Onde não existir dor, não existem mais motivos

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| novíssimos | luiza prado ONDE NÃO EXISTE DOR, NÃO EXISTEM MAIS MOTIVOS POR JUNIOR BELLÉ A mãe de Luiza Prado sacava fotos e pintava quadros. Os tios eram músicos. O pai, cinéfilo. Mas sua grande inspiração artística foi, sem dúvida, o tio esqui- zofrênico. “Ele dizia que tinha seu mundo nas mãos e era uma maçã que ele carregava no bolso.” Ele a ensinou a criar seu próprio universo estimulando a sobrinha a pintar toda vez que se sentisse triste. “Como eu sempre estava triste, desenhava todos os dias e, assim, a arte se tornou a minha válvula de escape.” Fica fácil perceber, portanto, como a jovem artista enfrentou, ao longo de seus 24 anos, os dilemas, dramas e encruzilhadas da vida. “Eu tinha lápis, papel, dragões, mágicos, bolas falantes, todos eles viviam numa maçã, e meu maestro era um louco muito amado, que de louco não tinha nada.” Um destes dramas notabilizou-se quando a artista participou do proje- to Unbreakable, do fotógrafo Grace Brown, em que pessoas que sofreram abusos sexuais são fotografadas segurando uma frase de seu violentador. “As pessoas me perguntavam por que eu criava fotos com assuntos ligados à violência sexual, por exemplo, e estava cansada de explicar, de me expor.” Então, Luiza passou a estu- dar, ler, conhecer pessoas que haviam passado pelo mesmo trauma e, dessa forma, passou a decantar seus sentimentos, lembranças e especialmente dores, em arte. Além de uma fonte de inspiração, ela descobriu uma espécie de responsabilidade em seu trabalho. “Comecei a ser mais responsável como artista e não somente apontar um problema, mas mostrar que nele posso ter finais diferentes. Chamo isso de reprocesso artístico.” Natural de Guaratinguetá, interior de São Paulo, Luiza está de mudança para Nova York, “ainda nada relacionado à carreira, somente estudos”. Na verdade, alguns de seus próximos passos profissionais ficam a um oceano de distância. Em março de 2014, ela fará sua estreia na Europa com exposições agendadas em Portugal, Espanha e Alemanha. “Também participo de um festival importante de performance chamado Performatus, que acontece no Brasil e em Portugal.” Mas antes, neste mês, participa em São Paulo da exposição coletiva Ocupa Art’Er. Performance, fotografia, pintura, videoarte. Felizmente, o trabalho de Luiza não respei- ta fronteiras, o que poderia defini-la como uma artista plástica, ou uma artista visual. Mas não chegamos até aqui para definir nada, nem ninguém. Além do mais, já é evidente que a matéria-prima desta artista é algo impalpável, indefinível, e chama-se sentimento. Por trás de Existem flores em mim, por exemplo, reverbera o rugido rebelde que ecoou em todo o país durante o mês de junho. As manifestações populares deram à Luiza uma espécie de esperança, que ela transformou em uma série de pinturas feitas para a Tinta Edições de Arte. Em outra série, desta vez de fotos, Luiza dialoga com os conceitos míticos da mulher e convida o espectador a aproximar-se das manifestações da Deusa Tríplice, divindade pagã composta, em geral, da tríade Mãe, Donzela e Anciã. “Acredito no sentimento como funda- mento, no sentimento personificado como obra, como se a criação tivesse vida própria.” c AUTORRETRATO FOTOS: PEDRO SPILACK LINHARES 82

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| novíssimos | luiza prado

Onde nãO existe dOr,

nãO existem mais mOtivOs

P o r J u n i o r B e l l é

A mãe de Luiza Prado sacava fotos e pintava quadros. Os tios eram músicos. O pai, cinéfilo. Mas sua grande inspiração artística foi, sem dúvida, o tio esqui-zofrênico. “Ele dizia que tinha seu mundo nas mãos e era uma maçã que ele carregava no bolso.” Ele a ensinou a criar seu próprio universo estimulando a sobrinha a pintar toda vez que se sentisse triste. “Como eu sempre estava triste, desenhava todos os dias e, assim, a arte se tornou a minha válvula de escape.”

Fica fácil perceber, portanto, como a jovem artista enfrentou, ao longo de seus 24 anos, os dilemas, dramas e encruzilhadas da vida. “Eu tinha lápis, papel, dragões, mágicos, bolas falantes, todos eles viviam numa maçã, e meu maestro era um louco muito amado, que de louco não tinha nada.” Um destes dramas notabilizou-se quando a artista participou do proje-to Unbreakable, do fotógrafo Grace Brown, em que pessoas que sofreram abusos sexuais são fotografadas segurando uma frase de seu violentador.

“As pessoas me perguntavam por que eu criava fotos com assuntos ligados à violência sexual, por exemplo, e estava cansada de explicar, de me expor.” Então, Luiza passou a estu-dar, ler, conhecer pessoas que haviam passado pelo mesmo trauma e, dessa forma, passou a decantar seus sentimentos, lembranças e especialmente dores, em arte. Além de uma fonte de inspiração, ela descobriu uma espécie de responsabilidade em seu trabalho. “Comecei a ser mais responsável como artista e não somente apontar um problema, mas mostrar que nele posso ter finais diferentes. Chamo isso de reprocesso artístico.”

Natural de Guaratinguetá, interior de São Paulo, Luiza está de mudança para Nova York, “ainda nada relacionado à carreira, somente estudos”. Na verdade, alguns de seus próximos passos profissionais ficam a um oceano de distância. Em março de 2014, ela fará sua estreia na Europa com exposições agendadas em Portugal, Espanha e Alemanha. “Também participo de um festival importante de performance chamado Performatus, que acontece no Brasil e em Portugal.” Mas antes, neste mês, participa em São Paulo da exposição coletiva Ocupa Art’Er.

Performance, fotografia, pintura, videoarte. Felizmente, o trabalho de Luiza não respei-ta fronteiras, o que poderia defini-la como uma artista plástica, ou uma artista visual. Mas não chegamos até aqui para definir nada, nem ninguém. Além do mais, já é evidente que a matéria-prima desta artista é algo impalpável, indefinível, e chama-se sentimento.

Por trás de Existem flores em mim, por exemplo, reverbera o rugido rebelde que ecoou em todo o país durante o mês de junho. As manifestações populares deram à Luiza uma espécie de esperança, que ela transformou em uma série de pinturas feitas para a Tinta Edições de Arte. Em outra série, desta vez de fotos, Luiza dialoga com os conceitos míticos da mulher e convida o espectador a aproximar-se das manifestações da Deusa Tríplice, divindade pagã composta, em geral, da tríade Mãe, Donzela e Anciã. “Acredito no sentimento como funda-mento, no sentimento personificado como obra, como se a criação tivesse vida própria.” c

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