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www.visbrasil.org.br A saúde pública e o registro de medicamentos no Brasil Luiz Felipe Moreira Lima O proprietário da primeira indústria farmacêutica do Brasil foi o carioca Luís Felipe Freire de Aguiar. Iniciou seu curso de farmácia em 1869 na Faculdade Nacional de Medicina no Rio de Janeiro, onde logo manifestou decidida vocação e se formou em 1871. Serviu durante o curso no Hospital da Marinha como auxiliar de laboratório, passando depois a ocupar o lugar de segundo farmacêutico. Deixou o posto em 1874, para ter a sua farmácia no antigo Largo de Santa Rita. Associou-se a Farmácia Episcopal, a mais antiga das farmácias do Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar em prol da farmácia brasileira. Em 1877 tornou-se proprietário da Farmácia Episcopal. Devido a vontade de se dedicar exclusivamente a manipulação de alguns preparados especiais de sua composição, que começavam a ganhar confiança, Freire de Aguiar, vendeu a Farmácia Episcopal para montar um laboratório para produzir remédios e perfumaria. O grande inimigo do aproveitamento das plantas medicinais brasileiras, eram os remédios importados e o preconceito dos governantes e da população quanto a sua qualidade e a eficiência. Como ainda hoje, "o que é importado é melhor". Logo no início, a indústria de Freire de Aguiar, teve de sustentar uma disputa judicial com uma fábrica de produtos medicinais, estrangeira, pois manipulava um produto de fórmula conhecida, e com o nome comercial de "Água Inglesa". No Brasil a distribuição deste remédio era feito pela poderosa "Sociedade União dos Fabricantes Franceses". A Água Inglesa ou da Inglaterra, era um vinho de quina, muito usada como tônico e antiespasmódico. Até 1888 este produto no Brasil era considerada um segredo da família de André Lopes Castro, português, porém sua fórmula já fora escrita na Farmacopéia Tubalense, editada em 1760. Freire de Aguiar estudou vários vegetais da nossa flora, e conseguiu elaborar uma fórmula mais honesta e cientificamente perfeita e obteve a aprovação da sua Água Inglesa modificada. Para que o farmacêutico brasileiro conseguisse comercializar o seu produto precisa de uma autorização da Inspetoria de Higiene, responsável pela qualidade dos medicamentos comercializados no país. Em 20 de outubro de 1888 a Inspetoria Geral de Higiene, expediu uma circular aos seus inspetores de higiene provinciais e aos droguistas declarando: “Que a Água Inglesa julgada por esta inspetoria como a mais adequada a índole dos formulários brasileiros, é a do farmacêutico Freire de Aguiar." Foi o que bastou para que a distribuidora francesa reagisse. A Sociedade União de Fabricantes Franceses, julgou-se prejudicada em seus interesses no Brasil, e entrou com processo judicial no foro de Ouro Preto contra Freire de Aguiar. O farmacêutico brasileiro, sem nenhum auxílio, teve que arcar com todas as despesas dos processos. Na Farmacopéia Brasileira de Rodopho Albino,1926,na página 979 a Água Inglesa tem a sua formulação registrada. Porém é melhor explicada através de um anúncio do Laboratório Silva Araújo publicado em 1936 na Revista da Associação Brasileira de Farmácia: "A Água Inglesa é fórmula excelente e clássica que todos os fabricantes de produtos farmacêuticos se vêem na obrigação de preparar, apresentando-a com pequenas variantes e peculiaridades, embora contendo os mesmos componentes primordiais: a quinina, o álcool, plantas de propriedades tônicas e anti-febris. “A Água Inglesa é um aperiente, febrífugo e tônico bem indicado nas doenças febris arrastadas, nas anemias e nas convalescenças de doenças infecciosas e febris.” Hoje o produto de marca Água Inglesa é de fabricação do Laboratório Catarinense e indicado pelo laboratório para a lactação. Pelos dados transcritos podemos assegurar que este é um medicamento fitoterápico tradicional no país. Mesmo em se considerando as possíveis variações na formulação original. Depois de vencer todas as batalhas pela sua "Água Inglesa modificada", Freire de Aguiar voltou ao Rio de Janeiro e fundou um outro laboratório na rua General Câmara, mais tarde mudou seu estabelecimento para a rua Conde de Bomfim. Neste novo estabelecimento cedeu ao insistente convite do seu colega e amigo farmacêutico Paulo Barreto e organizou, em 1890 a "Companhia Química Industrial da Flora Brasileira", da qual ficou apenas com o cargo de técnico. Em pouco tempo, dois anos, Freire de Aguiar viu o seu bem montado estabelecimento pedir falência. Nesta época sua indústria já tinha cem produtos, sendo muitos da flora nacional e outros de matéria prima estrangeira. Numa série de artigos publicados em jornais no Rio de Janeiro, moveu honesta campanha contra produtos falsificados, nacionais e

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A saúde pública e o registro de medicamentos no Brasil Luiz Felipe Moreira Lima

O proprietário da primeira indústria farmacêutica do Brasil foi o carioca Luís Felipe Freire de Aguiar. Iniciou seu curso de farmácia em 1869 na Faculdade Nacional de Medicina no Rio de Janeiro, onde logo manifestou decidida vocação e se formou em 1871. Serviu durante o curso no Hospital da Marinha como auxiliar de laboratório, passando depois a ocupar o lugar de segundo farmacêutico. Deixou o posto em 1874, para ter a sua farmácia no antigo Largo de Santa Rita. Associou-se a Farmácia Episcopal, a mais antiga das farmácias do Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar em prol da farmácia brasileira. Em 1877 tornou-se proprietário da Farmácia Episcopal. Devido a vontade de se dedicar exclusivamente a manipulação de alguns preparados especiais de sua composição, que começavam a ganhar confiança, Freire de Aguiar, vendeu a Farmácia Episcopal para montar um laboratório para produzir remédios e perfumaria. O grande inimigo do aproveitamento das plantas medicinais brasileiras, eram os remédios importados e o preconceito dos governantes e da população quanto a sua qualidade e a eficiência. Como ainda hoje, "o que é importado é melhor". Logo no início, a indústria de Freire de Aguiar, teve de sustentar uma disputa judicial com uma fábrica de produtos medicinais, estrangeira, pois manipulava um produto de fórmula conhecida, e com o nome comercial de "Água Inglesa". No Brasil a distribuição deste remédio era feito pela poderosa "Sociedade União dos Fabricantes Franceses". A Água Inglesa ou da Inglaterra, era um vinho de quina, muito usada como tônico e antiespasmódico. Até 1888 este produto no Brasil era considerada um segredo da família de André Lopes Castro, português, porém sua fórmula já fora escrita na Farmacopéia Tubalense, editada em 1760. Freire de Aguiar estudou vários vegetais da nossa flora, e conseguiu elaborar uma fórmula mais honesta e cientificamente perfeita e obteve a aprovação da sua Água Inglesa modificada. Para que o farmacêutico brasileiro conseguisse comercializar o seu produto precisa de uma autorização da Inspetoria de Higiene, responsável pela qualidade dos medicamentos comercializados no país. Em 20 de outubro de 1888 a Inspetoria Geral de Higiene, expediu uma circular aos seus inspetores de higiene provinciais e aos droguistas declarando: “Que a Água Inglesa julgada por esta inspetoria como a mais

adequada a índole dos formulários brasileiros, é a do farmacêutico Freire de Aguiar." Foi o que bastou para que a distribuidora francesa reagisse. A Sociedade União de Fabricantes Franceses, julgou-se prejudicada em seus interesses no Brasil, e entrou com processo judicial no foro de Ouro Preto contra Freire de Aguiar. O farmacêutico brasileiro, sem nenhum auxílio, teve que arcar com todas as despesas dos processos. Na Farmacopéia Brasileira de Rodopho Albino,1926,na página 979 a Água Inglesa tem a sua formulação registrada. Porém é melhor explicada através de um anúncio do Laboratório Silva Araújo publicado em 1936 na Revista da Associação Brasileira de Farmácia: "A Água Inglesa é fórmula excelente e clássica que todos os fabricantes de produtos farmacêuticos se vêem na obrigação de preparar, apresentando-a com pequenas variantes e peculiaridades, embora contendo os mesmos componentes primordiais: a quinina, o álcool, plantas de propriedades tônicas e anti-febris. “A Água Inglesa é um aperiente, febrífugo e tônico bem indicado nas doenças febris arrastadas, nas anemias e nas convalescenças de doenças infecciosas e febris.” Hoje o produto de marca Água Inglesa é de fabricação do Laboratório Catarinense e indicado pelo laboratório para a lactação. Pelos dados transcritos podemos assegurar que este é um medicamento fitoterápico tradicional no país. Mesmo em se considerando as possíveis variações na formulação original. Depois de vencer todas as batalhas pela sua "Água Inglesa modificada", Freire de Aguiar voltou ao Rio de Janeiro e fundou um outro laboratório na rua General Câmara, mais tarde mudou seu estabelecimento para a rua Conde de Bomfim. Neste novo estabelecimento cedeu ao insistente convite do seu colega e amigo farmacêutico Paulo Barreto e organizou, em 1890 a "Companhia Química Industrial da Flora Brasileira", da qual ficou apenas com o cargo de técnico. Em pouco tempo, dois anos, Freire de Aguiar viu o seu bem montado estabelecimento pedir falência. Nesta época sua indústria já tinha cem produtos, sendo muitos da flora nacional e outros de matéria prima estrangeira. Numa série de artigos publicados em jornais no Rio de Janeiro, moveu honesta campanha contra produtos falsificados, nacionais e

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estrangeiros. Tinha por hábito exibir farta documentação provando suas afirmações. Em análises realizadas nos laboratórios oficiais, e pessoalmente, provava a inequidade de vários produtos importados, entre os quais o Elixir Alimentício de Ducro, que não continha nenhuma substância alimentar. Chapoteaut, farmacêutico francês, fabricou um preparado em que deveria entrar a pepiona; pelo exame realizado por Freire de Aguiar, na presença de médicos, farmacêuticos e jornalistas, provou que o elixir, que chegava as prateleiras das nossas farmácias, não possuía nem sombra de carne. Em outra ocasião em sua farmácia, uma senhora pediu um vidro de xarope de Forget. Momentos depois, essa senhora voltou muito aflita, porque sua filha estava envenenada. Examinando o medicamento, verificou que continha alta dose de cloridrato de morfina. Não deixou de comentar o ocorrido com as autoridades da Inspetoria de Higiene e tão pouco voltou a comprar o dito remédio importado. Em 17 de outubro de 1903, com grande alarde social, Freire de Aguiar, inaugurou na rua Senador Euzébio a sua fábrica de produtos extraídos da hulha. Nesta ocasião o Dr Luís Felipe não deixou por menos e realizou a vista dos presentes uma experiência interessante: Em um tubo de vidro, de 15 litros, colocou algumas larvas de mosquitos, derramou algumas gotas do produto de sua fabricação o Phenogeno. Imediatamente as larvas morreram, ficando provado a grande importância do produto na desinfecção de águas estagnadas e depósitos de água, onde se desenvolvem as larvas dos mosquitos, que transmitem doenças como a febre amarela. Os desinfetantes obtidos da destilação de hulha, muito auxiliaram no combate a várias epidemias, principalmente a do Maranhão, em que o Phenogeno, cujo preço era inferior ao fenol, auxiliou a debelar o surto de peste bubônica. Freire de Aguiar inventou e patenteou um aparelho a que denominou de "Simplex", para ser adaptado as caixas de descarga dos vasos sanitários, lançando em cada descarga a dose exata de desinfetante. Também planejou e executou dispositivos para a desinfecção de banheiros públicos e carroças de lixo. Nem com todos estes benefícios sociais viabilizados pelos seus produtos, deixou o Dr Luís Felipe de ter

mais uma questão judicial, e desta vez com o inglês, Ed William Person com relação a marca da Creolina, pois o autor da "Creolina Pearson", entendia que nenhum outro fabricante poderia usar o referido nome que o industrial britânico havia patenteado. Freire de Aguiar teve que provar que o nome "Creolina" era genérico, encontrando-se em diferentes formulários e o supremo tribunal brasileiro, determinou que a Creolina brasileira poderia se chamar "Creolina Freire de Aguiar", ficando proibido aos demais fabricantes nacionais o uso deste. Todos os seus produtos, entre os quais Água Inglesa, Xarope de Rabano iodado, Elixir Alimentício, Magnésia fluida, entre outros, tinham ótimo conceito na classe médica e o elixir de Jurubeba, mereceu do Dr. Domingos Freire, um parecer honroso, pois conseguiu regularizar de modo científico a preparação de Jurubeba que sempre tinha irregularidade no preparo. No governo de Prudente de Morais, sendo ministro da fazenda, Bernardino de Campos, (1897), Freire de Aguiar manifestou-se, pedindo proteção para a indústria farmacêutica nacional, que nesta época não tinha um número significativo de estabelecimentos. A primeira Magnésia fluida fabricada no Brasil foi de autoria de Freire de Aguiar, ao tempo em que a única existente no mercado era a de Dinnefori, francesa. Suas incansáveis campanhas contra produtos estrangeiros, provocou severa fiscalização das autoridades sanitárias, e isso fez com que muitas destas fábricas se instalassem no Brasil. Entre estas a fabricante da Magnésia Fluida de Murray. A indústria farmacêutica de Freire de Aguiar foi uma das primeiras a se interessar em fabricar extratos fluidos, principalmente de plantas nacionais, sendo que usava com êxito comprovado na sua especialidade. No elixir anti-ascítico usava uma planta da flora brasileira que de fato agia especificamente no caso de ascite, tornando desnecessárias as incômodas punções, que não impediam a repetição das crises. Os esforços do Dr Luís Felipe Freire de Aguiar, para que a industria farmacêutica nacional florescesse não foram em vão, já nas primeiras duas décadas deste século a cidade do Rio de Janeiro tinha 512 farmácias, 143 drogarias, 100 laboratórios e depósitos e 47 ervanárias. Texto retirado da página http://planeta.terra.com.br/educacao/inventabrasil/yfarmac.htm

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A Casa Granado, em 12 de março de 1891 peticiona a análise da Água Inglesa Granado ao Inspetor Geral de Hygiene Pública, no Rio de Janeiro. O laudo da análise nº. 453 é expedido em 26 de março do mesmo ano e em 13 de abril é concedida a licença. Por motivos que não aparecem no processo, ainda ativo na ANVISA - a Água Inglesa Granado é fabricada até hoje - é feita nova análise em outubro de 1891 seguido do parecer do farmacêutico Francisco Reboeira cuja conseqüência é o cancelamento da licença nº. 296, em 4 de dezembro de 1891. O principal argumento do Dr. Reboeira era que já existia no mercado um sem número de “Águas inglesas” e, portanto não se justificava mais uma.

Após 42 anos do indeferimento, em 1933, aparece no processo um pedido de revalidação da “Água Inglesa Granado”. O farmacêutico responsável é o mesmo senhor João Bernardo Caxito Granado de 1891.

É evidente que, após o primeiro indeferimento, houve uma reconsideração e o produto foi registrado, embora isto não apareça nos autos. Outra suposição é que a Casa Granado tenha fabricado e vendido o produto sem licença durante décadas.

Nos pareceres pode-se acompanhar uma interessante polêmica entre o Dr. Reboeira e o Sr. Granado quanto à necessidade daquele produto para a terapêutica de então, visto que não havia comprovação científica das propagadas maravilhas curativas daquela ou de qualquer outra “Água Inglesa”. As fórmulas destas “Águas”, “Vinhos Reconstituintes”, ou outros tipos de apresentação, eram muito semelhantes e tinham inspiração nas fórmulas das farmacopéias européias, principalmente a inglesa. Tratava-se de uma solução a base de vinho e alguns extratos vegetais.

No livro (já esgotado) “A propaganda de medicamentos e o mito da saúde” Graal – 1986, de José Gomes Temporão, há inúmeros e bem documentados exemplos de como o assunto medicamentos era tratado de maneira trivial até a primeira metade do século XX. Desde o final da IIª grande guerra, o cenário modificou-se com as descobertas farmacológicas que mudaram radicalmente a medicina e as normas que regiam o comércio de medicamentos.

As atuais grandes corporações industriais farmacêuticas mundiais, que têm presença marcante ainda hoje no Brasil foram fundadas, em seus países de origem, quase na mesma época das primeiras empresas farmacêuticas brasileiras e praticamente da mesma forma, oriundas de pequenas farmácias familiares.

Heinrich Merck funda a E Merck AG 1821 John Smith funda a SmithKline Beecham 1840 Louis Dohme e Alpheus Sharp fundam a Sharp & Dohme 1845 Charles Pfizer funda a Pfizer Co 1849 Ernst Shering transforma a Grune Apothek na Schering AG 1851 Étienne Poulenc funda a Rhône-Poulenc 1858 Edward Squibb funda a Squibb & Sons 1858 Carlos Granado funda a Casa Granado 1870 A indústria química Farbwerke Hoeschst funda Hoescht farmacêutica 1870 Eli Lilly funda a empresa com seu nome 1876 A Sandoz Chemichal produtora de corantes entra no ramo farmacêutico 1875 A Ciba indústria suíça de corantes entra na produção farmacêutica 1884 Silas Burroughs e Henry Wellcome fundam a Burroughs-Wellcome 1880 William Warner e Jordan Lambert fundem suas farmácias na Warner-Lambert Co. 1884 William Upjohn funda a Upjohn Co. 1885 A família Merck funda a americana Merck & CO 1899 Cândido Fontoura funda a “Medicamenta Fontoura” 1900

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O que aconteceu com as empresas brasileiras que foram sendo compradas, ao longo do tempo, pelas estrangeiras?

O motivo principal foi a descoberta de novos fármacos por essa empresas, ou a incorporação por elas de descobertas feitas pelos cientistas americanos e europeus. A mudança da terapia na primeira metade do século XX só teve paralelo com o que aconteceu na segunda metade. As empresas brasileiras não pesquisaram novos fármacos e muito menos a ciência no Brasil fez melhor. A indústria nacional, por isto, foi paulatinamente perdendo mercado.

Tão importante quanto à descoberta de novos fármacos foi a proteção às patentes que deram às empresas européias e americanas o monopólio temporário de suas descobertas.

Na segunda metade do século XX, no Brasil, fez-se um esforço para dotar o país de uma indústria farmacêutica moderna e eficiente. A primeira medida concreta foi manter-se em vigor o Decreto-Lei 7.903/45, decorrente da situação de guerra à época, que suspendia a proteção patentária de produtos farmacêuticos. Foram instituídos, nos governos subseqüentes várias iniciativas para estimular a pesquisa científica e apoiar a produção de medicamentos, culminando com a criação da Central de Medicamentos – CEME em 1972 que pretendia ser um projeto abrangente desde a pesquisa até a distribuição de medicamentos tendo como apanágio a ampliação da política social do governo.

Como se pode depreender do quadro adiante, desde 1969 não se protegia patentes nem de processos nem de produtos, situação que perdurou por 27 anos. Esperava-se que o país adquirisse auto-suficiência na produção de fármacos e avançasse científica e tecnologicamente. Em 1996 o Congresso Nacional decidiu pelo retorno à proteção patentária.

As normas que regem a vigilância sanitária acompanharam estas tendências históricas e a mudança mais marcante deu-se na Lei nº. 6.360/76, corroborando o que estatuía a Lei n.º 5772/71 que não privilegiava a patente para medicamentos. No artigo 20 da Lei nº. 6.360/76 aparece, pela primeira vez, e sem definição, a categoria de “medicamento similar”:

Art. 20 - Somente será registrado o medicamento cuja preparação necessite cuidados especiais de purificação, dosagem, esterilização ou conservação, quando: I - tiver em sua composição substância nova; II - tiver em sua composição substância conhecida, à qual seja dada aplicação nova ou vantajosa em terapêutica; III - apresentar melhoramento de fórmula ou forma, sob o ponto de vista farmacêutico e/ou terapêutico. Parágrafo único. Fica assegurado o direito de registro de medicamentos similares a outros já registrados, desde que satisfaçam às exigências estabelecidas nesta Lei.

Os depoimentos das personalidades envolvidas na história desta Lei no 6.360/76

atestam que este expediente serviu para que as empresas pudessem copiar os relatórios técnicos dos produtos até então com proteção de patentes ou os que viessem a ser lançados no mercado como inovações terapêuticas. Tais relatórios eram, e ainda são, peças fundamentais para a decisão de concessão de registros no país.

O medicamento similar foi o grande trunfo das empresas brasileiras no mercado.

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Quadro 1 QUADRO COMPARATIVO QUANTO AO

PRIVILÉGIO,VIGÊNCIA E DURAÇÃO DE PATENTES, PROCESSOS E PRODUTOS FARMACÊUTICOS

NO BRASIL

UNIÃO de PARIS

1883 - 1945 DL n.º 7.903/45 DL n.º 254/67 DL n.º 1.005/69 Lei n.º 5.772/71 Lei n.º 9.279/96

PROCESSOS

PRODUTOS

DURAÇÃO (ANOS) - 15 20 / 15 15 15 20

VIGÊNCIA A PARTIR DE - EXPEDIÇÃO

DEPÓSITO / EXPEDIÇÃO

INPI EXPEDIÇÃO DEPÓSITO DEPÓSITO

PRIVILÉGIO NÃO PRIVILÉGIO

Em 1996 é promulgada a Lei nº. 9.279/76 que restabelece a proteção de patentes no

Brasil, entre outros, para os medicamentos. Este ato elimina a existência dos medicamentos ditos similares visto que não seria mais possível copiar os produtos. Restavam os antigos produtos similares que poderiam somente copiar-se uns aos outros. Esta era a situação então:

Novos medicamentos patenteados

Medicamentos sem patente e antigos

medicamentos similares

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Em 1999 a Lei n.º 9.787 de 10 de fevereiro de 1999, vulgarmente conhecida como Lei

dos genéricos, modifica a Lei nº 6.360/76 e acrescenta algumas novas definições. As principais são: medicamentos similares, medicamentos genéricos e medicamentos de referência.

A definição de medicamento similar tem a estranha característica de legislar sobre o que já estava extinto, ademais, a prática demonstra que as modificações havidas nos medicamentos originariamente registrados como similares tornavam inaplicável esta definição retroativamente. Ora, para que serve uma definição que não pode ser aplicada no passado, nem no futuro e é inútil no presente?

A definição de medicamento genérico e as condições regulamentares a seguir exigidas para sua existência provocaram dois fenômenos:

• Eram e ainda são inaplicáveis tais exigências a curto prazo e, • Criaram-se os medicamentos de 1ª classe (genéricos) e 2ª (similares), gerando

uma dúvida na população quanto a qualidade do que estava sendo consumido Os chamados “medicamento genéricos” merecem algumas considerações adicionais. Os medicamentos, seja qual for o regime de proteção patentária, podem ter duas

denominações, uma de fantasia ou de marca, e a denominação comum, ou como se diz: “nome genérico”. Nos países que sempre reconheceram a patente, quando expira tal prazo, os fabricantes, principalmente os que eram terceirizados pela própria indústria que detinha a patente, apressam-se a lançar no mercado suas versões “genéricas” da droga. Podem então escolher entre um nome de marca ou o nome genérico. Ambos disputarão o mercado pelo preço e qualidade. Os motivos para serem mais baratos, são, entre outros:

• Os processos produtivos estão otimizados; • As matérias primas estão disponíveis em abundância a bons preços; • O mercado para esses produtos está consolidado; • Muitas administrações públicas, empresas prestadoras de serviços médicos

assistenciais e seguradoras incentivam a compra de medicamentos mais baratos; • Os órgãos de vigilância sanitária competentes são rigorosos e têm credibilidade

junto aos profissionais de saúde e à população, garantindo a qualidade dos genéricos.

A nomenclatura, portanto, tem um peso apenas circunstancial na qualificação do medicamento no mercado. O que realmente importa é a condição técnica e operacional do fabricante e a qualidade do seu produto, independente do nome.

Há também uma situação peculiar, pois, em alguns destes países, o medicamento é ressarcido pelo seguro saúde, estatal ou privado, que pagará pelo menor preço, obrigando o farmacêutico a oferecer este produto mais barato, devendo, portanto tê-lo em estoque. O paciente sempre terá a opção de comprar o mais caro, arcando com a diferença, e o médico pode insistir em receitar os mais dispendiosos recusando-se a permitir a troca do produto, arriscando ver sua clientela esvair-se. Tudo isto é possível por causa da prerrogativa legal do médico em receitar e do farmacêutico de intercambiar os produtos, certificados pela vigilância sanitária serem iguais e com mesma qualidade. Quando procede esta troca, tal transação é escriturada na própria receita, assinada pelo paciente e auditada pelo agente pagador, seja o Estado ou o provedor privado. Neste caso é possível garantir que a troca foi feita adequadamente.

O quadro atual no Brasil é:

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A situação brasileira é muito peculiar. Durante quase três décadas as normas para

registro de um produto farmacêutico no país foram, e continuam sendo copiadas das legislações americana e européia, que são cada vez mais rigorosas quanto à qualidade. A aplicação prática destes regulamentos, no entanto, era muito menos exigente aqui do que naqueles locais.

A legislação brasileira de vigilância sanitária foi grandemente incrementada justamente no período da ditadura militar (O Decreto-lei nº. 986/69 que dispões sobre o controle de alimentos e a Lei 6.360/76 sobre medicamentos, saneantes, cosméticos e produtos correlatos). O viés do autoritarismo se mostra em dois aspectos quase complementares. Num deles o executivo federal tutela os Estados e assume todas as funções controladoras, não havendo espaço para qualquer tipo de manifestação do usuário, exceto acreditar que estava protegido. No outro a ação dos escalões administrativos responsáveis pela fiscalização são controladas pelo núcleo do executivo mais próximo do poder central, que freqüentemente corrige as ações da periferia do sistema segundo seus próprios interesses. Depreende-se que o tráfico de influência ocorre de uma forma quase normal para se resolverem as pendengas.

Foi assim, permitindo o livre consumo de medicamentos - pois exigir e controlar a receita médica implicaria em sobrecarregar o sistema assistencial oficial (INPS > INAMPS > SUS) com os pacientes buscando uma receita - e facilitando a entrada no mercado de cópias dos medicamentos mais modernos, transformando as repartições de vigilância sanitária em cartórios e não corrigindo os desvios de qualidade ou fazendo-o sem alarde, que se chegou a situação atual.

Mas qual é a situação atual? O equilíbrio entre estruturas sociais adiante apresentadas é que asseguram o

adequado funcionamento do sistema visando garantir a saúde e o direito das pessoas, que de fato estão pagando por isto.

Novos medicamentos patenteados

Medicamentos sem patente

Antigos medicamentos

similares

Medicamentos genéricos oficiais

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Estrutura legal Leis, Decretos, Normas e Estatutos estabelecendo os direitos e obrigações sociais dos cidadãos, das empresas e dos governos.

Conhecimento técnico-científico

Disponibilidade de recursos humanos, financeiros e materiais destinados à pesquisa científica. A difusão do conhecimento científico e da habilidade tecnológica sobre os assuntos pertinentes.

Organização do poder O funcionamento da justiça. A eficiência dos órgãos de fiscalização das leis. O poder de intervenção e aplicação de sanções A ação direta do cidadão sobre o curso dos eventos

. Fica mais claro, ao se considerar o esquema, entender porque, num sistema de vasos

comunicantes como é a sociedade, não é possível avançar numa área desconsiderando as outras. No Brasil, a indústria farmacêutica autóctone não lançou nenhuma droga original nestes últimos 40 anos, ou seja, não houve incorporação tecnológica dos parcos resultados das pesquisas realizadas no país. Como decorrência, a legislação adotada - copiada de outros países (principalmente os E.E.U.U., o que não é demérito algum pois o resto do mundo fez o mesmo) foi aplicada quase unicamente no seu aspecto cartorial: o controle de registros e averbações, numa autêntica vigilância sanitária de papel.

O ponto principal, o aspecto da toxicologia das novas entidades químicas era exigido apenas pela documentação técnica copiada, mesmo porque na maioria das vezes não havia quem a entendesse na repartição pública responsável.

O uso de compostos químicos (medicamentos) e produtos biológicos é uma das maneiras de se mudar a realidade, alterando de forma previsível o resultado natural das interações biológicas. Para estabelecer a eficácia desta prática é obviamente necessário que se conheça a substância, quem, como, quando, onde e porque se a usará. A ponderação entre o dano conseqüente ao uso e o benefício obtido permite tal avaliação. Não é tarefa simples obter informações fidedignas para estimar o risco de efeitos adversos. O fundamento da avaliação de risco é a evidência científica mas, o conhecimento científico não basta, pois há determinantes éticos, políticos e sócio-econômicos a serem considerados para se decidir ou não pelo uso de uma substância. São conhecimentos experimentais sobre mutagenicidade, carcinogênese, toxicidade fetal, teratogênese, além da epidemiologia das iatrogenias, uso abusivo e terapêutico das substâncias, eficácia dos tratamentos, qualidade das drogas, custos nos programas sociais entre tantos outros aspectos. A toxicologia, no entanto, não se restringe ao estudo dos produtos medicamentosos pois é de seu interesse qualquer efeito químico, físico ou biológico que possa trazer danos a animais e plantas

A indústria é a principal fonte de novas substâncias colocadas no mercado cuja toxicidade precisa ser avaliada.

A ênfase no conhecimento toxicológico é relevante porque o critério de aceitação das novas tecnologias vem passando por uma profunda mudança ideológica em que se considera mais a "melhoria da qualidade de vida” do que "um aumento do padrão de vida".

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Depreende-se que, qualquer que seja o resultado das pesquisas sobre substâncias a serem utilizadas na melhoria da qualidade da saúde ou a criação de tecnologias, antes de aplicá-las, será necessário avaliar a relação entre danos e benefícios possíveis. De fato a avaliação toxicológica é um dos principais filtros antes da tomada de decisões sobre o que comporá o plano da estratégia em saúde. É importante ressaltar que a organização dos meios (recursos materiais e humanos) para por em prática uma estratégia é uma etapa posterior à tomada de decisão sobre o que se fará e porque, portanto o conhecimento científico é fundamental.

Todo o complexo de organizações públicas responsáveis pela garantia da qualidade dos produtos úteis para a saúde parece se dirigir ao caos∗. A antiga prerrogativa político-econômica de buscar a autodeterminação e independência – daí valendo até mesmo sacrificar a qualidade – foi substituída pela “globalização”, onde a dependência pactuada é a regra, embora alguns considerem melhor chamá-la de submissão. Neste novo contexto os padrões de qualidade serão os mesmos ou mais rigoroso que os atuais, mas a prática deverá ser mais eficiente.

A indústria farmacêutica nacional está em lenta agonia pois depende, para sobreviver, do mercado de cópias em crescente obsolescência. Até 2.016 somente se poderá fabricar no Brasil, livres de patentes, os medicamentos lançados no mercado mundial até 1996. Não será fácil esta travessia, pois as empresas internacionais, principalmente as americanas devem trazer uma mudança radical no arsenal terapêutico atual. O quadro 2 exemplifica o fato. Quadro 2

Patentes concedidas nos E.E.U.U. 1976 - 2.000 Anos Patentes Acumulado Caducando 1976 - 1980 18 1981 - 1985 60 78 1986 - 1990 112 190 1991 - 1995 276 466 Reinício da proteção patentária no Brasil 1996 - 2000 594 1060 18 2001 - 2005 1042 60 2006 -2010 982 112 2011 - 2015 870 276 2016 - 2020 594 594 A eficiência exigida pela globalização tem por finalidade depurar o mercado das empresas

de cópia pois elas não terão como atingir os novos patamares de qualidade que requerem altos investimentos em equipamentos e métodos fabris, pesquisa básica e ensaios toxicológicos dispendiosos. Neste sentido o governo será pressionado a melhorar o funcionamento da vigilância sanitária.

Por outro lado é preciso abrir uma porta para as empresas de capital nacional pois elas, embora venham gradativamente perdendo influência política, apelam para o nacionalismo ressurgente que se contrapõe à dita “globalização”, conseguindo assim alguma influência nas decisões estratégicas do governo – no caso a última esperança. Aparentemente a política dos “genéricos” era uma solução, como foi nos E.E.U.U., Canadá e boa parte da Europa inclusive os países do leste europeu, para as indústrias de porte médio. ∗ Do grego CAOS que originariamente significa “tempo ilimitado”, “imensidão”,” infinito”, sendo utilizado no Gênese bíblico como o nada primordial; “Antes era o caos”,”Deus fez tudo do nada”.

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Ocorre que, no Brasil, a liberdade na compra de medicamentos é muito mais vantajosa e culturalmente bem recebida do que a pretensa vantagem de poder trocar a prescrição por um genérico “igual ao de referência, mas muito mais barato” como anunciava a campanha sanitário-eleitoral do Ministro candidato à presidência. Ora, compra-se remédio neste país como se fossem biscoitos na padaria, sem receita médica, inclusive os ditos de “faixa preta”, psicotrópicos e entorpecentes, que só são controlados mesmo no papel. A concorrência é feroz neste segmento do mercado e os preços no Brasil, em que pese a aparência em contrário, são baixos, comparativamente a qualquer outro mercado mundial. Como é baixa também a qualidade destes produtos. A produção farmacêutica é uma atividade industrial de alta precisão, e para ficar dentro dos parâmetros de qualidade dos melhores centros mundiais custa muito caro.

Neste vai e vem de interesses, a opção política pelos genéricos, da forma como vem sendo conduzida, ao invés de facilitar a sobrevivência da indústria nacional pode ter cravado o último prego do caixão. Genéricos já eram todos os remédios existentes no país até 1996, e não precisavam de testes de equivalência porque o comércio era e continua sendo livre de peias. Pois a atual legislação fez tal barafunda que conseguiu ressuscitar o defunto medicamento similar que como um zumbi químico deve ainda ter de provar que é igual a um outro genérico – sim, porque os medicamentos de referência não têm proteção patentária, logo são “genéricos”, latu-sensu.

Não se pode, no entanto acreditar que isto seja fruto de uma enorme conspiração multinacional contra a indústria brasileira, mas, esta idéia veio bem a calhar. O governo recorreu à velha fórmula de controle de preços porque os similares estavam sendo vendidos mais baratos que os genéricos e estes desapareciam das prateleiras, prejudicando a campanha eleitoral do ministro candidato. O enigma por trás deste fato será descoberto se for possível responder a seguinte pergunta:

- Como uma mesma fábrica, numa mesma linha de produção, com os mesmos funcionários, para produzir o mesmo medicamento consegue que ele fique 30% mais barato somente apondo a rotulagem de “genérico”, ainda assim tendo de gastar mais dinheiro para fazer o inútil teste de equivalência?

Uma possibilidade é que a margem de lucro da empresa com aquele produto fosse tão alta que uma redução desta ordem seria possível.

Outra explicação é que embora reduzindo a margem de lucro por unidade o ganho em quantidade de vendas decorrente da campanha gratuita do governo daria um lucro final compensatório.

Descartando a diminuição da qualidade do produto, que reduziria os custos de produção, as duas explicações podem ter ocorrido simultaneamente. Para estas empresas o controle de preços não afetou em nada, para as outras foram praticados artifícios para suplantar o controle. Primeiro, entregou-se a tarefa à ANVISA, que nunca teve, nem terá, estrutura administrativa para tal encargo. Isto por si só era garantia que o controle de preços não funcionaria. Em seguida os produtores informam à repartição encarregada do controle, os preços praticados sem desconto o que na prática significa informar o preço futuro com o aumento já embutido. Quando o governo estabeleceu pela primeira vez o valor do reajuste de preços as empresas retiraram o desconto que voluntariamente davam ao consumidor.

O que importa mesmo é que a produção brasileira de medicamentos está diminuindo porque o poder aquisitivo da população vai pelo mesmo caminho. O Brasil que já esteve entre os dez maiores mercados mundiais de medicamentos vem seguidamente perdendo posições.

A política nacional de vigilância sanitária de medicamentos está imobilizada pela indefinição da estratégia política do país com relação a assistência médico-farmacêutica a ser praticada.

Estado, no entanto, é obrigado a fazer saúde pública e ter sanitaristas a seu serviço..

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A competência, o talento, a dedicação, a cooperação. O desafio do exercício da saúde pública e dos sanitaristas diz respeito à legitimidade do

Estado, suas estratégias, e como serão usadas as qualidades individuais, e em proveito de quem. Mas, seja lá qual for o ambiente político que se viva, estas qualidades essenciais estarão

sempre em evidência. Portanto, o sanitarista, deve cultivar tais qualidades para fazer o seu trabalho, porque ninguém quer tomar remédio de má qualidade. Esta é a essência da saúde pública, aplicar a ciência em benefício da coletividade.

Exceto uma parte de talento ou vocação, todas as outras qualidades podem ser desenvolvidas através de estudo profícuo e em geral muito enfadonho. O cotidiano do sanitarista é entediante: coletar, registrar, somar, analisar, fazer recomendações, planejar serviços e obras, inspecionar, multar, interditar e estudar. Se o seu trabalho for bem feito, é algo espetacular, mas não será manchete de nenhum jornal. Ele trabalha para que os problemas não ocorram. Veja-se o exemplo da varíola e da poliomielite. Uma está erradicada desde 1979 e a outra em vias de ser, não havendo um único caso no país há anos. As pessoas com seqüelas de varíola são tão raras que só se pode vê-las em livros, e as poucas de pólio, têm média de idade maior do que 20 anos.

Os medicamentos quando são bons e estão sob controle, como se espera que seja, ninguém lembra do esforço anônimo por trás dessa normalidade, a não ser que ocorra algo como o caso do contraste radiológico que já matou dezenas de pessoas.

Destes episódios reportados em meados de 2004 e que redundaram em mortes e lesões graves um fato sobressai:

- Os criminosos não temem o "poder constituído". Não demonstraram nenhum pejo em envenenar um medicamento e num outro caso, dos colírios contaminados, continuaram a vender o produto mesmo após este ter sido interditado.

Muito se discorreu sobre a clandestinidade destes fabricantes de produtos oftalmológicos, inclusive asseverando-se que se tratava de crime organizado. Obviamente que as empresas em tela não eram clandestinas, pois vendiam regularmente seus produtos, inclusive para o setor público e participavam de feiras e congressos técnicos. Antes o que se vê é o Estado desorganizado e sem nenhuma credibilidade. O número de estabelecimentos em situação semelhante a estes e que não são conhecidos, mesmo participando de licitações públicas, é incomensurável.

Cooperando Em 1973, num sítio arqueológico no Quênia, o auxiliar Kamoya Kimeu encontrou um fóssil feminino de Homo erectus, codificado como KNM-ER 1808. O singular desta descoberta estava no fato de que aquela fêmea pré histórica sofrera de uma doença óssea deformante causada por hipervitaminose A, provavelmente decorrente de uma dieta rica em fígado. Assim descreveu Alan Walker, que comandava a expedição arqueológica, o que parece ter acontecido àquela criatura no meio da savana africana há 1.500.000 anos atrás:

“Apesar de sua agonia, ela deve ter sobrevivido ao seu envenenamento por semanas ou talvez meses enquanto os coágulos ossificavam. Como então seus coágulos sangüíneos tornaram-se tão evidentes; de que outra forma poderiam eles ter se transformado na grossa camada de osso patológico que levou-nos a estas indagações?

As implicações saltaram-me à face: alguém cuidou dela. Sozinha, sem condições de se mover, delirando, com dores, 1808 não teria durado dois dias na

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savana africana, muito menos o tempo que seu esqueleto nos dizia ter ela vivido. Alguém lhe trouxe água e provavelmente comida; a menos que 1808 estivesse extremamente perto de uma fonte de água, isto significava que seu salvador tinha alguma espécie de receptáculo para carregar a água. E alguém mais a protegia das hienas, leões e chacais que perambulavam atrás de presas que não podiam correr. Alguém mais, não pude deixar de pensar, sentou ao seu lado nas longas e escuras noites africanas por outra razão que não fosse o interesse humano. Portanto, inútil como 1808 era para nos falar muito sobre a morfologia normal do Homo erectus, ela nos falou alguma coisa inesperada. Seus ossos eram uma um testemunho pujante do começo da sociabilidade, dos fortes laços entre os indivíduos que excediam as ligações e amizades que vemos entre os babuínos ou chimpanzés ou outros primatas não humanos. {...} Os cuidados que alguém mostrou por ela não podem ser explicados como um exemplo de ligação comum entre mãe e filho [ como é freqüente em muitas espécies de mamíferos ]. Uma vez que 1808 era uma fêmea adulta, sua própria mãe poderia não estar ainda viva. Se estivesse teria ultrapassado a expectativa pelos padrões desta espécie, que tinha um curto período de vida; o período de ligação mãe-filha teria há muito passado. [...} Quem quer que tenha ficado na área até 1808 morrer assumiu uma enorme responsabilidade. {...} “Os ossos de 1808, portanto nos falam do aparecimento de uma extraordinária e verdadeira ligação social”. A cooperação é algo que precede a própria espécie humana, Homo sapiens. Parece ter sido

uma das principais qualidades que herdamos dos nossos ancestrais e responsável certamente pela nossa bem sucedida sobrevivência.

O sanitarista é um indivíduo treinado na cooperação tanto para descobrir o que deve fazer quanto para agir e sendo assim depende dos outros para ter sucesso em suas empreitadas. É por este motivo que em determinadas situações a tentativa de isolá-lo gera profundo constrangimento tanto para ele quanto para o grupo, e mais, dá prejuízo. Entenda-se que prejuízo para a saúde pública não é somente uma expressão pecuniária mas algum tipo de situação real e mensurável, como crianças com maior probabilidade de contrair uma doença (por exemplo, o sarampo) porque as vacinas eram ineficazes.

Mas, se os governos parecem ignorar as necessidades de quem os elegeu e assim ignorando as suas próprias, e por isso deixa à míngua de recursos e prestígio os sanitaristas, estes devem buscar os seus próprios destinos, que é cooperar diretamente com os cidadãos para lhes melhorar a vida.

A cooperação pela ação direta “Qualquer pessoa que tenha alguma vez planejado fazer alguma coisa e

seguindo adiante a tenha feito, ou que mostrou seu plano para outros e deles conseguiu a cooperação, sem ter procurado autoridades externas para pedir-lhes que fizessem algo por eles, agiu por ação direta. Todas as experiências cooperativas são essencialmente por ação direta.

Qualquer pessoa que alguma vez na vida tenha tido uma diferença para acertar com alguém, e foi diretamente ao outro envolvido e resolveu o problema, de forma pacífica ou não, estava aplicando a ação direta.

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Estas ações não são geralmente devidas a qualquer racionalização sobre os méritos respectivos de serem diretas ou indiretas, mas são comportamentos espontâneos daqueles que se sentem oprimidos pela situação. Em outras palavras, as pessoas são, na maior parte do tempo, adeptos da ação direta, e a praticam.

A ação direta é sempre o clamor inicial pelo qual os indiferentes tornam-se conscientes que a opressão está intolerável.”

Voltairine de Cleyre (1866-1912), americana, feminista, escritora e anarquista. “Embora organizar o bairro seja um ato político, ele não é inerentemente

reacionário, conservador, liberal ou radical, nem é inerentemente democrático ou mesmo autoritário e paroquial. É acima de tudo um método político, uma forma usada por vários segmentos da população para atingir objetivos específicos, servir a certos interesses ou fazer avançar idéias políticas claras ou mal definidas”.

(Fisher, 1984; p. 158). “Mais e mais pessoas estão descobrindo que é preciso uma organização

comunitária, com militantes permanentes e profissionais, a qual pode, além de conseguir melhorias reais para seus membros, alterar verdadeiramente as relações de poder na cidade e no estado. Estes grupos (Grupos de cidadãos) estão mantendo aberto o governo para o povo e mantendo nossos direitos democráticos intactos.”

(Max,1977; p. 2).

O sanitarista deve: Ser um elemento de organização da comunidade e apoiar as formas de organização

descentralizadas, cooperativas e coletivas. Auxiliar a comunidade a aumentar o conhecimento sobre as coisas que a afetam e as

possíveis soluções, por iniciativas de autodeterminação, combatendo o medo à autoridade, aumentando a autoconfiança das pessoas, e diminuindo a dependência de instituições como o governo, corporações e instituições do serviço social e de caridade.

Usar de todas as formas de comunicação - eventos educacionais, filmes, jornais comunitários e do intercâmbio com os bairros - para ensinar às pessoas os rudimentos técnicos que lhes permitam analisar os problemas, apontar as soluções e confrontar as autoridades competentes, mostrando suas falhas, embaraçando seus funcionários, obrigando-as a mudarem suas prioridades ou substituindo-as em suas funções.

Participar da política partidária com independência e evitar a cooptação, pois há sempre quem propugne por negociações e queira que a comunidade seja menos militante e confrontadora. Não é possível mudar o sistema freqüentando audiências, negociando em reuniões, bajulando políticos ou através de ações legais dispendiosas e quase sempre inúteis.

Propugnar por objetivos a médio e longo prazo, claros, precisos e quantificados, mostrando exatamente o que se quer, evitando que pequenas vitórias “provem” ser o governo o responsável por cuidar dos pobres e dos trabalhadores, não havendo, portanto, necessidade de transformações radicais.

Manter sempre uma análise política da situação e difundi-la à comunidade, precavendo-se contra a difamação, o boato, o racismo e toda autoridade ilegítima.

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Conclusão

Toda e qualquer atividade de vigilância sanitária pode ser desenvolvida pela comunidade desde que auxiliada por técnicos comprometidos com a saúde pública. Resta saber o que a comunidade quer.

Quanto maior for o grau de conhecimento e informação de uma comunidade maior é a possibilidade dela incluir entre os seus valores culturais a importância de conhecer as causas de determinados problemas (por exemplo, a má qualidade dos medicamentos) e a necessidade de agir por si mesma para resolvê-los. Este é um problema adicional para os que trabalham com o público no Brasil. Embora o país seja muito rico culturalmente, a baixa escolaridade torna mais difícil o entendimento da causa de alguns fatos e, portanto, a possibilidade de mudança de atitudes e comportamentos arraigados. Aliado a pouca escolaridade há a pobreza, que torna urgente certos comportamentos de sobrevivência prontamente explorados por oportunistas de todos os matizes. Neste cenário emerge a mentalidade do jogo, no qual a condição social é uma fatalidade que só pode ser revertida por um golpe de sorte (se Deus ajudar). O indivíduo não pode deixar a “sorte” passar, entendendo-se aí qualquer condição que lhe dê vantagens, mesmo para o ”azar” de outros. Cultivar a solidariedade e a cooperação em um ambiente destes é dificílimo.

Mesmo nos países onde os movimentos comunitários estão mais desenvolvidos as dificuldades para se superar tais obstáculos são enormes e os líderes comunitários são unânimes em afirmar que não há uma receita única para todos. Deve-se buscar na própria comunidade os meios para enfrentar os problemas políticos, ideológicos e práticos que se apresentam. Mas a inação é pior porque representa a capitulação da inteligência e da criatividade diante das iniqüidades brutais causadas pela exploração da população.

O sanitarista engajado na luta social (que outro sentido teria sua atividade?) tem o seu próprio conhecimento a oferecer. Ele não precisa se transformar num ativista político, se não quiser, e ainda assim usar seu tirocínio em proveito da coletividade. Difundir o que vê, apontar soluções e não se intimidar com a autoridade.

“Isto significa que uma revolução cultural, uma revolução de idéias, valores e entendimento são o prelúdio essencial para qualquer mudança radical nas relações de poder na sociedade moderna. O propósito da cidadania radical é tomar a iniciativa neste processo” (Bouchier)

BIBLIOGRAFIA BOUCHIER, DAVID. Radical Citizenship. New York: Schocken Books, 1987. DE CLEYRE, VOLTAIRINE. Ação Direta. Panfleto sem data. ESTES, CAROLINE. "Consensus". Social Anarchism. Nº 10, 1985. FISHER, ROBERT. Let the People Decide: Neighborhood Organizing in America.

Boston: Twayne Publishers, 1984. MAX, STEVE. "Why Organize?" Chicago: Steve Max and the Midwest Academy, 1977.