Opinião.exameprofissional

2
Opinião. O Exame de Prática Profissional e a Medicina. O estudante de medicina tem a maior carga horária de ensino na graduação entre as profissões, regulamentadas ou não. O estudante de medicina dedica, praticamente, seus dois últimos anos ao chamado “internato”, quando passa a ter contato direto e prático com pacientes, em hospitais de ensino. O estudante de medicina possui dedicação integral aos estudos. Então, perguntase: qual a necessidade de se aplicar um exame de prática profissional ao final de um curso de graduação com características tão complexas? A resposta é simples: porque sim. É difícil não cair no clichê de que a medicina é uma profissão a serviço da vida e da saúde. É mais difícil ainda não cair no clichê de que o médico, mais do que qualquer outra profissional, lida com o que podemos chamar de “bem supremo”. Hoje, uma verdadeira inversão de valores, na qual o ensino público fundamental é de péssima qualidade, enquanto a graduação ofertada por faculdades públicas apresenta uma excelência em qualidade – e isto ocorre em toda as áreas. Assim, pessoas que foram mal preparadas durante a formação essencial – em escolas públicas – fatalmente cairão em escolas privadas, com altíssimas mensalidades e qualidade duvidosa de ensino em muitas delas. É uma lógica absolutamente perversa. E, na medicina, não é diferente. O controle de qualidade então, que não existe durante a formação básica, tampouco durante a graduação, é feito pela lógica do mercado bons profissionais permanecem, maus o próprio mercado elimina. Diante desta regra mercadológica básica, quem seleciona então os maus médicos? Infelizmente, são os seus “erros”. Ou seja, a saúde da população passa a ser a mercancia definidora dos médicos que ficam e dos que saem de “circulação”. Nos Estados Unidos, há mais de 100 anos, existe um instituto, independente, chamado de “National Board of Medical Examiners (NBME)”. Sem a aprovação por este instituto o médico não exerce a medicina, mas não por que ele seja integralmente obrigatório, mas em razão do próprio mercado que simplesmente não reconhece o profissional que não possui tal certificação. Evidentemente que o objetivo não é estudar o exercício da medicina em outros Países, posto que cada um possui a sua peculiaridade; entretanto, é fato que nenhum País que possui uma medicina considerada “de ponta” entrega o estudante de medicina para ser “separado” e “treinado” apenas pela lógica de mercado. O Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, até pouco tempo o único regulamentado por Lei em sentido formal, tem por objetivo justamente apurar se o egresso do curso de bacharelado em direito está apto a trabalhar como advogado. Tanto que, na sua origem, o Exame era suprido pela comprovação de realização do chamado “estágio profissional”, ou seja, o bacharel em direito comprovava que já havia trabalhado em sua área, estando dispensado da prova.

Transcript of Opinião.exameprofissional

Page 1: Opinião.exameprofissional

Opinião.  O  Exame  de  Prática  Profissional  e  a  Medicina.    O  estudante  de  medicina  tem  a  maior  carga  horária  de  ensino  na  graduação  entre  as  profissões,  regulamentadas  ou  não.  O   estudante   de   medicina   dedica,   praticamente,   seus   dois   últimos   anos   ao  chamado  “internato”,  quando  passa  a  ter  contato  direto  e  prático  com  pacientes,  em  hospitais  de  ensino.  O  estudante  de  medicina  possui  dedicação  integral  aos  estudos.  Então,   pergunta-­‐se:   qual   a   necessidade   de   se   aplicar   um   exame   de   prática  profissional   ao   final   de   um   curso   de   graduação   com   características   tão  complexas?  A  resposta  é  simples:  porque  sim.  É  difícil  não  cair  no  clichê  de  que  a  medicina  é  uma  profissão  a  serviço  da  vida  e  da   saúde.  É  mais  difícil   ainda  não   cair  no   clichê  de  que  o  médico,  mais  do  que  qualquer  outra  profissional,  lida  com  o  que  podemos  chamar  de  “bem  supremo”.  Hoje,   há   uma   verdadeira   inversão   de   valores,   na   qual   o   ensino   público  fundamental   é   de   péssima   qualidade,   enquanto   a   graduação   ofertada   por  faculdades  públicas  apresenta  uma  excelência  em  qualidade  –  e   isto  ocorre  em  toda  as  áreas.  Assim,   pessoas   que   foram  mal   preparadas   durante   a   formação   essencial   –   em  escolas   públicas   –   fatalmente   cairão   em   escolas   privadas,   com   altíssimas  mensalidades   e   qualidade   duvidosa   de   ensino   em   muitas   delas.   É   uma   lógica  absolutamente  perversa.  E,  na  medicina,  não  é  diferente.  O   controle   de   qualidade   então,   que   não   existe   durante   a   formação   básica,  tampouco   durante   a   graduação,   é   feito   pela   lógica   do   mercado   –   bons  profissionais  permanecem,  maus  o  próprio  mercado  elimina.  Diante   desta   regra   mercadológica   básica,   quem   seleciona   então   os   maus  médicos?  Infelizmente,  são  os  seus  “erros”.  Ou  seja,   a   saúde  da  população  passa  a   ser  a  mercancia  definidora  dos  médicos  que  ficam  e  dos  que  saem  de  “circulação”.  Nos   Estados   Unidos,   há   mais   de   100   anos,   existe   um   instituto,   independente,  chamado  de   “National  Board   of  Medical   Examiners   (NBME)”.   Sem  a   aprovação  por   este   instituto   o   médico   não   exerce   a   medicina,   mas   não   por   que   ele   seja  integralmente  obrigatório,  mas  em  razão  do  próprio  mercado  que  simplesmente  não  reconhece  o  profissional  que  não  possui  tal  certificação.  Evidentemente  que  o  objetivo  não  é  estudar  o  exercício  da  medicina  em  outros  Países,   posto   que   cada   um   possui   a   sua   peculiaridade;   entretanto,   é   fato   que  nenhum   País   que   possui   uma   medicina   considerada   “de   ponta”   entrega   o  estudante   de  medicina   para   ser   “separado”   e   “treinado”   apenas   pela   lógica   de  mercado.  O   Exame   da   Ordem   dos   Advogados   do   Brasil,   até   pouco   tempo   o   único  regulamentado  por  Lei  em  sentido  formal,  tem  por  objetivo  justamente  apurar  se  o   egresso   do   curso   de   bacharelado   em   direito   está   apto   a   trabalhar   como  advogado.    Tanto  que,  na  sua  origem,  o  Exame  era  suprido  pela  comprovação  de  realização  do   chamado   “estágio   profissional”,   ou   seja,   o   bacharel   em   direito   comprovava  que  já  havia  trabalhado  em  sua  área,  estando  dispensado  da  prova.  

Page 2: Opinião.exameprofissional

Este  é  o  espírito  do  Exame  de  final  de  curso.  É  a  comprovação  da  aptidão  para  a  “prática  profissional”.  O   CREMESP   –   Conselho   Regional   de   Medicina   do   Estado   de   São   Paulo,   há   10  (dez)  anos  aplica  um  exame  de  proficiência  profissional,  que  não  é  reprobatório  justamente   em   razão   da   ausência   de   Lei   formal,   mas   que   tem   por   objetivo  primordial   indicar   não   apenas   à   sociedade,   mas   principalmente   ao   próprio  médico,  recém-­‐formado,  quais  são  as  suas  principais  deficiências.  O   cenário   ideal   seria   a   garantia   de   vagas   de   Residência   Médica   a   todos   os  Egressos   dos   cursos   de   medicina,   considerando   que   este   é   o   verdadeiro  treinamento   em   serviço,   sob   supervisão   de   um  médico  mais   experiente   e   que  exercício  pleno  da  profissão  apenas  fosse  possível  após  esta  especialização.  Entretanto,  esta  é  uma  realidade  ainda  distante,  tanto  do  ponto  de  vista  prático  quanto  legal.  Fato  é  que  o  mercado  irá  selecionar  as  pessoas,  e  tal  regra  é  implacável.    Questiona-­‐se,  apenas,  a  justiça  deste  sistema  com  a  população  e  com  os  próprios  profissionais,  ao  serem  selecionados  através  de  seus  erros,  ao  custo  de  vidas  e  da  saúde  dos  pacientes.    Não   seria   mais   lógico   que   houvesse   uma   prova   que   os   avalizasse   a   exercer   a  profissão   de   maneira   mais   tranquila,   selecionando   previamente   os   mais  preparados  e  indicando  aos  reprovados  quais  seriam  suas  deficiências?  Mais   do   que   um   exame   de   proficiência,   a   prova   deve   ser   prática,   colocando   o  formando   em   situações   de   vida,   para   que   ele   possa   racionar   sob   pressão,  mas  sabendo  que  seu  erro  não  custará  a  saúde  de  um  paciente,  no  máximo,  uma  nota  menor  do  avaliador.  Com  todo  o  respeito  aos  argumentos  contrários,  questões  como  a  proliferação  de  cursinhos,  a  preocupação  apenas  com  a  prova  e  não  com  a  formação,  reserva  de  mercado,   são   absolutamente   secundários,   até   porque,   no  meio   jurídico,   os   tais  “cursinhos   preparatórios”   conseguem   suprir,   muitas   vezes,   grandes   falhas   da  formação   básica,   o   que,   no   final   das   contas,   é   bom   para   quem   se   forma   com  deficiências  e  para  a  própria  sociedade.  O   fato   é   que   o   atual   sistema   tem   colocado   todos   os   partícipes   desta   relação,  médicos  e   seus  pacientes,   como  vítimas  de  uma   lógica  absolutamente  perversa  educacional  e  assistencial,  e  o  discurso,  a  oratória  e  demagogia  pouco  resolvem  neste  momento.    Evidentemente  que,  isoladamente,  o  Exame  não  é  a  solução  para  os  problemas  da  medicina  e  da  formação  deficitária,  mas  não  há  dúvidas  de  que  já  representaria  um  excelente  início.  Georges   Ripert,   Jurista   Francês,   afirmava   que   “quando   o   direito   ignora   a  realidade,  a  realidade  se  vinga  ignorando  o  direito”.    A  realidade  hoje  esta  posta:  os  cursos  de  medicina,  em  sua  maioria,  não  formam  de  maneira  adequada.  Qual  a  seria  a  solução  mais  rápida  e  eficaz?    Osvaldo  Pires  G.  Simonelli  Advogado  Chefe  do  Departamento  Jurídico  do  CREMESP