Onde está a trilha sonora da educação

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ONDE ESTÁ A TRILHA SONORA DA EDUCAÇÃO? PRODUÇÃO MUSICAL E ENSINO DE HISTÓRIA DO PERÍODO DITATORIAL NO BRASIL (1964- 1985) 1 César Costa Ramos Isaias Menezes Pereira 2 Toda gente sabe: verso e música são as expressões de arte mais próxima do analfabeto. Conjugados assumem um poder de comunicação Que fura a sensibilidade mais dura. (Antonio Alcântara Machado) RESUMO Este artigo pretende analisar as potencialidades do uso de diferentes tipos de linguagens metodológicas no cotidiano do exercício de professor na disciplina de história, particularmente a utilização de canções como fontes históricas ligadas à temática da história cultural da ditadura militar brasileira (1964-1985). Uma música pode atuar como elemento deflagrador de todo um processo de discussão sobre situações, temas, questões, momentos da História, procurando através do debate possibilitar trocas de aprendizagem, trazer e aprofundar experiências vividas, potencializar a observação do mundo ao redor e repensar ações e preconceitos. Através de fontes biográficas, historiográficas, filosóficas e letras de canções compostas no recorte temporal proposto, responderemos, entre outras, as problemáticas seguintes: Quais as estratégias de drible à censura política do regime militarno período ditatorial? Como trazer para os alunos a história do período ditatorial por via das linhas artísticas? Pensando nesta lacuna, este trabalho visa o aumento da utilização não só de audição, mas de análises de textos (letras), filosofias e influências, correntes e movimentos artísticos com seus devidos valores e atuações como sujeitos históricos e como trabalhar esses temas utilizando-se de canções do recorte proposto. Palavras Chave: Música. Ditadura Militar no Brasil. Ensino de história. 1 Artigo científico apresentado como requisito avaliativo da disciplina de Laboratório de Ensino de História VII, ministrada pela professora Elisângela, semestre 2012.1. 2 Graduando do curso de Licenciatura Plena em História, da Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências humanas, Campus-V, matriculado na disciplina de Laboratório de Ensino de História VII ministrada pela docente Jucelia Santos, semestre 2012.1.

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ONDE ESTÁ A TRILHA SONORA DA EDUCAÇÃO? PRODUÇÃO MUSICAL

E ENSINO DE HISTÓRIA DO PERÍODO DITATORIAL NO BRASIL (1964-

1985)1

César Costa Ramos

Isaias Menezes Pereira2

Toda gente sabe: verso e música são

as expressões de arte mais próxima do analfabeto.

Conjugados assumem um poder de comunicação

Que fura a sensibilidade mais dura. (Antonio Alcântara Machado)

RESUMO

Este artigo pretende analisar as potencialidades do uso de diferentes tipos de linguagens

metodológicas no cotidiano do exercício de professor na disciplina de história,

particularmente a utilização de canções como fontes históricas ligadas à temática da

história cultural da ditadura militar brasileira (1964-1985). Uma música pode atuar

como elemento deflagrador de todo um processo de discussão sobre situações, temas,

questões, momentos da História, procurando através do debate possibilitar trocas de

aprendizagem, trazer e aprofundar experiências vividas, potencializar a observação do

mundo ao redor e repensar ações e preconceitos. Através de fontes biográficas,

historiográficas, filosóficas e letras de canções compostas no recorte temporal proposto,

responderemos, entre outras, as problemáticas seguintes: Quais as estratégias de drible à

censura política do regime militarno período ditatorial? Como trazer para os alunos a

história do período ditatorial por via das linhas artísticas? Pensando nesta lacuna, este

trabalho visa o aumento da utilização não só de audição, mas de análises de textos

(letras), filosofias e influências, correntes e movimentos artísticos com seus devidos

valores e atuações como sujeitos históricos e como trabalhar esses temas utilizando-se

de canções do recorte proposto.

Palavras Chave: Música. Ditadura Militar no Brasil. Ensino de história.

1 Artigo científico apresentado como requisito avaliativo da disciplina de Laboratório de Ensino de

História VII, ministrada pela professora Elisângela, semestre 2012.1. 2 Graduando do curso de Licenciatura Plena em História, da Universidade do Estado da Bahia,

Departamento de Ciências humanas, Campus-V, matriculado na disciplina de Laboratório de Ensino de História VII ministrada pela docente Jucelia Santos, semestre 2012.1.

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No decorrer das ultimas três décadas uma das principais discussões, na área de

metodologia do ensino de história, figura a utilização de variados tipos de linguagens e

fontes nos estudos em sala de aula. Uma das principais questões que suscitou este

debate foi o uso quase que exclusivo de livros didáticos tradicionais, indo na contramão

de conquistas fomentadas pelo movimento historiográfico, configurado pela ampliação

documental e temática das pesquisas. Hoje é quase uma regra comum na educação

escolar, no ensino e na pesquisa desenvolvidos nas universidades, utilizar canções,

imagens, filmes no desenvolvimento de vários temas, obrigando a nós professores e

pesquisadores, um aprofundamento de nossas habilidades e conhecimentos referentes à

constituição das diferentes linguagens, seus níveis de aplicabilidade e suas

potencialidades. Como nos chama a atenção Selva Guimarães Fonseca, que:

“Logo, todas as linguagens, todos os veículos e materiais, frutos de

múltiplas experiências culturais, contribuem com a produção/difusão de

saberes históricos, responsáveis pela formação do pensamento, tais

como os meios de comunicação de massa – rádio, TV, imprensa em

geral -, literatura, cinema, tradição oral, monumentos, museus etc. Os

livros didáticos e paradidáticos como fontes de trabalho devem

propiciar a alunos e professores o acesso e a compreensão desse

universo de linguagens” (FONSECA, 2003, p. 164)

Na citação acima a autora descreve alguns modelos de linguagens de ampla atuação nos

variados tecidos sociais e convida os professores a incorporar essas noções no exercício

cotidiano do seu ofício. A formação do aluno/cidadão se inicia e se processa ao longo de

sua vida nos diversos espaços de vivência. Pensar na música como instrumento de

ensino de história nos remete a um leque interminável de possibilidades de abordagens.

Utilizar as canções como fonte base de um estudo ou ensino já não é nenhuma novidade

aos olhos da “nova” história, assim como nos orienta a teoria da micro-história. Quando

trazemos essa perspectiva metodológica para o ensino de história do Brasil, os efeitos

na melhoria do aprendizado são visíveis.

Foram escolhidas duas canções ligadas ao período ditatorial no Brasil, Acorda, amor de

Chico Buarque de Holanda (1974) e Metrô Linha 743 de Raul Seixas (1984), tidas

como música de protesto, pelo seu caráter contestador do regime político então vigente.

Apesar das duas serem de autores diferentes, a saber, Chico Buarque e Raul Seixas, elas

compartilham de pontos referências em comum: a oposição á censura do regime militar

e a todos os sistemas de opressão e a sagacidade de como por isso em prática através de

metáforas, trocadilhos, parábolas, pseudônimos, numa dialética que requer do aluno

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uma base lingüística mais aprofundada. Por isto, é necessário ressaltar que a utilização

dessas canções não é recomendada para alunos do ensino fundamental. Segundo Maria

Izilda Santos de Matos,

Deve-se estar atendo que não é qualquer música que se permite como

exercício de decodificação por qualquer público, deve-se dar a devida

atenção à adequação entre conteúdo, contingente e clientela. Por

exemplo, deveríamos nos questionar se a mesma música e os mesmos

temas seriam adequados a alunos de diferentes graus, na medida em

que avançando no nível escolar poder-se-ia recorrer a canções com

maior grau de sofisticação e complexidade, aprofundando as

reflexões. (MATOS, 2000p. 61)

Sabendo que os alunos do ensino médio tiveram, tem ou terão no seu currículo os

estudos básicos de filosofia, sociologia e história política do Brasil, acreditamos que as

canções escolhidas são propicias para a troca de aprendizagem que objetivamos. Matos

conclui em seu artigo História e música: reflexões, pesquisa e ensino que “a música,

para além de recurso didático-pedagógico ou fonte documental, é arte e envolve o

lúdico.”(MATOS, 2000 p. 62)

Os autores e suas respectivas canções foram escolhidos pelo conteúdo “subversivo” e

contestador dos sistemas sociais e políticos brasileiro iniciado com o golpe civil militar

de 1964. Com o implante do Ato Institucional nº 5, o AI-5 em 1968, durante o governo

do General Costa e Silva. Por meio dele, poderia fechar o Congresso Nacional e legislar

sobre qualquer assunto, cassar os direitos políticos civis, intervir nos Estados, aposentar

funcionários públicos e suspender habeas corpus para os chamados crimes políticos.

Vários artistas foram obrigados a sair do Brasil. Segundo Marcos Napolitano,

Todas as ações e declarações que se chocassem contra a moral

dominante, a ordem política vigente, ou que escapassem aos padrões de

comportamento da moral conservadora, eram vistos como suspeitos. No

caso da música, o conteúdo das letras cantadas, a performance e as

eventuais declarações que o artista proferisse durante os seus shows,

também poderiam agravar o seu “perfil suspeito”, ganhando destaque

nas anotações dos agentes da repressão política (NAPOLITANO, 2005

p. 107)

Existe uma diferença entre ser exilado e se exilar. Chico Buarque foi exilado em Paris,

Gilberto Gil, assim como Caetano Veloso também foram exilados, estes, em Londres.

Raul Seixas foi convidado a se retirar do país para evitar problemas maiores, sendo

assim, este último se exilou. Além desses pontos em comum, existe mais um do ponto

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de vista metodológico. Seguindo o que diz Peter Burke sobre os modelos de objeto da

micro-história:

Os modelos mais atraentes são aqueles que enfatizem a liberdade de

escolha das pessoas comuns, suas estratégias, sua capacidade de

explorar as inconsistências ou incoerências dos sistemas sociais e

políticos, para encontrar brechas através das quais possam se

introduzir ou frestas em que consigam sobreviver (BURKE, 1992, p.

31-32).

Chico Buarque de Holanda, carioca, começa a sua carreira de compositor remontando o

estilo de samba urbano de Noel Rosa. Sua peculiaridade literária de narrar situações

dramáticas envolvendo um sentimento romântico, muitas vezes adotando duplos

sentidos nas afirmativas de amor para criticar a ditadura foi o que nos chamou a atenção

para a escolha da canção Acorda amor do álbum Sinal Fechado gravado em 1974.

Acorda amor

Eu tive um pesadelo agora

Sonhei que tinha gente lá fora

Batendo no portão, que aflição

Era a dura, numa muito escura viatura

minha nossa santa criatura

chame, chame, chame, chame o ladrão

Acorda amor

Não é mais pesadelo nada

Tem gente já no vão da escada

fazendo confusão, que aflição

São os homens, e eu aqui parado de pijama

eu não gosto de passar vexame

chame, chame, chame, chame o ladrão

Se eu demorar unsmeses convém às vezes você sofrer

Mas depois de um ano eu não vindo

ponha roupa de domingo e pode me esquecer

Acorda amor

que o bicho é bravo e não sossega

se você corre o bicho pega

se fica não sei não

Atenção, não demora

dia desses chega sua hora

não discuta à toa, não reclame

chame, clame, clame, chame o ladrão

(Não esqueça a escova, o sabonete e o violão...)

(HOLANDA, 1974, faixa 07)

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Indignado com a proporção das músicas censuradas (a cada três músicas compostas por

Holanda, duas eram censuradas) o “carioca” como era conhecido pelos paulistas utiliza-

se de dois pseudônimos “Leonel Paiva e Julinho da Adelaide” para despistar a censura,

pois se o nome dele fosse usado, a suspeita seria redobrada. O Centro de Informação do

Exército – CIE Registrou as atividades do compositor como se ele fosse a “ponta de um

iceberg” do mundo da “subversão”. (NAPOLITANO, 2004 p.113)

Composta no tom Sol Maior (G), o que naturalmente encaixa-se num samba rápido e

alegre, Chico Buarque narra uma invasão policial na sua residência no meio da noite. A

canção descreve uma prisão muito parecida com a de Chico, quando, em dezembro de

1968, foi surpreendido dentro de casa por agentes da ditadura, que o levaram para

depor. Típica caça aos subversivos promovidas pela vigilância. Quando o autor afirma

que tinha gente batendo do lado de fora do portão, “era a dura, numa muito escura

viatura” nos faz pensar que o trocadilho foi utilizado para falar diretamente que os

agentes dos aparelhos coercitivos do Regime Militar (DOPS, CENIMAR, CIE, CISA,

COODI-DOI). Numa invasão domiciliar, o mais conveniente para o morador seria

chamar ou clamar pela polícia. Mas como confiar na polícia ditatorial? Ironizando o

sistema, o autor acaba apelando, “chame, chame, chame, chame ladrão”.

O autor alerta a sua amada que caso ele demore uns meses será natural o seu sofrimento,

“mas depois de um ano eu não vindo/ponha as roupas de domingo e pode me esquecer”.

Este trecho faz referência aos casos de pessoas que fizeram oposição a linha da ditadura

e por isso além de terem sido torturados, nunca mais apareceram. Por fim, reformulando

o ditado popular “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” ele afirma “que o bicho

é bravo e não sossega/ se você corre o bicho pega/ se fica não sei não” e assegura o

conselho que serve até os dias atuais, não discutir com a polícia: “Não discuta a toa, não

reclame, chame, clame, clame, chame ladrão”.

Agora veremos outra canção, de ritmo completamente diferente, mas atacando o mesmo

alvo. Raul Santos Seixas, baiano, considerado o propulsor do Rock no Brasil (antes da

música o rock já havia chegado ao Brasil através do cinema), condensa o Rock norte-

americano com o baião de Luis Gonzaga, criticado pelos esquerdistas de plantão como

“americanista alienado” simplesmente pelo fato de fazer Rock’inRoll numa época em

que os militantes eram tão radicais diante do imperialismo dos EUA que não aceitavam

sequer o som da guitarra elétrica. Com os ideais altamente libertários criou a

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preocupante “Sociedade Alternativa” que aos olhos da vigilância apresentava uma alta

periculosidade à “segurança e a ordem nacional”. A canção que será analisada, Metrô

Linha 743, do álbum de mesmo nome, lançado em 1984, foi escolhida por ser uma das

mais diretas e intensas acusações dos terrores cometidos pelos órgãos opressores

ditatoriais. Por mais que esse ano seja marcado por uma lenta abertura democrática,

como disse o próprio Raul no mesmo período “É difícil ser livre”:

Ele ia andando pela rua meio apressado

Ele sabia que tava sendo vigiado

Cheguei pra ele e disse:

- Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?Ele disse:

- Eu dou, mas vá fumar lá do outro lado!

Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!

Disse:

- O prato mais caro do melhor banquete

É o que se come cabeça de gente

Que pensa e os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam

Porque quem Pensa, pensa melhor parado!

- Desculpe a minha pressa, fingindo atrasado,

Trabalho em cartório mas sou escritor.

Perdi minha pena nem sei qual foi o mês...

Metrô Linha 743

O homem apressado me deixou e saiu voando

Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando

Três outros chegaram com pistolas na mão, um gritou:

- Mão na cabeça, malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos

Eu disse:

- Claro, pois não! Mas o que é que eu fiz?

Se é documento, eu tenho aqui...

Outro disse:

- Não interessa, pouco importa, fique aí!

Eu quero é saber o que você estava pensando

Eu avalio o preço me baseando no nível mental que você anda por aí usando,

E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando.

Minha cabeça caída, solta no chão

Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez

Metrô Linha 743

Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha

E eu era agora um cérebro, um cérebro vivo à vinagrete

Meu cérebro logo pensou: Que seja, mas nunca fui tiete!

Fui posto à mesa com mais dois, e eram três pratos raros

E foi o maitre que pôs

Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado

Meu último pedaço, antes de ser engolido, ainda pensou grilado:

Quem será o desgraçado dono dessa zorra toda!

Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibais

Mas o negócio é que tá muito bandeira!

Tá bandeira demais, meu Deus!

Cuidado brother, cuidado sábio senhor

Eu aconselho sério prá vocês

Eu morri, e nem sei mesmo qual foi aquele mês

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Metrô Linha 743

É... Por aí!

(SEIXAS, 1984, Faixa 01)

A criatividade de Raul Seixas para criar histórias do tipo vem de um velho costume que

adquiriu na infância de desenhar e escrever histórias em quadrinhos. Essa narração nos

faz lembrar histórias do tipo pelas curtas falas dos seus personagens. Estes são: O

homem que vinha apressado e que sabia que estava sendo vigiado, o outro a que Raul

usa a primeira pessoa, o que nos faz pensar que seria ele pede um cigarro. O ato de

fumar geralmente se dá num momento reflexivo, onde o fumante procura relaxar a sós

(o que não é uma regra), mas o aviso do homem foi “Eu dou, mas vá fumar lá do outro

lado!/ Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado”. Qual o risco de duas

pessoas fumando juntas? Para os nossos olhos, nenhum, mas para “os canibais de

cabeça”, vigilantes, os responsáveis pela produção da suspeita, qualquer representação

de estímulo intelectual era um perigo. Sendo assim, dois homens fumando representam

dois homens pensando. O homem apressado aparenta estar mais atento aos perigos que

estavam em sua volta por isso a canção traz vários conselhos de cuidado as “cabeças

que pensam”. Percebe-se que quando o mesmo afirma “Trabalho em escritório, mas sou

escritor/ perdi minha pena nem sei qual foi o mês” Raul Seixas expõe a mágoa dos

artistas (escritores, compositores, atores, pintores etc) que tiveram que deixar suas

formas de expressão por outras profissões para sobreviverem. Outros ainda continuaram

escrevendo através de pseudônimos para não serem identificados driblando a censura.

Outros três personagens entram em cena, fazendo alusão as abordagens da polícia

política do regime militar. Desta vez Raul expressa o quanto o nível mental do cidadão

brasileiro era responsável pelo seu destino a depender de como ele usasse. “Eu avalio o

preço me baseando no nível mental que você anda por aí usando,/ E aí eu lhe digo o

preço que sua cabeça agora está custando”.

A partir daí o enredo toma um rumo lúdico como quando Raul passa a narrar a história

como se estivesse vendo a cena do alto, como se o narrador fosse sua alma fora do

corpo: “Minha cabeça caída, solta no chão/ Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e

última vez”. Depois do seu cérebro ser posto na mesa, parece que o objetivo do autor é

fazer com que nós imaginemos como seria se um senhor alinhado (que nos faz pensar

numa linha disciplinadora, que foi a linha da ditadura) devorando nossos pensamentos,

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idéias, planos, sonhos quando diz “Senti horror ao ser comido com desejo por um

senhor alinhado” e finaliza falando que “o negócio aqui tá muito bandeira” que na gíria

popular, bandeira significa estar vulnerável a suspeita, exibição demasiada, porém nesse

contexto apresenta outro sentido, o sentido positivista do “ordem e do progresso”. “É

bandeira de mais, meu Deus!” por fim, o personagem principal acabou pagando o preço

que a sua cabeça estava custando com a morte, simplesmente por estar pensando. Eis a

ordem, eis o progresso, eis a história do Brasil na Ditadura Militar.

Quando consultados os argumentos dos teóricos que pesquisam essa temática, podemos

observar que, além de censurar, caçar, aposentar e torturar os vigiados (suspeitos de

crime político), a obsessão pela vigilância como forma de prevenir a atuação

“subversiva”, sobre tudo naquilo que os manuais da Doutrina de Segurança Nacional

chamavam de “propaganda subversiva” e “guerra psicológica contra as instituições

democráticas e cristãs”, acabava por gerar uma lógica da suspeita. Num dos manuais de

vigilância anticomunista produzidos pelo regime militar lê-se, a título de instrução para

o cidadão desprevenido:

Aprender a ler jornais, ouvir rádio e assistir TV com certa malícia. Aprender a

captar mensagens indiretas e intenções ocultas em tudo o que vê e ouve. Não vá

se divertir muito no jogo daqueles que pensam que são mais inteligentes do que

você e estão tentando fazer você de bobo com um simples jogo de palavras.”

(MAGALHÃES, 1997 p. 211)

A esfera da cultura era vista com suspeição a priori, meio onde os “comunistas” e

“subversivos” estariam particularmente infiltrados, procurando confundir o cidadão

“inocente útil”. Principalmente quando essas manifestações estavam ligada a MPB

(Música Popular Brasileira), sigla que desde meados dos anos 60 congregava a música

de matrizes nacional-popular criada com o intuito de realmente parecer uma sigla

partidária declaradamente crítica ao regime militar.

Com base na discussão de Marcos Napolitano, A MPB sob suspeita: A censura musical

vista pela ótica dos serviços de vigilância e os dados colhidos em obras biográficas de

Raul Seixas e Chico Buarque percebemos que Chico Buarque era o nome mais citado

nas listas dos “subversivos mais perigosos”. Porém a obra e os ideais de liberdade

propagados pelo “roqueiro maldito” carregam um teor anarquista, no nosso ponto de

vista, muito mais “perigoso” e não foi citado uma vez se quer entre os nomes

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encontrados por Marcos Napolitano. “O principal suspeito de então, aglutinador dos

opositores, era Geraldo Vandré, surgindo muitas referências a Nara Leão, Edu Lobo,

Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre outros.” (NAPOLITANO, 2005, p.108).

Alguns dados específicos da obra de Raul respondem essa indagação: A maioria dos

nomes citados por Napolitano é referente a shows promovidos pelos “militantes” da

MPB. O egoísmo, “tão egoísta que o auge do meu egoísmo é querer ajudar” que Raul se

refere na canção carpinteiro do universo (SEIXAS; NOVA, 1989, faixa 3) somada a

outra afirmação quando o mesmo adverte Acredite que eu não tenho nada a ver com a

linha evolutiva da música popular brasileira (SEIXAS, 1974, faixa 3), não permitia a Raul,

guiado pela sua coerência, de participar desses shows.

Temos dois objetivos fundamentais para a conclusão deste artigo: O de não parecer que

pretendemos aqui comparar valores de qualidade entre artistas e o de ratificar que a música,

além de tudo o que já citamos, tem um poder polissêmico. O de fazer com que cada um produza

o seu próprio conhecimento e que nem sempre terá as mesmas conclusões que o próximo. Nesse

caso, o ponto de vista deve ser o ponto da questão. Adalberto Paranhos explica que “Não se

trata de algo já pronto e acabado que o sujeito-professor transmite aos alunos-objeto, numa

relação coisificada que parte do principio autoritário da tese da nulidade estudantil.”

As intensas discussões em torno da realidade do ensino da disciplina de história nos faz refletir

principalmente na formação do profissional historiador, e a atuação do professor diante do

universo de possibilidades metodológicas que agregam substancialmente na melhoria do ensino

e aprendizagem. As linguagens aqui são pensadas como forma de expressão de lutas, força,

dinâmica, experiência histórica, questionando as fronteiras disciplinares, extraindo o sumo dos

limites dos saberes.

Consideramos que o período ditatorial da História Política do Brasil foi uma crise que como

todas, gera um determinado crescimento. Direcionamos esse crescimento as expressões de arte

de forma generalizada, mas pensamos aqui somente na música, que foi um alvo vigiado com

atenção redobrada dos olhos de quem puniam. Pensá-la como instrumento de ensino reflete na

concretização dos valores e dos sonhos que aqueles que foram punidos covardemente e

principalmente aos que tiveram o sonho interrompido pela morte, no conceito de cidadania do

aluno fazendo-o perceber que ainda hoje, nos “anos democráticos” ainda vivemos outros tipos

de ditaduras, muitas delas, promovidas pelos mesmos coronéis.

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BIBLIOGRAFIA

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