Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan...

9

Click here to load reader

Transcript of Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan...

Page 1: Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.coopermundi.com.br/downloads/autodabarca.pdf · 1 Auto da Barca do Inferno Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.

1

Auto da Barca do Inferno Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.

Personagens Diabo Anjo Ajudante do diabo 1 Ajudante do diabo 2 Ajudante do Anjo 1 Ajudante do Anjo 2

Fidalgo Criado Sapateiro Frade Moça Brízida Vaz

Cortesâ 1 Cortesã 2 Corregedor 1º Cavaleiro 2º Cavaleiro

Cena 1 – O Fidalgo e seu criado

DIABO Para a barca, para a barca! Vamos logo que temos gentil maré!

Quem não queira vir de frente, que venha mesmo de ré! ANJO Que venha o fidalgo! CRIADO Está bem, está bem, está tudo muito bem!

Basta que se arrume logo este banco por cá Que gente muito importante aí virá!

DIABO Vamos logo que já é tempo de partir! Mas o que fazes com tantos arranjos tu?

Vamos logo cantar louvores a belzebu! CRIADO Calma, seu capeta, que é longa a arrumação.

Prontinho, meu senhor. Já podeis chegar para a sessão! DIABO Ora, mas o que vejo... Vejam só quem se aproxima!

O poderoso Dom Henrique. Nem consigo pensar numa rima... FIDALGO Esta barca para onde vai assim tão apercebida? DIABO Vai para a ilha perdida. Venha logo, seu fidalgo, não enrola... CRIADO Para onde mesmo disse que vai a barca, minha senhora? DIABO Senhor, a vosso serviço. FIDALGO Parece-me isso um cortiço... DIABO É porque a vedes aí de fora. FIDALGO Mas para onde vai esta barca, com todo esse fedor? DIABO Para o inferno, meu senhor. FIDALGO Opa, esse lugar é bem sem-sabor. DIABO O quê? Mesmo depois de morto continuas a zombar? FIDALGO Perdão. Mas achareis vossa senhoria passageiros para esta embarcação? DIABO Acabo de encontrar um e o vejo bem aqui à minha frente. FIDALGO Ah, eu não, que tenho a alma protegida. DIABO E em que esperas vossa senhoria ter guarida? FIDALGO Deixei na outra vida gente por mim a rezar. DIABO Deixaste alguém a rezar por ti?! Essa é boa!

Tu viveste somente para teu prazer, cuidando sempre de nos outros pisar Com que agora achais que há por lá alguém por ti a rezar?

Embarca logo e de qualquer maneira. Se queres, traze tua cadeira, vai. Que assim sentado também foi para o inferno o vosso pai.

FIDALGO O quê? Meu pai? No inferno? Não posso acreditar! DIABO Vamos logo, embarcai!

Fizeste por merecer o inferno, assim como o fizeste por merecer o vosso pai. Agora chega de choramingos e de uma vez vos contentai. Já que morto está, precisa de uma barca para o rio cruzar.

FIDALGO Mas não há aqui outro navio? DIABO Não, senhor. Não para vós. Já está tudo organizado.

Assim que tu morreste na Terra, já me mandaram por aqui ficar preparado. FIDALGO Pois não vou! Hei de encontrar outro navio. Criado! CRIADO Sim, patrão! FIDALGO Nesta barca não vou! Trate de me arranjar outra embarcação!

Page 2: Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.coopermundi.com.br/downloads/autodabarca.pdf · 1 Auto da Barca do Inferno Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.

2

E não demore, sua lesma! Ai, esse criados, que penação! CRIADO Ali, meu senhor. Aquela barca parece que vai para outro lugar! FIDALGO Pois vá até lá e diga que quero embarcar! CRIADO Com sua licença, senhor barqueiro. ANJO Que quereis? FIDALGO Que a meu senhor digais, pois partiu tão sem aviso,

Se a barca do Paraíso é esta em que navegais. ANJO É esta mesma. Que desejais? FIDALGO Desejo que me deixeis embarcar.

Sou fidalgo de solar, será bom para vós que me recolhais. ANJO Não se embarca tirania nesta barca divinal. FIDALGO Não entendo porque me tratas tão mal.

Deveria ser uma honraria, deixar entrar em vossa barca a minha senhoria. ANJO Não irás vós entrar de maneira nenhuma neste navio.

Embarque ali naquele outro que vai mais vazio. Vossa cadeira entrará e vosso rabo caberá E também toda vossa senhoria.

Ireis lá mais espaçoso, vós e vossa senhoria, Porque vós, de generoso, não tens nada.

Em vida, desprezastes os pequenos, achava-os menos Tratava com tirania o pobre povo queixoso. E mesmo agora, continua soberbo e orgulhoso!

DIABO (Canta) Vem, neném, neném, vem, neném... FIDALGO Ora, quem diria que haveria de fato o inferno

E que este se reservava para mim! Oh, que tristeza! Enquanto vivi, vivi sempre na fantasia! Julgava ser adorado, confiava em meu estado e não vi que me perdia. Que remédio! Vamos lá! Vamos a essa barca de tristura...

DIABO Embarque logo, vossa doçura, que cá dentro nos entenderemos... Pegue aí um par de remos e veremos como remais, Chegando ao nosso cais, todos nós,

Eu e meus companheiros, muito bem vos serviremos. CRIADO Mas e eu, senhor barqueiro desta barca tão bela e singular Também terei que nesta barca embarcar? Sou um pobre criado, havereis de me perdoar. ANJO Mas nem pensar! Em vida não passaste de um hipócrita. Sempre a mentir e a bajular, fazendo de tudo para seu mestre agradar. Por sua subserviência e falsidade, digo-te e repito Que o inferno sim é que é o teu lugar! DIABO (canta) Vem, neném, neném, vem, neném... FIDALGO Vamos logo, seu traidor. Pensavas que poderia abandonar seu senhor? Vais comigo para o inferno e continuará a me servir por toda eternidade! E por tua traição, saiba que daqui por diante nao terei convosco a menor caridade! CRIADO Que remédio, não é? Quisera eu em outra vida poder nascer mulher! Cena 2 – O sapateiro ANJO O sapateiro! SAPATEIRO Ô da barca! DIABO Quem vem aí? Oh, um santo sapateiro honrado!

Mas por que vem tão carregado? SAPATEIRO Mandaram-me vir assim...

Mas para onde é esta viagem? DIABO Para o lago dos danados. SAPATEIRO Cruz credo, excomungado!

E os que morrem confessados e perdoados Onde têm sua embarcagem?

DIABO Não abuses de minha paciência, seu sapateiro deslavado! Esta é a tua barca! Tu não passas de um danado!

SAPATEIRO Mas como pode ser isso? Antes de morrer, fui confessado, perdoado e comungado!

DIABO Não mintas! Tu morreste excomungado!

Page 3: Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.coopermundi.com.br/downloads/autodabarca.pdf · 1 Auto da Barca do Inferno Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.

3

Não confessaste coisa alguma, pois esperavas viver! E antes disso, roubaste durante trinta anos o povo que te veio ver! Embarca já cá nesta barca! Há muito que te espero!

SAPATEIRO Pois digo-te que não quero! DIABO Hás de embarcar sem discussão! SAPATEIRO Para o inferno é que não vou!

E as missas que assisti, de nada me valerão? DIABO Ouvir missa, e continuar a roubar, é caminhar para o inferno! SAPATEIRO E as ofertas que dei à igreja e aos finados, para onde me levarão? DIABO E os dinheiros desviados, que dizes desses roubos então?

Vamos logo, para o lago dos danados, e sem discussão! SAPATEIRO Ah, não vou! Hei de encontrar outra saída. Vou falar com aquele ali que a sua barca é muito mais colorida.

Hei você, que nesta santa caravela está, poderia consigo me levar? ANJO E quer entrar aqui com toda essa sapataria? SAPATEIRO E não seria para vós uma grande honraria?

Ter a bordo um competente sapateiro? ANJO No céu não estamos precisando de sapato

Nem de nenhum conversador embrulhão! Vá naquela barca ali, que aquela leva todo tipo de ladrão!

SAPATEIRO Mas ocuparei muito pouco espaço E quanto aos sapatos, não serão nenhum incômodo, eu garanto. Cabem em qualquer canto.

ANJO Está escrito no grande livro do céu e você saberia disso muito bem Se às missas que ia, além de ir, tivesse prestado atenção No paraíso não pode entrar, nem esta barca pode usar Para o grande rio da morte cruzar Aquele que em vida se comportou como ladrão E que, além de tudo, mesmo depois da morte, Não consegue se livrar das bugigangas que andou Pela vida afora, de maneira mesquinha e ambiciosa, a carregar!

DIABO (canta) Vem, neném, neném, vem, neném... SAPATEIRO Vamos lá, barqueiros do demônio! Pelo que esperam vossas senhorias? Levem-me logo ao fogo de uma vez que já estou cansado. Pelo que diz este barqueiro, o céu deve ser uma grande agonia. Nem comércio, nem riqueza, nem sapataria... Não estou para livrar-me dos meus tesouros. Não faço essas espécies de pactos. Quem sabe se no inferno não consigo comercializar meus sapatos! Cena 3 – O padre e a moça ANJO O padre e a moça! FRADE (Canta) Tai-rai-rai-ra-rã; ta-rá, ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rá... DIABO O que é isso? Um padre? FRADE Deo gratis avec moritorum quae que sei et noi tute amiqui de barci... DIABO Amém, seu padre, amém para todos nós e seja bem-vindo..

Quero ver como se sairá este padre fanfarrão quando souber para onde está indo... FADRE Pois diga-nos vós para onde iremos, oh, amigo da barca, que sobre este rio está Mas antes respondeis a outra questão: gostas desta canção?

Dá-te vontade de bailar arrastando o pé pelo salão! DIABO Mas que grande falastrão! FADRE E então? Que dizeis? DIABO Antes responda-me vós. Acaso outra destas canções profanas sabereis? FRADE Se sei? Ora, como sei... DIABO Pois então entrai que eu o tangerei

Bailaremos pela noite toda fazendo um grande serão. Vais ver como cá dentro desta é barca é quente. Será um calorão!

Mas antes diga-me: É vossa essa dama que trazeis pela mão? FRADE Pois e não? É minha por inteiro. Pertencem-me sua alma, seu corpo e sua mão! DIABO Pois faz muito bem. É muito formosa, e olhe que disso eu entendo.

Page 4: Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.coopermundi.com.br/downloads/autodabarca.pdf · 1 Auto da Barca do Inferno Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.

4

Mas diga-me: tinha-na por sua também lá em vosso santo convento? FRADE Mas e como não? E bailávamos tanto... DIABO E isso nos outros padres não causava espanto? FADRE Pois se eles lá fazem outro tanto! DIABO Quer dizer que por lá cada padre tem sua moça para companhia? FADRE Mas é claro! E que de outra forma seria? DIABO Oh, mas que coisa mais preciosa...

Mas entrai, padre reverendo! E trazei consigo esta jovem tão buliçosa!

FRADE E para onde vai esta barca tão vistosa? DIABO Para o fogo ardente do inferno adentro. FADRE Para o fogo do inferno? Mas não entendo... DIABO Como não? Vais para o fogo, reverendo!

Vais para aquele fogo que não temeste nenhum pouco enquanto estiveste vivendo! FRADE Pois juro por Deus que não entendo! E este hábito por aqui não está valendo? DIABO Gentil padre mundanal, logo logo Belzebu vos estará comendo! FRADE Corpo de Deus consagrado! Pelo amor de Cristo Jesus encarnado!

Isto é coisa que não posso aceitar! Hei eu então de ser condenado? Mas como assim? Um padre tão cheio de virtudes e tão enamorado!

Nosso Senhor não permitirá que seja eu tão humilhado! DIABO Vamos logo sem mais detença. Já está dada a sentença!

Embarcai que logo partiremos! Podes apanhar um par de remos. FRADE Por Deus que não embarco!

Como pode um padre ir ao inferno apenas por amar uma mulher? Para que serviram então tantos rosários rezados?

DIABO Ora, que padre mais descarado! FRADE Pois saiba que não me entregarei. Pegarei de minha espada e lutarei! DIABO Mas que bela coisa... Um padre com espada em vez de cruz! Vê-se bem que o revendo segue o exemplo de Jesus! Mas se queres, vamos à contenda! FRADE Pois pior será para vós! DIABO Vamos logo antes que eu me arrependa! FRADE Que Deus me ajude nessa hora de provação! DIABO E ainda toma o santo nome de Deus em vão! FADRE Vamos à luta que não o temo! Sou exímio lutador. Não me poderás vencer com esse remo! DIABO Pois veja o que faço com sua espada! (quebra a espada com o remo) FADRE Ora, mas que valente tacada! DIABO E agora o que fará com esta arma quebrada? FADRE Lutarei assim mesmo que isso não me desface! DIABO Hipócrita! Não deverias tu dar a outra face? FADRE Lutarei até a morte, mas nesta barca não entrarei! DIABO E isto era um padre enquanto vivia! Oh, Deus, quanta hipocrisia!

Mas já que insistes, até esse toco de espada lhe tirarei! (desarma o padre) FRADE Pois isso nada significa, que não me entrego!

Daqui saio com a cabeça erguida e a mente fria Sou um grande lutador e não perdi por covardia Não fosse uma luta contra o diabo, certamente que eu venceria! E se tivesse outra espada, quantos aqui eu feriria!

DIABO Mas quanta ira, senhor padre reverendo cheio de história... Em vida não ensinavas paz, amor e perdão? FRADE (pega a moça pela mão) Vamos à outra embarcação! Vamos à barca da Glória!

(Canta) Ta-ra-ra-rai-rã; ta-ri-ri-ri-rã, rai-rai-rã; ta-ri-ri-rã; ta-ri-ri-rã... Oh, celestial criatura, que nesta barca frente a mim se afigura...

ANJO Pode parar com tanta finura, padre mariola... Que sua música, sua dança e essa triste exibição de animalidade No céu não podem entrar, nem por caridade!

FADRE Mas sou um padre. Veja meu hábito. Isso de nada vale? Se pequei, já paguei minha penitência... Rezei, jejuei e passei noites a açoitar-me com insistência. Estou livre de meus pecados e quero entrar nesta barca Eu e minha senhora, dona Florência!

Page 5: Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.coopermundi.com.br/downloads/autodabarca.pdf · 1 Auto da Barca do Inferno Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.

5

ANJO Rezar, jejuar e castigar-se, de nada valem contra a hipocrisia! Se querias outra vida, que a tivesse com honestidade! Tornou-se padre para levar uma boa vida, seu padre-azia!

Mas nunca foste padre de verdade! E o que fizeste dos mandamentos Aqueles que tanto apregoaste ao teu semelhante? Esqueste do quinto mandamento ditado pela satíssima trindade?

FADRE Não roubará! ANJO E o que me diz deste anel de brilhante no dedo de vossa santidade? Se não o roubou, como o explicará? FADRE Não entendo a que referendais... ANJO Esqueceste que Deus tudo vê e que nada a seus olhos escapará? DIABO (Canta) Vem, neném, neném vem, neném, neném, vem... FRADE (Pega a moça pela mão) Vejo que não há modo de argumentar. O melhor é nesta barca infernal entrar.

Vamos Florença, que vós comigo irá! Vamos que lá dentro vós me consolará! Cena 4 – A alcoviteira e suas meninas

ANJO A alcoviteira e suas meninas! DIABO Pois que venham as moçoilas.

Serei seu pierrot e elas serão minhas comcubinas! Mas antes me farei de díficil. Fingirei não estar nem aí. Certos tipos de mulher embarcam mais fácil se a gente não insistir.

BRÍZIDA Ô da barca! Há alguém? Estarei eu atrasada? DIABO Quem chama com essa voz tão enjoada? BRÍZIDA É Brízida Vaz. Venho, e trago minhas meninas. Precisamos este rio atravessar! DIABO Pois podem entrar. Vamos! Pelo que estão a esperar? BRÍZIDA Não posso ir a lugar algum, não me faça essa brincadeira... DIABO E por quê, senhora alcoviteira? BRÍZIDA Não posso ir sem que antes chegue uma nossa companheira. DIABO Ora, e quem será que a companheira de vocês? BRÍZIDA Joana de Valdês. Sem ela não podemos fazer a subida! DIABO Pois ela não virá, não morreu ainda.

Deixem pra lá essa Joana de Valês. Entrai vós, e remarês. CORTESÃ 1 E para onde vai esta embarcação? DIABO Para o lago da danação! CORTESÃ 2 Cruz credo! E quem quererá fazer tal viagem? DIABO Querer ninguém quer. Mas não há opção. Para vós, esta é a única embarcagem! CORTESÃ 1 Pois eu não quero, nem por camaradagem. CORTESÃ 2 Nem eu vou aí subir. BRÍZIDA Nenhuma de nós entrará aí. DIABO Ora, mas quanto recato! BRÍZIDA Nâo pode ser esta a nossa barca de fato. E além disso, não vamos a lugar algum sem Joana. Mas preguiçosa como é, ainda deve estar na cama! DIABO E quem é esta rapariga? CORTESÃ 1 Uma escorrida... CORTESÃ 2 Com cara de lombriga. DIABO Ah, não me diga! BRÍZIDA É nossa criada. É ela quem deverá trazer meus muitos sapatos! DIABO Ah é? E além de sapatos, trará ela também muitos artefatos? CORTESÃ 1 Oh, muitos. Todos da mãezinha... CORTESÃ 2 É, mas sempre nos sobra alguma coisinha. BRÍZIDA Mas não levaremos nada além daquilo que nos convém levar. DIABO E o que é tanto que precisam para embarcar? CORTESÃ 1 Ah, a mãezinha tem muitas coisas. CORTESÃ 2 Presentes nunca lhe faltaram. BRÍZIDA Coisas com as quais os homens ao longo da vida me presentearam. Mas presentearam porque quiseram. DIABO E o que foi que tanto lhe deram? BRÍZIDA Coisa pouca. Três armários cheios de roupa.

Page 6: Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.coopermundi.com.br/downloads/autodabarca.pdf · 1 Auto da Barca do Inferno Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.

6

CORTESÃ 1 Muita peruca, muito lenço e muita touca! BRÍZIDA Seis caixas de cílios postiços... CORTESÃ 2 Um grande livro de feitiço... BRÍZIDA Coisa boba, sem importância... CORTESÃ 1 Mas que fizeram a cabeça de muitos homens... BRÍZIDA E os fizeram voltar à minha casa com grande constância! CORTESÃ 2 Joana trará também cinco baús cheios de adornos... BRÍZIDA Jóias para enfeitar-me os contornos Pintura para a cara. Perfumes de fragrância rara Um cofre cheio de moedas de prata Uma prataria que não foi nada barata Vestidos de seda da china. Algumas libras esterlinas. Uma grande cama para descansar o couro, com lençois bordados em ouro. Muitas exarpes para meu colo e braço Meias finas que combinam com os sapatos Um ou outro brilhante que ganhei em troca de encontros que arranjei Uma coisa ou outra que afanei de um velho senhor mais distraído Pedrarias para o vestido Uma liteira para me levar à rua E três lentes azuis com aro de bronze para apreciar a lua! CORTESÃ 1 Brízida Vaz fez muitos negócios de amores... CORTESÃ 2 Não se estranha que tenha tantos valores! CORTESÃ 1 Foram tantas moças que vendeu... CORTESÃ 2 Inclusive eu! CORTESÃ 1 Arranjou encontros... CORTESÃ 2 Tramou romances e traições... CORTESÃ 1 Aproximou amantes... CORTESÃ 2 E sempre colocou o lucro acima das emoções! BRÍZIDA Porisso possuo tantos bens e digo-te que não posso partir sem eles! Teria graça deixar para traz tudo que recebi de meus fregueses? Isso é que não pode ser, pois não posso sair perdendo e assim é que é! DIABO Ora, ponha logo aqui o pé! BRÍZIDA Ui, ui, ui! Eu não! Eu vou é para o Paraíso! DIABO E quem foi que te disse isso? BRÍZIDA Eu sou uma mártir do mundo! Isso é o que eu sou bem no fundo! Quantos açoites tenho levado! Quantos tormentos tenho suportado!

É verdade que tive meus ganhos, mas isso não foi mais do que o justo Suportei velhotes mal cheirosos querendo que lhes arranjasse um encontro Suportei o escárnio de muita mulher beata. Me atiraram pedra, pau e lata. Nunca me deixaram entrar em igreja para rezar, nem de brincadeira. Permaneci sempre solteira e sempre me condenaram por ser uma alcoviteira! Se agora tivesse eu que ir ao fogo infernal, teria então que para lá ir todo o mundo! Não entro nesta barca, não vou para o fogo imundo! Sofrimento igual ao meu ninguém sofreu igual! Quer saber? Vou para aquela barca ali, que é muito mais Real! (Vai para a barca do Céu) Ô da barca! Há alguém? Estarei eu atrasada?

ANJO Mas que voz mais enjoada! BRÍZIDA Sou eu, Brízida Vaz! ANJO Não sei o que é que aqui a traz... BRÍZIDA Sou aquela que veio de giolhos! Mas cuidado que trago na cabeça piolhos!

Eu sou aquela preciosa. Aquela que cuidava da casa das moças. Aquela que criava as meninas para os cônegos, juízes e diplomatas Deixai-nos embarcar em vossa barca, por caridade Se aquela barca vai para o inferno, esta só pode ir para o céu E quem merecerá o céu mais do que eu que não tenho maldade? Fui em vida uma mártir, uma perseguida, uma seguidora de Jesus Cuidei de tantas meninas, encaminhei-lhes na vida. Essa foi a minha cruz!

Eu sou boa! Estas meninas aqui podem confirmar o que digo O que eu lhes ensinei, ninguém mais ensina. Realmente, em vida, eu fiz muitas coisas divinas!

ANJO Ora, quanta dissimulação! Vá se danar no inferno! Eis ali a tua embarcação! E deixe de tanto palavrório que isso não convence ninguém!

Não vês que está importunando. Vá, vá, vá andando...

Page 7: Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.coopermundi.com.br/downloads/autodabarca.pdf · 1 Auto da Barca do Inferno Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.

7

Queime no inferno e que os anjos digam amém! BRÍZIDA Mas não percebe que eu estou contando porque deves me levar.

Eu preciso entrar na tua barca. O paraíso é que é o meu lugar! ANJO Pois digo-te que pare de importunar! Você aqui não pode entrar! BRÍZIDA Não percebes que deves me levar? Onde eu estiver haverá alegria por toda a eternidade! ANJO Você não passa de um barril de falsidade! Não é mártir, nem nunca ajudou nenhuma pessoa! Tranformou meninas em cortesãs, vendeu suas virgindades! Não passas de uma tubaroa! No céu não precisamos de alcoviteiras nem de cafetinas! Vá para o inferno e leve consigo suas meninas! CORTESÃS Mas nós também haveremos de arder no fogo eterno? CORTESÃ 1 Mas não cafetinamos jamais. CORTESÃ 2 Fomos usadas por ela apenas e nada mais! BRÍZIDA O quê? Bando de duas cobras corais! ANJO Também vocês viveram da maneira mais ordinária Aceitando os designios dessa perdulária! E acostumaram-se aos enfeites que recebiam dos velhos safados Quantos lares por vossa culpa foram arruinados? Fazendo intriga, querendo sempre mais penduricalhos! Viveram na indignidade e agora vêm pedir por caridade! Vão-se todas para a danação que o inferno é o vosso destino

E aquela ali a vossa embarcação! DIABO (Canta) Vem, neném, neném vem, neném, neném, vem... BRÍZIDA Pois se o céu é assim tão regulado que não nos querem deixar entrar Deve ser como as igrejas que nunca pudemos frequentar! Vamos, meninas. Vamos logo para a danação! Quem sabe seja mais divertido E já que faz tanto calor, poderemos nem usar vestidos Lá trajaremos apenas calção! (Mostram os calções para o Anjo e vão para a barca do inferno) DIABO Venham, minhas senhoras. Aqui vós sois bem recebidas.

Já que garantem ter vivido uma santa vida lá fora Verão como há de ser agora!

Cena 5 – O Corregedor ANJO O Corregedor! CORREGEDOR Ô da barca! Há alguém ou terei que atravessar este rio a nado? DIABO Que quereis quem vem assim tão empapelado? CORREGEDOR Está aqui o senhor juiz? DIABO Oh, pobre infeliz! Já não está mais na embarcação como se vê

O juiz veio mais cedo que vossa mercê e no fogo do inferno já está a arder. Mas e vós, porque vens tão apressado? Posso saber por que carregas tanto papel amassado?

CORREGEDOR São diplomas e procurações que foram outorgados com louvor Sou corregedor, poderoso, influente e doutor! A lei está do meu lado Embarco neste navio, mas aviso que devo ser bem tratato Esses papéis provam o que digo. Exigo muito respeito comigo! DIABO Ora, pois então entrai, dileto amigo e senhor da lei.

Subi à barca sem mais escarcéu! Já já veremos o que tens escrito aí nesse vosso papel!

CORREGEDOR E para onde vai este batel? DIABO Para o inferno partiremos já já! Lá sim é que veremos para quê tanto papel valerá! CORREGEDOR Mas como? Ora, que horror!

Para a Terra de todos os demos há de ir um corregedor? Pois digo-te que não. Sou um homem da lei e nada temo!

DIABO Vais entrando e apanha logo um remo! CORREGEDOR Non est de regulae juris, não!

Page 8: Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.coopermundi.com.br/downloads/autodabarca.pdf · 1 Auto da Barca do Inferno Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.

8

DIABO Tá, tá, tá, tá! Dê cá a mão! Com a vida de trapaças que, apoiado pela lei, levaste Digo-te que não mereces outra embarção Nasceste para o inferno! Toma logo um remo! Vamos logo para a danação!

CORREGEDOR Oh! Nunca vi um homem da lei ser recebido com tanto desrrespeito! O senhor é um homem de muito peito! Tenho meus papéis e hei de encontrar quem respeite minha posição

Vou é para aquela outra embarcação! (Vai até a barca do céu) Ô da barca! Há alguém aí ou terei de atravessar este rio a nado?

ANJO Outro que não se enxerga já chega para me pertubar! Já não estou a suportar esse fardo! Pois digo-te que vá outra pessoa amolar! CORREGEDOR Oh! Tenha clemência e leve-me ao Paraíso em Terra tão sonhado! ANJO E acreditas mesmo o Paraíso merecer? Está mesmo certo que não mereces no inferno derreter? CORREGEDOR Mas e meu cargo, posição e pertencsr não hão de pra nada valer? ANJO Ora, tu foste e ainda és um salafrário muito descarado! Pois vá-te retro, arrenegado! Achas mesmo que papéis, títulos e posição Um lugar especial depois da morte te garantirão? CORREGEDOR E não? Sou um homem da lei!

Não posso ser tratado como um vagabundo ou um ladrão! Sempre trabalhei em favor da justiça Para que tudo estivesse dentro da ordem e da premissa! Fiz sempre com que os saláfrios pagassem por sua contravenção!

ANJO Mentiroso safado! Tu sim é que és um salafrário e um ipróbrio! Sempre usaste a lei em benefício próprio! Sempre encobrindo nos ricos os desmandos, crimes e maldades! E condenando nos pobres qualquer simples vadiagem!

Sempre na tentativa de tirar vantagem! Sempre recebendo propina e suborno! Sempre de olho nos benefícios que poderia obter em seu entorno! Sempre tirando proveito da lei e da premissa para praticar todo tipo de injustiça! E agora pensas que com papéis poderá entrar par o céu? Fique sabendo que a justiça divina é justa e divinal! Serve para todos! Seja corregedor, juiz ou bacharel! Tu vai é ficar ao léu! Vais para o inferno com lei, títulos, procuração e todo tipo de papel!

DIABO (Canta) Vem, neném, neném vem, neném, neném, vem... CORREGEDOR Pois se assim é, vou mesmo para o inferno e vou de bom grado Que não vim aqui para ser humilhado! Entro nessa na barca infernal

Mas já vou avisando que sou magistrado. Exijo respeito com minha senhoria E não abro mão de por Vossa Excelência ser tratado!

DIABO Pois então venha que aqui serás tratado como mereces! Primeiro pegue de um remo, que nem de remar seras poupado

E depois, quando ao destino chegarmos, aí então é que serás bem castigado!

Cena 6 – Os cavaleiros de Cristo ANJO Os cavaleiros de Cristo! DIABO Hei, hei, hei, cavaleiros... Mas olhe que coisa igual eu nunca vi

Vão passando e não perguntam onde é que devem ir? 1º CAVALEIRO E vós, Satanás, não pode presumir onde vamos?

Olhe bem com quem falas, pois sabemos muito bem onde estamos! 2º CAVALEIRO Quem pensa que és para assim nos falar?

Você sequer nos conhece e já vem querendo nos levar? DIABO Entrem já aqui! Que coisa é essa? Eu não posso entender isto! Omessa! 1º CAVALEIRO Mas que conversa é essa? Nâo sou um teu comparsa! 2º CAVALEIRO Quem morre por Jesus Cristo não entra na tua barca! ANJO Oh, cavaleiros de Deus, a vós estou esperando,

que morrestes pelejando por Cristo, Senhor dos Céus! Sois livres de todo mal, mártires da Santa Igreja,

Page 9: Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.coopermundi.com.br/downloads/autodabarca.pdf · 1 Auto da Barca do Inferno Original de Gil Vicente. Adaptação de Ivan Lovison.

9

que quem morre em tal peleja, merece paz eternal. Anjo e Cavaleiros entram na barca do céu e partem. Cena 6 – A barca do inferno DIABO Muito bem, macacada! Segurem-se que a viagem é longa Mas nem por isso deixará de ser animada! É hora de partir e agora é que a diversão começa! Mas vamos devagar, não tenham pressa! Vamos com calma que a danação é longa Não precisam se apressar, nem se deixem tomar pela ansiedade Vamos lá, rumo ao inferno. E de lá, para toda a eternidade! Partem as barcas.