Original_Israel_Coelhod Tensao Entre Judeus e Cristaos Portugal Seculo XV
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Universidade Federal de Gois Faculdade de Cincias Humanas e Filosofia
Programa de Ps-graduao em Histria
TENSES E INTERAES ENTRE JUDEUS E CRISTOS EM PORTUGAL NO FINAL DO SCULO XV
Israel Coelho de Sousa Orientadora: Profa. Dra. Dulce Oliveira Amarante dos Santos
Goinia 2007
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Israel Coelho de Sousa
TENSES E INTERAES ENTRE JUDEUS E CRISTOS EM PORTUGAL NO FINAL DO SCULO XV
Dissertao apresentada ao Programa de Mestrado em Histria, da Faculdade de Cincias Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Gois, para a obteno do grau de Mestre em Histria. rea de concentrao: Culturas, Fronteiras e Identidades. Linha de Pesquisa: Histria, Memria e Imaginrios Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Dulce Oliveira Amarante dos Santos (UFG).
Goinia 2007
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Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) (GPT/BC/UFG)
Sousa, Israel Coelho de . M S725t Tenses e interaes entre judeus e cristos em Portugal no final do sculo XV / Israel Coelho de Sousa. Goinia, 2007.
137f. : il., figs.
Orientadora: Dulce Oliveira Amarantes dos Santos.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Gois, Faculdade de Cincias Humanas e Filoso- fia, 2007.
Bibliografia: f.132-137. Inclui lista de figuras e de abreviaturas.
1. Judeus Historia Portugal Sc.XV 2. Ju- deus Identidade Sc.XV 3. Antisemitismo 4. Por- tugal Comunidades judaicas Sc.XV I. Santos, Dulce Oliveira Amarantes dos II. Universidade Fede- ral de Gois, Faculdade de Cincias Humanas e Fi-
losofia III. Titulo.
CDU: 94(469)(=411.16)14
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Israel Coelho de Sousa
TENSES E INTERAES ENTRE JUDEUS E CRISTOS EM PORTUGAL NO FINAL DO SCULO XV
Dissertao defendida no Curso de Mestrado em Histria da Faculdade de Cincias Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Gois, aprovada em ____ de ___________ de 2007, pela Banca Examinadora constituda pelos seguintes professores:
_____________________________________________
Profa. Dra. Dulce Oliveira Amarante dos Santos (UFG) (Orientadora)
_____________________________________________
Profa. Dr. Sergio Alberto Feldman (UFES)
_____________________________________________
Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonalves (UFG)
______________________________________________
Prof. Dr. No Freire Sandes (UFG) (Suplente)
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AGRADECIMENTOS
Ao meu Senhor Jesus Cristo,
por ter me proporcionado a realizao deste sonho que em certos momentos pensava que no se realizaria, mas com sua infinita misericrdia e graa, Ele interveio, e o que antes era promessa,
agora realidade. Toda honra e toda glria seja dada a Ele.
Aos meus pais, Lusia Coelho dos Santos e Eurpedes Bomtempo Sousa,
sempre me incentivaram e apoiaram na minha opo pela carreira profissional de historiador. Proporcionaram-me todos os meios para que eu pudesse estar focado somente nos estudos, e esta
dissertao ofereo-lhes como recompensa pela dedicao, carinho, amor e empenho com que me educaram e se esforaram para que eu pudesse alcanar esse patamar. Eu concluo esta
dissertao, mas o ttulo de mestre do senhor e da senhora.
A minha professora e orientadora Dulce,
que desde a graduao vem me orientando em minha pesquisa, dando todo o apoio necessrio para que ela se transformao nessa dissertao. Agradeo a insistncia e a pacincia com que
teve comigo nas minhas teimosias e divagaes, nas quais quase me tornei um judaizante. Agradeo a honra e o prazer por ser seu orientando.
A professora Ana Teresa Marques Gonalves,
a qual desde a defesa da monografia vem fazendo a leitura crtica da minha pesquisa e fornecendo contribuies muito significativas para que este trabalho tivesse o formato que tem
hoje. Muito obrigado e foi um grande prazer.
Ao professor No Freire Sandes,
pessoa a qual estimo muito e tenho uma particular admirao dentro do quadro profissional que a Faculdade de Histria da UFG possui. O professor no s contribuiu com minha dissertao na
leitura crtica, mas tambm pelas discusses ao longo das aulas de Histria do Brasil na graduao. Foi um prazer e uma honra t-lo como professor.
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Ao professor Sergio Alberto Feldman,
por ter me dado o aporte necessrio para a minha pesquisa, prontamente me ajudou com uma receptividade cativante. uma honra e um grande prazer t-lo como argidor do meu trabalho.
Aos professores Armnia Maria de Souza, Cristiano, Eugnio Resende de Carvalho, Nei Clara de Lima, Joana Aparecida Fernandes Silva, Isa Paniago, Dalva Dias, Fernanda Costa, Leandro
Mendes Rocha, Luis Srgio Duarte da Silva, Heliane Prudente, Adriana Dias, Marlon Salomon, Barsanufo Gomides, Libertad Borges Bittencourt, Joo Alberto da Costa Pinto, Cristina,
Cristiane Portela, lio Cantalcio e Oiti Berbet,
tenho admirao por todos e reconheo aqui a contribuio que cada um tem na minha formao profissional. Meu sincero e grato agradecimento a todos estes mestres e doutores.
minha namorada rika Maria Jaques,
mesmo que tenha pouco tempo que nos encontramos tenho um grande carinho e sentimento por voc. Amor, voc nica e tenha certeza de que tem me proporcionado grande felicidade por t-
la conhecido e ter o grande prazer de ser seu namorado, que Deus possa perpetuar esse amor.
Suzie e Sonia,
por compartilharmos bons momentos juntos, cada uma possui minha admirao por ter me proporcionado felicidade de ter sido companheiro mesmo que por um breve momento. Muito
obrigado pelo carinho e pelo grande sentimento que vocs possuem por mim.
minha amiga Giovanna Schitinni,
pela amizade e pelo grande favor que me prestou na sua viajem Portugal, dedicando-se a me ajudar na busca de documentos. Muito obrigado pela sua dedicao e apoio.
Aos meus amigos Marcello Carrijo, Rodrigo Freitas e suas famlias,
por me ajudarem na formatao da dissertao e tambm pela amizade que tem sido mpar neste mais de dez anos que nos conhecemos.
Aos meus amigos Werley e Vanessa, Cinara, Junior, Adilson, Weder, Ana Paula, Alan e Cristiane, Carlindo, Nilton, Fbio, Luziano, Aline, Priscila, Camilla, Mateus e Talita,
pelo apoio moral e oraes em prol da iniciao e concluso do meu mestrado. A amizade de vocs singular e ficar registrada nestas pginas como prova da importncia que todos possuem
na minha caminhada por este mundo.
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Aos amigos da graduao Elby, Rodrigo, Leandro Francisco, Alfredo, Lorena Costa, Fernando, Leonardo Silva, Cibele,Vanessa Uchoa, Lorena Burjack, Luana Neres, Aline, Isis e Daiene,
pela amizade e companheirismo que se estende alm da graduao.
Ao CNPq,
pelos 24 meses de bolsa que foram de suma importncia para que esta pesquisa viesse a ser concretizada.
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Judo es dicho aquel que cree e tiene la ley de Moysn segunt que suena la letra della, e que se circuncida e faze las otras cosas que manda esa su ley. E tom este nombre Del tibu de Jud [...] e la razn por que la eglesia e los emperadores e los reyes e los outros prncipes sufrieron a los judos vivir entre los cristianos es esta: porque ellos vivisen como em cautiveiro para
siempre e fuese remembrana a los homes que ellos vienen Del linage de aquellos que crucificarona nuestro seor Iesuscristo.
Siete Partidas
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RESUMO
Esta dissertao tem por objetivo analisar os motivos que levaram o monarca portugus D. Manuel I outorgar em 1497 o dito de expulso dos judeus de Portugal. A comunidade judaica portuguesa esteve intrinsecamente ligada ao desenvolvimento e centralizao do Estado portugus. A sua prosperidade econmica e o seu destaque na rea das cincias (astronomia, nutica e fsica) tiveram uma contribuio significativa na estabilidade econmica de Portugal e em sua empreitada na descoberta de novas rotas de comrcio. Mesmo segregada em judiarias, esta minoria se relacionava com a populao crist portuguesa e mantinha a coeso das caractersticas identitrias do seu grupo. A segregao aumentou ainda mais o sentimento antisemita que a populao portuguesa possua, e a migrao dos judeus espanhis em 1492 contribuiu para o fervilhamento das tenses entre judeus e cristos. Fatores de ordem poltica, econmica e social influenciaram na deciso de D. Manuel I em expulsar os judeus, tanto interna como externamente. Nesse sentido, o dito, ao ser executado, acrescentou o carter religioso ao poltico.
Palavras-chaves: judiarias portuguesas, antisemitismo, identidade judaica, Baixa Idade Mdia.
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ABSTRACT
This dissertation has for objective to analyze the reasons that took the Portuguese monarch D. Manuel I to grant in 1497 the Edict of expulsion of the Jews from Portugal. The Portuguese Jewish community was linked intimate to the development and centralization of the Portuguese State. Their economical prosperity and their prominence in the area of the sciences (astronomy, seamanship and physics) had a significant contribution to economical stability of Portugal and in his taskwork in the discovery of new routes of trade. Inspate at the segregation in the jewish quarter, this minority linked with the Portuguese Christian population and they maintained the cohesion of the characteristics of identity of your group. The segregation still increased more the antisemitic feeling that the Portuguese population possessed, and the migration of the Spanish Jews in 1492 contributed to the to boil of the tensions between Jews and Christians. Factors of order political, economical and social influenced in the decision of D. Manuel I in expelling the Jews, so much internal as external. In that sense, the Edict, when executed, increased the religious character to the politician.
Word-keys: jewish quarter portuguese, antisemitic, identity Jewish, Late Midlle Age.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Judiaria Grande de Lisboa.............................................................................................29
Figura 2: Comunas judaicas em Portugal.....................................................................................32
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LISTA DE ABREVIATURAS
A.N.T.T. - Arquivo Nacional da Torre do Tombo. A.D.B. - Arquivo Distrital de Braga. C.T.I. - Consolaam s Tribulaoens de Israel de Samuel Usque. E.G.E.J.A.C. Edicto General de Expulsin de los Judos de Aragon y Castilla. E.E.J.P. dito de Expulso dos Judeus de Portugal. G.H.C.P.- Gabinete de Histria da Cidade do Porto. G.R.R. - Do Governo da repblica pelo rei de Diogo Lopes Rebelo. H.C.M.L. - Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Lisboa. Orden. Afons. - Ordenaes Afonsinas.
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SUMRIO
Resumo ....................................................................................................................................... 8 Abstract....................................................................................................................................... 9 Lista de Figuras ...................................................................................................................... ..10 Lista de Abreviaturas.................................................................................................................11
INTRODUO........................................................................................................................ 13
Captulo 1 - O ESPAO SEGREGADO: AS JUDIARIAS PORTUGUESAS URBANAS NO FINAL DO SCULO XV ................................................................................................. 17 1.1 Busca de um espao ........................................................................................................ 18 1.2 O espao arquitetnico.................................................................................................... 26 1.3 Regimento interno nas judiarias...................................................................................... 36 1.4 Elementos da identidade judaica portuguesa....................................................................39
Captulo 2 - TENSES E INTERAES ENTRE JUDEUS E CRISTOS NAS CIDADES MEDIEVAIS PORTUGUESAS NO FINAL DO SCULO XV..............................................54 2.1 Imagens sobre os judeus portugueses ............................................................................. 55 2.2 Condutas antisemitas crists ........................................................................................... 68 2.3 Relaes de gnero.......................................................................................................... 77 2.4 Os judeus na corte portuguesa ........................................................................................ 81
Captulo 3 - AS POLTICAS JOANINAS E MANOELINAS E O IMPACTO SOCIAL EM PORTUGAL DO DITO DE EXPULSO DOS JUDEUS EM 1497............................. 87 3.1 Antecedentes polticos ao dito de Expulso ................................................................. 88 3.2 Judeus castelhanos: intensificao das tenses em Portugal........................................... 94 3.3 Vozes da expulso......................................................................................................... 108 3.3.1 De Republica Governanda per Regem por Diogo Lopes Rebelo.................................110 3.3.2 Consolaam s Tribulaoens de Israel por Samuel Usque ..........................................116
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3.3.2.1 Quando entraram os judeus de Castela em Portugal .................................................116 3.3.2.2 Quando mandaram os meninos aos lagartos .............................................................117 3.3.2.3 Quando os fizeram cristos por fora.........................................................................118 3.4 Expulso?.........................................................................................................................120
CONSIDERAES FINAIS...................................................................................................126
FONTES IMPRESSAS............................................................................................................129
FONTE MANUSCRITA..........................................................................................................131
REFERNCIAS.......................................................................................................................132
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INTRODUO
Este trabalho teve incio ainda na graduao, quando realizamos o projeto de pesquisa
para a monografia de concluso do curso de Histria, intitulada A Questo Judaica em Portugal
no Sculo XV, tendo como orientadora a Prof. Dra. Dulce Oliveira Amarante dos Santos. Desde
o terceiro ano de graduao, em 2003, quando optamos pela problemtica que envolveu a
expulso da comunidade judaica de Portugal em 1497, tivemos o apoio da professora Dulce, que
nos auxiliou a burilar a pesquisa para que resultasse no trabalho monogrfico para obteno do
ttulo de graduado em Histria. Neste perodo, fizemos um levantamento bibliogrfico que nos
permitiu trabalhar com o tema, tendo como documento principal de nossa pesquisa o dito de
Expulso dos Judeus de Portugal, publicado em 1496. Duas cpias manuscritas nos foram
cedidas, uma enviada pela Prof. Dra. Manuela Mendona, da Universidade de Lisboa, e outra
cedida, depois de certa insistncia, pelo ANTT (Arquivo Nacional da Torre de Tombo) em
Portugal.
Ao ingressarmos no programa de mestrado, no ano de 2005, tivemos a oportunidade
de ser bolsista do CNPq e continuamos com o mesmo tema trabalhado na monografia, agora com
maior abrangncia no debate, na bibliografia e nas fontes. E neste ltimo quesito, desde a
monografia encontramos grande dificuldade para realizar a anlise histrica. Fontes que foram
sempre obstculos para pesquisadores de Histria Medieval e Antiga no deixaram de ser um
entrave na tessitura desta dissertao. Uma documentao mais densa, que permite uma anlise
mais rica sobre o tema, somente se tem acesso em Portugal, fazendo com que a pesquisa tenha
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um certo grau de dificuldade se o pesquisador no tem como se deslocar at aquele pas para
reunir as fontes necessrias para tal trabalho.
Compem nossas fontes, alm do dito de Expulso, as Ordenaes Afonsinas, uma
coletnea de leis promulgadas no reinado de D. Afonso V, em 1446, sendo considerada a
primeira compilao do sculo XV. As Ordenaes esto divididas em cinco livros, mas nos
deteremos somente no livro II, que contm uma legislao especial para judeus e mouros. As
Ordenaes Afonsinas constituem, assim, uma rica fonte de conhecimento para a compreenso
do direito em relao aos judeus nos reinados anteriores a sua publicao, que s foram
substitudas no reinado de D. Manuel I (1495-1521), com as Ordenaes Manuelinas.
Utilizamos tambm a obra de Samuel Usque, Consolaam s Tribulaoens de Israel,
publicada em 1553, composta de trs dilogos que tratam de momentos cruciais do sofrimento
dos israelitas desde o tempo antigo at o final da Idade Mdia. A inteno de Usque era consolar
a comunidade judaica que retornava ao judasmo, procurando instig-la a se fortalecer no amor a
sua religio-me, retomando o seu passado e a crena na providncia divina. Para a presente
pesquisa, utilizaremos apenas o terceiro dilogo, que trata do relato dos momentos de crise
vividos pela comunidade judaica de Portugal no final do sculo XV.
Outra fonte utilizada neste trabalho foi a obra de Diogo Lopes Rebelo, De Governo
Republica Gubernanda per Regem, publicada em 1496, composta de catorze captulos, a qual
configura um tratado com um discurso legitimador do modelo de um novo monarca por meio de
um cdigo de moral poltica, ou seja, destinado unicamente a D. Manuel I, que acabara de
assumir o trono, em 1495, aps a morte de D. Joo II. Nessa obra, nos limitaremos anlise do
dcimo primeiro captulo, intitulado leis e suas condies, que o rei deve impor aos sbditos do
seu reino, que alm de tratar de uma articulao entre os poderes do rei e do Papa, prope
conselhos ao monarca com relao situao da comunidade judaica no Reino portugus.
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Por ltimo, foram utilizadas tambm fontes publicadas em duas obras de Humberto
Baquero Moreno: Exilados, Marginais e Contestatrios na Sociedade Portuguesa Medieval; e
Marginalidade e Conflitos Sociais em Portugal nos Sculos XIV e XV. Nessas obras, encontram-
se documentos das Chancelarias de D. Duarte, D. Afonso V e D. Joo II, do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, do Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Lisboa, do Gabinete de Histria
da Cidade do Porto e do Arquivo Distrital de Braga.
Os conceitos escolhidos - segregao, antisemitismo, minoria, esteretipo e identidade
judaica - so primordiais na anlise desta comunidade judaica de Portugal. Para isso, foi
necessrio o dilogo interdisciplinar com historiadores, antroplogos e socilogos. A partir desta
etapa, pretendemos analisar a atitude de D. Manuel em relao ao dito de Expulso dos Judeus
de Portugal, procurando mostrar a importncia que essa comunidade teve nos sculos de
convivncia com os cristos portugueses, contribuindo, de forma significativa, para a construo
do Estado moderno que Portugal se tornou no fim da Idade Mdia.
Para este percurso, a presente pesquisa divide-se em trs captulos. No primeiro,
intitulado O espao segregado: as comunas judaicas urbanas no final do sculo XV,
procuramos analisar o estabelecimento da comunidade judaica em Portugal , onde enfrentou
diversos obstculos decorrentes do estigmas que a sua identidade carregava por causa de seus
antepassados, o que levou-os a serem segregados em judiarias urbanas, nas principais cidades
portuguesas.
No segundo captulo, intitulado Tenses e interaes entre judeus e cristos nas
cidades medievais portuguesas no final do sculo XV, mostramos como eram concebidas as
imagens dos judeus pelos cristos portugueses, e como essas imagens carregadas de negatividade
e preconceito alimentavam o sentimento de antisemitismo da populao crist portuguesa,
gerando tenses com a comunidade judaica. Este sentimento provocou tambm a preocupao,
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por parte da monarquia portuguesa, de promover a separao entre judeus e cristos, com uma
apreenso a respeito de se proibir, principalmente, o contato de homens judeus com mulheres
crists. Mas a interao entre judeus e cristos era inevitvel, tanto que sua presena se fazia at
nas cortes, o que incomodava a populao portuguesa e alimentava ainda mais o dio para com
essa minoria.
O terceiro e ltimo captulo, As polticas joaninas e manuelinas e impacto social em
Portugal do dito de Expulso dos Judeus em 1497, trata do cenrio poltico que se formou no
final do sculo XV e levou outorgao do referido. A entrada dos judeus espanhis no Reino
portugus, em 1492, foi um fator preponderante para este ultimato comunidade judaica de
Portugal. Diante deste fato, analisamos dois autores, um a favor da expulso - Diogo Lopes
Rebelo, conselheiro de D. Manuel - e outro contra - Samuel Usque, judeu que foi expulso junto
com seus correligionrios portugueses. Encerramos o captulo fazendo uma anlise do contexto
poltico e dos desafios enfrentados por D. Manuel ao expulsar a comunidade judaica.
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CAPTULO 1
O ESPAO SEGREGADO: AS JUDIARIAS PORTUGUESAS URBANAS
NO FINAL DO SCULO XV
Porque, se fora o que ns esperamos,
levar os Judeus, povo de Israel,
terra que mana leite e mel,
que nossa herana, que de Deus herdamos. Gil Vicente
Neste captulo ser abordada a segregao espacial e as contingncias que a
comunidade judaica portuguesa sofreu no territrio lusitano. A destruio de Jerusalm, em 70
d.C. (perodo que foi denominado de Dispora Judaica), por Tito, filho do imperador romano
Vespasiano, fez com que um grande contingente de judeus buscasse a sobrevivncia em outros
territrios. Entretanto, diante de algumas pr-noes, como o estigma do deicdio, os judeus
enfrentaram muitas barreiras para se fixar em regies onde o cristianismo foi adotado. Esta foi
uma das marcas que ficaram expressas sobre a identidade judaica portuguesa, qual se agrega
ainda a de usurrios e de agentes do diabo. No territrio que constituiria Portugal, os primeiros
vestgios da presena de judeus datam do sculo VI d.C. Como em muitas outras regies onde
habitaram, a caracterstica marcante no territrio luso foi a sua segregao. O seu espao foi
circunscrito a um lcus denominado de judiaria. Esta conduta de separao que foi pela
primeira vez adotada por D. Pedro I (1357-1367), norteou o tratamento e a convivncia que os
judeus teriam com a populao portuguesa.
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1.1 Busca de um espao
O vestgio mais antigo que se tem da presena judaica na Pennsula Ibrica data do
sculo III d. C. Neste perodo, as leis romanas sancionavam represses ao culto e aos direitos dos
judeus, e tambm punia um tipo de atitude a qual no se repetir na vivncia desta comunidade
na Pennsula, a violncia contra os cristos. Mesmo as invases visigticas tendo colocado estas
referidas leis em desuso, as perseguies contra os cristos continuavam. Prova disto que em
seu reinado o rei Alarico (395-415) absteve-se de punir os judeus praticantes de violncias contra
os cristos. Entretanto, assim como existiam leis amparando os cristos, havia tambm
ordenaes que protegiam os judeus, pois as perseguies aos judeus eram da mesma proporo
das que eles realizavam contra os cristos. (PERES, 1929-1931)
Aps a converso do rei visigodo Recaredo (586-601) ao catolicismo, a situao dos
judeus na Pennsula Ibrica tomou novo rumo nas suas relaes tanto no plano vertical como
horizontal. A atitude do rei ao iniciar uma perseguio a esta minoria legitima a iniciativa da
populao crist de perseguir e cometer violncia contra eles, apesar de isso no ser uma
prerrogativa para que os cristos perseguissem a comunidade judaica, j que ao longo do sculo
XV perceber-se que, com amparo ou no da legislao rgia, os cristos cometeram atos de
atrocidade, como o assalto judiaria de Lisboa, em 1449.
Com o surgimento do Estado portugus no sculo XII, os primeiros reis manifestaram
polticas de proteo populao judaica. Ao longo dos cincos primeiros governos, pode se
constatar uma proteo efetiva. Os judeus, protegidos por ordenaes reais, possuram at
considerveis privilgios. No governo de Sancho II (1223-1248) eles ocuparam cargos oficiais
devido a suas habilidades em finanas; D. Diniz (1279-1325) cumpriu acordos com judeus de
Bragana por causa da alta taxao de impostos cobrados; j D. Afonso IV (1325-1357)
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corroborou, em 1335, a lei que obrigava os judeus a usarem um distintivo; D. Pedro I (1357-
1367) imps severas penas usura, mas os judeus continuaram acumulando fortunas; com D.
Fernando (1367-1383), ocorreu um perodo de muita conturbao para com a comunidade
judaica, mas a situao se alterou quando D. Joo, Mestre de Avis, foi proclamado rei em 1385.
A partir deste ano, houve um perodo de bonana para os judeus. (TAVARES, 1979)
A comunidade judaica viveu durante sculos numa condio nmade. A fixao em
algum espao ou em uma regio sempre foi causa de constantes turbulncias para a comunidade
do local onde ela se estabelecia. A presena de um povo diferente e de costumes anticristos em
suas terras no era bem vista numa sociedade medieval ocidental como a de Portugal, permeada
de pr-noes que estabeleciam as relaes entre o natural e o estrangeiro e que, sobretudo, tinha
como princpio bsico de orientao prtica de vida os ensinamentos de Cristo, que eram
rigorosamente repassados para a sociedade atravs da doutrina da Igreja Catlica. Portanto, uma
comunidade que negava e at mesmo subvertia os princpios cristos no poderia encontrar um
local seguro o bastante para se fixar e constituir razes que permitissem sua estadia por longos
anos. Mesmo assim, o territrio portugus representou um possvel local de seguridade.
Poderiam at permanecer no s por anos, mas por dcadas e centenas de anos. Entretanto, a
vivncia no foi de todo pacfica e harmoniosa. A perseguio, a intransigncia e a segregao
foram caractersticas inerentes a sua condio de uma comunidade minoritria que, por onde
passava, sofria por seu passado que seus perseguidores no permitiam que fosse esquecido, ou
seja, o deicdio (acusao de terem sido os assassinos de Cristo).
Segundo Jacques Le Goff (1988, p. 54), o estrangeiro, durante muito tempo,
recebido, antes, com interesse, curiosidade e honra, do que como objeto de repulsa e desprezo.
Esta assertiva poderia valer para todos os estrangeiros que transitavam na Idade Mdia por
territrios desconhecidos. Entretanto, para dois tipos de estrangeiros em particular, o mulumano
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e o judeu, esta afirmao no se enquadra. Os judeus, ao tentarem fixar-se na regio da Pennsula
Ibrica, encontraram grandes dificuldades. A averso aos judeus era alimentada por velhos
estigmas que os acompanhavam por onde quer que fossem. O tratamento dado a esta
comunidade se diferenciava dos demais por causa da marca da infmia que a eles era imputada.
O judeu no era s estrangeiro, era um estranho que no era bem vindo na grande maioria nos
lugares dos quais tentava se refugiar. Mas este estrangeiro possua uma peculiaridade em relao
a todos os outros, ele era um estrangeiro sem ptria, um povo sem territrio; vagava em busca da
realizao do sonho de um dia ser uma nao com territrio.
Terra e judeu, durante sculos estes dois termos foram antagnicos e a sua relao era
baseada na instabilidade. Era desejo deste povo estabelecer-se em uma determinada regio que
pudesse ser considerada sua posse para a criao de um Estado prprio. Por isso, a permanncia
da comunidade judaica por quase dez sculos em um mesmo territrio, com um relativo clima de
boa convivncia com a populao portuguesa e seus reis, pode ter causado nos judeus um certo
conformismo com a situao de povo sem ptria. A expulso, em 1497, funcionou, ento, como
um mecanismo de ativao da memria judaica para que o projeto de nao no fosse esquecido.
A constante desarmonia no se d entre o judeu e a terra, que uma estrutura sem a
voz e a fora necessria para que possa extinguir com o sonho desta comunidade de se tornar
uma nao, mas entre aquele que habita nela, que seu dono, o natural (o portugus), o que
nasceu ali e se fez senhor por excelncia. Este sim foi o impulsionador do motor que sustentou as
intransigncias para com a comunidade judaica portuguesa. Mas se a disputa pela terra motor,
o combustvel necessrio para alimentar esta disputa denomina-se preconceito. O
desconhecimento total ou at parcial do outro, daquele com quem no se tem nenhuma forma
de compartilhamento apriorstico ou no, em outros casos, pode advir de algum fator
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antecedente, mas que possa agir negativamente contra este outro que passa a se instalar em um
territrio estranho. (LE GOFF, 1988)
Quando se fala em judeu em relao a terra ou a um espao fsico, no caso as cidades
medievais, percebe-se como foram bastante marcadas e substancialmente circunscritas a relao
de xenofobia e a espacializao implementadas para que se pudesse estabelecer uma convivncia
possvel entre os judeus e os cristos. O espao da cidade medieval era diametralmente
demarcado para esta minoria. A cidade abriga os que lhe so comuns, aqueles que,
figurativamente, possuem um papel tangencial no que se diz respeito vivncia diria prtica de
um determinado local onde vivem, ou seja, os naturais da regio e que possuem a mesma crena,
que compartilham dos mesmos valores morais e cvicos (LE GOFF, 1988). A cidade funciona,
ento, como o espao da intransigncia, no permitindo, por meio de seus habitantes (no caso os
portugueses cristos), que aqueles que no se ajustam tanto s leis institucionais como quelas
que tm sua vigncia dada pelo povo, ou seja, o cdigo da vivncia prtica cotidiana, constituam-
se enquanto parte integrante do organismo urbano.
Ao introduzirmos esta idia de organicismo percebemos o quanto de suma
importncia atentarmos para a anlise de uma sociedade que se mostra, apesar de no assumir
este discurso, como um organismo vivo que repele toda e qualquer manifestao estranha que
suas funes organicistas no identifiquem como compatvel ou aceitvel dentro de si. As
funes particulares dos rgos deste ser vivo esto aguadas para a compartimentaao da
vigilncia interna e externa de algum corpo estranho que queira adentr-lo sem sua aceitao
natural. Os rgos coadunam com o ser para uma verificao e expulso dos corpos estranhos;
entretanto, muitas vezes, como ocorreu em varias localidades da Europa medieval, os corpos
estranhos so aceitos pelo prprio ser, ou seja, aqui se encontra um paradoxo nevrlgico em
termos de concatenao com o corpo humano: o medo do contato com os judeus est na
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fronteira da concepo de um corpo comum (SENNETT,1999, p.183). O que dentro da
fisiologia humana no seria concebvel, nas relaes humanas perfeitamente detectvel e tido
como normal, no que diz respeito aos interesses colocados nos momentos em que o interesse do
governante no tangencia com os da comunidade em geral ou de alguns setores dela. Muitos
reinados foram complacentes com a entrada e a permanncia dos judeus em seus domnios,
fazendo assim, com que se atiassem as terminaes nervosas de alguns rgos insatisfeitos com
a deciso de seu dono.
A cidade o corpo; a populao, os rgos e o rei ou governante, como o dono
deste corpo, so as estruturas integrantes de um quadro composto por uma miscelnea muito
mais abrangente e complexa do que a estrutura fisiolgica humana. O corpo humano no permite
que haja algumas variaes dentro da estrutura esquemtica de seu funcionamento que
contrariem a prpria ordem natural das coisas. Entretanto, a cidade no um corpo que se possa
enquadrar dentro de leis organicistas que regem o funcionamento dos rgos do corpo humano.
Ela um corpo que est submetido a intempries s quais um ser comum no saberia responder
com tamanha eficcia, como o caso do preconceito e da segregao (SENNETT,1999). A
cidade que inicialmente fora criada para abrigar os pares, ao longo dos sculos, e isto no
acontece somente com relao aos judeus, mas o seu caso o mais emblemtico, foi se tornando
o abrigo dos refugiados e dos excludos. Aqueles que no eram aceitos em determinada cidade
ou regio migravam em direo a outra regio em busca de seu porto seguro. Nessas novas
funcionalidades que as cidades foram adquirindo, principalmente na Idade Mdia, seus dirigentes
foram obrigados a assimilar a nova formatao que o meio urbano ganhou ao longo do medievo.
Com o renascimento urbano e comercial, no final da Idade Mdia, algumas cidades se
tornaram verdadeiros mosaicos populacionais, devido s novas conotaes que lhes vinham
sendo atribudas com o advento do capitalismo. Npoles, Veneza, Gnova, Marselha, Londres,
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Tiro, Trpoli, Bagd, Lisboa, Barcelona, Anvers, Bruges, Lbeck, Frankfkurt, Riga, Kiev,
Estocolmo, Bergen, Hamburgo, entre outras, passaram a assumir o papel de entroncamento das
rotas comerciais. Algumas regies medievais portuguesas (Entre Douro, Minho, Beja e Alentejo)
renasceram devido ao surgimento das feiras medievais. Constata-se, no final do sculo XIV e ao
longo do sculo XV, a formao de vrias feiras em algumas cidades portuguesas. No reinado de
D. Joo I, elas surgiram em: Castelo Branco, Sert, Amarante, Viseu, Fonte Arcada, Feira,
Barcelos, Salzedas, Batalha, Lanhoso, Pena, Tomar, Montemor-O-Velho, Prado, Caria e Ladario;
no reinado de D. Duarte: Penela, Salvaterra de Magos e Tarouca; e no reinado de D. Afonso V:
Alccer, Almendra, Pombal, Sintra, Estremoz, Pedra Danta e Valdevez. As feiras tiveram papel
primordial no desenvolvimento do comrcio interno e no renascimento urbano dando uma nova
projeo para as cidades. Quando no era o mouro era o judeu que funcionava como
intermedirio no comrcio entre ocidente e oriente. (RAU, 1983)
Como os judeus tiveram uma aproximao muito grande com a atividade comercial
nas cidades citadas anteriormente, onde esta atividade tinha um fluxo bastante volumoso,
tornava-se um atrativo bem significativo a fixao em algumas delas, o que decorre tambm de
uma certa liberdade religiosa e uma determinada segurana que eles encontravam nestas regies.
Portugal, neste sentido, agregou todas essas condies acrescentadas ainda por uma proteo
rgia. Um outro exemplo na Europa medieval de cidade que propiciou boas condies de
permanncia para a comunidade judaica foi Veneza, a cidade-m, um grande reduto de judeus
vindos da Alemanha, a partir de 1300. Eram descendentes dos sobreviventes dos pogroms que
ocorreram em vrias regies da Europa. Veneza, como outros locais da Europa, dimensionou a
comunidade judaica em um local para evitar novas caadas contra esta minoria
(SENNETT,1999). Os guetos, ou as judiarias portuguesas, foram uma das formas encontradas,
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fsica e economicamente falando, para abrigar uma minoria que poderia ser facilmente
aniquilada se vivesse de forma esparsa pela cidade.
A poltica com relao a leprosos, prostitutas e minorias religiosas como os judeus, era
ambgua, ora de isol-los, ora era de os despejar das cidades. Nesse sentido, o verbo despejar
resume a atitude em relao a esta minoria. Ele nos passa a mesma idia de duplicidade que a
palavra italiana ghetto contm. Sua origem advm do verbo gettare, que significa lanar ou
despejar. Sendo assim, despejar, por para fora, e o despejo significa tanto o objeto como o
resultado desta ao. Quando nos deparamos sobre a utilizao de uma determinada coisa
depositamos ela no quarto de despejos, ou seja, o ghetto. (PEREIRA e CRUZ, 2004)
As judiarias portuguesas e os guetos, desta maneira, identificam-se como espao do
judeu, o lugar que foi projetado para a sua sobrevivncia no interior do lcus maior, a cidade. Foi
um espao micro, mas que possuiu implicaes muito grandes no que diz respeito s turbulncias
que podiam ser ocasionadas devido presena desta minoria. Mas este espao de certa maneira
um local imaginrio; imaginrio no sentido em que a comunidade imaginava que a rea onde se
estabeleciam no era aquela que eles perpetuariam e se fixariam, encontrando assim o seu porto
seguro. Esta terra dos sonhos j existia e se chamava Palestina, de onde haviam sido expulsos. O
seu espao era, em todas as cidades portuguesas em que se estabeleciam, delimitado. Fronteiras
eram criadas dentro da prpria cidade para restringir a circulao e o contato entre os habitantes
citadinos e os novos moradores diferentes. Esta era a delimitao que o preconceito institua
como marco inicial para a substancial segregao de uma minoria que incomodava com sua
presena fsica.
Este espao (gueto ou judiaria), tanto em Portugal como em outras regies em que a
comunidade judaica se fixasse, no era compreendido como um destino final, um lugar
circunscrito permanentemente. Era um local transitrio, para os abrigar das perseguies e das
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chacinas; o reduto no qual buscavam uma fixao, onde poderiam resistir contra a intransigncia
e a intolerncia da qual foram vtimas freqentes, que terminavam em carnificinas humanas
denominadas de progrons.
Dentro desta perspectiva de preconceito e restrio do espao que o judeu deveria
ocupar dentro da cidade, o conceito de marginal colocado por Bronislaw Geremek (1989) se
enquadra na discusso aqui desenvolvida a respeito da percepo do judeu no espao urbano. Os
judeus eram aqueles que traziam atrelada a sua imagem esteretipos depreciativos, mas que
tambm possuam junto a sua figura o carter da distino, tanto no vesturio (a partir do IV
Conclio de Latro, em 1215, os judeus so obrigados a usar um crculo costurado nas suas
roupas para os diferenciar do restante da populao, norma adotada tambm em Portugal, com o
rei D. Dinis, e reinstituda em 1390 por D. Joo I), como tambm no seu modo de vida cotidiana
peculiar, atribuda ao judasmo (RUCQUOI, 1995). Eles viviam na estranheza, na averso que
sua presena causava naqueles ditos naturais, ou seja, os cristos, que classificavam a
comunidade judaica com as mais variadas depreciaes e injrias, por no compreenderem o que
era incompreensvel na poca.
Os cristos no conseguiam conviver com o diferente, pois o dio contra esta minoria
impedia qualquer forma de coexistncia pacfica, mesmo que a minoria estivesse isolada em um
determinado ponto da cidade e tivesse o seu trnsito subtrado. Associado a esta extrao do
espao e do tempo da comunidade judaica est o medo, que significativamente o impulsionador
de todas as posturas com conotaes extremamente xenfobas. O medo do contato traz consigo a
idia da impureza. Do outro lado do muro do gueto ou da judiaria esto queles que no podem
ser tocados e no podem transitar em meio aos puros. A separao por si s j remete ao discurso
de que, estes impuros, estranhos e diferentes, ofereciam riscos desde a sade fsica, ao meio
social e, principalmente, as convices religiosas da populao. Diante disto, a marginalizao
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judaica, tanto social como fisicamente, remetia a um imaginrio cristo que perfazia as atitudes
concernentes ao trato que os cristos davam a esta minoria, imaginrio este que era permeado de
esteretipos, preconceitos, dio e medo, todos misturados, mas claramente identificados quando
analisamos alguns casos de perseguies e expulses, que sero discutidos mais adiante.
1.2 O espao arquitetnico
Durante os trs ltimos sculos que os judeus viveram em Portugal antes da sua
expulso, em 1497, houve um aumento significativo da comunidade no final sculo XIV e
tambm nos ltimos anos do sculo XV. Este salto coincide com os momentos de crise e
perseguio que os judeus sofreram na Pennsula Ibrica. (TAVARES,1982)
Imersos no espao dos cristos, os judeus, quando atingiam o nmero superior a 10
fogos (famlias), fundavam a sua prpria comunidade, a qual era chamada de judiaria e
comuna. Entretanto, estes termos no compartilham do mesmo significado. O termo judiaria era
usado para designar vrias formas de ajuntamento judaico, desde uma comuna, um bairro, at um
arruamento delimitado profissionalmente, algo micro. Entretanto, o termo comuna traz,
necessariamente, a idia de algo macro, que aglutinava uma ou vrias judiarias. Mas era tambm
uma juno de todos os rgos religiosos, administrativos e legais que diante da graa rgia,
permitiam que a comunidade judaica tivesse uma identidade prpria dentro da sociedade crist,
mas que logicamente estava submetida lei do Reino.
A comuna tambm se definia atravs da sinagoga, templo religioso da comunidade,
que possua um carter multifuncional, pois era ao mesmo tempo cmara de vereao, tribunal e
escola, ou seja, era o centro da vida social, poltica e religiosa da comunidade. Ela tambm se
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constitua de carniaria (local onde se preparava carnes para a venda) , hospital, gafaria (hospital
de leprosos) , cadeia, banhos, estalagem e cemitrio. Entretanto, todos estes estabelecimentos,
com exceo da sinagoga, s se encontravam nas comunas mais abastadas, como as de Lisboa,
vora e Santarm que, em decorrncia dos nveis populacional e de vida mais elevados possuam
uma mancebia (casa de prostituio). O cemitrio encontrava-se fora das muralhas da judiaria
(TAVARES, 1982). As judiarias mais importantes tambm possuam um midrash (do hebraico
), que se referia a um comentrio sobre uma passagem da Tora, tentando explic-la ou
elabor-la de uma alguma forma, para ser repassada de pai para filho, denominada tambm de
Tor Oral. (BANK e GUTIN, 2004)
A Lisboa do sculo XV possua trs judiarias de destaque: a velha ou grande, a
nova/taracena/moeda e a de Alfama. A judiaria grande ou velha (ver Figura 1) abarcava trs
freguesias: a da Madalena, a de S. Gio ou Julio e a de S. Nicolau. Seus limites ao norte,
estendia-se at a igreja de S. Nicolau; a oriente, da rua da Correaria, igreja da Madalena e rua
da Ourivesaria; ao sul do Poo da Fotea rua de Lava Cabeas e, a ocidente, da rua de S. Julio
at a de S. Nicolau. O bairro de S. Nicolau era o mais povoado de Lisboa e nele se concentrava a
maioria dos profissionais da comunidade. A sinagoga grande era o local da cmara de vereao
dos judeus de Lisboa. Prximo sinagoga grande, localizavam-se vrios estabelecimentos
pblicos: o hospital para homens e seu balnerio, o hospital da comuna, o hospital para pobres,
as confrarias, o Estudo de Palaano1, o Beth midrash, a escola , a livraria, o balnerio pblico, a
carniaria, a estalagem e a cadeia. Os arrruamentos eram delimitados profissionalmente, ou seja,
mercadores, ferreiros, tintureiros, sirgueiros (fabricadores de sedas) e gibiteiros (fabricantes de
roupas) encontravam-se nas ruas que levavam seus nomes, como se v no mapa: rua da Gibitaria,
rua da Sirgaria, rua da Tinturaria (TAVARES, 1982). Portanto, sendo esta a principal judiaria da
1 O Estudo Palaano era um centro de estudos de vrias cincias, onde se estudava astronomia, cartografia,
geografia, medicina, matemtica etc.
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cidade de Lisboa, l se encontravam as instalaes de maior utilizao da comunidade judaica,
constatava-se tambm a instalao de oficinas e tendas utilizadas pelos mesteres. (VENTURA,
2002-2003)
A judiaria nova, fundada no reinado de D. Dinis (1279-1325), v-se sob ameaa de
no mais existir, pois o soberano D. Fernando (1367-1383), que viveu um perodo conturbado
com a comunidade judaica, decidiu aumentar a taracenas reais e com isso mandou derrubar as
casas dos judeus que residiam neste local, medida que no se efetivou. A judiaria de Alfama se
estabeleceu a partir do reinado de D. Pedro I (1357-1367), mas sua maior concentrao
populacional ocorreu no reinado de D. Fernando. (TAVARES, 1982)
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Figura 1: Judiaria Grande de Lisboa
(Fonte: Maria Ferro Tavares.Os judeus em Portugal no sculo XV. Lisboa: Nova Lisboa,1982, p. 48-49)
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Assim como outros bairros judaicos, a judiaria grande tambm deveria fechar sua
porta ao toque das Ave-Marias (18:00 horas). Nesta judiaria, as portas se localizavam da seguinte
maneira: a porta de S. Nicolau ficava prxima ao adro da igreja que levava o mesmo nome; a
porta da judiaria dos tintureiros-sirgueiros encontrava-se na rua dos Tintureiros que dava acesso
Correaria; a porta da Ferraria ficava atrs da Sinagoga Grande e tambm dava acesso a este
arruamento; as portas do Chancudo encontravam-se uma junto s casas de D. Rolim e a outra de
frente para a Correaria, que provavelmente pode ser uma outra nomeao para a porta da
Tinturaria; a porta do Picoto ficava na rua dos Mercadores, sentido S. Julio; havia tambm a
porta do Poo da Fotea e a da rua da Gibitaria. O arruamento mais importante da judiaria grande
era a rua do Picoto ou dos Mercadores. Nesta rua se encontrava uma das portas do bairro judaico
que limitava at onde os judeus poderiam circular sem se misturarem aos cristos. Outro
importante arruamento desta judiaria era o da Gibitaria ou Jubetaria, que se localizava na
freguesia da Madalena, ao sul da rua dos Poos da Fotea. Ela se estendia at a rua dos Ourives da
Prata, onde se localizavam um dos balnerios e o hospital da confraria.
As trs judiarias de Lisboa possuam, provavelmente, uma superfcie total de 1,5
hectares, cerca de 1,4 % da rea total da cidade (OLIVEIRA MARQUES, 1975). No h um
consenso entre os historiadores na aferio exata da extenso total da rea ocupada por essas trs
judiarias, mas o certo que, a ocupao, por essas judiarias, do espao total da cidade de Lisboa
no passava de 2%. (VENTURA, 2002-2003)
A respeito da densidade populacional da comuna de Lisboa, a maior e mais
importante, no se tm notcia. Provavelmente, a populao judaica expandiu-se a partir da
chegada dos seus correligionrios advindos dos reinos peninsulares, principalmente de Castela,
onde as perseguies se intensificaram no final do sculo XIV e incio do XV. Santarm assistiu
tambm ao acrscimo da comunidade judaica no final dos quatrocentos. Prximo expulso dos
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judeus, havia em Santarm cerca de 400 casas de judeus, o que nos daria um clculo aproximado
de 1600 indivduos. Em Guarda variava de 200 a 240 indivduos, num total de 4000 habitantes.
Em Estremoz, o bairro judaico tambm no comportava a sua populao, fazendo com que os
judeus alugassem casas na cristandade com a permisso de D. Afonso V. Em 1442, as comunas
de Aveiro e Palmela atingem um patamar de membros que os obriga segregao. Vrios outros
bairros judaicos cresceram em nmero de membros: Guimares, Barcelos, Braga, Tomar, Torres
Vedras, Olivena, Serpa, Mouro, Moura (TAVARES,1982). Sobre a densidade populacional
total de judeus no Reino portugus, os dados so variados. Ento, adotamos as informaes da
professora Tavares (1982), devido ao estudo pormenorizado que ela fez para chegar a esses
dados, os quais verificam uma soma de aproximadamente 30 000 judeus, antes da chegada dos
judeus espanhis em 1492. Isso nos remete a 3% da populao de Portugal que era estimada em
cerca de um milho de habitantes.
No sculo XIV, Lisboa assistiu a um crescimento do nmero de judiarias (ver Figura
2), o que ocorreu, principalmente, por ser o lugar do reino onde se encontravam a corte e o porto
principal. Nada mais propcio para os judeus, que estavam estreitamente ligados ao comrcio,
atravs do porto de Lisboa, um dos principais pontos da rota do comrcio na Idade Mdia e
tambm por estar perto do centro das finanas do Reino, ou seja, a corte. Ao longo do sculo
XIV e XV, a comunidade j se encontrava em todo o Reino, instalando-se em cidades que
estavam no auge. At o ano da expulso, 1497, Portugal presenciou em seu territrio a incidncia
de mais de 100 comunas (TAVARES,1983). Na verdade, o nmero era de aproximadamente
139, que estavam distribudas pelo Reino nessa disposio: 11 na regio de Entre-Douro-e-
Minho; 14 na regio de Trs-os-Montes; 26 em Beira; 25 na Estremadura; 56 no Alentejo; e 7 no
Algarve. (SERRO e OLIVEIRA MARQUES, 1987)
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Figura 2: Comunas judaicas em Portugal
(Fonte: Maria Ferro Tavares. Os judeus em Portugal no sculo XV. Lisboa: Nova Lisboa, 1982, p. 75)
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A permanncia desta comunidade em Portugal iniciou do litoral para o interior. No
litoral destacavam-se as cidades de Lisboa, Santarm, vora, e Guarda. O adentrar para o interior
foi feito por via terrestre, no sentido oriente-ocidente, povoando as regies que faziam fronteira
com o reino de Castela.
No princpio de sua instalao em Portugal (por volta do sculo VI), a comunidade
judaica habitava as ruas onde havia grande concorrncia comercial. As primeiras leis que se tem
notcia sobre a obrigatoriedade de viver apartada nas judiarias advm do governo de D. Pedro I
(1357-1367) que, alm de impedir o contato fsico, visava tambm no-agregao cultural.
O bairro judaico era circundado por muros do Concelho. Entretanto, a grande maioria
das judiarias crescia paralelamente s vilas, integrando-se dentro das muralhas medievais. Na
maior parte destas vilas o bairro judaico delimitava-se por um simples arruamento. Mas a
expanso das judiarias no ocorria pela incorporao de reas rurais ou que se localizassem no
subrbio da cidade, ou at que tivessem pouca incidncia populacional. A agregao de novos
espaos, por parte da judiaria, se referia ao ncleo central e nobre das cidades, reas que,
necessariamente, estavam ocupadas por comerciantes e artesos cristos. Com isso, esse era mais
fator que acrescentava as discrdias e o arrefecimento da relao entre judeus e cristos.
(PEREIRA e CRUZ, 2004)
Todos estes ajuntamentos, ou seja, as judiarias, obedeciam ao toque de recolher e, ao
som da badaladas das Ave-Marias (18:00 horas), todas as portas das judiarias e dos bairros
judaicos eram fechadas, impedindo, desta forma, o convvio entre judeus e cristos. Esta
imposio foi outorgada primeiramente ao longo do reinado de D. Duarte (1433-1438), que
colocava como punio para o descumprimento da mesma a priso e a perda dos bens. No
reinado de D. Joo I, as comunas do reino foram at o rei pedir que fossem amenizadas as penas
para esta infrao, pedido que foi aceito o pedido sendo criada uma nova lei.
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A nova lei, outorgada na cidade de Lisboa em 12 de fevereiro de 1450, determinava
que todo judeu maior de quinze anos encontrado fora da comuna aps o toque do sino de orao,
numa primeira incidncia teria de pagar cinco mil libras e, se por acaso no tivesse a quantia,
ficaria preso at que fosse paga a quantia determinada. Se houvesse uma segunda vez, ele teria
de pagar dez mil libras e, se no pudesse, ficaria preso at que quitasse a dvida. Caso ocorresse
uma terceira vez, ele seria aoitado publicamente e depois solto. A legislao era muito rgida
quanto ao deslocamento dos judeus fora das comunas no perodo noturno. Se ocorresse de
anoitecer e as portas das comunas estivessem fechadas e o judeu no conseguisse adentrar a
tempo, ele deveria dormir em uma pousada com outros homens, o que nos permite compreender
que pouco ou quase no era permitida a ausncia da comuna de uma judia. E, outrossim, se
algum judeu tivesse de sair noite por um motivo de grande necessidade, ele teria de ir
acompanhado de um cristo. Caso fosse um arrecadador de sisas2 do rei, deveria arrecadar o
imposto noite e tambm acompanhado de um cristo. Ao final da ordenao, D. Joo I justifica
a reformulao da lei:
Nos foi mostrada hu Carta dElRey Dom Eduarte meu Senhor, e Padre de louvada memoria, per que hordenou, e mandou que em todolos casos suso ditos, e cada huu delles, em que o Judeo devesse seendo achado despois do sino dOoraam fora da sua Judaria, vindo de fora da Villa, de seer relevado da pena contheuda em a dita Ley, em todos deve seer relevado saindo-se de sua Judaria antemenha de madrugada pera algu parte fora da Villa, ou do Lugar, honde for morador; porque parece seer razom igual daquelle, que de madrugada sair da Judaria pera fora da Villa por alguma necessidade evidente, aa daquelle, que vindo de fora da Villa per semelhante necessidade chega de noite despois do sino dOoraom aa Villa, e Judaria, honde he morador. (Orden. Afons., Liv. II, Tit. 80, 13)
Mas os judeus, diante deste decreto, transgrediam-no mesmo sabendo das penalidades
imputadas sobre aqueles que descumprissem. A comunidade crist denunciou s cortes de
Santarm de 1468 que os judeus continuavam habitando bairros cristos. Assim, o rei D.Afonso
2 Imposto indireto que era cobrado das mercadorias que se encontravam em contrato de compra, venda e troca.
(SERRO, 1976)
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V determinou que, se num prazo de seis meses os judeus no residissem nas judiarias, eles
sofreriam uma sano pecuniria de cinco mil ris.
Houve um problema que causou certo transtorno e inquietao no poder rgio a
respeito de alguns judeus que viviam fora das judiarias, junto com os cristos, demonstrando que
havia interaes entre cristos e judeus , o que coloca em baixa a idia de que a segregao nas
judiarias levaria a uma separao total do convvio entre cristos e judeus. Na lei de 30 de
setembro de 1438, sancionada na cidade de Braga por D. Joo I (1385-1433), fica claro este
descumprimento, pois os judeus estavam transgredindo leis antigas e com alguns agravantes.
Sabede, que ns avemos per informaom, que em alguus Lugares dos nossos Regnos os Judeos, que hi h, nom vivem todos apartadamente em sua Judarias, segundo he ordenado per ns, e pelos Reyx, que ante ns forom; e que algus delles vivem misticamente antre os Crisptas, e andam de noite aas deforas fora das ditas Judarias: do que a ns nom praz, nem ho avemos por bem feito, se assy he (Orden. Affons., liv. II, tit. 76, 1).
A resposta de D. Joo I a estes atos foi incisiva quanto queles que descumpriam a
ordenao rgia. Todos os judeus deveriam residir nas judiarias e no poderiam sair noite e, se
houvesse descumprimento dessa ordem, o infrator seria punido com priso e recolhimento de
seus bens. Mas h tambm nessa lei uma clusula que diz que se os judeus se encontrassem em
uma cidade do reino sem judiaria ou que no suportasse o nmero de indivduos que ali tivesse
de se estabelecer, ento eles deviam se recolocados em um local mais conveniente. Esta clusula
sustenta o crescimento das judiarias e da comunidade judaica portuguesa, ou seja, houve um
inchao das mesmas, de modo que houve a necessidade de novas acomodaes que respeitassem
sempre a idia de apartamento e segregao.
Diante disso, a criao da judiaria ou do gueto somente uma forma de proteo de
uma minoria que sofre perseguio e necessita de um refgio. Como afirmou Geremek (1989, p.
234) a marginalizao social tambm acompanha a marginalizao espacial, afasta aquilo que
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no se quer prximo, mas tambm, como no caso portugus, no se expulsa, pois so necessrios
e importantes para o bom andamento do reino. Deste modo, mantinha-se ao alcance dos olhos
para que se pudesse vigiar; entretanto, longe do convvio constante para se evitar o toque. Neste
caso, judeus, leprosos e bruxas foram classificados da mesma forma, como impuros, sendo eram
separados para no contaminarem aqueles que assim os qualificavam. Mas mesmo com essas
medidas os contatos ainda se processavam.
1.3 Regimento interno nas judiarias
As comunidades judaicas, tanto em Portugal como em muitas outras naes por onde
se estabeleceram, tinham sempre um crivo da tributao incidindo sobre seus ganhos. O fato de
viverem separados do restante da populao, como forma de distino fsica, tambm possua a
sua diferenciao nos deveres para com o governo. Entretanto, a comunidade possua direitos
que a colocava no mesmo patamar de algumas altas classes privilegiadas do pas. A justia, a
administrao e as questes de segurana dentro das comunas e judiarias portuguesas eram de
cunho exclusivo da autoridade judaica local, ou seja, havia uma certa independncia na forma de
administrar esses locais onde os judeus viviam. (KAYSERLING, 1971)
A comunidade judaica tambm possua liberdade tanto civil como criminal para julgar
os casos que ocorressem dentro do seu espao. As comunas possuam uma administrao que
no seguia um padro, ou seja, seus juzes e procuradores eram da sua prpria comunidade. Suas
leis e direitos distinguiam-se dos cdigos judicirios de Portugal, no entanto, esses micro-
cdigos eram subordinados ao poder rgio, pois tambm necessitavam do aval do monarca para
serem sancionados.
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ElRey Dom Joh meu Avoo de gloriosa memoria em seu tempo deu Cartas seelladas do seu seello pendente aos Judeos destes Regnos, em que mandou, que por quanto elles avia , e ham dantigamente jurdiom, e seus direitos apartados, que perteencem aos Julgados dos Arrabys3, e bem assy a jurdiom, e direitos, que perteencem aas Almotaarias, e Almotacees Judeos, os quaes direitos, e usos das Almotaarias, e seus Arrabys desvairom em muitas cousas dos nossos direitos, e usos; e porque sempre foi sua vontade, e dos Reyx, que antelle forom, os ditos Judeos averem jurdiom antre sy, assy crime como civil, e que em cada huma Comuna aja Arraby, e Almotac, per que sejam julgados segundo seus direitos, e usos em todolos feitos, casos, e contendas, que antre sy aja. (Orden. Affons., liv. II, tit. 71, 1)
D. Joo I sancionou esta lei, que foi seguida por todos os outros monarcas posteriores,
dando uma liberdade jurdica s comunas portuguesas que nenhum outro rei havia dada em
Portugal. Mas o documento deixa claro que esta era uma inteno dos reis que antecederam D.
Joo I, evidenciando a proteo que alguns monarcas portugueses, ao longo da permanncia da
comunidade no territrio portugus, ofereciam aos judeus. A liberdade de jurisprudncia das
Almotaarias4 judaicas significava a materializao de uma poltica de proteo e direitos dados
comunidade judaica portuguesa ao longo do seu estabelecimento na Pennsula Ibrica. Um
sinal de reconhecimento, por parte da monarquia, da significncia desses judeus para a poltica
rgia, pois para a populao portuguesa uma medida dessa magnitude era uma afronta.
Entretanto, a liberdade de jurisdio civil e criminal dada s comunas tinha seus
limites demarcados, pois logo adiante, na mesma lei, D. Joo I estabelece que:
Pero queremos, e mandamos que em todo caso dos sobreditos, e quaeesquer outros que acontecer possa per qualquer guisa, e maneira que seja, fique sempre a appellaom reservada pera ns, e pera os nossos Officiaes, que per nos som deputados pera conhecerem das appellaooes, e bem assy conheam dos agravos; aos quaes mandamos que tomem delles conhecimento, assy como das appellaoes, e aggravos, que saae dante os Juizes Chrisptas,e os dezembarguem pelos direitos do Judeos, segundo
3 O termo Rabi (do hebraico meu mestre) era usado no sculo I d.C. para indicar as autoridades membros do
Sanhedrin (Assemblia dos 71, que funcionava como Suprema Corte e como Legislatura). At o fim do Patriarcado (sc. V) o ttulo foi empregado somente na Palestina, sendo os doutos de Babilnia chamados Rav (Mestre). (KAYSERLING, 1971) 4 Correspondente ao oficio do almotac, do rabe almuhtasib, mestre de aferio, oficial da Cmara Municipal que
fiscalizava os pesos e medidas, taxava os preos dos gneros, tratava da distribuio dos mantimentos em ocasio de escassez.
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acharem que dantigamente similhantes feitos se acustuamrom de desembargar. (Orden. Afons., Liv. II, Tit. 71, 2)
Portanto, o estabelecimento da apelao para a corte portuguesa era uma forma de
impor limites, demarcar at onde a jurisdio judaica podia se impor, no permitindo que essa
concesso se tornasse uma medida possibilitasse que os judeus se impusessem diante o Estado
portugus. Essa lei por outro lado, de uma certa maneira resgatava as normas antigas
estabelecidas pelo legislador Moises, as quais permeavam a vida de um judeu em todos os
aspectos, tanto morais, como religiosos ou seculares. Os judeus viviam sob um cdigo prprio do
seu grupo, mas quando dizia respeito relao com o mundo exterior eram obrigados a se
submeterem a outras leis, pois estavam em um territrio que no lhes pertencia. Viver em uma
regio que os judeus j consideravam sua ptria, devido a residirem ali h doze sculos, e onde
podiam legislar o seu prprio cdigo de conduta, representava o lugar ideal para viverem numa
relativa sensao de paz.
Portugal, no que se refere s condies internas dos judeus, foi um pas de exceo.
Em nenhum outro Estado europeu se ordenou essa comunidade to prematuramente. J com D.
Afonso III se encontrava o sistema do rabinato regulamentado. (KAYSERLING, 1971)
Devido queixa feita a D. Joo I pelas comunidades judaicas de Lisboa e de outras
localidades contra o Arraby-moor D. Jud Cohen por excesso de autoridade, o rei, no ano de
1402, submeteu este cargo a uma reviso da constituio dos seus poderes, com base no que j
havia sido estabelecido pelos monarcas anteriores e, assim, delimitou sob a forma de lei, as
atividades oficiais do Arraby moor, dos Rabinos regionais e de outros funcionrios religiosos.
O Arraby Moor trazer huu nosso sello feito das nossas armas, assy como o som os outros nossos seellos das Correiooes, e as leteras delle digam: Seello do* Arraby (a) * Moor de Portugal, e esse seello seja dado a huu Chrisptaa, ou Judeo, que com o Arraby Moor ande, de ao fama, e condiom, e o traga, e seja Chanceller; e com esse seello sejam asseelladas todalas Cartas, sentenas, e desembargos, que pelo dito Arraby
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Moor, ou per Ouvidor, que com elle andar, forem assinadas; e levem de Chancellaria pela tausaom da nossa Chancellaria. (Orden. Affons., liv. II, Tit. 81, 5)
Estas foram algumas das atribuies dadas pelo rei ao Arraby moor. Ele constitua o
funcionrio da Coroa de mais prestgio entre os judeus no pas. O cargo trazia consigo um grau
de influncia muito significativo, pois era concedido queles que tivessem prestado um bom
servio, que ocupavam posies de relevncia na corte e aos que se destacassem em habilidades
pessoais como erudio e lisura de carter. O Arraby-mor levava consigo, sempre que viajava
pelo pas, um ouvidor para tratar das questes judiciais, julgando em seu lugar todas as causas
que no lhe cabiam. Acompanhavam-nos um Chanceler, que podia ser tanto judeu como cristo,
e tinha como funo a superviso da chancelaria. Um escrivo tambm compunha a comitiva do
Arraby-moor, sendo responsvel por protocolar e despachar todos os casos jurdicos, podendo
tambm ser judeu ou cristo. Completando o quadro de assessores, havia um porteiro, que
exercia as penhoras, executava sentenas penais etc. Para cada povoao havia tambm um
Arraby local que, como todos os demais funcionrios da comuna, era eleito pela comunidade. Os
bens e negcios das comunas eram administrados por procuradores e tesoureiros. O
policiamento era feito por vereadores e almotacs. (KAIYSERLING, 1971)
1.4 Elementos da identidade judaica portuguesa
Ao falar de judeus percebemos que tanto no indivduo como na comunidade a
identidade judaica muito marcada. Esta diferenciao est presente no s no modo como se
vestem, mas tambm em suas convices religiosas, que refletem em todos os mbitos da vida de
um judeu. Geralmente, as comunidades religiosas possuem uma identidade de fcil
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reconhecimento. Deste modo, se na sociedade atual, que se encontra num alto grau de
miscigenao cultural e globalizao, onde as identidades se multiplicam e se confundem,
conseguimos diferenciar um judeu de um no-judeu, na sociedade portuguesa do sculo XV esta
diferenciao era ainda mais ntida. Isto se deve ao fato de os judeus no residirem misturados
com a grande maioria da populao, segregados nas famosas comunas e judiarias.
Ao haver esta separao a identificao/diferenciao se torna mais fcil, pois esta
comunidade na sua vivncia dentro de outra comunidade, adquire caractersticas prprias que a
diferem da maioria crist. Numa nfase maior, seria a chamada dialtica da mudana-
permanncia, na qual a identidade possui elementos tanto de mutao como de inrcia (HALL,
1997). Essas caractersticas podem ser naturais, como usar um barrete (chapu) pontiagudo e
barba grande, ou impostas, como no caso da rouelle, um crculo costurado sobre as vestimentas.
Estas marcas diferenciatrias eram utilizadas como forma de discriminao e intensificavam o
preconceito contra os judeus. Entretanto, no s isto a identidade marcada por meio de
smbolos (WOODWARD, 2000, p.9). A Rouelle, assim como o barrete e a barba grande, so os
smbolos que representam a identidade judaica, mesmo que de forma vexatria. Eles evidenciam
para o outro quem so e neste apontamento se faz a diferenciao entre o judeu e o no-judeu. O
que ele utiliza, de forma voluntria ou forosa, associado a sua identidade, simbolizando sua
imagem identitria para aqueles que o observam.
Como a identidade para Woodward (2000) e tambm para Cristian Meier (1989) no
s uma construo simblica, mas social, a comunidade judaica portuguesa do sculo XV lutava
por um espao ou por reconhecimento enquanto parte integrante da sociedade portuguesa. Como
um grupo em busca de legitimao identitria, os judeus no recorreram ao uso da fora ou a
qualquer outro meio que imputasse um sentimento de dio ou raiva por parte da populao de
Portugal. Mas o desprezo cristo pelo judeu estava alm de questes locais: estava na prtica
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usuraria, na prosperidade nos negcios ou na presena em cargos de confiana junto Coroa.
Este desprezo antecede o judeu, ou seja, sua fama chega antes mesmo de sua presena fsica. A
acusao de deicdio acompanhavam-lhe ao longo dos sculos. mais uma marca simblica,
porm negativa, pois esta representao no ser nada favorvel para uma comunidade nmade
que procura estabelecer-se em uma regio predominantemente crist. Usque faz meno dessa
acusao: O Seor vee nossa ynocencia taes levantamentos e quanto ynjustamente somos
perseguidos pois suas culpas sam a nos outros reputadas, sobre participarmos da fortuna que
elles padecem. (C.T.I., Dialogo Terceiro, p. 4, 2)
Isso mostra que os judeus se mostravam incomodados com esta acusao e, como se
consideravam inocentes diante de tal acusao e injustiados por um passado do qual no so os
agentes mas pagam como se fossem. Entretanto, diante de tantas injustias, havia um consolo
maior que. Usque relembrava que o profeta Yesayahu (Isaas) disse que:
Nossas fadigas elle [Ysrael] as sofre, e nossas dores [tam bem] elle as soporta e nos o reputamos que por sua maldade foi chagado do seor, e quebrtado [de seus propios amigos] e a verdade he que elle foi chagado por encobrir nossos erros e atrebulado por nossos dilitos, castigamolo por nossa paz e com sua chaga nos curamos nossa ynfamia. (C.T. I., Dialogo Terceiro, p. 40, 2)
O texto bblico referncia tirada do livro do profeta Isaas, captulo 53, versculos 4 e
5, com uma pequena variao entre os dois textos devido traduo e tambm porque nos
originais hebraicos no esto divididos em captulos e versculos. A colocao deste texto
bblico, assim como muitos outros, tem a funo de estabelecer a justia e prometer recompensas
no plano divino.
A transportao dos erros e dos pecados para a figura divina remete a uma no
culpabilidade por parte dos judeus, ou seja, isenta-os da responsabilidade pela morte do Cristo;
eles so absolvidos por Deus e isto ameniza o papel ruim a eles atribudo ao longo do medievo,
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logrando, assim, do papel de injustiados. Entretanto, o texto em que Usque se baseia no
mnimo conflituoso, pois, segundo a exegese bblica crist esta passagem simboliza uma das
vrias profecias relativas vida e ao sofrimento de Cristo na terra. Os cristos vem esta
passagem como uma transposio dos pecados da humanidade para a figura de Cristo. Portanto,
h uma contradio na interpretao teolgica do texto bblico por parte de Usque, que se
apropriou do texto bblico na tentativa de desvincular um discurso negativista de uma acusao
de um crime dos seus antepassados, que figurou por sculos como identificao primria de um
judeu Portanto, a colocao deste texto teve a funo de consolar os judeus portugueses assim
como todo o povo judeu -, mas utilizando-se de uma profecia sobre quem eles eram acusados de
matar, ou seja, o que torna a apropriao indevida.
A identidade judaica durante vrios sculos foi identificada por uma de suas variantes,
ou seja, pela falta de um territrio fixo, o nomadismo mesmo. O imaginrio medieval, neste
sentido, deu uma grande contribuio para que esta imagem circulasse por todas as regies onde
quer que o judeu estivesse e, como a imagem possui uma fora prpria e dotada de signos e
smbolos que a auxiliam, no era preciso de muito esforo para que fecundasse e permanecesse
no imaginrio medieval uma imagem negativa da comunidade judaica (BALANDIER, 1999).
Umas das imagens pejorativas que se tinham dos judeus era a de que praticavam heresias atravs
do judasmo. Com isso, o fato de no possurem territrio fixo agravava mais ainda o repertrio
de acusaes, pois sua fama chegava s regies antes de sua presena fsica, por haver um
imaginrio social permeado de estigmas, os quais impediam as suas entrada ou at sua fixao
pacfica. Numa poca em que esse imaginrio social estava abundantemente disponvel em
forma de medo e preconceito, o judeu no tinha alternativa a no ser enfrentar uma nova regio
com total instabilidade, do que permanecer em locais em que as perseguies geralmente
terminavam em massacres.
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Afirmar que o medo era parte integrante do imaginrio social medieval, e
especificamente do imaginrio portugus, no seria um exagero. O medo e a raiva, transmutada
em preconceito, caminham juntas. A linha que separa estes dois sentimentos to contraditrios
tnues, e a presena de um elemento desestabilizador, que no caso o judeu, provoca uma
mistura ou o afloramento de um dos dois. O medo o causador do afastamento desta minoria.
Afasta-se aquilo que no se quer por perto, o que para alguns a expulso definitiva, e mesmo
esta atitude extrema no acarretada somente pelo preconceito ou pela raiva. Insere-se numa
atitude assim, um certo pavor pelo que essa comunidade poderia causar s integridades fsica,
mental e social da populao.
Se a histria pesou para uma das partes, sem dvida foi para a comunidade judaica,
que carregava consigo esteretipos e estigmas advindos de um passado que lhe pertencia, mas do
qual no foi responsvel pelas aes constituidoras. E nisto as minorias tm sido notoriamente
suscetveis estereotipagem. Os esteretipos so um meio de dar sentido a um universo
desordenado, impondo ordem, definindo o eu, personalizando os temores (RICHARDS, 1993,
p.29). Junto imagem deturpada dos judeus estava todo tipo de acusaes. Com isto, o passado,
para o judeu portugus, tem dois lados: um positivo, que o de fator legitimador da identidade
judaica, sendo ela historicamente constituda, e outro negativo, no qual esse passado tambm o
responsvel por imputar sobre esta identidade a morte do Cristo. O cristo no deixa que este
estigma seja esquecido e o judeu no faz por onde para que se amenize, pois no aceita o
salvador dos cristos e o considera como um simples profeta.
So muitos os esplios depreciativos impregnados na identidade judaica portuguesa.
Agrega-se a isto o fato de judeus castelhanos terem migrado para Portugal, a partir de 1450,
levando consigo, coincidentemente, a Peste Negra. Com isso, estigmas como os de bode
expiatrio da humanidade e portadores do mal acompanham o processo de construo desta
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identidade e, ao mesmo tempo, vista negativamente pelos outros, ou seja, o contraponto aqui
, primeiramente, religioso. Trata-se de uma sociedade medieval orientada por valores religiosos,
sobretudo cristos. Portanto, a ambigidade se estabelece entre cristos - a maioria - e judeus - a
minoria. O imaginrio social cristo medieval foi o responsvel pela padronizao, em certa
medida, desse processo de construo. As diferenas eram externalizadas e colocadas como
depreciativas, maculadas e contaminadoras.
O que era atribudo negativamente identidade judaica portuguesa, era, em grande
parte, fruto de um preconceito e intolerncia quanto no aceitao de ritos religiosos diferentes
dos cristos portugueses. aqui que se coloca um ponto de toque importante na anlise
identitria, o preconceito. Apesar de ser um termo moderno, sua prtica antiga. O fato de no
poder compreender o outro por ele ser diferente no s preconceito, tambm incapacidade de
conviver em uma sociedade plural. Uma sociedade como a de Portugal no sculo XV,
homognea, conhecia bem em seu convvio a identidade portuguesa e crist. Logicamente,
dentro desta categorizao existiam outras facetas identitrias menores, o que no vem ao caso,
pois estamos analisando aqui as identidades macro, sem nos atermos s especificidades dos
indivduos.
Apesar de os judeus serem conhecidos na Pennsula Ibrica h sculos, sua
sustentabilidade se dava no reino portugus por meio de um amparo por parte da legislao de
alguns reinados (TAVARES, 1982). A intolerncia era alimentada por variadas acusaes, as
quais j citamos, mas tinham quase sempre o vis religioso para orient-las. Neste ambiente de
intransigncias, tentou-se por sculos uma convivncia pacfica entre judeus e cristos.
Entretanto, o preconceito, concentrado por uma forte dose de violncia, no permitia a
convivncia em um mesmo lugar daquele grupo, e a maneira que se encontrou para mostrar isso
foi o meio mais irracional que o ser humano tem para expressar o seu dio: matar. Os famosos
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pogrons eram verdadeiras chacinas que evidenciavam com quem os portugueses no queriam
conviver. Para os judeus esses atos de violncia e de perseguies tinham razes em foras do
mal extraterrenas.
Os cristos portugueses, ao demonstrarem atitudes de violncia, mostravam que seu
territrio era demarcado e no permitiam a mistura dentro da sua comunidade e do seu territrio.
No entanto, os judeus, ao aceitarem a segregao espacial, as judiarias, estavam procurando
preservar a si mesmos e suas tradies, tanto nos ritos religiosos, na maneira como se vestir,
como tambm no estatuto prprio de conduta dentro das judiarias. Uma identidade que se
preservava dentro de seus sistemas simblicos prprios, enquanto componente de um mosaico
universal de identidades.
Foi a manuteno de seus sistemas simblicos e as condies sociais de segregao
que fizeram com que a comunidade judaica de Portugal conseguisse manter viva a identidade de
seu povo. Adaptando-se as condies especficas do solo portugus, os judeus no deixaram que
a fragmentao de seu povo fosse uma escusa para que ele abrisse mo, integral ou parcialmente,
de sua identidade e se inserisse no modo de vida cristo portugus. A comunidade judaica
necessitava de um territrio e no de um novo modo de vida, que de uma outra norma de
orientao moral. Eles j possuam o judasmo, que era o eixo orientador de suas vidas e
disseminador de suas crenas, que diziam que um dia os judeus formariam uma nao
governada por um grande lder. A crena nas profecias do Talmude era a esperana que os
sustentava diante de todas as adversidades da vida prtica. Os judeus portugueses assumiam a
sua identidade de diferentes dos demais ao residirem nas judiarias, e as acusaes vexatrias
fertilizaram quando havia essa recluso, como, por exemplo, a acusao de tramarem o
assassinato de cristos.
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Os judeus identificavam-se uns com os outros, tanto por terem conscincia de que
eram diferentes daqueles que estavam fora de seu grupo, no caso os cristos portugueses, como
pela similaridade entre si, que dava a coeso necessria para que a comunidade se identificasse
dentro e fora de si. A identidade judaica era reconhecida tanto que a diferenciao, por parte dos
cristos portugueses, ficou s no plano terico, mas existiu tambm na prtica. O que se passava
em Portugal quando ocorria alguma onda de massacre a judeus baseava-se no conflito de
identidades.
Um outro fator preponderante na identidade judaica, era a crena nas profecias
bblicas do Velho Testamento condizentes ao seu povo. O consolo para o judeu estava no porvir.
A esperana era uma das marcas da sua identidade.
Assi que trebulao sobre trebulao vera. Espada temestes vos outros espada trarei sobre vos diz o Seor, e nhu escapara com fugida, ynda que trabalhe por escapar. Crueis foram estas sentenas O Seor, e sobre ysso. Com razoes treedoras me acarearom (ao degoleo). E nam contecerom (meus filhos) os pensamentos (do ymigo) nem entenderom seu concelho pera se confirmar esta tua profecia ysayahu. Perecera a sabiduria de seus sabios e o entendimento de seus prudentes se escondera entam. (C.T.I., Dialogo Terceiro, p. 25, 3)
A vingana remete tambm a sua esperana; vingana sobre todos aqueles que
cometeram injustias contra o povo judeu, mesmo que a injustia tenha sido cometida h
milnios, e a crena de que a profecia de glria e vingana se cumprir muito convicta na
vivncia do judeu praticante do judasmo.
Numa situao como esta, o indivduo poderia assumir uma outra posio por estar,
logicamente, passando por uma situao de risco. Ao se ver defronte morte, ele poderia assumir
uma nova posio que colidiria com sua identidade. Em determinados momentos, seja de perigo,
seja de favorecimento prprio, um indivduo pode assumir diferentes identidades, entrando em
conflito, mas isso mais evidente na sociedade moderna. Entretanto, no eximimos da
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comunidade judaica portuguesa que acontea tal fato. Destaca-se, neste sentido, as pregaes
veementes de mestre Paulo de Braga, em 1481. Este frade pregador era um judeu convertido ao
cristianismo, portanto, um cristo-novo. Nenhuma surpresa quanto a isto se no fosse o fato de
ele fazer discursos inflamados contra os judeus. Seus pronunciamentos em perseguio aos
antigos comungadores de f eram to violentos que receberam duras crticas por parte de D.
Afonso V. Mesmo que tivessem sido verificado vrios casos de converses de judeus ao
cristianismo em Portugal, o que parece indito neste fato o comportamento deste ex-judeu. Na
carta rgia de 26 de Janeiro de 1481, enviada ao deo e cabido da S de Braga, verifica-se a
queixa feita pela comuna judaica desta cidade contra o eclesistico:
Nos Elrey vos enviamos muito saudar. Fazemosuos saber que a comuna dos judeus dessa cidade de Braga nos enviaram dizer como a requerimento de mestre Paulo, pregador, eram constrangidos que fossem a suas pregaes. E os faziam lla hir per fora. E que o vigairio mandara so pena descumunham aos chisptos que nom conversasem com os judeos que as dictas pregaes nom fossem nem lhes desem foguo nem logar a outras muytas opresoees que lhes per esta causa eram feictas. (A.D.B., Cartas Rgias, tomo I, n 22. Apud: BAQUERO MORENO, 1990, p. 147)
.
Este fato deu-se justamente num perodo de bastante conturbao no reino portugus,
quando a entrada de judeus expulsos de Castela, cuja entrada foi autorizada pela Coroa
portuguesa mediante um pagamento per capita. Com a atitude de mestre Paulo e a rejeio com
que o povo portugus recebeu os judeus castelhanos, estabeleceu-se um forte sentimento de
estranhamento na mentalidade dos originais do reino, que se amparava em vrias acusaes,
chegando ao ponto de os judeus serem acusados de desestabilizar a poltica econmica de
Portugal (BAQUERO MORENO, 1990). A populao pressionava a corte para tomar atitudes
firmes quanto a esta situao, denotando um certo receio em relao capacidade do poder
central de resolver tais situaes. Havia tambm a acusao de que os judeus castelhanos traziam
para o reino portugus maas eresias, o que era um acrscimo s cobranas da populao crist
de uma postura mais rgida e intransigente.
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Outro aspecto importante e bastante significativo do carter identitrio judaico a sua
no aceitao do Cristo, smbolo do Cristianismo. Pelo fato de os judeus at os dias atuais
esperarem seu salvador, que lhes libertar de todas as injustias e ser o seu governante por
excelncia, denota-se aqui vestgios de uma imutabilidade que se apia no fator religioso, ou
seja, uma crena que influencia diretamente o aspecto poltico desta nao. Mencionar este
aspecto imutvel da identidade judaica, talvez possa parecer que estamos empunhando a
bandeira do essencialismo. A identidade tem como premissa sua constante construo, ou seja,
ela sofre no decorrer do seu processo de arquitetao uma mutabilidade que denota a sua no
estatizao no tempo e no espao. No processo identitrio, h tambm fixaes, e no somente
fluidez e volubilidade. O grupo ou o indivduo necessita de marcas identitrias que permaneam
em toda a sucesso de mudanas, do contrrio no se poder determinar quem quem,
formando-se uma verdadeira metamorfose transeunte, na qual no h um porto seguro. (MEIER,
1989)
Apesar de as identidades serem bastante definidas e delineadas no perodo medieval,
mais do que nos tempos atuais, isso no nos autoriza a limit-las, como muitos pensam, a este
espao-tempo. Talvez por no estarem em contato com vrios grupos e culturas, numa dimenso
mundial, como o proporcionou a globalizao atual, mui