, os pardais, em grandes bandos, assaltavam-lhe os telhados da casa, intrometiam-se nas frinchas, e embora os enxotasse com fúria, eles acabavam sempre por fazer ninhos debaixo das telhas. Um desassossego. Por sua vez, durante a noite, os gatos selvagens assaltavam os ninhos, levantavam o que quer que fosse até encontrarem os ovos, e era um festival de miados, voos, e telhas partidas e viradas. «Um horror, um horror!» — lamentava-se com frequência Henrique Gaspar que não se cansava de colocar, por cima das chaminés, grandes espanta-pardais com panos coloridos a voar. Além disso, sempre que um bando deles pousava no terraço, o dono da casa enxotava-os aos berros e aos saltos. Detestava--os. E agora, andava ele a assobiar todo descuidado, naquele domingo de manhã, e vai daí, como se nascido duma erva, aparecia-lhe rente aos pés, um pardal! Aquilo não ficava assim.

«Não fica, não!»E ia para lhe dar um piparote. Mas de repente não

soube como dar o piparote. Porque entre pensar e dar um piparote, vai uma grande diferença, acreditem em mim. Imaginem vocês que está ali um molhinho de penas a respirar, a respirar. Como se faz para o retirar de onde está? Ataca-se com o pé? Com a mão? Com o sacho? — Pensando nisso, só agora Henrique Gaspar reparava que, naquele instante da cena, já qualquer outro pardal teria voado. Porque não voava aquele pássaro? Porque se mantinha no mesmo lugar? — Curioso, aproximou-se

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mais, fez avançar um dedo até ao montinho de penas que respirava, e pôde ver para seu espanto que o pequeno pardal só tinha uma perna. O seu coração deu um baque.

«Uma perna só! Oh! Pobre pardalinho!»Henrique Gaspar tomou o animal entre os dedos, pô-

lo na palma de uma das mãos, acalmou-lhe o coração com a outra, juntou a cabeça do pardal aos lábios para o aquecer e foi para casa fazer-lhe o curativo.

«Seu tonto! Por onde andou você, seu pardalito maluco? Que loucuras andou a fazer para assim perder a sua pata? Perder a sua perna direita? Diga lá, diga lá...» — E pensou-lhe a ferida com montes de sulfamidas e Bétadine em algodão.

Com estes cuidados todos, escusado será dizer que o pardal não só sobreviveu como em breve estava a ocupar um lugar de destaque na casa de Henrique Gaspar. Um caso sério, posso garantir-vos — Viesse quem viesse para jantar, o passarinho não arredava daquele espaço. Saltava de mesa em mesa, de cadeira em cadeira, empoleirava-se no rebordo das estantes, na moldura dos quadros, mas onde ele mais gostava de pousar era nos ombros do dono da casa. Pousado na sua pata só, saltitando um pouco de esguelha, o pardal subia e descia pelo braço de Henrique Gaspar, acocorava-se junto da gola, mantinha-se muito direito sobre as costas, quando o dono da casa se baixava para regar o assado no fogão. Os amigos, que eram muitos, fotografavam o pardal nesse preparo.

«Isso é que é um amor! Hein?» — admiravam-se.E era mesmo. O pardal e o dono da casa formosa

amavam-se verdadeiramente. Tanto assim era que Henrique Gaspar não se importava nada que o pardal

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sem perna andasse dum lado para o outro, espalhando bagos de trigo e pequenas lágrimas de cocó que pintalgavam de cinzento os lindos sofás brancos comprados na Divani. Chegava mesmo a telefonar aos amigos para os prevenir:

«Tragam roupa usada, olhem que o meu pardal suja onde quer que calha!»

Os amigos obedeciam. Os que traziam a máquina fotográfica e os outros, que só ficavam na fotografia ao lado do pardal. Ninguém queria partir da casa do Henrique Gaspar sem levar uma recordação do habitante pássaro.

Mas as coisas são como são.Henrique Gaspar tinha a sua vida, tinha a sua loja na

cidade, e a verdade é que passava dias inteiros fora de casa, e o pássaro parecia já ser um jovem feito, pois os anos correm muito depressa para os pássaros. Ora o lugar dum pardal, francamente, não iria ser sempre trancado dentro de casa, para que os gatos selvagens não o apanhassem. A vida dum pardal tem seus riscos próprios e suas metas de felicidade. Precisa de conviver com outros pássaros da sua espécie, precisa de ser um entre os outros, ser uma parte do bando, voar ao lado de muitos, um pardal precisa de encontrar uma pardoca, fazer um ninho, ajudar a pôr e chocar os ovos, trazer alimento para os novos pássaros quando os houver, enfim, precisa de ser um verdadeiro pássaro. Como proceder então com aquele? — Henrique Gaspar andava preocupado, e sem o dizer, até se surpreendeu a desejar que os pardais passassem ali por casa.

«Tenho cá uma ideia!»E pensando na felicidade do seu amigo de perna só,

começou por retirar os espantalhos de cima do telhado.

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Agora já não se importava que viessem.O caminho estava livre. Mas mesmo assim, apenas

um ou outro pardal mais afoito se atrevia a passar nas redondezas. A perseguição havia sido intensa, e os animais, acreditem em mim, contam o bem e o mal uns aos outros, para não se esquecerem. Ora por muito que lhe custasse, pensava Henrique Gaspar, era preciso que um bando viesse e levasse consigo o pardal domesticado. Talvez água, sim, talvez voltar a espalhar pelo terraço vasos de água que atraíam do ar a sede dos bichinhos voadores. — Se bem pensou, melhor o fez.

O dono da casa sentava-se no jardim, com o passarinho pousado na mão aberta, à espera que voasse para se encontrar com os outros. Os outros vinham, bebericavam, corriam pelo ladrilhado aos saltinhos, aos saltinhos, e o pardalito curado ainda se afoitava até ao chão, ainda se movia no meio dos outros da sua espécie, mas assim que o bando iniciava o voo ruidoso, batendo as asas muito depressa, o perna-só voltava para o ombro de Henrique Gaspar.

«Então, então? Não queres ser um verdadeiro pardal? Não queres?» — perguntava o Henrique.

O pardal roçava pela barba do amigo, não ia.«Vai, vai, pardal. Já voas bem, já não andas de

esguelha, aposto que já não te dói nada...»Uma tarde, o Henrique foi mais longe — Estendeu-se

numa esteira, perto do bebedouro, com o pássaro a passear-lhe por cima, e esperou. Esperou e esperou. Os bandos andavam por perto mas não vinham. Então ele imitou o chilrear do pardal, e ou fosse por esse ou por outro motivo, motivo de pássaro, uma revoada deles veio beber. Imensos pardais. Saltitavam, corriam, esvoaçavam, mergulhavam as asas na água das vasilhas,

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salpicavam tudo, partiam e voltavam. O pardal da perna só saltou para o chão, saltou para a borda da vasilha com água e depois elevou-se acima das roseiras, e subiu no ar, entre os seus. Era um entre muitos.

«Lá vai, lá vai...» — disse Henrique Gaspar, ao mesmo tempo feliz, ao mesmo tempo angustiado. Tinha-se habituado ao companheiro. Precisava de sentir no ombro o seu peso de quase nada. Para lhe passar a angústia, só pensava numa certa acção — Iria retomar os espantalhos, guardar as vasilhas com água, preparar-se de novo para ser mau, muito mau, para com os pardais. Mas isso não chegou a acontecer, porque no dia seguinte, à hora do bebedouro, o montinho de penas cinzentas voltou. O novelinho cinzento arrumava o peito branco à janela, bicava o vidro, queria entrar. Tinha vindo com o bando, mas não desejava partir de novo com o bando. Estava visto, o plano de perseguição contra os pardais não iria mais ter lugar, porque Henrique Gaspar estava disposto a tudo para aceitar quem chegava. E então abriu a janela de par em par.

Logo o pardal entrou, e saltitando na sua perna só, percorreu os ombros do amigo homem, voando entre as suas mãos e o seu pescoço. Pousando a pata nas mesas e nos sofás.

Agora quando passamos junto da casa formosa e não ouvimos «Ahuf! Ahuf! Ahuf!», imaginamos que lá dentro dois amigos falam. Os dois são livres mas querem estar juntos. — Há lá maior liberdade no Mundo?

Lídia JorgeO grande voo do pardal

Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2007

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Vida de Hamster

Da vida de um hamsterNão há grande coisa a dizer

Enfia o nariz cor de rosaNa janela da gaiolaE decide pela quinquagésimaMilionésima vezQue não consegue passar Através dela

Da vida de um hamsterNão há grande coisa a dizer

É talvez a mais aborrecidaVida do mundoDorme e bebe e comeCome e bebe e dorme

Tenta escapulir-se Por qualquer ladoMas é de novoApanhado

Da vida do hamsterNão há grande coisa a dizer

Pensavas que o punhas malucoA andar às voltas na rodaMas quem está ficando maluco És tu

Mas ele pode estar pensar“Da vida deste rapazNão há grande coisa a dizerEnfimPassa a vida a ver um hamster Andar às voltas na rodaEstou a ficar maluco só de o verA olhar para mim”

Kit Wright

Poemas com AsasTranspostos por Jorge Sousa Braga

Assírio e Alvim 2001

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Quem sabe é o jardineiro

Era uma vez um rei que tinha, à roda do palácio, onde vivia, um enorme pomar muito bem tratado. Imensos jardineiros cuidavam desse pomar, que era a vaidade do rei.

Árvores de fruto de todas as espécies, algumas vindas de terras distantes, transformavam, na Primavera, o pomar num jardim magnífico, onde sobressaíam o cor-de-rosa, o azul, o branco e o amarelo das flores, sobre o verde fresco das folhas.

E, quando os frutos começavam a ganhar forma, o perfume que inundava o pomar quase entontecia.

Estava, um dia, o rei a mostrar o pomar a uns primos, príncipes de reinos vizinhos, quando viu, caídos de um pessegueiro uns tantos frutos meio apodrecidos.

Mandou logo chamar o chefe dos jardineiros e perguntou-lhe, muito irritado:

— Explique-me este desleixo. Quem é o responsável?— Foram os pássaros, Majestade, que bicaram os

frutos mais apetitosos — explicou o jardineiro.— Pássaros? — exclamou o rei. — Como se atrevem a

entrar nos meus domínios e a bicar as minhas riquezas?— Os pássaros têm asas e não conhecem muros —

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respondeu o jardineiro.— Pois vou eu ensiná-los — indignou-se o rei. — Que

podem os pássaros contra mim?E o rei foi para o palácio, onde ditou um decreto para

ser espalhado pelo reino, em que mandava matar todos os pássaros, passarinhos e passarocos, sem escapar um. As ordens do rei tinham de se cumprir. Foi uma mortandade.

No ano seguinte, realmente, já não havia pássaros atrevidos a bicar nos frutos do pomar real. Mas, em contrapartida, uma praga aflitiva de lagartas e insectos destruiu as colheitas, minou os frutos, empobreceu o reino.

— Como se explica isto? — perguntou o rei ao jardineiro. — Depois de guerrearmos os pássaros, temos agora de guerrear os mosquitos e as lagartas. Como se dá batalha às lagartas?

Sorrindo, o velho jardineiro respondeu:— Para guerrear as lagartas, temos de nos aliar aos

pássaros. São eles que as comem, mais às larvas e a todos os bichinhos miúdos da natureza.

— Podias ter explicado isso mais cedo — comentou o rei, fazendo-se esquecido.

Logo ali mandou anular o decreto, que tinha apagado as asas dos céus do reino. Os pássaros já podiam, de novo, voar livremente. E poisar onde lhes apetecesse.

Assim é que estava certo.António Torrado

www.historiadodia.pt

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PORQUEMALTRATAMOS

OS ANIMAIS

Índice

A cadelinha Floss.......................................................1Os amigos não se abandonam..................................5Vende-se cachorrinhos............................................11Um cãozinho amoroso.............................................13Porque maltratamos os animais?............................21Um urso à caça.......................................................29A gata e o sábio......................................................33A ovelha generosa...................................................35Yudisthira às portas do céu.....................................37Um gato debaixo do pinheiro de Natal....................41O caçador de borboletas.........................................45Remorso..................................................................49O Grande Voo do Pardal..........................................51Vida de Hamster......................................................57Quem sabe é o jardineiro........................................59

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