Orgulho sem Preconceito

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Orgulho sem Preconceito Existem lugares que só passam a existir quando precisamos deles. Hoje, percebi a existência de mais um desses- o sebo em frente à minha casa. A fachada é de uma lan house, mas se observar com cuidado, logo verá uma porta lateral sem placa e sem anúncio, apenas um toldinho desbotado azul com três palavras quase que ilegíveis pela ação do tempo: COMPRO VENDO TROCO. A princípio eu não queria vender, nem comprar e nem trocar nada, mas fiquei curiosa em ter um sebo em frente à minha casa sem nunca ter notado, então entrei. Logo que subi o degrau que dá acesso à pequena sala, fui atingida por aquele forte cheiro de poeira- cheiro de passado. Mesmo não vendo ninguém ali falei “boa tarde” para me certificar se estava ou não sozinha, de imediato um senhor de cabelos brancos e óculos amarelados saiu por trás de uma enorme prateleira, tirou o cigarro da boca e me respondeu “boa noite moça, a tarde já acabou”- de fato, já estava escuro. Ignorando a poeira, as traças e a fumaça do cigarro, olhei os livros, os filmes e os discos, mas foram as revistas que me chamaram atenção. Perguntei àquele velhinho o preço delas e disse que levaria algumas, porém na minha carteira não havia o suficiente, precisaria buscar o resto da quantia em casa- óbvio, não havia máquinas de cartão ali. Ele parou de fumar por um instante, me olhou e perguntou meu nome, disse que se chamava Daniel e disse também que eu não parecia ser daqui, que eu não era de Florianópolis, porque caminho como gaúcha. Concordei, dizendo a ele que sou do Rio Grande do Sul; ele assentiu com a cabeça e murmurou “Tá na cara...”, logo prosseguiu “Também sou de lá, mas moro aqui há muito tempo, parei de contar quando fez 42 anos que saí de Porto Alegre. Isso não deve ser nem o dobro da tua idade. Pode ir lá guria, as revistas são tuas”. Fui buscar o resto do dinheiro com aquelas frases do velhinho excêntrico ressoando em meus ouvidos- “Tu não pareces ser daqui”, “Tu caminhas como gaúcha”- Afinal, o que jeito de andar tem a ver com o lugar de origem? Voltando ao sebo, encontrei Sr. Daniel fumando novamente e uma sacola em cima do balcão com as minhas revistas, paguei- lhe, conversei mais um pouco sobre os livros que ele estava manuseando e me despedi. Eu estava quase fechando a porta, quando o velhinho falou com o fôlego que o tabaco

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Crônica realizada no primeiro semestre de 2012

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Orgulho sem Preconceito

Existem lugares que só passam a existir quando precisamos deles. Hoje, percebi a

existência de mais um desses- o sebo em frente à minha casa. A fachada é de uma lan

house, mas se observar com cuidado, logo verá uma porta lateral sem placa e sem

anúncio, apenas um toldinho desbotado azul com três palavras quase que ilegíveis pela

ação do tempo: COMPRO VENDO TROCO.

A princípio eu não queria vender, nem comprar e nem trocar nada, mas fiquei curiosa em

ter um sebo em frente à minha casa sem nunca ter notado, então entrei. Logo que subi o

degrau que dá acesso à pequena sala, fui atingida por aquele forte cheiro de poeira-

cheiro de passado. Mesmo não vendo ninguém ali falei “boa tarde” para me certificar se

estava ou não sozinha, de imediato um senhor de cabelos brancos e óculos amarelados

saiu por trás de uma enorme prateleira, tirou o cigarro da boca e me respondeu “boa noite

moça, a tarde já acabou”- de fato, já estava escuro.

Ignorando a poeira, as traças e a fumaça do cigarro, olhei os livros, os filmes e os discos,

mas foram as revistas que me chamaram atenção. Perguntei àquele velhinho o preço

delas e disse que levaria algumas, porém na minha carteira não havia o suficiente,

precisaria buscar o resto da quantia em casa- óbvio, não havia máquinas de cartão ali.

Ele parou de fumar por um instante, me olhou e perguntou meu nome, disse que se

chamava Daniel e disse também que eu não parecia ser daqui, que eu não era de

Florianópolis, porque caminho como gaúcha. Concordei, dizendo a ele que sou do Rio

Grande do Sul; ele assentiu com a cabeça e murmurou “Tá na cara...”, logo prosseguiu

“Também sou de lá, mas moro aqui há muito tempo, parei de contar quando fez 42 anos

que saí de Porto Alegre. Isso não deve ser nem o dobro da tua idade. Pode ir lá guria, as

revistas são tuas”.

Fui buscar o resto do dinheiro com aquelas frases do velhinho excêntrico ressoando em

meus ouvidos- “Tu não pareces ser daqui”, “Tu caminhas como gaúcha”- Afinal, o que

jeito de andar tem a ver com o lugar de origem? Voltando ao sebo, encontrei Sr. Daniel

fumando novamente e uma sacola em cima do balcão com as minhas revistas, paguei-

lhe, conversei mais um pouco sobre os livros que ele estava manuseando e me despedi.

Eu estava quase fechando a porta, quando o velhinho falou com o fôlego que o tabaco

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ainda não lhe roubou “Eu sabia que tu irias voltar pegar as revistas. Em terra de mané,

gaúcho é rei”.

Pâmela Carbonari