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BELO HORIZONTE, DEZEMBRO DE 2006, Nº. 1297 SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DE MINAS GERAIS ONTEM + HOJE 40 ANOS SUPLEMENTO LITERÁRIO + HUMBERTO WERNECK + HAYDÉE RIBEIRO + LAÍS CORRÊA DE ARAUJO + JACINTHO LINS BRANDÃO .

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BELO HORIZONTE, DEZEMBRO DE 2006, Nº. 1297 SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DE MINAS GERAIS

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CAPA: Colagem com xerox das marcas do Suplemento Literário de Minas Gerais.NATÁLIA DUTRA e MÁRCIA LARICA.

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Nascido há quarenta anos, o Suplemento Literário tevedesde então muitas encarnações. Sendo ainda mais anti-go do que ele, posso falar da primeira, a que começou asair das rotativas do Minas Gerais num sábado distante,dia 3 de setembro de 1966. Sem desdouro das que vieramdepois, e tentando não abusar da nostalgia, tenhomotivos para acreditar que aquela foi a melhor de todas.Se não mudou de opinião, o poeta Affonso Ávila, um dospioneiros do Suplemento, haverá de concordar comigo:quinze anos atrás, quando o entrevistei para o meu livroO desatino da rapaziada, Affonso me contou que, paraele, o jornal foi relevante até a sua edição de número 454,publicada no dia 17 de maio de 1975. A última, explicou,feita sob o comando do contista Wander Piroli, quenaquele momento se afastou da redação, indignado, paranão dobrar-se à pressão de burocratas que, como diriaStanislaw Ponte Preta, despontavam para o anonimato.

Sei que o Suplemento, mesmo em suas fases esquecíveis,serviu ao leitor porções variáveis de ouro em pó cultural.Algumas pude acompanhar, mas de longe, pois vivo forade Minas desde maio de 1970. Muita coisa, boa e ruim,certamente me escapou. Até por isso, por essas trêsdécadas e meia de ausência, me dou o direito de ser aindamais radical que o Affonso Ávila — e dizer que, paramim, o Suplemento que conta é aquele dos primeirostempos, dos três primeiros anos, o Suplemento queMurilo Rubião concebeu e comandou diretamente atédele se afastar, em dezembro de 1969.

A história é razoavelmente conhecida. Em 1965, no queseria por longo tempo a última eleição direta para gover-nadores de Estado, Israel Pinheiro chegou ao Palácio daLiberdade. Numa iniciativa mais ou menos rara de nepo-tismo benigno, Israel levou para trabalhar com ele, comosecretário, o sobrinho Raul Bernardo Nelson de Sena — efoi Raul quem teve a idéia de ressuscitar no Minas Geraisuma tradição literária muito antiga, anterior mesmo àpassagem de Carlos Drummond de Andrade por lá, nofinal dos anos 1920, e que consistia em plantar um oásisde cultura e arte em meio à aridez dos despachos oficiais.

A redação do Minas tinha, nessa época, um luxoimerecido chamado Murilo Rubião, a quem a chefia,pouco imaginativa, entregava tarefas pífias como escrevernecrológios — necrológios de gente viva, inclusive, comofoi o caso do ex-presidente Wenceslau Brás, que só viriaa morrer em maio de 1966.

Murilo tinha passado quatro anos em Madri, como adidocomercial, durante o governo JK. Discretíssimo, voltousem alardes de europeu recente. Para mim e para algunscompanheiros de geração, adolescentes com fumaçasliterárias, ele era um enigma. Podia até mesmo não existir.

Pelo menos não era reconhecível entre os personagens doEncontro marcado de Fernando Sabino, o livro, quaseescrevo bíblia, que o meu grupinho gostaria de arre-medar na vida e na literatura. Não se tinha notícia deMurilo escalando, como Fernando, Hélio Pellegrino, OttoLara Resende e Paulo Mendes Campos, os arcos do viadutode Santa Teresa. Nem tocando fogo em casas de família

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para ver sair beldades esbaforidas, de cami-sola, como fizeram Drummond e Pedro Navacerta madrugada dos anos 1920. Só tive aconfirmação de que Murilo existia aí por1960, quando encontrei, na biblioteca daPraça da Liberdade, um exemplar de O ex-mágico, publicado em 1947. Em seguidasoube que era autor, também, de A estrelavermelha, uma plaquette que saiu em 1953com apenas quatro contos e pouco mais de100 exemplares.

Murilo Rubião, isto era certo, estava inteira-mente desemparelhado na ficção brasileira— e mesmo na ficção continental, pois aindanão sobreviera, na segunda metade dosanos 1960, o cacofônico boom da literaturalatino-americana. Livros como Cem anos desolidão, com personagens capazes de literal-mente voar, ainda não haviam pousado naslivrarias brasileiras. Para desconforto doscríticos que amam organizar autores emtimes, não havia, na paisagem literária, umoutro escritor “tipo Murilo Rubião". Ele nãosó escrevia histórias bizarras como a meusolhos parecia, com a sua singular murilice,ter saído de algum de seus relatos fabulosos.

Em papel impresso e até em carne e osso,Murilo voltou à circulação em 1965, quandoa Imprensa Oficial publicou Os dragões eoutros contos, com 1000 exemplares e umabelíssima capa do pintor Mário Silésio. Tinhaquase 50 anos, mas podia dar aos desavisa-dos a impressão de ser de um estreante. Ocrítico Antonio Candido, sempre tão atento,leu Os dragões e, numa carta ao autor, sepenitenciou por não haver, dezoito anosantes, registrado condignamente a chegadade O ex-mágico.

Ninguém, aliás, soubera até então avaliardevidamente a arte de Murilo, cujo nome nomáximo aparecia, entre muitíssimos, na valacomum do vasto et cetera da ficção nacionalcontemporânea. Nem mesmo as antenasagudíssimas de Mário de Andrade, com quemele se correspondeu entre dezembro de 1939e dezembro de 1944. “Mário gostava doautor", me disse uma vez Murilo, sem som-bra de ressentimento, “e fazia o possível paragostar da obra..."

Foi esse o homem que Raul Bernardo Nelsonde Sena encarregou de injetar literatura noinsípido Minas Gerais.

Uma página, queria o secretário. Por que não um suplemento? — contrapropôsMurilo.

Na praça literária de Belo Horizonte, naque-la metade de anos 1960, a idéia foi recebidacom a indiferença, o ceticismo e o desdémque tantas vezes dão corpo ao espírito provin-ciano. Muitos achavam que seria precisorecorrer a traduções, pois simplesmente nãohaveria como encher tantas páginas.

Não era o que pensava Murilo, que tinhaviva a recomendação de Mário de Andradea Drummond e sua turma, quando os novosde 1925 engatilhavam A revista: até comoestratégia para não levar pancada, convinhamisturar autores novos e veteranos, resguar-dado, é claro, aquele mínimo de qualidadeliterária.

Foi o que Murilo cuidou de fazer naquelesuplemento literário que, por vir encartadonas edições de sábado do jornal oficial doEstado, era do, e não, como hoje, de MinasGerais. Desde o começo, pôs lado a ladonomes consagrados, como Emílio Moura,Henriqueta Lisboa e Bueno de Rivera, e osangue novo de Luiz Vilela, Sérgio Sant’Anna.Libério Neves, Sebastião Nunes ou AdãoVentura. Até mesmo passadistas como MoacirAndrade, Djalma Andrade e Eduardo Frieiro,escritores de nariz torcido para o já grisalhoModernismo, tiveram espaço no suplementode Murilo Rubião.

O semanário, decidiu ele com sabedoria, teria“feição predominantemente mineira", massem as viseiras do bairrismo; “a fidelidade àProvíncia, nos termos que a situamos, atéconjura o perigo do provincianismo", escre-veu num editorial — e lembrou: “O anseio deatingir a esquiva perfeição configura a cha-mada mineiridade".

Murilo fez mais do que misturar gerações:ampliando o alcance da receita de Mário deAndrade, quis um suplemento que se ocupasse

não só da literatura como da arte em geral —princípio declarado já no topo da primeirapágina do primeiro número. E assim foifeito. Além de ficção, poesia e ensaio lite-rário, o cardápio do jornal, naqueles come-ços, incluía cinema, teatro, artes plásticas.Foi multidisciplinar antes que se usasse apalavra.

Essa disposição de Murilo ficou bem claraantes mesmo de se rodar o número 1, quandoconvocou para trabalhar com ele o talentopolivalente de Márcio Sampaio — poeta, con-tista, artista plástico e crítico de arte, além dejornalista. O bom faro de Márcio permitiuque o suplemento, desde o início, formasseuma equipe de ilustradores que misturavanovatos como José Alberto Nemer e artistasjá reconhecidos como Álvaro Apocalypse,Eduardo de Paula e o próprio MárcioSampaio. Ou Jarbas Juarez, encarregado acerta altura de garimpar, entre seus alunosna Escola de Belas Artes, ilustradores para aficção e a poesia de autores igualmentejovens — cuja seleção, por sua vez, era feitapor Murilo, por Affonso Ávila e por LaísCorrêa de Araújo, que desde o primeironúmero pôs para girar uma movimentada“Roda gigante", nome da seção de notas queinformava sobre novidades literárias.

A comissão de redação do suplementoincluía, ainda, a experiência e o bom sensode Aires da Mata Machado Filho, que em1968 seria substituído pelo crítico e roman-cista Rui Mourão.

Além de Márcio Sampaio, Murilo arrebanhouJosé Márcio Penido, contista em quem detec-tou talento também de jornalista (embora oconhecesse apenas como caixa do banco ondetinha conta...), e o diagramador Lucas Raposo.Mais adiante, em 1968, engordou o grupocom a contratação dos poetas João PauloGonçalves da Costa, Valdimir Diniz e AdãoVentura, além do contista Carlos RobertoPellegrino.

Tive a sorte incomparável de ser escaladonesse time, no emblemático mês de maio de68, em substituição a José Márcio Penido,que estava de mudança para São Paulo.

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Estou seguro de que todos nós temos na vidaum ou dois encontros realmente decisivos —e não tenho dúvida de que, para mim, umdeles foi com Murilo Rubião.

Ele tinha sido um dos jurados de um concursode contos que venci em 1965. Já não me lem-bro do valor do cheque que recebi das mãos deAlceu Amoroso Lima, mas sempre considereicomo maior prêmio o exemplar autografadode Os dragões e outros contos com queMurilo me presenteou. E me senti importan-tíssimo quando, em 1966, ele me convidoupara colaborar no suplemento, o que come-cei a fazer em 1967. Olhando para trás, devoadmitir que, na apoteose mental de meus 21anos, fui tomado pelo que chamo de ver-tigem de sobreloja... Razão de sobra, sei hoje,tinha Paulo Mendes Campos ao observar quena vida literária a verdadeira glória vem nocomeço...

E nunca deixo de me espantar, de me emo-cionar com a imerecida corda que Murilodava ao petulante aprendiz de tudo. Sintoenorme vergonha retroativa quando me lem-bro da sem-cerimônia com que eu tomava aopé da letra os pedidos para ler e palpitar noscontos dele, Murilo Rubião. Lia e palpitavacomo se tivesse sob os olhos textos de umfrangote literário que nem eu próprio. Contosrecém-saídos do forno, como Os comensaisou Petúnia, e versões retocadas de outros jápublicados.

Um dia ele me pediu opinião sobre mexidasque dera em O ex-mágico da Taberna Minhota,carro-chefe de seu livro de estréia. Puxei acadeira para perto de sua mesa, saquei acaneta e, impávido, fui em frente, seguríssimode mim como nunca mais na vida. Do alto daminha sobreloja literária, lá pelas tantasimpliquei com o substantivo “despautério".Eu achava que a literatura se fazia de belaspalavras, e que despautério era um...despautério. “Não dá, Murilo!", pontifiquei.“Se eu fosse você, cortava imediatamente!"Muitos anos mais tarde, já provido dedesconfiômetro, me lembrei do episódio —mas não tive coragem de reler O ex-mágico.Recentemente, contei a história ao jovemjornalista e escritor Marcus Assunção — e ele

teve a maldade de me informar por e-mail,no dia seguinte, que a palavra já não lá está.E o pior é que, Murilo morto, não possoremediar o meu despautério...

Ele foi, de longe, o intelectual mais generosoe isento de preconceitos com que já cruzei, eisso se estampou com nitidez no seu suple-mento. Murilo fez dele não a trincheira deuma panelinha, como costuma acontecer,mas um espaço onde se constituiu umadiversificada federação de grupos literários.Sem jamais posar de maître à penser, deguru, de dono do terreiro, deu vez e voz a todoescritor jovem que lhe pareceu merecedor deoportunidade. Sem paternalismo.

A nós, os privilegiados a quem deu tambémemprego, Murilo proporcionou, de quebra, oenriquecedor convívio com habitués daredação do suplemento, entre eles o doceEmílio Moura, o divertido Bueno de Rivera —poeta com o qual só não aprendemos a ganhardinheiro, arte em que também era exímio... —,o sábio Francisco Iglésias, para não falar noincansável Hélio Gravatá, bibliógrafo semcujo rigor não teria sido possível preparar eeditar dezenas de edições especiais. Ou, depassagem, forasteiros como Décio Pignatari,Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, OttoMaria Carpeaux, Roman Jakobson, GiuseppeUngaretti, tantos outros. Clarice Lispector,com quem Murilo me encarregou de fazeruma das primeiras entrevistas de minhainvoluntária carreira de jornalista, incum-bência que na noite da véspera me tirou osono e que, numa fotografia, me botou decabeça baixa sob o olhar intimidador dagrande escritora.

Sob o comando de Murilo Rubião, ajudamosa fazer o que foi sem dúvida o melhor suple-mento literário do final dos anos 1960, sócomparável ao que então editava O Estado deS. Paulo. Parte da edição era remetida a bemescolhidos leitores de vários pontos do Brasil edo mundo. Outra se oferecia à venda, nas ban-cas de Belo Horizonte. A fatia maior, 27 000exemplares, era encartada no Minas Gerais,único jornal que chegava a cerca de 200pequenos municípios mineiros — e de lá,das profundas de Minas, não raro vinham

protestos contra o que seriam ousadias dosuplemento. Como aquele verso de AffonsoRomano de Sant’Anna, na primeira página,chamando o Empire State Building de “pênismaior do mundo".

Minas, aliás, é preciso que se diga, era onde osemanário de Murilo Rubião fazia menossucesso. Julio Cortázar lia em Paris o suple-mento que em Belo Horizonte era ignoradopela pequenez liliputiana de escribas provin-cianos. Nele escreveram os graúdos da litera-tura brasileira — uma lista cintilante quenão se esgota em Drummond, Murilo Mendes,Antonio Candido, Autran Dourado, José J.Veiga, João Cabral de Melo Neto, Augusto deCampos, Haroldo de Campos, Osman Lins, LuísCosta Lima, José Guilherme Merquior, LygiaFagundes Telles, João Antônio, Tristão deAthayde, Antônio Houaiss, Silviano Santiago,Benedito Nunes e até mesmo o esquivo DaltonTrevisan, para citar apenas alguns dos colabo-radores fora de Minas Gerais.

Os céticos que no começo aconselharamMurilo a fazer uma publicação à base de tra-duções também se viram atendidos: graças,sobretudo, a Affonso Ávila e Laís Corrêa deAraújo, divulgou-se farta e bem selecionadaprodução estrangeira naqueles três primeirosanos. Foi provavelmente no SuplementoLiterário do Minas Gerais que pela primeiravez se publicou no Brasil um conto deCortázar, Todos os fogos o fogo, traduzido porLaís em julho de 1968.

A primeira e gloriosa fase do suplementoencerrou-se, já se disse, com a saída deMurilo Rubião. Em seu lugar deveria entrarRui Mourão — cujo nome, porém, foi veta-do pelas autoridades da ditadura militar.Começava ali um longo e tormentoso perío-do, cujas agruras haverá quem conte bemmelhor do que eu.

HUMBERTO WERNECK é autor de O desatino da rapaziada(1992), Pequenos fantasmas (contos, 2005) e ChicoBuarque - Tantas palavras (reportagem biográfica, 2006).Organizou, para a Companhia das Letras, a obra deMurilo Rubião (2006) e a antologia Boa Companhia:Crônicas (2005), e, para a Rocco, Minérios domados,poesia reunida de Hélio Pellegrino (1993).

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HAYDÉE RIBEIRO COELHO

O SUPLEMENTO LITERÁRIO:

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Tratar de um longo período, como o que se enuncia, é bastantearriscado por vários motivos: pressupõe que a História é linear econtínua e que todos os aspectos do Suplemento serão abordados,dando idéia de totalidade, o que é impossível não pelo método,mas pelo olhar que se movimenta em múltiplas direções, fazendoopções e recortes.

No Suplemento, em 1969, há a permanência de orientações maisgerais que estão no editorial de seu lançamento em 1966, ouseja, a inserção de “aspectos universais da cultura", aliados à“feição predominantemente mineira". Refletir sobre a universa-lidade significa abrir fronteiras artísticas, literárias e críticas;constitui navegar por diferentes sistemas literários, sem se perderou anular-se e fazer dialogar a tradição e as vanguardas, abar-cando o presente, sem o desprezo pelo passado, seja esse vividonas artes mineiras (Literatura, Artes Plásticas e Música) ou nosartistas e escritores de toda parte.

Entrevistas, a inclusão de gêneros literários diversos (conto, frag-mento de romance e poema) e sistemas literários culturais devárias localidades nacionais e multiplicidade semiótica no campoartístico oferecem ao leitor do suplemento um espaço culturalvariado que se abre para uma multiplicidade de tempos.

Conforme comentei em outro artigo, é possível, no estudo doSuplemento, a identificação de várias séries ou conjunto de textosque vão se formando, permitindo ao estudioso abertura paramuitas leituras. Há, ainda, suplementos especiais e comemora-tivos, reiterando a maneira constelar do periódico. Essas pecu-liaridades estão presentes na história da publicação mineira.

Preservar a localidade significa manter o lugar de fala e imprimirum olhar e um discurso diferenciados do que se realizava emoutros espaços hegemônicos como Rio de Janeiro e São Paulo.

O universal e o local suscitam uma relação binária. No entanto,o Suplemento converte-se em um lugar de passagem, onde transi-tam homens, idéias e saberes. A geografia cultural mescla olocal, o regional e o nacional e outras regionalidades, além doestado-nação. Esse feixe de relações permite que o leitor acom-panhe toda movimentação cultural de Minas, do Brasil e dascapitais culturais. Vive-se em Minas, lê-se em Minas, lê-se deMinas, recebe-se o outro em Minas. Essa voz das gerais, noentanto, não se fixa.

Atenta aos vários números do suplemento de 1969, meu olharpasseia pelas notícias das bienais de arte; percorre o movimentoda crítica sociológica; acompanha a entrevista da autora de

Cantochão ao idealizador das Galáxias, provocando o encontrodo Barroco “medula da tradição criativa da arte brasileira" coma galáxia poética. Identifico vários estudos sobre o poeta queabalou a crítica com sua pedra. Os "valores" novos avultam-seno encontro feliz das artes plásticas e da literatura, presente emilustrações e desenhos de primeira página.

Em 1970, tenho encontro marcado com os novos de toda partee com os 75 anos do Cinema. Vou à Paris, recebendo “todas ascores e flores de Henri Matisse" e, em Amsterdam, vejo-me na“sala ou um quarto de hospital". Posso também visitar o“Festival de Woodstock". O cinema brasileiro e o cinema domundo recebem julgamento em Paris e o que é visto lá é comen-tado aqui. Diretores de cinema em destaque são objeto deinúmeros estudos.

1970 aguarda-me também com uma reflexão teórica sobre oscontos e os novos contistas. Além disso, presenteia-me com osviajantes estrangeiros e com números especiais dedicados aoautor de O seminarista. Sou brindada com panoramas que passoa perseguir desde então. Em “Problemas da crítica contem-porânea", um dos eminentes críticos da revista Tendência, evi-dencia a “função social e literária" da crítica, abordando o papeldo crítico no contexto do “New Criticism" e do Estruturalismo.Outro texto, tratando das fronteiras da arte, mostrava-se contrárioao Estruturalismo francês, evidenciando as tendências críticasdominantes: relançamento do close reading e nova abordagemsociológica.

A autora de Cantochão oferece um balanço informal sobre aficção, a poesia e o ensaio. A respeito da ficção, no que se referea algumas obras publicadas em 1969, atenta para os seguintesaspectos: “avanço de técnica e concepção de linguagem";“curiosa observação psicológica e sociológica" e “amostragemde estilo tipicamente nosso". No que diz respeito à poesia, salienta:“consciência reflexiva"; “sensibilidade e plasticidade lingüística";sensibilidade onírica mítica; montagem dramática e "consciênciade perenidade do tempo e das coisas". No ensaio, são evidenciados:A arte no horizonte do provável; Texto e contexto; Estruturas;Fenomenologia da obra literária; Guerra sem testemunhas; Oscavaleiros de Júpiter e O poeta e a consciência crítica. No campoda arte, o Dicionário das artes plásticas no Brasil apresenta umacontribuição também muito importante.

Em 1971, a crítica mineira escolhe os melhores filmes “de todosos tempos"; os salões de arte continuam sendo alvo de crítica ede visitação e um enfoque “panorâmico da gravura brasileiramoderna, abrangendo um período que se inicia com Oswald

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Goeldi e vai até à nova vanguarda representada especialmentepor Lótus Lobo" nos é oferecido.

Aprende-se como “a arte pode servir à ciência". O protesto, regis-trado de Jane Fonda “contra a guerra", apresenta uma perspectivaavessa ao cinema de Hollywood; a multiplicidade ilimitada “nasartes visuais" aponta para a compreensão de uma “prática diver-sificada" e a relação entre o cinema e o jornalismo aproximaleitor e espectador as várias “manifestações de arte popular", emdestaque, possibilitam-nos refletir sobre a “criatividade de base".

No campo da crítica, o livro Fenomenologia da obra literáriacontinua sendo destacado, “despertando no Brasil o mais vivointeresse entre professores e estudiosos da Literatura" e, arespeito de Vanguarda e subdesenvolvimento, era ressaltado queseu autor compreendia bem “o regional; o nacional e o interna-cional na Literatura". A “narrativa simples" e a de “estruturacomplexa" eram teorizadas, apontando caminhos metodológicospara o estudo da Teoria Literária.

Abria-se, também, o campo teórico para a discussão de livrossobre quadrinhos; noticiavam-se congressos que discutiam ainclusão da literatura ultramarina (literaturas africanas) nos pro-gramas de Literatura Portuguesa nas Faculdades de Letras doBrasil. A literatura infantil começava a ser foco de discussões.

A década de 70 permite o olhar sobre 60, período marcado por“intensa criatividade" e “força contestatória" como se observaem “Arte brasileira: a década chave de 1960". Curral dos Cruci-ficados, na mira da crítica, aliava o Barroco à nova ficção.

Durante 1972, obras de autores mineiros como Ópera dos mortoseram comentadas por críticos de universidades americanas.Igualmente, poetas mineiros, de projeção nacional, eram objetode vários estudos e livro. Refiro-me aos autores dos textos Florda morte e Poliedro. A palavra e a visualidade, que entrelaçamas artes plásticas e visuais ao literário, são contempladas emartigos de especialistas de respectivas áreas. Em “O texto e osprocessos de visualização do barroco mineiro", é explicitada aimportância da sensibilização dos olhos, “para depois comunicarà inteligência a mensagem ou informação textual". No contextodo Barroco, “a arte caligráfica desempenhava papel importante",considerando a “ausência de recursos mecânicos de reproduçãode textos".

A redescoberta do Brasil pelos modernistas, passando por Minas,é rememorada, no Suplemento, por ocasião dos cinqüenta anosda Semana de Arte Moderna. Na edição de 8 de julho de 1972, é

reproduzida a entrevista publicada na primeira página de oDiário de Minas. A matéria, datada 27 de abril de 1924, tinhacomo foco a embaixada artística representada pelo poeta francêsBlaise Cendrars; Olívia Penteado, Tarsila do Amaral, Oswald deAndrade, Godofredo Telles, Mário de Andrade e René Thiollier.Entre o espaço de tempo decorrido e os anos 70, a rememoraçãodo fato ocorrido não constitui um ato de reverência ao passado,mas reafirma a importância de Minas para a história literária ecultural do país. Esse destaque, concedido a Minas e sua história,ocorre também em outro momento por ocasião da visita de JulioCortázar, registrada em 1973.

O editorial do Suplemento apresentava a trajetória de Cortázar aMinas, seguindo o guia de Manuel Bandeira. Na apresentaçãodessa viagem, ali estava também o roteiro de Cortázar: “estávoltando agora a São Paulo, depois de Brasília, mais uma vezcom Haroldo de Campos, concretamente digerindo Oswald, vai aSantiago do Chile que o fascina muito, e a Buenos Aires, metadeda vida."

Passar por Minas e, especialmente por Ouro Preto, significa evocara viagem feita à terra mineira pelos modernistas em 1924, “cice-roneando Blaise Cendrars" e reatualizada pelo Suplemento nacomemoração dos cinqüenta anos (já mencionada) e acena,ainda, para o encontro com o Barroco Mineiro “medula datradição criativa da arte brasileira" (segundo Laís Corrêa deAraújo) e o concretismo. Nesse contexto, Minas acaba por repre-sentar, no caminho de Cortázar, a encruzilhada de várias veredasartísticas e históricas por onde passa a arte, mas também a liber-dade. E, nesse caso, metaforicamente, o encontro da AméricaLatina com Minas e o Brasil só poderia acontecer em Ouro Preto.

O editorial do Suplemento é seguido por um artigo de FábioLucas (“Presença de Cortázar") que intercala o relato sobre aviagem do escritor argentino com comentários sobre sua obra.Interessa-me destacar, nos fragmentos abaixo, o fato de o críticobrasileiro salientar as qualidades artísticas da obra de Cortázarassociadas à militância política do autor, sem que as duas esferasse confundam:

Fábio Lucas afirma:

“Diz-se que a forma do livro Rayuela é o seu conteúdo.Mas é perigoso considerar Cortázar como um escritorformalista. Se por vezes a sua obra não responde a umavisão realista da arte, torna-se inteiramente satisfatóriaao nível mítico-simbólico. Rayuela, na história do gêne-ro, constitui mais uma tentativa bem lograda de ruptura

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com a causalidade psicológica. No Brasil, tivemos comMacunaíma de Mário de Andrade um prenúncio dessatendência."

Em outro momento, o crítico diz:

“Julio Cortázar está interessado no destino econômico epolítico da América Latina. Alinha-se ao lado de gran-des nomes, sentindo a necessidade de colaborar para queos diferentes países possam vencer o jugo colonial, quelhes destroça a paz, as relações étnicas e sociais harmo-niosas que planta discórdia e a guerra. Não lhe escapa aluta do Terceiro Mundo. Tem uma visão dialética dosmovimentos sociais. A dinâmica da vida absorve partede sua energia criadora.

Uma vez, encontrei-me em Nova York com GregoryRabassa, tradutor de Cortázar para o inglês e um dosmaiores tradutores de obras da literatura hispano-americana para o inglês. Estivera no Brasil por algumtempo e convivi com ele por alguns dias. Estava tradu-zindo Paradizo de Lezama Lima e me contou como ostextos iam dele e deste a Lezama Lima, numa triangulaçãopara vencer as dificuldades de trânsito. Paradoxo da eradas comunicações".

Por esse último trecho, poderíamos chegar a Cuba não pela revo-lução cubana, a partir da qual foi pensada, na década de 60, aAmérica Latina, mas por meio de Lezama Lima que refletiu sobreo barroco como expressão americana.

Nesse mesmo ano (1973), a memória musical de Minas, eviden-ciada na pesquisa de Curt Lange e, divulgada no Suplemento, seencontra com aquela comentada por críticos nacionais, indoalém do local. A respeito de um dos compositores do momento,era dito: “letrista inventivo, compositor extraordinário, cantorque redescobre continuamente a própria voz". Em um dos edito-riais se lia: “E como um lance de dados, não sabe onde chegarácerto apenas de que é na área da música popular, com seus poetasmúsicos, que se encontram os verdadeiros inventores da geraçãoseguinte a do concretismo". O interesse se mostrava igual emrelação ao estudo do cordel e seus folhetos circulantes no Brasil.

A literatura brasileira era contemplada lá fora com estudos naItália e “a arte de computador em mostras internacionais" chama-va a atenção do leitor para a divulgação das novas tecnologiasincorporadas ao fazer artístico. A UFMG recebia Michel Foucaulte seu pensamento filosófico era comentado no Suplemento.

No periódico mineiro, nos anos 70, a colaboração local, repre-sentada pela produção acadêmica, se mostra de forma maisintensa, propiciando o aparecimento de análises estruturalistasem voga em algumas universidades brasileiras. No ano de 1973ainda, dois números foram dedicados à ficção brasileira, apresen-tada sob a forma de romance ou conto.

Em “Aspectos da ficção contemporânea", o leitor se depara comum panorama importante sobre as tendências ocorridas noâmbito ficcional: a passagem do “romance-tese" e do “romance-documento" para a exploração da supra-realidade no campo danarrativa; intervalo épico representado por grandes narrativas;destaque para o romance de personagem e para a “notável gera-ção de contistas da década de 60" e o romance “sob uma formaelítica", preservando capacidade crítica.

Entre 1975 e 1980, foram publicadas várias séries como: “Bentinhoda samambaia", cuja existência data entre 1975 a 1983; “FrançaHoje", abril de 1976 a março de 1980; “Poesia brasileira hoje", ini-ciada em setembro de 1979 até novembro de 1980; a série “Novos,”referente aos novos pela idade, pela publicação no Suplemento epela iniciação literária (iniciada em 1978 até 21 de julho de 1979)e “O poema necessário" (11 de nov. 1980 até abril de 1983).

Nos anos 80, suplementos especiais foram dedicados aos 50 anosde poesia de Carlos Drummond de Andrade; a Luís de Camões;ao Centenário de Memórias Póstumas de Brás Cubas e ao escritorJoão Alphonsus de Guimaraens.

Em 1981, o Suplemento completou quinze anos. No editorial desetembro, foram destacados o caráter “modernizante" e o “espíritomineiro". Aparecem, ainda, no mesmo texto, constatações de queo periódico superou o “provincianismo", alcançando nível nacio-nal e mesmo internacional e que houve abertura para váriastendências críticas. Esses aspectos e as diferentes manifestaçõesestéticas reiteram algumas tendências dos anos anteriores.

HAYDÉE RIBEIRO COELHO é professora de Teoria da Literatura, Faculdade de Letras daUFMG e pesquisadora do CNPq.

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Num (in)certo “fim de ano", o SuplementoLiterário do Minas Gerais encerrava a primeirafase de sua trajetória. O número 1178, curiosa-mente, deixa de indicar o mês em que circula (oanterior tem a data de setembro), registrandotodavia, no alto da primeira página, que se tra-tava do vigésimo sexto ano, e, nos créditos, sim-plesmente: “Belo Horizonte, 1992, ano XXVI -16 páginas. Circula encartado no Minas Gerais."Que se trata da conclusão do ano em pauta,constata-se também na página dedicada aoslançamentos de livros recentes, que leva comotítulo: “Poesia enriquecida neste fim de ano".

Fim de ano, fim de fase – aparentemente, fimdo próprio SL, que só voltará a circular emnovembro de 1994, depois, portanto, de maisde vinte e quatro meses de silêncio, numa con-tagem que se reiniciava como ano um, númeroum, ou seja, como começo (e não recomeço).A diferença: o periódico passava para aSecretaria de Cultura. O necrológio (da fase ante-rior) se deve à então Secretária, Celina Albano,que, após referir-se aos tempos míticos emtorno de Murilo Rubião, relata: “À medida quetoda essa geração se abria para o amplo reconhe-cimento público, melancolicamente o Suplementoia-se fechando, num definhamento em que searrastou até a agonia." Um descompasso, por-tanto. De um lado, uma geração de sucesso; deoutro, o definhamento e a agonia. Como emcaminhos que se bifurcam: o apogeu e a deca-dência. Tudo (adverbialmente) mergulhado emmelancolia.

De modo bastante preciso, convém ressaltar,haviam sido exatos, em anos, vinte e seis, jáque o número inaugural se publicara (nomesmo mês de setembro) em sessenta e seis. Arepetição dos setembros e dos seis sugere quehá, pelo menos, duas rimas, para uma só(dis)solução. E a melancolia, que, segundoFreud, no plano dos afetos corresponde aoluto, parece motivada pela nostalgia de não sepoder recuperar o que então se perdera: talveznão tanto o SL, mas aquela “geração" que sebatizara com seu nome. A qual mudara ealçara vôos, do mesmo modo como, desde 66,o mundo se transformara – e o Brasil tinhacolecionado a ditadura, o AI 5, a aberturalenta e gradual, a anistia, as diretas que nãoforam tão já, a redemocratização, a primeiradecepção eleitoral e a primeira mobilizaçãonacional (concluída com o impeachment, nomesmo setembro de 92). Esse rol de efeméridesressalta o significado daqueles vinte e seisanos. “Anos Suplemento", conviria batizá-los.

O exame do derradeiro número é esclarecedor.Aí se encontram ensaios sobre o cânone (a propó-sito de um livro esquecido de Cecília Meireles),um novo poeta (Rodrigo Haro, artista plástico jáconsagrado, mas que lançava então seu terceirolivro) e autores mineiros (Joanyr de Oliveira eRoberto Drummond). A literatura hispano-americana está representada em estudo e textodo contista uruguaio Javier de Viana, enquantoa literatura infantil é examinada do ponto devista da presença, nela, do imaginário dos povosindígenas. Publicam-se ainda poemas de DaniloGomes e Virgílio Mattos, acompanhados das

ilustrações de Sérgio Nunes e Tereza Yamashita.Enfim, a matéria central é constituída porentrevista de João Gilberto Noll a CleideSimões. Como se vê, o Suplemento mantinha,na hora derradeira, a variedade que o carac-terizara ao longo dos anos, interessando-sepelo consagrado e pelo novo, pela crítica e pelaprática, o local e o universal, o escrito, o visu-al. Conservava aquilo que marcara, desde o iní-cio, sua trajetória, conforme as palavras deLuiz Cláudio Vieira de Oliveira: “a importânciado Suplemento reside em seu ecletismo".Portanto, se é certo que todo fim guarda sua

SUPLEM

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dose de melancolia, não se poderia dizer que odo SL (mais exatamente, o de seus primeirosvinte e seis anos) se deveu a decrepitude.

Do ponto de vista que aqui nos interessa, adécada final da primeira fase do SL, é ilustrativoverificar até que ponto aqueles da primeira horamantiveram sua participação, podendo os gruposdistribuir-se entre dois extremos: os que restrin-giram sua presença apenas aos anos inaugu-rais, de que é exemplar o caso de HumbertoWerneck, o qual se afasta já em 1970, voltandoa publicar não mais que um estudo sobre

Murilo Rubião em 87; e os que se mantiveramconstantes, com maior ou menor regulari-dade, como Márcio Almeida e Luís GonzagaVieira, este último escrevendo sobre RobertoDrummond ainda no derradeiro número de 92.No intervalo, em ordem crescente, encontram-se,para citar apenas alguns exemplos, Luiz Vilela,cuja última contribuição data de 85; MárcioSampaio, Murilo Rubião, Affonso Ávila e HenryCorrêa de Araújo, que escrevem pela última vezem 87; Duílio Gomes, em 90; Adão Ventura,Sebastião Nunes e Laís Corrêa de Araújo, comtextos aparecidos em 91; e Fábio Lucas, que se

mantém firme até 92. É provável, contudo, queninguém tenha superado, em regularidade, NellyNovaes Coelho, a qual, nos extensos vinte eseis anos, apenas em 88 passou em brancasnuvens. Proeza comparável à de Chanina, queenriquece com seu traço seguro tanto o pri-meiro número, de 66, ilustrando poema deLibério Neves, quanto, no penúltimo, de 92, fazpar com outro poema, agora de Walmir Ayala.Assim se amarram as duas pontas de um período(etimologicamente, um percurso circular, queacaba como começa), em que duas qualidadesmerecem atenção: a fidelidade à proposta iniciale a capacidade de renovação.

Aliás, a permanência é destacada pelo próprioMurilo Rubião, em sua última aparição no SL,quando a publicação comemorava os vinte ecinco anos e ele concedeu a que seria a der-radeira entrevista antes de sua morte: “oSuplemento – ele assevera – em 1966, era feitonos moldes do atual, mas com algumas dificul-dades a mais". Essas dificuldades ficavam porconta de circunstâncias que cercavam a comuni-cação com os colaboradores (feita toda pelo cor-reio, já que um interurbano acabava demorandomais para ser completado) e as complicaçõesque cercaram a contratação de um fotógrafo(para possibilitá-la, o governador teve de criaruma lei). Todavia, contra esse pano de fundo doque permanece nos mesmos “moldes", obser-vam-se mudanças significativas, sendo de desta-car as que persistem ou ocorrem na década deoitenta: a primeira, que muitos dos colabora-dores do Suplemento se tornam assunto; asegunda, o aparecimento da crítica literária pro-duzida por autores de Belo Horizonte, em geralligados ao então incipiente curso de pós-gra-duação em Letras da Universidade Federal deMinas Gerais; finalmente, como alguns temasganham espaço privilegiado, o que acontece, emespecial, com a literatura infanto-juvenil.

O caso mais relevante com relação ao primeiroaspecto é o do próprio Murilo Rubião. Não que,nos anos sessenta e setenta, apreciações de suaobra não tenham tido lugar, mas é sobretudona década seguinte que elas crescem considera-velmente: enquanto de 66 a 69 contam-secinco matérias e, de 70 a 79, vinte e uma, nosanos oitenta esse número cresce para trinta eoito. O leque de comentadores também seamplia consideravelmente, abrangendo nomescomo os de Rui Mourão, Jorge Schwartz,Álvaro Lins, Fábio Lucas, Hélio Pellegrino,Paulo Mendes Campos e David Arrigucci. Mastambém a produção de Luiz Vilela, Lúcia

MENTO

JACYNTHO LINS BRANDÃO

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Machado de Almeida, Adão Ventura, LibérioNeves, Ivan Ângelo e outros é alvo de comen-tários, num importante intercâmbio, que vale-ria a pena estudar em detalhe, entre a produçãoe a crítica, ou seja, como, alternando os papéis,esses escritores-críticos ou críticos-escritoresestabelecem uma extensa rede de relaçõesintelectuais. Existem mesmo aqueles, comoCarlos Herculano Lopes, cuja contribuiçãoliterária se firma nos anos oitenta, merecendoabordagem na mesma década. Mas há tambémo contrário: autores que, depois de consagrados,passam a atuar como colaboradores, como é ocaso de Autran Dourado, que, de 81 a 91, deixade ser só assunto e passa a assinar matériassobre variados temas.

Por seu lado, a geração de críticos mineiros liga-dos às universidades marca presença no SL, deforma esporádica, já a partir da década desetenta, mas assume um papel importante nomomento seguinte. São nomes como os deLetícia Malard, Ana Maria de Almeida, WanderMiranda, Ivete Walty, Ruth Silviano Brandão eEneida Maria de Souza. Sua atividade foi aresponsável pela difusão de tendências críticas,como o estruturalismo, a intertextualidade, asemiótica, os estudos de gênero, as conexõesentre literatura e psicanálise e a literatura com-parada. É curioso, por exemplo, que o estrutu-ralismo, enquanto método, tenha sido objeto,antes, de trabalhos que têm uma perspectivateórica, desde os artigos de Fábio Lucas e MariaJosé de Queiroz (publicados em 68), até os deAna Maria Viegas (que datam de 78 e 79).Contudo, é na década de oitenta que não sóessa corrente, como outras, se afirmam, numespaço heterogêneo em que o mais relevanteacaba sendo o próprio fato de o SL ter mediadoa exposição e discussão de idéias e posturas,renovando a crítica e ensinando formas contem-porâneas de abordagem da obra literária.

Finalmente, no que respeita aos gêneros, os anosoitenta são também marcados por um grandeinteresse pela literatura infanto-juvenil. Vale apena, mais uma vez, recorrer aos dados: de 66a 69 contam-se não mais que três trabalhos

dedicados ao assunto, índice que, na décadaseguinte, sobe para cinqüenta e, nos anos oiten-ta, para sessenta e quatro. Verifica-se, portanto,um crescimento progressivo, com destacada par-ticipação de Márcio Almeida e Euclides Marquesde Andrade, da segunda metade da década desetenta em diante, e também de ReginaZilberman, Ângela Leite, Vivina de Assis Viana,Alaíde Lisboa, Elias José. A série “Colocação daliteratura infanto-juvenil brasileira", publicadaem 1992, traz quinze entrevistas com autoresrenomados nessa área, como Lúcia Machado deAlmeida, Libério Neves, Alaíde Lisboa, EuclidesMarques de Andrade, Stella Leonardos, LygiaBojunga Nunes, Bartolomeu Campos Queirós,Terezinha Alvarenga, Ângela Lago. Como se vê, oSuplemento torna-se assim o palco de um amplodebate, no exato momento em que a produçãonessa esfera cresce em quantidade e qualidade, oque se nota também pelas inúmeras referências alançamentos na coluna Painel de Livros.

O último tema oferece a oportunidade para apróxima reflexão. Com efeito, o SL nasceu e,até o final de sua primeira fase, foi distribuí-do “encartado no Minas Gerais". É aindaMurilo Rubião quem sublinha a importânciadesse detalhe, ao referir que Israel Pinheiro,então Governador do Estado, “teve em mãosum relatório que colocava o Minas Geraiscomo o único jornal que chegava a todos osmunicípios mineiros"; a partir disso, decidiuque o periódico, que antes publicava apenasos atos do governo, passaria a veicular tam-bém notícias e teria um suplemento literário –coisa em que, ainda segundo Murilo, “quaseninguém acreditava": um suplemento literário“em jornal oficial". Pois bem, esse fato trans-porta-nos da perspectiva da produção do SLpara a de sua recepção. Nesse sentido, antesde tudo cumpre sublinhar que seu reconhecidoecletismo diz respeito não só ao que publica,como também ao público a que se destinoudesde sua criação, o que o desejo de atingirtodos os municípios mineiros naturalmenteimplica. E talvez esse seja seu maior mérito edas razões principais do papel que tem desem-penhado.

De fato, como fez Luiz Cláudio de Oliveira emseu livro sobre a recepção crítica da obra deGuimarães Rosa no SL, esse é um aspecto darecepção a que o periódico oferece vasto mate-rial, o qual deve ainda ser explorado em seuecletismo. O objetivo seria examinar qual papelele teve não só na divulgação de autores e naapreciação de suas obras, como também na for-mação de um cânone literário contemporâneo.Todavia, outro viés, talvez mais difícil de tra-balhar, mas extremamente relevante, seria consi-derar sua penetração, o fato de que se oferecea um universo de leitores tão variado, que vaido interior mais remoto do Estado, aos ambi-entes universitários do Brasil e do exterior. Oque se publicou, por exemplo, relativamenteao ensino da literatura, sem dúvida teve umimpacto pedagógico cuja força ainda precisaser pesquisada. Uma pergunta simples: queconseqüências teve o dossiê referido sobre aliteratura infanto-juvenil no ensino de pri-meiro e segundo graus, tendo em vista que oSL chegava a todas as escolas estaduais? Quantoa grande mudança do olhar sobre a literaturainfantil, observada principalmente na década de80, deve ao SL? Ele simplesmente refletiu asmodificações ou provocou-as?

Ainda pelo mesmo caminho, não é de menormonta considerar o quanto se divulgou da litera-tura estrangeira. Desde o início, as traduções eos estudos nessa esfera tiveram seu lugar e, nadécada de oitenta, abrangeram personalidadesconhecidas como, dentre outros, Stefan Zweig,Hermann Hesse, Edgar Alan Poe, VladimirNabokov, Marguerite Duras, Emily Dickinson,Jean Genet, Dostoievski, Kaváfis, Brecht,Shakespeare, Isaac Bashevis-Singer, Saint JohnPerse, François Villon, Rilke e Simone Weil,bem como outros escritores que se ofereciamcomo novidade ao leitor brasileiro, como o russoVelimir Khlebnikov e os romenos Tudor Arghezi,Lucian Blaga. Capítulo à parte, dos mais impor-tantes, diz respeito à literatura latino-ameri-cana, cujo conhecimento e difusão no Brasilsem dúvida deve muito ao SL, o que tem sidoestudado por Haydée Ribeiro Coelho. Nos anosoitenta ela continua muito presente, com

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traduções e estudos sobre Borges, Neruda, MarioVargas Llosa e Rubén Darío – e também apropósito de nomes menos conhecidos, como operuano Jorge Eduardo Eielson, o venezuelanoEugenio Montejo, o mexicano Hugo Gutiérrez,Vigilio Piñera, de Cuba, e Roa Bastos, paraguaio.

Outro tanto pode-se dizer das literaturas estran-geiras de língua portuguesa, com trabalhos queabordam desde os clássicos (o preferido éCamões, mas comparecem também Eça deQueiroz, Camilo Castelo Branco e FernandoPessoa, dentre outros), até os contemporâneos(Fernando Namora, José Pires Cardoso, LoboAntunes, por exemplo). Também publicam-sepesquisas de conjunto sobre as tendências daprosa e poesia em Portugal – a “poesia visual"merecendo destaque. A literatura moçambi-cana esteve representada por Eduardo White,Noémia de Sousa e Luis Carlos Patraquim, nãose comparando contudo sua inserção no SL àdos autores angolanos. São vários os nomes:Ana Paula Tavares, Lopito Feijoó, José LuisMendonça, Boaventura Cardoso. Como nessescasos a literatura é estrangeira mas a língua écomum, há os colaboradores do outro lado doAtlântico: o português Vergílio Alberto Vieira,apresentado então como jovem poeta, publicamuito nesse período, o mesmo acontecendocom João Maimona, que concede, inclusive,longa entrevista a Cleide Simões, em 86.

Um aspecto geralmente pouco observado –talvez porque esteja em causa um suplementoque se diz “literário" – é o fato de que, desde oinício, o SL esteve aberto e acolheu uma pro-fusão de estudos sobre a língua portuguesa,corpus que também ainda espera estudo maisdetido. São tratadas desde questões mais práti-cas, relacionadas com o uso de palavras ouexpressões e com a composição do texto (nosanos oitenta, José Augusto Carvalho dedica-sebastante a isso), até abordagens de cunholingüístico e sócio-lingüístico (é também damesma época a abordagem de Sonia Queirozsobre a língua dos negros da Tabatinga). Em 82,assiste-se a acirrada disputa entre SegismundoSpina e Celso Cunha sobre a estrutura do

segundo verso dos Lusíadas (“que da ocidentalpraia lusitana”): o primeiro, em trabalho publi-cado em março, defende que se trata de um“verso épico", cuja divisão interna ocorreria nasexta sílaba (ou seja, a primeira de “praia"), aoque o outro contesta, no mês de junho, com viru-lência, afirmando que o verso é camoniano,com cesura na quinta sílaba (a última de “oci-dental"), onde se encontraria, então, a tônicapredominante, voltando Spina a escrever emsetembro, para defender sua posição, não sóquanto ao verso que se tornara o pomo da dis-córdia, mas também com relação a seu livro deversificação, duramente atacado pelo opositor.Detalhe curioso: ambos surgem nas páginas doSL apenas para esta polêmica, desaparecendoem seguida por completo.

O que nos conduz a mais um aspecto digno deregistro: o dos colaboradores bissextos. É natu-ral que, numa visão de conjunto, nossa atençãose volte principalmente para aqueles que mar-cam uma presença regular. Contudo, a grandemassa dos que escrevem apenas esporadica-mente desempenha um papel nada desprezível,sendo estes, aliás, os principais responsáveispelo caráter “eclético" do SL, reconhecido comouma de suas principais virtudes. Nessa categoriaincluem-se, por exemplo, Maria Luiza Ramos,que em 84 publica trabalho sobre o realismofantástico, Roberto Drummond, a quem se deve,em 88, matéria sobre como “surgiu o cartunistaHenfil", e Donaldo Schüler, de quem se contamsete intervenções, entre 82 e 86, tratando dasobras recentes de Autran Dourado, VargasLlosa, Darcy Ribeiro, Márcio de Souza, AffonsoRomano e Walmir Ayala. Pode-se dizer que hátambém os assuntos bissextos: temas filosóficose antropológicos, além de, com mais intensi-dade, históricos e artísticos (música, cinema,teatro), o que, entretanto, garante uma outrafaceta do “ecletismo" do SL, mesmo que sem odestaque que se empresta à literatura e às artesvisuais.

Sem dúvida, num balanço de conjunto, cumprereconhecer que este é o foco primordial: litera-tura e artes plásticas, ou seja, a inscrição no

espaço em branco, em que, com traços negros,como é próprio do jornal, se registram palavrase imagens. Fazendo com que, sistematicamente,se aproximem, dialoguem e, muitas vezes, queumas se convertam nas outras, ou, noutros ter-mos: recuperando o sentido arcaico do grafismoenquanto gesto primordial tanto do escrever,quanto do desenhar. Uma combinação feliz quemarca a trajetória do SL, e da qual não teria comofalar com um mínimo de exatidão, restandoapenas o convite a que o leitor percorra aspáginas do próprio periódico, que agora seoferece, em sua integridade, na Internet, graçasà iniciativa e ao trabalho paciente das biblio-tecárias Júnia França Lessa e Rosângela CostaBernadino. Um exercício a ser feito com vagar,a fim de que se possa fruir o quanto se fez. Atéaquele (in)certo final de 92, quando, parecia queem definitivo, o SL interrompe suas atividades.

Que felizmente foram retomadas dois anosdepois. Com efeito, o mesmo esforço de compre-ensão das articulações entre o período de quenos ocupamos e os anteriores mereceria ser feitocom relação à primeira fase e a que (re)iniciaem 94. Para avaliar como se continua a coor-denar a permanência com a mudança (no mesmorio entramos e não entramos etc.). Bastaria per-correr a relação dos colaboradores que volta-ram depois do anunciado fim. Perceber que hámãos novas deixando as marcas de seus traços.Que o “mineiro" não implica abandono do uni-versal. O novo não exclui o antigo. O universo deleitores pretende manter a perspectiva do sertãoe do vasto mundo. Em conclusão: que se preser-ve o ecletismo como trunfo principal.

Mas isso já é uma outra história.

JACINTHO LINS BRANDÃO é Professor Titular de Língua eLiteratura Grega da Universidade Federal de Minas Gerais.

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HAYDÉE RIBEIRO COELHO

RODAUM TEXTO PARADIGMÁTICOGIGANTE

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Em um levantamento sistemático, realizadopor Júnia Lessa (bibliotecária da Faculdadede Letras da UFMG) e eu, pudemos verificarque, no Suplemento, havia textos das maisvariadas literaturas como: hispano-ameri-cana, belga, tcheca, norte-americana, inglesa,italiana, espanhola, portuguesa, russa,africana, francesa, alemã, irlandesa, japonesa,sueca, polonesa, húngara, vietnamita, grega,libanesa, romena e persa, o que demonstracomo o periódico acolhia uma diversidadede sistemas literários.

De forma paradigmática, “Roda Gigante", daautoria de Laís Corrêa de Araújo, exemplificaesse aspecto. Trata-se de uma série que cir-culou entre 1966 e 1969 no periódicomineiro. Em depoimento, concedido em1997, na Faculdade de Letras, integrado aolivro organizado por Maria Esther Maciel, aautora, de Caderno de Poesia, esclarece quefazia a seção “‘Conversas na mesa’, crônicasno jornal Diário de Minas e depois noEstado de Minas (então com o nome de RodaGigante), entremeando as crônicas comdivulgação de livros, respeitada por minhaatitude crítica considerada ‘severa’".

Quando se analisa um periódico especiali-zado, há múltiplas entradas. Lendo “RodaGigante" e, preparando meu primeiro textosobre o Suplemento, verifiquei que estavadiante de uma multiplicidade que, demaneira exemplar, me apresentava, sob oponto de vista crítico, o suplemento mineiro.

Em “Roda Gigante", são comentados textosde autores nacionais e estrangeiros; dife-rentes gêneros narrativos; há espaço para oestudo de textos de autores canônicos e denovos artistas; há um declarado interessepelos poetas de vanguarda, “entendida comoconcepção dialética do indivíduo e domundo", como uma “realidade complexa, quenasce da convergência da linguagem com aarte”. Há inúmeras entrevistas com impor-tantes intelectuais, críticos e escritores doBrasil e de outras plagas.

Na função de ensaísta, Laís Corrêa de Araújocomenta ainda sobre a comunicação de

massa. Reportando-se a um congresso inter-nacional de escritores, realizado em 1954,evidencia que os intelectuais preferem“ignorar os modernos meios de comuni-cação, alegando seu baixo nível estético, autilizá-los como deviam, no interesse nãosó da cultura como de todo o povo, queparticiparia do privilégio de conhecer omelhor". Segundo a autora, o livro continu-ava sendo o meio para a educação, mas osdirigentes poderiam utilizar os meios decomunicação para uma “autêntica demo-cratização da cultura".

A autora de Decurso de prazo, em “Fantasiae invenção", subtítulo de Roda Gigante,ressalta o desinteresse pelo trabalho editorialno setor do livro infantil. Comentando aadaptação de “Alice no país das maravilhas"e “Alice no reino dos espelhos", livros publi-cados pela editora Melhoramentos, de LewisCaroll, pseudônimo de Charles LutwidgeDodgson, mostra como na tradução e naadaptação infantil, o texto acaba perdendoo poder imagético e o vocabulário altamentecriativo. Na opinião da ensaísta,

“Lewis Caroll, ao criar o mundofantástico de Alice com sua lingua-gem característica, criou um estí-mulo para a associação livre, para aatenção eletiva, para a experiênciainventiva, para a ampla expansãodo pensamento. Assim entendemosdeva ser a ‘literatura infantil’, tãoimportante e tão incitante quanto a‘Literatura’".

A autora de “Roda Gigante" não se esqueciado movimento editorial do país em plenaexpansão. Na medida em que comentava aobra e respectivos autores, apresentava tam-bém as editoras e suas coleções.

Na mesma série, na seção “Informais", sãodivulgados textos de natureza diversa(políticos, antropológicos, de Medicina eEletrônica, Psicanálise e Economia). Tra-duções de livros são apresentadas e há,ainda, a divulgação de revistas produzidasem Minas, no Brasil e no exterior). Acredito

que “Informais" possibilita ao estudioso umavolumosa matéria, para reconstituir omundo da leitura nas décadas de sessenta noBrasil, devido à precisão e à variedade detítulos oferecidas pela seção de “RodaGigante."

Em 6 de maio de 1967, Laís Corrêa de Araújo,ao focalizar o romance do boliviano AugustoCéspedes, mostrava que o desconhecimentorecíproco dos escritores sul-americanos erauma verdade que devia ser superada. Nessesentido, a poeta e ensaísta tem um papel fun-damental, traduzindo textos teóricos e lite-rários, buscando romper com o insulamentodo Brasil em relação aos demais países his-pano-americanos e vice-versa.

Laís de Araújo foi uma incansável fundadora,colaboradora e redatora do SuplementoLiterário do Minas Gerais, merecendo todonosso apreço e agradecimento por sua tarefade poeta, de ensaísta, de tradutora, divulgan-do cultura e literatura. O “movimento normaldos livros", no ensaio da poeta mineira, ali-mentou, com certeza, muitos leitores. Nessesentido, é importante destacar também o tra-balho coletivo dos amigos e colaboradoresque permitiu a longa vida do suplemento.

Laís Corrêa de Araújo. {Foto: Patrícia Azevedo, 1993.}

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Rastejo coleante entre opassado monolito e o futuromonólito a ser plantado einternetizado à espera do herói.

_______ O silêncio cumpre a missãode avental asséptico contra bactériasda vida.

Rastejo entre rios de pedraonde a água é imagem perdidae a sinalização é fartasem índices para onde e quando.

_______ A solidão terceiriza os bonse a auditoria faxina as teiasda vida.

Rastejo entre o sol e a terracomo um eclipse em que os óculosnão percebem sequer a sombrade inútil patrimônio a restaurar.

_______ A inquietude é o sal sem sabor,diet e light, alimento perecívelda vida.

Rastejo porque não tenho asaspara voar sobre árvores decepadase o triunfal ruído das motosserras,em cambaleante esterilidade.

_______ A melancolia é o licor amargoabafando a constante contorçãoda vida.EL

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Rastejo em tantas mil encruzilhadasde concreto opaco, endurecendo os deusestravestidos da pátina-memóriapara a informática dos senhores.

_______ A utopia desceu do palcoe escondeu-se no teorema indecifrávelda vida.

Rastejo hesitante entre o apelo do sexosem útero onde gerar uma nova sintaxe,porque a manhã é sempre interdiçãoe todas as respostas não respondem.

_______ A esperança é apenas o joiode seara crestada e apenas ervasda vida.

Rastejo sempre, deficiente física emental, em póstumas teorias anônimasonde o trânsito luta pelo espaçoe monitoriza a espécie em extinção.

_______ A sensibilidade é arco tensoque não dispara e não conhece a mirada vida.

Rastejo entre o sim e o nãoda cicuta preparada aos convidadosa partir para o adiante obscuroe fanado por muitas estiagens.

_______ O niilismo é a porta esboçada,sem chave e sem batentesda vida.

Rastejo e no entanto respirodentro do próprio hiato o haustoempoeirado de retalhos de insôniae vísceras mofadas de cansaço.

_______ O tédio é o manual-guiae se guarda inteiriço na guaritada vida.

Testemunha do caos e éden antigos,rastejo à volta da maçã roída,rastejo a outrora língua viperinasem ter o que dizer e a quem o diga.

LAÍS CORRÊA DE ARAÚJO é poeta e crítica literária. Sua obra poéticaestá reunida em Inventário, Editora UFMG, 2004. É autora tambémdo ensaio Murilo Mendes, Editora Perspectiva, 2000.

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18. Dezembro 2006

SLMG, nº 43, novembro de 1998. SLMG, nº 63, setembro de 2000.

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.19Dezembro 2006

SLMG, nº 1270 ano 38, julho de 2004. SLMG, nº 1289, abril de 2006.

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TRADUÇÃOREVISTA COSMÓPOLIS– 1897 I, NADA OU QUASE UMA ARTE.AUJO

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PRÉSUMER DE L’AVENI

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