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    Som e música.Questões de uma Antropologia Sonora

    Tiago de Oliveira Pinto

    Diretor do Instituto Cultural Brasileiro na Alemanha – ICBRA

    RESUMO: Este ensaio pretende esboçar, de forma introdutória, alguns camposde interesse da etnomusicologia, disciplina, que apesar de percebida durante longotempo como de natureza híbrida – ou seja, pertencente à musicologia quanto aseus conteúdos e à antropologia quando se trata de seus métodos de pesquisa – cresceu consideravelmente nas últimas décadas levando à constituição de centrosde estudos e de pesquisa nas principais universidades americanas e européias,firmando-se, cada vez mais, com expressão própria também no Brasil. Os

    comentários sobre o estudo dos instrumentos musicais ao final do texto servemde argumento às imagens que constituem o bloco temático do caderno defotografias deste número daRevista de Antropologia .

    PALAVRAS-CHAVE: antropologia do som, etnomusicologia, música, instru-mentos musicais.

    Introdução

    Na concepção ocidental, o som sempre teve algo de misterioso.Onipresente e, ao mesmo tempo, evanescente, o som não se rendefacilmente a um raciocínio acostumado com coisas, locais e con-figurações estáveis.

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    A sensação de ouvir foi, durante séculos, dominada pela percepção visual. Mesmo que pesquisas científicas mais recentes tenham recu-perado este sentido enquanto seus aspectos físico, cultural e mesmosocial, discursos analíticos no campo da antropologia permanecemcentrados no imagético e são poucos aqueles que contrapõem adiscussão sobre o som à predominância da visualidade nas ciênciashumanas e sociais.

    Até o passado recente a música muitas vezes foi tratada de forma vaga, ou mesmo ensaística por parte de antropólogos. Exemplo ilustrativo

    disso encontra-se noTristes trópicos,onde Claude Lévi-Strauss relatacomo sai à noite com alguns amigos Nambiquara, que vão à mata escuraconstruir as suas flautas sagradas. Os misteriosos sons nambiquara queouve no meio da noite remetem o autor a um trecho daSagração da

    primavera de Igor Stravinsky. Lévi-Strauss menciona precisamente oscompassos da obra de Stravinsky, que a seu ver se assemelha com amúsica dos flautistas nambiquara. Evidentemente que isso é um ensaiomais literário do que uma etnografia musical, pois sobre as flautas e a

    música dos Nambiquara nada ficamos sabendo neste relato.Um mal-entendido comum entre pesquisadores não familiarizadoscom a documentação musical é que pensam estar analisando e falandode música, quando na verdade discorrem sobre a letra. Isso acontecemuitas vezes em trabalhos que versam sobre a MPB. Outros pesqui-sadores encaram a música na sua acepção mais estreita: quando nãosabem ler partitura, deixam a manifestação musical de lado por completo,como se ler partitura fosse sinônimo de entender e pré-condição parafalar sobre música. Neste contexto, é importante lembrar que em muitasoutras culturas se desconhece um termo, cujo signo seja idêntico aode “música”, “music ”, “zene ”, “musique ”, “ Musik” etc. Na realidademúsica raras vezes apenas é uma organização sonora no decorrer delimitado espaço de tempo. É som e movimento num sentido lato (sejaeste ligado à produção musical ou então à dança) e está quase sempreem estreita conexão com outras formas de cultura expressiva. Considerar

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    inserido em concepções culturais, e, do outro lado, a música propriamentedita, isto é, o som “culturalmente organizado” pelo homem ( humanly organized sound , cf. Blacking, 1973). Os dois parâmetros, a acústica e acultura, ou seja, osom e assonoridades , respectivamente, estão presentesna pesquisa etnomusicológica do século XX.

    O som, fenômeno singular de um determinado instrumento, de umestilo vocal e, do outro lado, a rede de relações possíveis e necessáriasentre diferentes sons, relações estas que são responsáveis por fenômenoscomo aafinação e aescala – duas abstrações culturais –, merece atenção

    especial da musicologia e da antropologia musical. Esta última desen- volveu-se, inicialmente, como subárea da musicologia, passando pordiversas designações, como musicologia comparativa ( vergleichende

    Musikwissenschaft ), pesquisa musical etnológica ( ethnologische Musikforschung ;Marius Schneider 1937), folclore e etnologia musical ( musikalische Völkerkunde ; Fritz Bose 1952), “antropologia musical”, ( ethnographie musicale ) ou “música dos povos estranhos“ ( Musik der Fremdkulturen ; cf.Curt Sachs (1959)). Por volta de 1950 o musicólogo holandes Jaap

    Kunst introduziu o termoethno-musicology . A partir de 1956 esta designaçãoda disciplina consagrou-se internacionalmente com a fundação da Society for Ethnomusicology nos EUA.

    Com o seu livroThe Anthropology of Music de 1964, consideradodecisivo para a abordagem antropológica na etnomusicologia, oantropólogo americano Alan P. Merriam formulou uma “teoria daetnomusicologia”, na qual reforçou a necessidade da integração dosmétodos de pesquisa musicológicos e antropológicos. Música é definidapor Merriam como um meio de interação social, produzida por espe-cialistas (produtores) para outras pessoas (receptores); o fazer musicalé um comportamento aprendido, através do qual sons são organizados,possibilitando uma forma simbólica de comunicação na interrelaçãoentre indivíduo e grupo:

    Music is a uniquely human phenomenon which exists only in terms of social interaction; that it is made by people for other people, and it is learned

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    behavior. It does not and cannot exist by, of, and for itself; there must alwaysbe human beings doing something to produce it. In short, music cannot bedefined as a phenomenon of sound alone, for it involves the behavior of individuals and groups of individuals, and its particular organization demandsthe social concurrence of people who decide what it can and cannot be.(Merriam, 1964: 27).

    Merriam lembra que no passado a musicologia comparativa, enquantosubárea da musicologia, concentra o seu esforço quase que exclusi- vamente na investigação de estruturas de som e de configuraçõesmusicais, deixando de lado, em grande parte, o contexto antropológicoe cultural. Para entender a música enquanto produto e estrutura construídaseria necessário, de acordo com Merriam, aprender a entender conceitosculturais, que fossem responsáveis pela produção destas estruturas.Merriam caracterizou a pesquisa etnomusicológica como “the study of music in culture ” para, na década seguinte, acentuar ainda mais o paradigmacultural, definindo a área de pesquisa como “the study of music asculture ”(Merriam, 1964 e 1977).

    Cultura

    Música

    Cultura=

    Música

    1 2

    Figura 1: Modelos de relação entre cultura e música segundo A. P. Merriam (1964, 1977

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    Rodeando os campos de estudo da etnomusicologia

    É consenso amplo que estudos etnomusicológicos incluam a pesquisadas músicas ditas étnicas e/ou tradicionais, o folclore rural e urbano,mais recentemente também a música popular, e que se diferenciamda musicologia dita “histórica” principalmente nos métodos de pesquisaempregados. Por sua vez, esta versão “histórica” da musicologia seocupa, primordialmente, da música erudita de cunho ocidental e desuas extensões em territórios não europeus, excluindo manifestações

    de tradição oral e mesmo popular. A etnomusicologia destaca-se emparte também da “musicologia sistemática”, que trata da acústicamusical, da fisiologia da produção sonora e, inclusive, da sociologiada música.

    Desde a sua reformulação a partir de meados dos anos 60, tornou-semeta definida da etnomusicologia descrever os diferentes agentes eagrupamentos etnomusicais:

    • pesquisando suas ações (criação, recepção, transmissão);• interpretando as manifestações musicais (através de instrumentos,

    cantigas, textos, performances , reações);• verificando seus conceitos (teorias, valores e normas);• analisando os comportamentos psíquicos, verbais, simbólicos e

    sociais ligados à música.

    Colocações mais recentes, como a de Jeff Todd Titon (1992) quedefine a etnomusicologia como “the study of people making music ”, mostram

    que hoje as pesquisas dão grande ênfase ao estudo do fazer musical eà criação que daí surge, independente de origem, de lugar geográficoe da relação do produto sonoro com a cultura do pesquisador. Mesmoassim, ainda estamos longe de poder formular uma definição inequívocade conteúdo e abordagens da etnomusicologia. São muito diversificadosos meios de pesquisa, os enfoques e principalmente os seus camposde investigação.

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    Em 1980 Bruno Nettl constatou que a maioria dos pesquisadoresna etnomusicologia contemporânea concordava apenas que a etno-musicologia poderia incluir seis aspectos básicos de enfoque:

    1. o estudo da música não-ocidental e do folclore musical demaneira geral;

    2. o estudo da música de tradição oral;3. o estudo da música em seu contexto cultural;4. o estudo das culturas musicais contemporaneas;5. o estudo da música no contexto e enquanto parte da cultura;

    6. o estudo comparativo de culturas musicais do mundo.

    Figura 2: Diversos modelos de relação entre cultura, música e contexto geral.

    Para ilustrar diferentes enfoques na etnomusicologia, vou comentara seguir alguns campos importantes de pesquisa, selecionados de formaaleatória.

    Música e performance

    A etnografia da performance musical marca a passagem de uma análisedas estruturas sonoras à análise do processo musical e suas especifidades Abre mão do enfoque sobre a música enquanto “produto” para adotarum conceito mais abrangente, em que a música atua como “processo”de significado social, capaz de gerar estruturas que vão além dos seus

    Música* máscaras, teatro, ritual, performance.

    Música

    Som

    1

    Som Música

    3

    Movimento

    Culturaexpressiva

    Som

    *

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    aspectos meramente sonoros. Assim o estudo etnomusicológico da performance trata de todas as atividades musicais, seus ensejos e suasfunções dentro de uma comunidade ou grupo social maior, adotandouma perspectiva processual do acontecimento cultural.

    Desde Max Weber sabemos que toda ação social está sujeita a umadinâmica própria de cunho cultural. Antropólogos dos anos 70 deramcontinuidade a este pensamento interpretando manifestações culturaiscomo encenação de determinada prática social. Além dos aspectossimbólicos e dos teores comunicativos, deu-se importância ao processo

    cultural incluindo seus parâmetros de contexto, forma e gêneros. Passou-se a considerar não apenas o conteúdo de falas, mas também o ato dafala enquanto fenômeno de comunicação, seus ensejos e sua etnografia.Para uma pesquisa musical, em que música significa uma forma específicade comunicação não-verbal e em que o momento processual, as partesnão fixadas e improvisadas tomam espaço central da investigação, foiimportante adotar um enfoque semelhante.

    Para Turner e Schechner (1982) performances são, simultaneamente,

    étnicas e interculturais, históricas e sem história, estéticas e de caráterritual, sociológicas e políticas. Em última instância performance é um tipode comportamento, uma maneira de viver experiências. Vistas destamaneira, Turner e Schechner deixam claro que performances não serestringem apenas a cerimônias, rituais, eventos musicais e teatrais etc.,mas que se estendem a muitos domínios da vida, seja ela tribal ouinserida no mundo industrial e moderno.

    Signos da performance e manifestações expressivas

    Quais seriam então os elementos básicos que servem de pontos de apoioà performance musical propriamente? Simultaneamente a um sistema quedefine espaço e tempo, dando à performance musical uma limitação nessasduas dimensões principais, há outros sistemas de signos, dos quaisdispõem os seus agentes ativos: a formação do “elenco”, os atores, a

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    interpretação, a entonação, a comunicação corporal etc. Ao lado dossignos visuais como a decoração e a organização do espaço, há oselementos acústicos, como a música e outros tipos de sons. Além destesdevem ser considerados texto e enredo da performance , com seus signi-ficados lexicais, sintáticos e simbólicos. Os produtores e protagonistasda performance dependem desta soma de elementos, que constituem oplano sensório e de convenção geral. Em conjunto com os elementosda dramaturgia temos aí a matéria-prima com a qual se constrói outrasgrandezas, ou seja, através da sua performance o acontecimento sonoro

    da música traz à tona fenômenos diversos, por vezes inesperados e nãonecessariamente acústicos (Oliveira Pinto, 1997: 28).Percebendo que a performance é mais do que apenas aquilo que se vê

    e que se ouve em espaço delimitado, a etnomusicologia contribuiu comdefinições mais abrangentes, sugerindo mesmo que a performance fosse“an all-expressing, as well as all-embracing phenomenon ” (Messner, 1993: 15). Assim performances marcariam todas as atividades humanas, sempre queinseridas em algum quadro de referência sociocultural.

    Em seu estudo sobre mecanismos que levam a mudanças em reper-tórios de música, John Blacking aponta para a performance musical comoprincipal agente de persistência e, simultaneamente, de alteração detradições. As questões que mais lhe parecem pertinentes no contextode processos trasformativos da música e do sistema musical (Blacking1979: 8) podem ser adaptadas à análise da performance musical, comoa seguir:

    1) Quem realiza a performance musical e quem atende a ela? Quala sua insersão no grupo? Que idéias sobre música e sociedadeestes agentes trazem para a situação da performance ?

    2) Como é que a ocasião da performance afeta estruturas da música,seja diretamente, através de improvisação, variação e respostada audiência, ou indiretamente, com a composição especialpara um determinado evento?

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    3) O que é particularmente musical na performance e nas respostascausadas pela performance , em oposição às reações sociais,políticas etc.?

    4) Como é que aspectos musicais da performance afetam parti-cipantes individuais e assim influenciam decisões em esferasnão-musicais?

    Performances de música podem ser estudadas a partir de uma meto-dologia de pesquisa, que identifica os paralelos entre a prática das

    manifestações expressivas e as respectivas estruturas sociais, poisdramatização e representação musical prestam-se bem para uma leiturade questões sociais, que seriam características do grupo estudado(Feld, 1984). No carnaval pernambucano procurei verificar a dinâmicados diferentes grupos sociais atuando no espaço público e privadoatravés da performance das tradicionais agremiações carnavalescas(Oliveira Pinto, 1994).

    É também na performance dramática e musical que encontramos a

    ritualização do sagrado. Rituais fornecem elementos para se construiruma etnografia da performance , uma etnografia que possibilita reconhecerdiversos modelos de edificação de tempo e espaço na cultura. Para oculto de louvor de uma igreja pentecostal pude definir a trajetória dadramatização do evento através da produção musical e cênica comorepresentação de valores morais e religiosos (Rodrigues, 1995). Tambémos estudos do candomblé ou da umbanda, quando consideram a performance ,em especial a festa, não deixam de incluir os respectivos elementosdramáticos e de relevância musical (Amaral, 1998). Assim, GerardBéhague analisa a performance de um rito de candomblé, para chegar aconclusões mais abrangentes sobre a relação entre música e as esferasmítica e espiritual (1984).

    Um possível enfoque, de natureza mais direta, é aquele que acompanhade perto um evento específico, como um ritual de cura no candomblé(sacudimento e ebó). Aqui pode-se elucidar detalhes importantes quando

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    isolada cena por cena do ritual. Este tipo de leitura da performance colocaem evidência estruturas e regras semelhantes às de uma peça de teatro.No candomblé, e mesmo em outros rituais religiosos, este tipo de análise,que podemos denominar de “ frame to frame ”, abre perspectivas boas parao discernimento da integração de toque (o audível), ação (o visível) etexto (o imaginário), triângulo relacional do rito que, quando colocadoem prática, funciona como mantenedor e mediador por excelência deconteúdos religiosos e míticos (Oliveira Pinto, 1997: 31).

    Evento e performance É interessante, por final, considerar a diferença entre a performance ,enquanto conjunto de manifestações e de formas de expressão, comodefinido acima, e oevento, momento de caráter mais singular. Um eventopode ser realizado por si só:

    Eventos são intervenções, regradas ou extemporâneas, que num lugarpreciso permitem a interseção de falas, tempos e ações. Simultâneos e

    descontínuos, esses elementos desdobram e reiteram gestos e atitudes queexploram o instante da apresentação. (Favaretto, 2000)

    Como arte do tempo, a música por si representa um evento. Ésingular, porque mesmo que se repita uma peça musical, ela nuncase faz ouvir de maneira idêntica à execução anterior. Se assim nãofosse, não se justificariam as diversas versões das sinfonias de Beethovengravadas pela Filarmônica de Berlim, (sem falar nas ca. de 600 versõegravadas por orquestras de todo o mundo). Permanece idêntica narepetição apenas a concepção sobre a peça de música, ou seja, acomposição musical enquanto idéia, e não sua realização no tempo,um tempo que também sempre será outro.

    A música como parte de outras formas de expressão reflete a relaçãoentre evento e performance . Esta relação é similar àquela entre rito eritual, o primeiro fazendo parte do último, sem deixar de ter, simul-taneamente, lugar próprio no universo social e de significados.

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    Corporalidade

    Quando os portugueses chegaram à África Meridional assustaram-senão somente com o corpo desnudo dos africanos – reação semelhanteàquela de Pero Vaz de Caminha quando deparou com os nativos noBrasil – mas ficaram especialmente indignados com o movimento dessescorpos quando estimulados pela música. Do seu ponto de vista a mímicadançada era excessivamente insinuante e lasciva, os movimentos imoraise condenáveis.

    Se em geral se fala das propriedades formais do corpo, ele tambémdeve ser considerado como agente que reage, que se movimenta e quefaz movimentar.

    Da mesma forma como determinado ornamento na pintura corporaltraz informações sobre a cultura, é a reação deste corpo a dados estímulosque irá denotar a inserção do corpo e, portanto, da pessoa no seu espaçosociocultural. A reação a estímulos sensórios é um assunto que chamaa atenção durante os mais variados ensejos: observe-se como diferentes

    povos acompanham música com batidas próprias de palmas, comodiferentes corais se apresentam em palco – da performance imóvel atéaquela cheia deswing – ou como audiências reagem de forma “cultu-ralmente marcada” a diferentes músicas.

    Dança

    Um aspecto essencial da corporalidade e que, em grande parte, dependeda música, é a dança. No ritual a relação entre música e dança revelamuito do significado e da importância dos preceitos religiosos e do mito. Aqui também o corpo é suporte de símbolos, o corpo, no entanto, queage e que se movimenta. No candomblé, por exemplo, as vestimentase as chamadas ferramentas são signos essenciais da entidade divina, oorixá, mas é no movimento que se expressa a sua natureza fundamental. Assim, a dança, da forma como ocorre nos toques e cerimônias públicas

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    do candomblé, serve de apoio à incorporação dos orixás em seusmédiuns, quando se apresentam aos espectadores presentes.

    Ao analisar a dança dos orixás, não podemos nos limitar à observaçãosuperficial em relação às diversas mímicas dançadas, como: “Oxummira-se no seu espelho, portanto é vaidosa”. Muito além desta observação vai a percepção da reciprocidade e das relações estruturais de música emovimento, que são específicas do orixá, de sua dança e mitologia. Vistadesta forma, a relação de música e dança é submetida a uma análiseestrutural interna. Refiro-me a elementos sensórios, que podemos

    denominar de estruturas acústico-mocionais. Uma análise interna dadança parte de seqüências de movimentos em conjunto com o seusuporte musical inerente. Aplicada ao exemplo do candomblé, em quea dança é parte do ritual, a corporalidade se enquadra em uma etnografiada performance com peso nos elementos isolados de movimento e som.O primeiro resultado desta análise interna do repertório acústico-mocional que obtive de quatro orixás (Oliveira Pinto, 1991) já demonstraa complexidade do assunto, contribuindo, ao mesmo tempo, ao estudo

    da natureza e do caráter arquetípico das divindades do candomblé,conforme resumo esquemático na página seguinte.Com relação à coreologia, isto é, ao estudo da dança, como fundamentado,

    entre outros, por Rudolf von Laban (1950), convencionou-se em definirquatro elementos básicos para uma descrição do movimento: tempo,espaço, peso e fluência. O caráter “mocional”, ou seja, o caráterarquetípico de cada um dos quatro orixás enumerados acima e expressadoem movimento, encontra assim a sua correspondência direta e clara:

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    músicos deixaram, exige um domínio sobre o corpo que foge a qualquerpadrão ou norma mais geral. A arte do virtuose está calcada em “corposexcepcionais”, semelhantes àqueles de esportistas profissionais.

    A pesquisa etnomusicológica também considera os movimentos quegeram o som no instrumento, pois estes se mostram essenciais, re-fletindo não apenas virtuosismo e técnicas apuradas, como tambémdeterminadas concepções mentais. Por questões de sua ergonomia, uminstrumento musical impõe certas maneiras de se executar movimentos. A interação do corpo humano – com suas possibilidades fisiológicas

    de movimento – e a morfologia do instrumento exercem grande influênciasobre a estrutura musical, canalizando a criatividade humana por viasprevisíveis e musicais. Detalhada por uma análise interna, a técnica deexecução de um instrumento vai levar às regras específicas dos padrõesde movimento que, por sua vez, constituem uma importante base dofazer musical. Estudando o alaúde de 14 cordas do Afeganistão, odutar , John Bailey, desenvolveu sua teoria de corporalidade e morfologiainstrumental, um fenômeno que chamou de “spacio-motor-thinking ” musical

    (Bailey, 1985; 1995). A corporalidade enquanto fonte de energia coletiva que dá vida aformas sonoras é tematizada em um trabalho de pesquisa sobre ostambores do candombe uruguaio de Luis Ferreira (1997). Nesta músicapercussiva, produzida por dezenas de tambores, ocorre uma interaçãoda energia própria do músico com a pressão do som coletivo e das vibrações do solo sobre o seu corpo. Vibrações fortes, quando origi-nárias de uma fonte sonora, neste caso um grupo de candombe, mas

    também quando produzidas por uma bateria de escola de samba, emesmo quando oriundas de caixas de som de um trio elétrico ou deuma discoteca, agem diretamente sobre o corpo humano. A partir decerto grau de intensidade – seja de volume ou seja por causa de umaexcessiva duração temporal – a vibração rítmica tem tal impacto sobreo corpo, que pode levar a alteração de seu estado de consciência(Rouget, 1983). No caso do candombe uruguaio a vibração coletiva

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    não só toca os espectadores como também “passa aos ombros e chega abraços e mãos” dos tamborileiros (Ferreira, 1997: 183). Produz-se assim,neste tipo de evento musical, uma constante reciprocidade de estímulosenergéticos entre a corporalidade coletiva do todo (conjunto e audiência)e o corpo individual de cada músico em ação.

    Estruturas musicais

    Como em toda investigação de estruturas, a busca por elementos musicais

    construídos e culturalmente significantes vai levar às menores unidadesclassificáveis do sistema, que servem de referência para a percepçãodo todo, o “som organizado humanamente”. Dentro da cultura musicalestes elementos menores estarão ligados uns aos outros de maneirarelativamente estável, estabelecendo assim a ordem musical vigente.Decifrar a organização interna destes fatores interdependentes significareconhecer a estrutura musical mais ampla nos seus múltiplos detalhes.Em uma análise feita de uma peça de berimbau tocada por um mestre

    de capoeira em Santo Amaro da Purificação (BA), parti das menoresunidades, aquelas que identificam o toque, para observar como seconstrói a unidade maior, a música, de forma organizada e predeter-minada quanto à disposição e combinação entre si das partes menores.Cheguei à conclusão que aquilo que os músicos chamam de “improviso”na verdade não tem nada de imprevisto, por obedecer às regras decombinação e relação entre as partes menores. Pode ocorrer, isso sim,um desenvolvimento inesperado, mas sempre dentro do previsto,

    determinado pela cultura musical do berimbau no Recôncavo Baiano.Entender esta peça musical, portanto, requer um conhecimento damúsica local como um todo. O grande mestre instrumentista e com-positor é aquele que impõe sua versão pessoal, porém sem ignorar oaspecto objetivo das regras musicais existentes (Oliveira Pinto, 1988;Galm, 1997).

    Quando se fala em ouvir e entender música, fala-se da “percepção”musical. Entende-se como percepção o processo através do qual o ser

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    humano organiza e vivencia informações, estas basicamente de origemsensória. Longe de existir um consenso, música e sua percepçãocognitiva é assunto que já causou polêmica entre representantes dediversas disciplinas. Assim, há psicólogos que acreditam em processoscognitivos como universais de natureza, pois cada ser humano dispõede um sistema nervoso. A visão oposta já enxerga na diversidade culturaa predisposição para uma preferência e seleção naturais dos padrões visuais e auditivos, fazendo de cada processo cognitivo um casoespecífico e culturalmente impregnado (Bornstein, 1973). Com base

    em dados empíricos, a pesquisa musical ajudou a detalhar diferençascognitivas no processo de percepção sonora. Lembre, que ao dareminício à Musicologia Comparativa por volta de 1900, os pesquisadores,psicólogos e musicólogos em Berlim já faziam as perguntas em tornode “como ouvem“ e “como entendem” outros povos os seus sistemasmusicais, diferentes dos cânones ocidentais (Simon, 2000).

    Estruturas musicais podem denotar estilos e características derepertórios inteiros. Podem mesmo assumir uma função descritiva, ou

    então reforçar elementos não acústicos da performance geral. Ao analisaras características do repertório musical do xangô de Recife, José Jorgede Carvalho demonstrou os paralelos entre características melódicasdo repertório religioso e três pares de divindades contrastantes (Carvalho,1984). Sua análise sugere que a música exerce, de fato, uma funçãoquase que “ilustrativa”, dando ao caráter do orixá uma leitura sonora.

    Elementos de música africana

    Nos primeiros anos do estabelecimento da Musicologia Comparativa,estruturas de natureza predominantemente rítmica passaram a interessaros pesquisadores de forma secundária. Só depois de analisadas priorita-riamente escalas e afinações “exóticas” de países orientais, pesquisadoreda primeira metade do século XX expandiram o seu enfoque tambéma estruturas rítmicas. Retomando o que se sabia até a época, o musicólogo

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    americano Richard Waterman (1952) resumiu as características que lhepareciam essencias em grande parte das culturas musicais africanas,apontando também para os seus paralelos na música afro-americana.Note-se que os cinco critérios por ele enunciados referem-se a aspectosestruturais da música: (1) “ Metronome Sense ”; (2) “Call and response Pattern ”, incluindo “overlapping call and response ”; (3) poliritmo e polimé-trica; (4) fraseados emoff-beat dos acentos melódicos; (5) predominânciados instrumentos de percussão (idiofones e membranofones). Esteúltimo dado coincide com uma imagem generalizada que muita gente

    tem até hoje da música africana. Apesar da inquestionável importânciado elemento percussivo, não se pode considerar como menos importantesos elementos polifônicos na música vocal (por exemplo dos Wagogona Tanzânia) e também na música instrumental (sopros e cordas).

    Com base no interesse pela diáspora da cultura africana no NovoMundo, Waterman e outros pesquisadores americanos deram iníciotambém à documentação e descrição musicológica de repertórios demúsica afro-brasileira (Herskovits, 1946; Herskovits & Waterman,

    1959; Merriam, 1956; 1963). Destes estudos, a maioria ainda evidenciaum enfoque predominantemente “musicológico”, que procura detectarestruturas musicais a partir de uma visão ocidental, com as músicastranscritas em partituras.

    Não apenas entender enquanto pesquisador, mas procurar saber comoos músicos entendem as próprias produções sonoras, levou GerhardKubik a realizar um grande número de trabalhos sobre música africanae seus aspectos cognitivos.

    Em um ensaio sistemático de 1984, que resume suas próprias pesquisasmusicais na África e que amplia todos os estudos do gênero feitosanteriormente, Kubik enumera doze critérios que lhe parecem essenciaispara uma compreensão de estruturas sonoras e de movimento dosprocessos musicais, cognitivos e performáticos de culturas africanas:

    Música e dança : a partir de sua semântica, fica evidente que na maioria dosidiomas africanos o aspecto sonoro e o movimento de música e dança são

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    inseparáveis. Ao analisar-se música africana, portanto, dança e expressãocorporal devem sempre ser considerados.Pulsação elementar : é a pulsação contínua de valores de tempo mínimos.Estetiming é concretizado acusticamente ou através de movimentos, significandoa menor distância entre impactos sonoros e/ou de movimentos. Não existeinício ou final preestabelecidos, assim como tampouco uma acentuação pre-definida. Na prática esta acentuação se dá, por exemplo, na execução de umpadrão de chocalho na bateria de samba que preenche as pulsações elementaresininterruptamente. Waterman havia se referido à pulsação elementar como“metronome sense ”.Beat e off-beat : beat e off-beat representam a marcação e a batida entre as

    marcações. As acentuações melódicas do repertório africano caem predo-minantemente fora da marcação, ou, na terminologia ocidental, fora doprimeiro tempo do compasso. Dentro do acontecimento musical a marcaçãorepresenta um referencial onipresente, assim como também a pulsaçãoelementar. Ambos referenciais agem simultaneamente.Ciclos formais : enquanto o referencial rítmico é realizado pela marcação epela pulsação elementar, os motivos melódicos, as frases, temas e fórmulasmusicais expressam na sua repetição ciclos formais precisos que em geral seestendem sobre 8, 9, 12, 16, 18, 24, 27 ou 36 pulsos. O comprimento dociclo é definido a partir do momento do primeiro impacto até o início desua repetição.Ritmos cruzados (cross-rhythm) : a combinação de ritmos, frases ou motivospode realizar-se de tal forma que sua acentuação não coincide, resultando emnovas configurações rítmicas.Pulsos intercalados (interlocking) : trata-se aqui de uma versão específicade ritmo cruzado, que se apresenta de forma regular, quando dois ou trêsmúsicos intercalam suas marcações sonoras.Padrão (pattern) : em muitas culturas africanas os músicos pensam em padrõesorganizados, sejam estes rítmicos, ou de outra natureza sonora e de movimento.

    Notação oral : padrões rítmicos são muitas vezes fixados de forma nãoescrita. A sua manutenção fonética serve para a transmissão de determinadasconfigurações musicais.Time-line-pattern : Este é um padrão rítmico especial, de configuração assimétrica,que funciona como “cerne estrutural” da música.Time-line-patterns são fórmulasestáveis, produzidas em um tom apenas, de timbre agudo, e servem deorientação aos demais músicos e aos dançarinos.Seqüências de timbres : é a mudança de timbres que pode ocorrer sem variaçãoda freqüência de tom. Nos tambores, por sua vez, pode-se produzir estruturas

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    rítmicas, com seqüências de timbres que assumem aspectos melódicos. Alternâncias na polifonia ( skipping process ): através de usos alternadosde determinados tons dentro de uma escala, ocorrem sistemas polifônicos,que se distinguem das polifonias ocidentais e caracterizam estilos musicaisda África Oriental e Meridional.Padrões inerentes : o processo musical permite o surgimento de padrõesinerentes, que resultam da combinação de alguns elementos de duas ou maispartes da música. Trata-se de um tipo de “ilusão de audição”, pois estes padrõessão perceptíveis para uns, para outros só quando alertados. (Kubik, 1984)

    Aproveitando as descobertas que fez na África, Kubik também

    chegou a conclusões interessantes durante suas três viagens de inves-tigação no Brasil, à procura dos paralelos musicais africanos existentesno país (Kubik, 1979; 1991). No seu estudo sobre o batuque da cidadede Capivari, no interior de São Paulo, depois de avaliado o contextosocial e familiar desta tradição nos anos 70, Kubik aproveitou paraanalisar e transcrever os padrões musicais produzidos pelos instrumentosdo batuque ( quinjengue, tambu, matraca, guaiá ) a partir de um registro emfilme. Concluiu que entre os elementos que denotavam uma “concepção”

    africana estava o conceito de toque de tambor não apenas enquantoconfiguração de ritmo, mas de seqüências “timbre-melódicas”. Alémdisso constatou uma superposição de ciclos de 12 ou 6 batidas sobre ociclo métrico de 3 ou 4 unidades de pulsação. Outro aspecto importante verificado por Kubik se dá em relação aos movimentos, em que unidadesmínimas de ação levam a configurações de movimentos preestabelecidose igualmente cíclicos, como parte do fazer musical (1990).

    Um importante achado de Kubik no Brasil foi, sem dúvida, a existênciade padrões assimétricos, os chamadostime-line-pattern de origem africana,que se preservam com notável força criativa e inovadora, e, simul-taneamente, se mantêm no Brasil com grande estabilidade quanto a sua

    gestalt básica, mesmo que histórica e geograficamente distante de África.Um dos mais característicos destestime-line-pattern é representado pelalinha rítmica do samba, executado no tamborim em um conjunto cariocade pagode. Ostime-line-pattern são responsáveis por uma variedade de

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    repertórios de música brasileira e funcionam como orientação paraas demais partes da música na sua linha temporal. Além disso manifestamrelações históricas, confirmando, por exemplo, a origem bantu dosamba de roda, ou a origem iorubá e/ou fon do candomblé gege-nagô(Kubik, 1979). Assim, e de forma similar à etnolinguística, o estudoaprofundado da música, como realizado nas pesquisas de Kubik, tam-bém serve de suporte científico à reconstrução da história das culturasafricanas no Brasil.

    A definição de padrão rítmico – um importante elemento estruturalda música – é outro assunto que surge quando vemos que a concepçãoafricana de pattern não é apenas linear, mas multidirecional. Voltamosao repertório musical do berimbau. Procurando definir o que significariao termo nativo “toque”, há dois componentes básicos para a suaformulação:

    1. O componente horizontal – a seqüência rítmico-métrica quese estende sobre um ciclo de ao menos oito pulsações mínimas;

    2. O componente vertical – a variabilidade no âmbito de tons,ou seja, a disposição sucessiva de dois tons distintos no ciclode pulsações.

    Uma das definições de pattern na música africana, como “a mais longaseqüência consecutivamente repetida” (Koetting, 1970), também valepara fórmulas rítmicas nos mais variados conjuntos afro-brasileiros,assim como para o toque de berimbau. Para este último a definiçãoinclui, portanto, além da espacialidade dos seus dois tons básicos, uma

    duração delimitada pela própria configuração sonora, que, quandorepetida, já denota o novo início do toque.

    Afinação

    O ritmo, a métrica de uma peça musical e as seqüências cíclicas dedeterminados padrões, como os própiostime-line-pattern , pertencem ao

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    componente horizontal da música. Diferente de ritmo ou mesmo deconfigurações melódicas, as estruturas de afinação e de combinaçãode intervalos já apresentam uma disposição vertical. Por resultarem desimultaneidades sonoras, os aspectos verticais de toda música são,muitas vezes, mais difíceis de perceber do que os horizontais, que seestedem ao longo da linha temporal. A este domínio vertical de estruturassonoras pertencem as afinações de instrumentos.

    Habituado a certas relações de intervalos, principalmente tambémàs afinações diatônicas e temperadas da música ocidental, o nosso

    ouvido pode, automaticamente, “corrigir” determinadas “desafinações”alheias. Estar “fora do tom” ou “desafinado”, em si já são conceitosetnocênctricos, pois pressupõem que o outro esteja errado pelo fatode estar fora das normas do mundo musical próprio, este sim, supos-tamente “no tom” e “afinado”.

    Ao estudar as músicas de pífanos e da pequena gaita dos grupos decaboclinhos de Pernambuco e da Paraíba em 1984 e 1985, verifiquei aconstância de um elemento de afinação destes intrumentos que têmna terça neutra um recurso básico, que transcende o puramente estilístico. A remoção das terças maior ou menor das melodias, e a inserção, aoinvés delas, da terça neutra, toma do repertório nordestino das flautaso jugo dos modos maior ou menor, sem os quais, lembre-se, não existiriaa música do ocidente, baseada na tonalidade e harmonia funcional. Ora,o fazer música, que não esteja em uma tonalidade maior ou menor e autilização de intervalos intermediários, portanto não temperados, éassunto para festivais de música de vanguarda, atonal e de poucaaceitação do público de massa. No entanto, as bandas de pífanos donordeste, os aboios, as trovas dos repentistas, as toadas de caboclinhos,os forrós pé de serra, todo este vasto repertório é caracterizado pelaterça neutra. A conclusão que se tira deste fenômeno sugere uma ex-plicação possível para a força das manifestações culturais do nordeste,mesmo quando fora de seu contexto.

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    A terça neutra nordestina como aspecto peculiar de afinação é umacaracterística que não só marca uma “paisagem sonora” especificamentenordestina, como também é responsável por uma série de procedimentosque dizem respeito até a própria concepção de mundo. Um exemplodisso é a convivência pacífica entre instrumentos como o acordeom,com seus intervalos diatônicos temperados, e os estilos vocais, comoo aboio, ou as bandas de pífanos, estes últimos regidos pela terça neutra.Esta simultaneidade, que, aparentemente, não cria atritos intransponíveis,contradizendo assim tudo o que pregam as teorias musicais do ocidente,

    denota a abertura com que estruturas tradicionais da sociedade noNordeste abarcam elementos da globalização, sem por isso destruir ourenegar os conceitos próprios mais genuínos.

    A fim de exemplificar a configuração da “escala nordestina” com suaterça neutra, medi os intervalos de diversos pífanos pernambucanos,paraibanos e alagoanos, chegando ao seguinte padrão, que se torna maisclaro quando comparado com os intervalos da escala temperada:

    “Escalanordestina”

    Escala

    temperada

    - 20Csol

    - 50C - 10C - 10C +20Clá si dó ré mi fá sol

    180C 170C 140C 220C 190C 120C 180C

    200C 200C 100C 200C 200C 100C 200Csol lá si dó ré mi fá sol

    Figura 3: Comparação de escala temperada com escala “nordestina”: 100Cents (C)equivalem a um semitom temperado, uma oitava de sol a sol a 1200 C.

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    Teorias nativas

    Em todas as áreas de cultura, a pesquisa de teorias nativas beneficiou-se da chamadacognitive anthropology e também do enfoque “êmico”, ouseja, da adoção de uma perspectiva de dentro da sociedade (Headland,Pike & Harris, 1990). No caso da música, os aspectos cognitivos dapercepção de estruturas sonoras e o isolamento de unidades menoresque constituem, através de relações específicas, o todo da peça musicalsão de interesse prioritário neste tipo de enfoque. Não apenas questões

    voltadas à natureza do som e das respectivas realizações sonoraspertencem às noções nativas, mas lhe dizem respeito também indagaçõessobre causas, efeitos, funções e processos mentais da criação musical.

    O primeiro problema que se coloca em relação a teorias e conceitosmusicais nativos é a procura por equivalentes de termos como “música”,existente na maior parte dos idiomas europeus. Conforme mencionadoacima, a expressão “música”, que nos parece básica, prova ser, aocontrário, uma abstração inútil do ponto de vista de muitos povos, como

    bantu ou iorubá, talvez até nos idiomas não-ocidentais como um todo.É com peso na investigação dos conceitos nativos de instrumentosmusicais que Hugo Zemp, etnomusicólogo do Musée de l’Homme deParis, publicou um livro sobre música e sociedade Dan (Costa do Marfim),uma das primeiras monografias com enfoque antropológico sobre opensar musical de um povo não-ocidental. Além dos instrumentos, asua utilização, simbologia e mitologia, Zemp (1971) retrata a concepçãomusical dos Dan através do vocabulário específico, das funções da

    música e dos que fazem música, da música no ciclo anual de vida, suasdiferenciações entre mulheres e homens etc.Outra pesquisa em teoria musical nativa, que representa um trabalho

    de relevância não apenas para a etnomusicologia brasileira, mas para adisciplina de uma forma geral, é “A musicológica kamayurá” de Rafael José de Menezes Bastos (1978). O próprio título do trabalho de Bastosmostra a preocupação do autor em desvendar uma lógica específica do

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    pensar de um determinado grupo indígena da região do Alto-Xingu.Retratando a multiplicidade das dimensões teóricas da “musicológica”kamayurá, o livro de Rafael Bastos inaugura a mais recente fase daetnomusicologia no Brasil. É significativo que este novo impulso paraa disciplina parta da antropologia, encerrando também no Brasil suacondição restrita de subárea da musicologia. Ironicamente esta mudançade paradigma se dá transformando música (“musicologia”) em umanoção antropológica (“musico-lógica”).

    Terminologias e concepçõesNenhuma forma de cultura expressiva exige, mesmo no discurso entreleigos, tão vasto “vocabulário técnico” como a música: além do termomúsica, fala-se no Brasil naturalmente de ritmo, tonalidade, melodia,cantiga, instrumento, e mesmo de harmonia, compasso, cadência,escala, sonoridade, timbre etc. Diferente de outras áreas do saberlocal, não é contraditório teorias nativas operarem no campo musical

    com concepções próprias, não-ocidentais, e utilizarem, ao mesmotempo, esta terminologia, que é derivada da teoria musical européia.Quando, no entanto, músicos, mestres e entendidos de manifestaçõesde tradição local utilizam termos desta natureza, deparamos com umare-significação própria e precisa da terminologia, dentro de um corpodefinido de saber. Desvendar as verdadeiras teorias musicais é importantetarefa da etnomusicologia.

    No Recôncavo Baiano a tradição da viola de samba, o machete,reflete uma destas teorias que se utilizam de uma terminologia ocidentalinteiramente resignificada. O próprio machete, de origem portuguesa,prova o quão equivocado é acreditar na procedência do instrumentocomo responsável pela natureza da música tocada neste instrumento.Da mesma forma, a utilização de determinada terminologia nada reflete,a priori , sobre as concepções que ela compreende. Sabemos que con-cepções africanas, e derivadas destas, se concretizam, independente do

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    instrumento pertencer genuinamente à tradição africana ou não. Provadisso são os inúmeros estilos regionais de música para violão na África,nos EUA (noblues , por exemplo) e também no Recôncavo, com o seusamba-de-viola.

    No caso do machete a concepção responsável pela produção sonoraestá fundamentada em um pensamento acústico-mocional (ouspatio- motor-thinking , no dizer de Bailey (1985)) em que padrões definidos deseqüências de movimento; técnicas específicas de encadeamento deduas configurações rítmicas produzidas por indicador e polegar da mão

    direita e a relação de acento e harmonia com o todo manifestam umuniverso musical próprio, nitidamente africano. Além deste pensamentoacústico-mocional o quadro de referência teórica da música do machetebaiano baseia-se na noção de cinco “tons” distintos: ré-maior, dó-maior,lá-maior, sol-maior e mi-maior. No entanto, aqui a semântica destaterminologia é muito mais abrangente do que aquela da teoria musicalensinada em conservatórios. Pelo contrário, o saber de conservatórioligado aos termos “ré-maior”, “dó-maior” etc. nem está presente na

    concepção do repertório do samba-de-viola, embora coincida com arelação “tonal” absoluta dos cinco “tons” entre si. Este último dadotalvez comprove a origem terminológica do samba de viola na concepçãoocidental, porém nada mais que isso. A teoria nativa vai em outradireção. Aqui “tom de machete” significa a realização sonora de padrõesde movimento definidos, conforme visto acima. Cada um dos cinco“tons” tem as suas fórmulas de movimento e sua própria resultanteacústica, além do grau de altura de cada um dos tons, dentro de umaescala imaginária.Os padrões acústico-mocionais de cada “tom de machete” contémuma característica estética, que irá repercutir na música e, inclusive,na escolha do “tom” na hora de sua execução no conjunto. O “tom”que melhor se presta para o acompanhamento de um samba puxadopelo cantor de forma “solta” e “esparramada” é “ré-maior”, enquanto“mi-maior” é considerado o mais “pesado” e “duro” dos tons. Dar

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    fluência à festa, segurança e velocidade nos pés dos dançarinos e umabase favorável às chulas improvisadas e respondidas pelos cantoresexige preferencialmente que se toque no “tom ré”. Colocar à prova umpuxador de chula recém-chegado à festa, já motiva os instrumentistasa introduzirem o “tom mi”, atravessado de natureza, mais difícil mesmopara os dançarinos. A diferenciação precisa dos cinco “tons de machete”,na prática e também nas conversas e nos comentários entre os músicos,evidencia um importante aspecto da teoria musical do RecôncavoBaiano (Oliveira Pinto, 1991: 135-7).

    ré-maior dó-maior lá-maior sol-maior mi-maior

    leve

    fácil

    solto amarrado amarrado pesado, duro,

    atravessado

    Na teoria musical do ocidente, “ré-maior”, “dó-maior” etc. designama tonalidade da música em questão. Esta definição difere, como recém-exposto, da forma como os termos são empregados no samba-de-violado machete baiano. Devo observar, ainda, que em relação ao termo“tonalidade” já verifiquei diversas utilizações no contexto das mais variadas tradições musicais brasileiras. Na Bahia, Mestre Vavá diziacomentando um jogo de capoeira: “Aí o berimbau muda a tonalidade”.Referindo-se ao fato de o tocador de berimbau mudar o caráter dostoques, interferindo assim diretamente no desenvolvimento do jogo. Já o forrozeiro Valdir do Acordeon de Pernambuco, ao descrever seuinstrumento, comentava: “ Apertando estes botões, a sanfona fica comoutra tonalidade”, demonstrando que, ao acionar os registros, suasanfona adquiria novos timbres.

    Tabela 2: “Tons” do samba-de-viola no Recôncavo Baiano.

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    Estes e vários outros exemplos mostram que a terminologia musicaldos conservatórios de música passaram a fazer parte integral de outrasteorias nativas. No entanto não representam mais que empréstimoslexicais, cuja semântica original foi completamente resignificada.Somente ao desvendar estas teorias que se vai chegar às concepçõesintrínsecas ao vocabulário musical, tão diferenciado, ou mais, quantosua versão original.

    Paisagens sonoras

    Timbres característicos, fenômenos como a mencionada terça neutranordestina, maneiras próprias de entoar a voz, tudo isso é responsávelpor sonoridades locais, que se mesclam com outros sons, ruídos, falas,fazendo surgir verdadeiras “paisagens sonoras”. Perceber e pensar aprodução sonora musical como parte de uma paisagem sonora maisabrangente é um assunto relativamente novo na história da etno-musicologia. Foi o compositor e musicólogo canadense Murray Schaferque forjou a noção desoundscape como o meio ambiente sonoro dohomem (1977). Na verdade trata-se da contraparte acústica da paisagemque circunda os seres humanos. Deve-se distinguir entre dois tiposde paisagens sonoras: uma natural, a outra cultural. Osoundscape naturalenvolve sonoridades que provêm de atividades ou ações físicas defenômenos naturais. Jásoundscapes culturais resultam de todo tipo deatividades humanas. Marcam, em especial, o potencial comunicativo,emocional e expressivo do som. Chegar-se à música através dosoundscape é um trajeto complexo. Seria demasiado simplista assumir que a mú-sica fosse apenas “destilada” dosoundscape , justamente por tambémocorrer o processo inverso, ou seja, a música tem a propriedade deinfluenciar e mesmo de caracterizar paisagens sonoras. Uma paisagemsonora é tão diversificada quanto são diversos os ambientes que aproduzem. Ela estará sempre impregnando a primeira impressão quese tem em campo e que se manifesta, infalivelmente, independente

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    se há ou não discernimento prévio daquilo que o acontecimento sonorosignifica. O primeiro impacto sonoro é marcante, é tão delatadorquanto a luz peculiar de uma região nova, as suas cores ou os odoresque a compõem.

    Na certeza de que através dosoundscapes musical se chega a mais doque apenas uma combinação específica de qualidades sonoras ou a umaconfiguração variável de timbres, analisei através do programa S_Toolsdesenvolvido pela universidade de Viena, o espectro sonoro das prin-cipais agremiações tradicionais do carnaval pernambucano. O resultado

    foi surpreendente pela precisão como as diferenças dos grupos emquestão se apresentavam em relação à sua sonoridade: o maracatu rural,por exemplo, demonstrou uma “imagem sonora” oposta àquela dasescolas de samba. As sucessão rápida de freqüências similares doconjunto de percussão do maracatu rural gerou traços de predominânciahorizontal, enquanto a grande gama de timbres dos instrumentos dabateria de samba, com suas marcações regulares, resultou em umaimagem “verticalizada”. O fato que já havia detectado na pesquisa

    antropológica e social foi confirmado por estes “espectrogramas”: defato existem diversos critérios, como o rural e o urbano, o repertóriofixo e o livre, o nacional e o local etc. que colocam o maracatu rural eas escolas de samba do Recife nos dois extremos de um contínuo deexpressões variadas do carnaval pernambucano (Oliveira Pinto, 1996). A tradução objetiva do som de um grupo e do respectivosoundscapes para a imagem visual abriu um interessante código de leitura da sociedade de sua produção cultural.

    Esta pesquisa mostra que faz parte da busca porsoundscapes tambéma consideração das fontes que produzem o som. Como fonte acústicadeste tipo consideramos a soma total dos agentes produtores de somque contribuem para a composição de uma paisagem sonora. A fonteacústica representa a contrapartida material dosoundscape . A sono-ridade dos instrumentos musicais é um dos elementos gerados pelasfontes acústicas.

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    A consideração dossoundscapes leva a uma perspectiva mais abertade som musical. O som especificamente musical tem grande relevânciadentro do acontecimento sonoro restante, podendo ser percebidoenquanto elemento que contrasta nitidamente de outros aspectos dentroda paisagem sonora.

    Etnografia da música/pesquisa de campo

    Depois de deixar de ser uma disciplina que enxerga os seus objetos a

    partir de uma perspectiva de gabinete ( armchair-perspective ) – a pesquisade campo tornando-seconditio sine qua non para o labor etnomusicológicoa partir da segunda metade do século XX – a etnomusicologia deixouo aspecto meramente “musicológico” por vezes em segundo planopara se utilizar da antropologia, principalmente no tocante a suasabordagens metodológicas. A pesquisa participativa e a etnografia damúsica, a transcrição para o papel e a análise de estilos musicais,finalmente também conceitos, termos tradicionais de ensino e deaprendizado, impuseram-se cada vez mais através da consideraçãode uma ótica nativa com a prática do trabalho de campo. Assim, oobjeto de estudo deixou de ser apenas “acústico” enquanto forma,configuração e estrutura, para adotar outras dimensões, conectadasde maneira mais abrangente ao som.

    A pesquisa de campo ( fieldwork, recherche de terrain , Feldforschung ) fazparte intrínseca do levantamento de dados e de informações na antro-pologia. É grande o número de orientações e de trabalhos de estudiososque se manifestaram em relação à construção do objeto de pesquisaatravés do fieldwork na antropologia. Um estudo dedicado ao casoespecífico da história e das práticas de uma etnografia afro-brasileira,em que a música sempre ocupou um importante espaço, foi apresentadopor Vagner Gonçalves da Silva (2000). Há trabalhos que tratam maisespecificamente da pesquisa de campo na etnomusicologia. Em seuesboço de uma etnografia da música, Anthony Seeger sugere que a base

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    desta etnografia se encontra precisamente no espaço entre tradição etransformações ( change ) culturais:

    That there is often a next time, leads to what we might call a tradition. That there is often not the same as the time before, produces what we mightcall change. The description of these events forms the basis of the ethnography of music. (Seeger, 1992: 88)

    Dos métodos de pesquisa antropológica a investigação de campo éaquela que mais dificilmente se ensina em sala de aula. A pesquisa decampo, principalmente também a pesquisa participativa, exige do

    antropólogo experiência e um talento especial em lidar com pessoas.Dificilmente se poderá preparar os diferentes passos da pesquisa comprecisão e de maneira predefinida. Na etnografia musical acrescenta-se o aprendizado e a capacidade de manusear aparelhos.

    Tecnicamente falando, a pesquisa musical de campo requer umequipamento básico, que possibilita o investigador a captar sons e afixar imagens para a avaliação e análise posteriores. Além disso estessons e imagens gravados servem de material para arquivos e, quando

    devidamente acompanhados de documentação, para estudos futuros.Há basicamente dois enfoques quando se fala em documentar a músicano seu devido contexto performático:

    Abordagem musicológica : o fenômeno musical enquanto textoe estrutura está em primeiro plano. A gravação do acontecimentomusical é de fundamental importância, pois a avaliação posteriordeste aspecto depende exclusivamente do registro musical. Esteregistro deve servir, igualmente, para compor arquivos especia-lizados, portanto existe a preocupação de uma gravação “limpa”,sem maiores interferências.

    Abordagem antropológica : a investigação de campo caracteriza-se pela postura do pesquisador, que vê a música inserida no seucontexto cultural. Dá-se importância ao todo, isto é, à “música nacultura” e à “música enquanto cultura” (Merriam, 1964; 1977).O registro do áudio e de imagens ultrapassa o puramente musical.

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    Tabela 3: Principais elementos da documentação da performance musical.

    Cultura/ContextoMúsica

    Documentação Gravação Protocolos

    Recolha dedados

    Conceitos nativos; ocasiõesmusicais; quem, quando, ondefaz música?

    Análise,Classificação

    Classificação melódica, rítmica,instrumental etc. Transcrição e

    análise musical; estruturassonoras e de movimentos;transcrição/tradução de textos;reconhecimento de gênerosmusicais.

    Etnografia da performance ;funções no contexto; análise

    cognitiva; análise semântica einterpretativa de textos; por quee em que relação com o contextose faz música?

    Terminologias

    O emprego de filmadora ou vídeo na pesquisa participativa abrepossibilidades para três maneiras de registro: (1) gravação no contexto,(2) gravação analítica e (3) o emprego da filmadora como “bloco deanotações” 1.

    (1)Gravação no contexto : o registro do acontecimento sonoro napesquisa de campo procura, idealmente, fazer jus à situação e aocontexto encontrados. Mesmo que se dirija os microfones para quecaptem, da melhor forma possível, a sonoridade da fonte musical(cantores, instrumentistas), o pesquisador procura não fazer intervençãona performance que encontra. Não vai pedir a músicos que mudem deposição, que dêem início à sua atuação fora do momento previsto,porque assim lhe convém melhor etc. O registro que é feito desta formatem a vantagem de documentar a sonoridade geral do evento, sendofiel também ao desenvolvimento da performance no seu tempo real.

    (2)Gravação analítica : é aquela que é feita, ou dirigida, a partirde um projeto de pesquisa definido de antemão pelo pesquisador.

    Filmagem

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    Existe uma hipótese acerca da música a ser gravada e que se pretendeilustrar e aclarar posteriormente, quando em posse das gravações. Estamaneira de gravar não se prende ao tempo real e ao espaço previstospela performance . O ponto de referência do pesquisador é o microfone,extensão do seu próprio ouvido. Há três formas básicas de gravaçãoanalítica:

    • O microfone segue o som que lhe interessa, produzindo umrecorte (função de “lupa“ ou, comparável à fotografia, de “tele-objetiva”).

    • O microfone desconsidera o espaço previsto pelo processo edesenvolvimento da performance , procurando um ponto fixo peloqual se desenrola em seqüência, pontual e espacialmente re-duzido, todo o acontecimento. É a procissão que passa pelafrente do microfone.

    • O microfone é ponto focal da sessão de gravação, que neste casoé organizada de acordo com as indicações do pesquisador (situaçãosemelhante a estúdio). Entra aqui também a técnica de gravaçãoem play-back, para produção de material de transcrição.

    (3)Câmera como bloco de anotações : quando a câmera de vídeoe também o gravador servem de “caderno de anotações”, o registro segueum padrão de observação sem preocupação com tempo, espaço, coor-denação dos sons e das imagens gravadas. Capta-se todo o possível demaneira imprevista. Obtém-se os primeiros “rabiscos” registrados, nãono caderno de campo, mas na fita de vídeo ou áudio da câmera ou dogravador. Apesar de menos difundida na pesquisa etnomusicológica do quese poderia imaginar, a filmagem enquanto recurso para uma etnografiamusical (Bailey, 1989) foi utilizada com sucesso por pesquisadorescomo Mantle Hood, Gerhard Kubik, Hugo Zemp, John Bailey e ArturSimon. Hood e Kubik ainda filmaram em 8 mm mudo no início dadécada de 1960. A proposta original era utilizar a filmagem como

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    apoio para a análise musical. Assim Kubik desenvolveu um métodoespecial de transcrição do filme. Já Hugo Zemp, John Bailey e ArturSimon filmaram em 16 mm (Simon, 1989). Os filmes de Hugo Zempsobre os Are-Are (1978), sobre o “Jodel” na Suíça (1987) ou sobre ocanto bifônico da Mongólia (1989) são considerados pioneiros dogênero etnomusicológico. Ao mesmo tempo estes filmes mantêm acaracterística do “filme analítico-musical”. Já no seu documentáriode 1998, filmado em vídeo sobre diversos estilos de violão e guitarraafricanos, Gerhard Kubik usou a câmera como “bloco de anotações”,

    inserindo posteriormente cenas de filmes documentários mais antigosque havia feito nos anos 60 e 70. Este filme é exemplo de um novogênero, onde documento, detalhes biográficos e relatos variados semesclam, formando uma composição quase impressionista sobre otema.

    Munido de seu equipamento de gravação, o etnomusicólogo sempreocupa uma posição especial em campo e no contexto social onde seencontra. Enquanto hoje não se leva a campo mais do que no máximo

    10 kg de equipamento, Simone Dreyfuss Roche, pesquisadora do Muséede l’Homme, ainda teve de transpotar 300 kg de equipamento de áudiopara o Xingu em 1959. Mesmo com pouco material técnico, e câmeraspequenas que chamam menos atenção e não exigem vários operadores,é preciso refletir o que significa este tipo de pesquisa em campo.Baseado na minha própria experiência, esbocei na tabela que segue trêscenários de pesquisa diferentes. Têm em comum apenas o fato de setratarem de três rituais religiosos, possuindo cada um suas particu-laridades com implicações para a pesquisa e o registro de campo:

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    Candomblé Igreja Pentecostal Santo Daime

    Ação/rito

    O desenrolar da ação é di-rigido de fora: pelo alabê, amãe de santo; e de "dentro"por orixás, entidades etc.

    A ação religiosa do cultoé dirigida pelo pastor

    Dramaturgia musical é cla-ra. Música representa umfator de orientação dentrodo rito. Música expressa osdiferentes caracteres espiri-tuais.

    O pesquisador tem seu lugarfora do centro da ação ritual.Quando os dirigentes da ca-sa o permitem ele pode fazerregistros de imagem e som.Em caso contrário lhe é per-mitido apenas observar afesta passivamente. No en-tanto pode ocorrer comele, como com qualqueroutra pessoa presente, queem dado momento apre-sente a manifestação de umaentidade espiritual (bolarno santo) levando-o mesmoa submeter-se à iniciação.

    Só os iniciados incorporam

    os orixás, que se mani-festam no rito através dadança e de sua presença.

    Visitantes são hóspedes dacasa e da festa. Após a ceri-mônia pública, convidadossão convocados para parti-ciparem do banquete.

    O pesquisador é tratadocomo um visitante qualquer,que no decorrer do culto éincentivado a abandonarsua posição de observadorpassivo, para integrar-se àação comunitária. É fina-lidade expressa dos fiéis delevar todos os visitantes defora à conversão, convo-cando-os a se entregaremdurante a cerimônia a Jesuse ao Espírito Santo.

    O pesquisador não recebeum lugar especial como visi-tante passivo e observador.Como todos os mebros dacomunidade e presentes nolocal, ele deve ingerir oDaime, deve participar doshinários cantando e dan-çando enquanto durar acerimônia e enquanto tivercapacidade para tal. As ex-periências vividas pelo pes-quisador neste momentorepresentam os únicos com-ponentes pessoais que eleleva para casa.

    A finalidade da ação comu-nitária é levar todo visitantea se converter. O culto delouvor é uma cerimôniapropensa para esta fina-lidade.

    Não há lugar para visi-tantes que apenas observame permanecem passivos.

    O êxtase e a glossolalia

    podem ocorrer com todosos presentes como sinal damanifestação do EspíritoSanto.

    Música age como fundo epara incentivar a emoção(exaltação). Além dissoserve para louvar a Deus,a Jesus e ao Espírito Santo.

    O daime , um alucinógeno,

    é ingerido por todos os par-ticipantes da ação religiosa,com finalidade de lhes pro-porcionar uma experiênciamística.

    Tabela 4: A posição do pesquisador ativo em três contextos religiosos diferentes.

    Música e

    performance

    Consciênciaalterada

    Visitantes

    Posiçãodo

    pesquisador

    Ação uniforme e coletiva,coordenada pelo puxadordo hinário.

    A orientação é dada peloshinários. A performance musical érealizada por todos.

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    Pesquisa e participação musical

    A participação musical como estratégia de pesquisa de campo, tocandoum instrumento, cantando ou dançando, foi recomendada por MantleHood, que transformou o seu departamento de etnomusicologia naUniversidade da Califórnia em um dos mais conhecidos laboratóriospráticos de música mundial a partir do final dos anos 60. Para ele aspropriedades musicais, as suas regras, a percepção de padrões espe-cíficos ou os critérios que definem toques podem melhor ser estudados

    através da prática musical (Hood, 1963). Independente de Hood umgrande número de pesquisadores já praticava música durante suaspermanências em campo e continua dando importância ao aprendizadoprático como parte da pesquisa: Gerhard Kubik desvendou em 1962os princípios que geram a música dos xilofonesamadinda e akadinda do extinto reino de Buganda (Uganda), aprendendo a tocar o respectivorepertório (Kubik, 1995), John Chernoff chegou à “sensibilidade“ damúsica africana investindo no aprendizado de tambores da África

    ocidental (Chernoff, 1979) e James Kippen estudoutabla indiano datradição ( gharana ) Lucknow com Ustad Afaq Husain Khan com ointuito de decifrar um tipo especial de “gramática” musical indiana(Kippen, 1988).

    Não resta dúvida quanto à importância das experiências práticas. Hápesquisadores, porém, que enxergam obstáculos para o observadorparticipante, não tanto entre o que vê e o fato em si, mas na discrepânciaentre o praticamente intraduzível de sua experiência e uma linguagemde consenso geral no momento de comunicar o que se viveu em campo.Chernoff (1979) acredita na necessidade de uma ação interpretativamuito elaborada por parte do pesquisador observador-participante, casocontrário terá dificuldade em chegar a um nível de abstração capaz deretratar com precisão tanto a realidade do mundo por ele presenciadoquanto a relatividade de seu próprio ponto de vista.

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    Notação e transcrição

    Uma das preocupações que persiste desde os primórdios da etnomu-sicologia é como descrever e fixar no papel, ou de outra forma visual,o acontecimento musical.

    A língua falada é registrada, mitos e literatura oral são anotados apartir destes registros. A música pode ser gravada enquanto registrosonoro, a sua fixação no papel, no entanto, é mais complicada. A músicanasce e cresce no tempo, reflete uma organização bastante ou menos

    complexa, revela um conteúdo específico para determinadas pessoasou então apela para o emocional e se acaba, passando em seguida àmemória. Descrevê-la é um processo que passa do subjetivo ao discursoformulado com termos técnicos ou através de uma terminologia nativa.

    Foi a invenção do “Phonógrapho de Edison” em 1877 que possibilitoua antropólogos registrarem para análises posteriores falas e músicas dospovos que visitavam. Os cilindros de cera que serviam de suporte degravação para o fonógrafo de Edison chegavam à Europa na bagagem

    de antropólogos e viajantes, gravados com os mais diversos sons, me-lodias, cânticos e falas de todo o mundo.No início o interesse científico pela música de outros povos restringia-

    se principalmente às escalas e aos diferentes sistemas musicais, aosinstrumentos e sua afinação, sua utilização e também ao estudo e análisedas melodias, que eram transcritas minuciosamente para a grafia damúsica ocidental.

    A visão da música como um objeto de pesquisa e o estudo de músicas

    de outros povos no plano da investigação musicológica foram as duasprincipais justificativas para a transcrição em partitura de fenômenosmusicais de todo mundo. No afã de serem reconhecidos pelos estudiososda música ocidental, pesquisadores de tradições “exóticas” apresentavamas músicas transcritas em pauta na qualidade de documentos. Estes lhesserviam de fontes para a pesquisa, da mesma forma como outros ofaziam com partituras de Bach ou de Mozart.

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    A transcrição musical vista como fonte de estudo e análise apresenta,no entanto, alguns problemas fundamentais:

    • A escrita musical européia é intrínseca à historia musical doocidente. Ela se desenvolveu conforme as necessidades e opróprio desenvolvimento desta música desde a renascença atéfins do século XIX. Por esta sua história peculiar ela permanceincompatível com muitos sistemas musicais não-ocidentais.

    • A transcrição musical não representa um documento da culturaa ser utilizado como base objetiva para uma análise, pois elapassou pela interpretação daquele que faz a transcrição em pauta.

    • A representação gráfica mais adequada deveria fazer jus àquiloque se pretende demonstrar com a transcrição. O processo detranscrever som para o papel deve iniciar com a pergunta: “oque pretende ser demonstrado?”.

    • Este tipo de transcrição já requer um conhecimento maisaprofundado da cultura musical. Por isso ela procura representaro sistema musical a ser descrito, a sua “gramática” musical.Passa a ser resultado da análise, e não ponto de partida damesma.

    • Como documento do repertório registrado e para a sua análise atranscrição musical não supera o material áudio ou áudiovisual.

    A transcrição musical que partia unicamente do material de áudiogravado, sem fazer uma estruturação prévia, reflete uma “audiçãoexterna” da cultura musical a ser analisada. Pelo seu caráter “externo”este tipo de transcrição contém uma grande porção de avaliação subjetivado pesquisador. Em contrapartida umaanálise interna pode, por exemplo,partir de seqüências de movimento inerentes à técnica de execução deum instrumento, levando assim a uma percepção mais apurada e objetivado acontecimento sonoro. Pesquisas musicais feitas na África, porGerhard Kubik, levaram o antropólogo a tomar o movimento comobase geradora da produção sonora com o instrumento. O resultado é

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    bem mais ilustrativo do que os sons fixados em pautas, inclusive tambémpara a comparação entre diversos repertórios, técnicas de execuçãomusical etc. É quando se transcreve para o papel peças de músicatocadas em xilofone, tambores, berimbau etc. Muito mais do que oresultado acústico puro, importa neste tipo de abordagem saber comque tipo de movimentos o músico gera os seus sons. Em música africanaou afro-brasileira, há movimentos que produzem sons variados, deacordo com a qualidade do movimento, e há outros tipos de movimentosque omitem qualquer sonoridade, dando seqüência, porém, a um

    contínuo de movimentos organizados. Desenvolveram-se assim técnicasde transcrição musical do filme, e posteriormente do vídeo, nas quaisa combinação de som e imagem possibilita uma leitura mais completado acontecimento musical. Mais recente estas formas “objetivas” detranscrever músicas levaram finalmente a buscar apoio nos recursos docomputador esoftwares especializados.

    Podemos mencionar ainda a transcrição do som para o papel que ébaseada em gravações analíticas. Já foi comentado que este tipo de

    registro gravado é realizado a partir de um projeto de pesquisa definidode antemão pelo pesquisador. Se o microfone passa a ser uma extensãodo ouvido, que busca captar de perto detalhes da música, esta gravação vai também possibilitar a “percepção“ analítica, e assim a respectivatranscrição para o papel. Ao presenciar um conjunto de 12 flautasmonófonas, asxinveka de Moçambique, cada qual afinada em um tomdiferente, e que eram tocadas simultaneamente enquanto os músicosformavam um círculo em movimento, fixei o microfone em um pontodeste círculo. Cada flauta ficou registrada individualmente por algunssegundos, tempo suficiente para reconhecer sua afinação e perceber opadrão rítmico representado por ela. Apesar de cada instrumento sesobressair em dado momento, a performance como resultado musical ficaaudível ininterruptamente. Sem o recurso da gravação analítica difi-cilmente se decifraria o papel de cada uma das flautasxinveka dentroda estrutura geral da peça musical.

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    Simha Arom, etnomusicólogo do Lacito-CNRS em Paris, ainda levoumais adiante esta técnica de gravação, fazendo que membros de umconjunto de sopros da República Central Africana tocassem a sua parteisoladamente. Como o músico necessita ouvir e interagir com o todopara tocar a sua seqüência, Arom fez com que tocasse com um fone deouvido na cabeça. Através deste ouvia a música do conjunto, gravadapreviamente, reconhecendo e repetindo sua parte. Trata-se aqui de umagravação em play-back no campo. As partes isoladas em diversos canaisde gravação servem para fins de análise e mixagem posterior.

    Preservação

    Uma das preocupações sempre presentes nas primeiras fases de cons-tituição da etnomusicologia foi o medo do desaparecimento de músicase mesmo de tradições musicais inteiras. Em carta datada de 4 de abrilde 1914, o médico Albert Schweizer, que abandonara uma carreirapromissora de músico, para tornar-se médico e abrir um hospital no

    Gabon, África Ocidental, dirige-se a Carl Stumpf, diretor do Depto.de Psicologia da Universidade de Berlim, primeira sede do arquivofonográfico, já constituído como o maior arquivo de música de todo omundo com um acervo de ca. de 15 mil cilindros de cera do fonógrafode Edison. Em sua carta o médico manifesta a preocupação com certastradições musicais no país de sua residência. Diz Albert Schweizer:

    Neste país há antigas e belíssimas cantigas de remadores. Parecem-se commotetos e são constituídas de interessantíssimos contrapontos. Está mais

    do que na hora de gravar estas músicas, pois os jovens só aprendem a cantarhinos cristãos com os missionários. Além disso os barcos a motor estãofazendo desaparecer os barcos a remo, onde 20 remadores em pé, cantavam,por vezes dias e noites a fio, para que pudessem manter o ritmo de suasremadas. O fim dos barcos a remo significa: fim das cantigas de remadores.(Apud Simon, 2000: 54)

    Arquivos de música, como os de Viena (1899), Berlim (1900), Paris(1900) ou São Petersburgo (1902) nasceram como centros de docu-

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    mentação e de pesquisa sonora, quase que exclusivamente de música. Arquivos sonoros ligados a bibliotecas e arquivos públicos surgiram aofinal da década de 1920 e no início dos anos 30 (Archive of Folksong of the Library of Congress, Washington e a Discoteca Pública Municipalde São Paulo). Arquivos com propósitos de disseminação radiofônicaforam criados junto a estações de rádio nos anos 30, como a BBC Sound Archive, que em 1936 postulava “preservar gravações sonoras de valorpara a sua rádio-difusão”. Arquivos sonoros de música de tradição oralinstalados em departamentos universitários nasceram a partir da década

    de 1930. É o caso do arquivo de música folclórica da Escola Nacionalde Música no Rio de Janeiro, cujo diretor, Luiz Heitor Correa de Azevedo(1905-1992) pode ser considerado o primeiro etnomusicólogo modernodo Brasil. Duas décadas depois surge o Archives of Traditional Musicda Indiana University, um dos mais importantes do gênero nos EUAhoje em dia.

    Enquanto os arquivos de Viena e, em especial, o de Berlim, mantêmsua tradição de instituição acadêmica, aberta para material sonoro,

    independente de sua origem ou identidade cultural, sem finalidade outraque vá além da pesquisa pura, há arquivos que perseguem metasmarcadamente nacionais. É o caso do arquivo de folclore turco em Ankara (Türk Folklore Arsivi) de 1939, do “Instituto Nacional de Folclorde Venezuela” (1946) ou do “Folk Music Research Department” daEscola Jamaicana de Música em Kingston, criado em 1966. O intuitodos fundadores deste último reflete o espírito de muitos arquivosnacionais de música tradicional: “preservar, estudar e tornar acessívela música tradicional da Jamaica. Descobrir suas origens e as influênciasobre a música jamaicana” (Christensen, 1991: 218). Em outros paísesa preocupação com a preservação de música tradicional tem finalidadesaté mais explícitas, pois é nela que os governantes vêem a possibilidadede uma afirmação nacional através da identidade cultural canalizadapela música e, conseqüentemente, como no caso de um país pequeno epouco divulgado como o Oman, apóiam a sua disseminação através dos

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    meios de comunicação de massa, a fim de que “reflita o verdadeiro caráterda música tradicional e abra a perspectiva de um melhor reconhecimentodo país” (Al-Khusaibi, 1985). Em outras palavras, por muitos políticosmúsica tradicional é vista como veículo importante na construção deuma imagem nacional. E, para eles, esta imagem é favorável no Exterior2. Justificam assim, estes governos, a criação e manutenção de um arquivosonoro nacional, que preserve o patrimônio imaterial do país.

    Datam, finalmente, de um período mais recente arquivos sonorosmantidos por particulares. Um dos mais conhecidos é o “Music of Man

    Archive” do etnomusicólogo suíço Wolfgang Laade, que durante váriasdécadas de gravações musicais e registros videográficos coletou materialsonoro nos continentes asiático, europeu e africano. Trata-se de umempreendimento pessoal, que nunca fez parte de algum projeto depesquisa financiado ou mantido por alguma entidade oficial, gover-namental ou acadêmica. Semelhante é também o caso do acervo sonorodo “Grupo Cachuera!” de São Paulo, que possui um rico material so-noro, de vídeo e fotográfico das regiões sul e sudeste do país. Os

    critérios, que nestes dez anos de existência do grupo – liderado pelomúsico e pesquisador Paulo Dias – são adotados para a recolha e parao arquivamento das gravações, fazem jus ao mais alto padrão internacionalde documentação e conservação fonográfica.

    Arquivar gravações não só implica guardar de maneira apropriadaas fitas originais, suas cópias, ou outros suportes de áudio, mas significada mesma forma manter uma documentação detalhada sobre os músicosregistrados, seu repertório, o ensejo de sua performance , os instrumentosutilizados etc. (Dournon, 1981). Continua válido hoje, como há quasecem anos, o comentário que o diretor do departamento das Américasdo Museu Etnográfico de Berlim, Konrad Theodor Preuss, fez por cartaa um de seus pesquisadores, Wilhelm Kissenberth, que se encontravano Brasil em 1908. Em sua carta, Preuss afirmava que não era o suficienteapenas adquirir as máscaras de dança dos índios caiapó – remetidas deantemão por Kissenberth a Berlim para o acervo do museu – visto que

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    o papel do antropólogo é retornar com as informações sobre a suaexperiência e sobre o material colhido, “pois para a ciência os objetospermanecerão mortos se desprovidos de explicações”.

    Na era digital torna-se cada vez mais importante a forma de conservaçãodo material gravado. Após completado um século de existência dearquivos fonográficos como centros de preservação e de documentaçãode importantes patrimônios do saber e da manifestação de culturas,sabe-se hoje em dia, mais do que nunca, que os acervos sonoros sãoperenes, dado a instabilidade física e química de seus suportes materiais

    É difícil calcular ao certo qual a porcentagem do acervo mundial decilíndros, fitas, discos e outros suportes de áudio de valor culturaldeteriorados ou destruídos ao longo destes cem anos. Os motivos vãodesde manutenção ou arquivamento indevidos a condições climáticasdesfavoráveis, guerras e mesmo displicência, desinteresse e descuidopor parte dos responsáveis3.

    Outro motivo que coloca em perigo coleções importantes é o mauestado dos aparelhos de leitura no momento de reprodução do material

    de áudio. De nada vale a conservação de fitas, se o aparelho reprodutornão estiver em boas condições: uma agulha cega de um toca-disco ouo cabeçote sujo e magnetizado de um gravador podem facilmente destruírpara sempre gravações preciosas.

    O que mais preocupa, no entanto, é a constante mudança de formatos,em conseqüência do desenvolvimento tecnológico. Dessa forma aconteceque fitas mais antigas não podem ser tocadas ou copiadas por falta doaparelho de leitura apropriado. Temos um caso deste no Museu Nacional,no Rio de Janeiro, onde há cilindros de cera da coleção Roquette Pintode 1913, sem que haja um fonógrafo de Edison disponível na instituiçãopara ler as gravações (Pereira & Pacheco, 2000). É o caso também deuma coleção de gravações feitas em bobinas de arame nos anos 40 naParaíba, onde foi documentado importante acervo do populário musicallocal, sem que se possa ao menos escutá-lo e muito menos copiá-lo paraoutro formato, também por falta do aparelho apropriado.

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    Estamos diante do paradoxo de que a era digital proporciona vantagensna facilidade com que se faz gravações em campo de boa qualidade,com aparelhos e suportes de áudio cada vez menores e mais leves, masque, do outro lado, arquivos sonoros, como o de Berlim, se encontramna difícil situação de terem de recopiar todo o seu acervo em média acada quinze anos, pois sabe-se que a fita digital (DAT) ou outrossuportes digitais jamais irão sobreviver os cem anos que agüentaramos cilindros de cera do “Phonógrapho de Edison”!

    Organologia: instrumentos musicaisNo Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de SãoPaulo há várias coleções de gravações e um número significativo deinstrumentos musicais, coletados por antropólogos, quando de suapesquisa de campo. Na documentação deixada pelos pesquisadoresencontrei várias vezes descrições de instrumentos musicais incom-preensíveis, como: “buzina indígena do Alto Rio”. O que seria uma“buzina indígena”? É um trompete? Que tipo de bucal tem? Com ousem palheta?

    Estas perguntas mostram que a descrição de instrumentos musicaisrequer uma terminologia precisa. A falta de uma preocupação maisapurada na descrição de um instrumento pode ser lastimável. Recen-temente encontrei no Museu de Antropologia de Berlim referências de1818 sobre o berimbau brasileiro. É provável que se trata de uma dasprimeiras informações sobre o nosso arco musical. O objeto, neste casoo instrumento musical, já não consta mais no acervo do museu. Dessaforma as observações do coletador, Ignaz von Olfers (1793-1872), são