Olhos dourados

45
1

description

Até o melhor dos homens tem um limite. E quando a oportunidade perfeita vem de outra dimensão... por que não? Muito horror, sangue e víceras, descrições belas e precisão na medida certa.

Transcript of Olhos dourados

Page 1: Olhos dourados

1

Page 2: Olhos dourados

2

OLHOS DOURADOS

O andar inteiro do hospital estava interditado. Que se

danassem os pacientes, e que a UTI ficasse no mesmo andar. Que se

virassem os médicos e a direção para arranjar alternativas. A polícia

proibiu sumariamente a entrada de qualquer civil ou policial

desarmado naquele lugar. Isso baseado no estrago que havia sido

feito em apenas uma salinha dois por três onde guardavam

medicamentos controlados.

Havia uma mesa de um metro por oitenta centímetros, uma

única cadeira, um livro e uma parede inteira tomada por

medicamentos trancados em um armário com portas de vidro.

Tudo sempre foi branco e rigidamente limpo. Mas não

naquele dia. Desde as três da manhã, quando ouviram os gritos, os

médicos foram os primeiros a constatar que a sala estava agora suja

como nunca antes estivera. E não era culpa do faxineiro, mas do

farmacêutico que lá havia espalhado seu sangue e suas vísceras por

todo o chão, mesa, paredes e armário. Tudo estava de pernas para o

ar e nada em seu lugar, muito menos os órgãos do jovem que teve o

azar de pegar o plantão da madrugada naquela ocasião.

Teve seus intestinos arrancados e espalhados por toda a

extensão da sala. As pernas haviam desaparecido, assim como tudo

até o estômago. Da ausência da barriga, por todo o peitoral até perto

do pescoço, rasgos enormes sugeririam que teria sido atacado por um

leão ou animal igualmente feroz. Seu braço esquerdo também havia

desaparecido, apenas um toco de osso próximo ao ombro dava pistas

de que um dia o braço já teria existido naquele corpo.

O rosto estava intacto, mas exibia o verdadeiro terror nos

olhos enevoados e arregalados. A bochecha firmemente plantada na

poça de sangue que se estendia por todo chão.

O braço direito estava lá, esticado, mão segurando firme

uma chave enfiada num buraco de tomada. Ninguém soube dizer o

motivo dele ter enfiado a chave lá, mas notava-se claramente que

fora proposital. Talvez tivesse a esperança de que o choque afastaria

o animal que o atacava. E talvez o tenha feito, mas pode também tê-

Page 3: Olhos dourados

3

lo matado. Não que todo aquele esquartejamento não o teria feito da

mesma forma, e pensando melhor, talvez o choque pudesse até ter

sido suicídio a fim de minimizar a dor que já sentia. Ouviram-se

muitas teorias desse tipo naquele dia, mas nenhuma história

concreta. Todas as câmeras do hospital pararam de funcionar

misteriosamente por alguns poucos minutos a partir das 3 da manhã.

O diretor Ferreira sempre foi muito supersticioso e manteve

aquelas salas fechadas desde então. Até mesmo quando passou seu

cargo para o doutor Sheldon, anos depois, o fez prometer que as

manteria assim pelo menos durante seu mandato. E este assim o fez,

mesmo sem saber a total gravidade do que acontecera, pois foi

mantido total e absoluto sigilo. E no fim das contas, sigilo seria a

melhor decisão para garantir a continuidade do hospital após aquela

terrível tragédia. Com os contatos certos e dinheiro na mão, nem

mesmo a imprensa noticiou o suficiente, um atirador até conseguiu

matar um São Bernardo com a boca suja de sangue para pôr a culpa e

tudo foi enterrado e esquecido por toda uma década.

###

Theodoro Maximiliano da Silva. Conhecido por todos como

Téo. Sua vida tinha que ser escrita algum dia.

Ele tinha só dez anos quando assistiu pela primeira vez na

TV a um filme do “Mr. Bronson”. Acredito que muita gente decidiu

se tornar policial achando que seria destemido e justiceiro como um

personagem daqueles. Crianças, no entanto, não tem muita noção no

que ocorre na realidade do sistema de polícia brasileiro, e menos

ainda no carioca.

— Theodoro Maximiliano da Silva! — Chamou o

Comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro ao microfone. Era

uma orgulhosa cerimônia de formatura para novos soldados. E Téo

deu orgulho a seus pais quando, fardado, subiu ao palanque, pegou

seu diploma e apertou mãos de importantes membros da sociedade,

como, por exemplo, o governador, que sempre estava presente

Page 4: Olhos dourados

4

naquelas cerimônias. O aperto de mão ao governador mereceu até

uma pequena pausa para foto.

Téo não foi requisitado para as ruas como gostaria. Foi

levado a uma mesa onde faria alguns serviços administrativos. Ele

não se agradou disso, mas aceitou na esperança de que sairia daquela

mesa algum dia para ser o grande herói que sempre sonhou,

combatendo o crime com veemência, defendendo o cidadão dos

tiranos da sociedade.

— Bom dia, bom dia — vinha repetindo Téo desde sua

entrada na delegacia até a chegada ao segundo andar, onde ficavam

várias mesas separadas por paredes meio de madeira, meio de vidro.

A mesa dele era uma das últimas, e ele repetia seus cumprimentos

até sentar-se em sua cadeira.

Naquele dia havia menos papéis que o de costume, então ele

tratou de pegar sua caneta para resolver logo o que tinha para

resolver, mas ao abrir a gaveta da sua mesa e estender a mão para

encontrar a tal caneta, encontrou em seu lugar um envelope estranho,

com uma faixa vermelha pintada verticalmente. Ao abri-lo, uma

surpresa: pelo menos vinte notas de cem.

— Que porra é essa na minha mesa? — Perguntou

firmemente, levantando-se e batendo forte o pé direito no chão. Ele

já tinha assistido ao filme do Bope, lido livros sobre corrupção

policial, e a última coisa que ele desejava para si era ser desonesto

como tudo que via e lia na mídia. E por mais que a realidade cada

vez mais se mostrasse ainda pior do que noticiada, ele insistia

ferozmente em ser o mais honesto possível. — Vou perguntar de

novo, que porra é essa na minha mesa? — Os policiais do andar

fingiam que não ouviam, olhavam rapidamente de rabo-de-olho e

ignoravam.

— Soldado, o que está acontecendo? — Indagou o capitão

Baptista a Téo, que surpreendeu-se e imediatamente pôs-se em

posição de sentido.

— Senhor, este envelope com dinheiro estava na minha

mesa e não me pertence, senhor. Apenas queria devolvê-lo ao dono

Page 5: Olhos dourados

5

— disse Téo com firmeza, tentando escolher as melhores palavras

para falar com seu superior.

— Deixa eu ver — pediu o capitão. Ao pegar o envelope,

abriu rapidamente e o analisou, devolvendo em seguida a Téo. —

Esse envelope só pode ter o senhor como dono, soldado. Se está em

sua posse é seu até que seja reclamado oficialmente. — Téo tentou

retrucar, mas antes que pudesse terminar de inspirar para falar, foi

sumariamente interrompido. — O dinheiro é seu, soldado, simples

assim. Apenas continue o seu trabalho e leve sua mulher para curtir a

noite mais tarde. E esqueça o que aconteceu aqui hoje. É uma ordem.

— Sim senhor — disse Téo, contra sua vontade.

— Continue seu serviço, e se acabar mais cedo pode tirar o

dia de folga. É uma ordem!

— Pois não, senhor.

O capitão se retirou e Téo retornou ao seu posto, pondo o

dinheiro de volta na mesa, não conseguindo disfarçar todo o ódio em

seu olhar.

Em menos de uma hora já havia terminado seu serviço e,

sem mais nada a fazer, tinha que cumprir a determinação de seu

capitão: ir embora. Ele levantou-se e empurrou sua cadeira de volta

ao lugar. Foi quando se aproximou o sargento Teixeira.

— Soldado, acaba de chegar mais uma solicitação, o capitão

Baptista pede que o autorize imediatamente — disse o sargento.

Téo pegou o envelope e percebeu que tinha uma faixa

avermelhada desenhada nele, exatamente como a desenhada no

envelope do dinheiro. Téo estranhou aquilo e ficou desconfiado. Mas

o sargento permaneceu ali e com rigor pediu que ele se apressasse.

Téo abriu o envelope e se deparou com uma dúzia de folhas

abarrotadas de letras pequenas, uma daquelas autorizações mais

demoradas de se fazer. Mas ao começar a ler, o sargento lhe entregou

a caneta de seu próprio bolso. Era uma caneta luxuosa, com detalhes

em ouro.

— Soldado, o capitão precisa disso assinado e com o

número do protocolo no sistema imediatamente — disse o sargento.

— Sim senhor, já comecei a ler — respondeu Téo.

Page 6: Olhos dourados

6

— Soldado... para o capitão Baptista, “imediatamente”

significa “agora mesmo”. Sua equipe já o aguarda lá embaixo.

Téo entendeu o que estava acontecendo. O envelope com o

símbolo idêntico, a pressa do capitão, o dinheiro... ele não deveria

ler, só assinar e pôr o protocolo no sistema. Certamente documentar

alguma máscara para algum esquema corrupto.

Téo respirou fundo e encostou-se à cadeira. Ele pensou por

um instante, pegou os documentos e se levantou, caminhando até o

banheiro.

— Aonde vai soldado? — Perguntou o sargento.

— Até o banheiro, senhor. Infelizmente não posso esperar.

Téo foi até o banheiro e ficou lá por quinze minutos. Claro

que leu toda a documentação. E percebeu do que se tratava. Um tipo

de superfaturamento de salário de férias de oficiais, nada a ver com a

equipe estar aguardando, e não deveria ter urgência. Ele já ouvira

falar daquilo antes, mas nunca pensou que seria tão escrachado

assim, que passaria pelas mãos de pessoas tão grandes como o

governador e tão pequenas como ele e teria todas as aprovações.

Quando Téo voltou à sua mesa, o capitão e outros dois

policiais o estavam aguardando.

— Senhor! — Téo pôs-se em sentido na frente do capitão.

— Soldado, o senhor pode explicar agora ou diante da

comissão o que significa isso — o capitão apontou para o envelope

com dinheiro. Téo tentou dizer alguma coisa, mas acabou sendo

calado e preso. Resumindo um mês inteiro de processos e acordos,

acabou sendo absolvido de processo judicial, mas expulso da

corporação com desonra.

Téo viu sua vida desmoronando na sua frente. Só desejou de

coração que o ódio não o tomasse e não o tornasse uma pessoa pior.

E por sorte, quando isso estava perto de acontecer, quando a

depressão já batia em sua porta, seu melhor amigo, o enfermeiro

André Lima, o apresentou a um diretor de hospital que lhe ofereceu

um emprego em um renomado hospital particular. Téo seria

segurança de hospital, ganharia um salário compatível com o de

Page 7: Olhos dourados

7

policial e prestaria serviços na mesma carga horária. Téo não teria

seus sonhos reavivados com isso, mas já era um recomeço.

Também foi André que apresentou Clara a ele. Téo se

apaixonou imediatamente pela linda morena que falava tão

mansamente e inspirava tanta simpatia. Téo e Clara se casaram um

ano depois, André foi o padrinho e a vida finalmente parecia estar

tomando algum rumo para Téo. Mesmo não tendo realizado seu

sonho de ser um herói, realizara o sonho de se tornar um pai de

família.

Oito anos depois e a depressão nunca mais batera a sua

porta. Os nascimentos de sua filha e, três anos depois, do seu filho

agravaram ainda mais sua satisfação com a vida. Já nem se lembrava

mais da época de revolta que passara antes. Sua vida financeira não

era boa, mas no fim das contas o que sempre importou mesmo foi a

felicidade, e isso ele encontrou abundante em sua família.

###

Por melhor que sejam suas relações no trabalho, sempre

chega uma hora que, talvez por desgaste, as relações entre colegas

começam a ficar mais pesadas e incolores. Como um desses

repetitivos “Reality Shows”, você acaba acumulando aliados e rivais

ainda que de forma não intencional. Algumas relações negativas não

passam de rivalidade adolescente, nada mais que homens querendo

mostrar quem tem o maior membro, mas vez ou outra essas

inimizades acabam por tornarem-se perigosas e com tendências

descontroladas, temperadas por ações que podem levar a

consequências irrevogáveis como uma demissão ou agressão, ou

coisas mais sérias e impensáveis.

Téo e André adentraram o refeitório como cotidianamente e

caminharam até as bandejas. Pegaram as suas e seguiram até a

cantina, a fim de escolher o que comer no almoço.

— O que aquela maldita enfermeira tem contra mim,

André? Eu sempre fiz o meu trabalho corretamente e nunca tive

Page 8: Olhos dourados

8

nenhum problema pessoal com ela — reclamava Téo com seu amigo

sobre a enfermeira Valquíria.

— Ah Téo, você sabe que tem mulher que tem queda por

homem de uniforme, né? — Sorria André enquanto explicava. —

Pois é, a vagabunda transava com o Linhares, agora tá com ódio de

você.

— Eu peguei o Linhares roubando medicamento, meu

trabalho é evitar que isso aconteça.

— Ele era seu superior na segurança, isso fica parecendo

conflito de interesse. E agora tão dizendo que você vai ser indicado a

substituir o Jarbas quando ele se aposentar, tomando o cargo que ia

ser do Linhares — explicava André enquanto já sentavam à mesa

com suas bandejas já contendo o almoço do dia.

— Aí a vagabunda da Valquíria tá pensando que eu armei

pra demitir “a transa” dela só pra tomar o lugar dele na chefia?

— Tudo se explica agora, né?

— E o que eu faço? — Perguntou Téo com sinceridade. —

Peço desculpas a ela e tento explicar?

— Tá ficando maluco? — André o repreendeu. — Mas tu é

muito inocente mesmo. Cara, se você falar com ela vai piorar a

situação, vai ser como assumir de vez que teve tudo a ver com isso.

— Mas não como ela pensa — replicou Téo. — Não com

intenção de fazer mal a alguém, só sempre quis fazer o que é certo

sem prejudicar ninguém.

— Cara, isso não vai colar, sai dessa — instruiu André. —

Simplesmente deixa quieto e fique de olhos abertos, ela não pode

fazer nada, só tentar te pegar na infração, o que nunca vai acontecer.

Acho que eu nunca vi alguém tão honesto quanto você, dá quase pra

te chamar de trouxa.

— Ei! — reclamou Téo, sorrindo.

— Desculpa cara, mas é verdade, você é tão honesto e

bondoso que chega a ser trouxa — reafirmou André. — Olha só,

nem come carne.

— Ah, eu como frango. Só não sou a favor da forma que os

matadouros agem com os bovinos, não matam com respeito, aquilo é

Page 9: Olhos dourados

9

sadismo. E comer isso aí também é — Téo apontou para o filé no

prato de André.

— Desculpa se eu não mando flores para as vacas quando

como os bois — brincou André, fazendo Téo sorrir discretamente,

como de costume no trabalho.

No bar, entretanto, era diferente. Téo ria alto e sem pudor, e

mesmo antes de tomar a primeira cerveja. E digo isso da forma mais

honesta possível, pois nunca se ouvira falar que Theodoro

Maximiliano da Silva teria passado de meia dúzia de cervejas, pois

era o que ele aguentava sem sentir-se embriagado. E lá estava ele, ao

lado de André, alguns médicos, médicas, enfermeiros e enfermeiras,

além de Carlão, um velho faxineiro que sempre os acompanhava nas

noites de sexta-feira. E não importava quando sábado era plantão,

naquele hospital sexta a noite era a happy hour para quem não

estivesse de plantão naquele instante.

— O cara matou o amante da mulher, o cachorro dela, tacou

fogo na casa, mas tirou a mulher de lá e se entregou — dizia Téo,

contando uma história que vira na televisão na hora do almoço. —

Agora estava pedindo perdão e queria a mulher de volta. Caralho! O

cara é um matador sanguinário e ao mesmo tempo um corno manso e

conformado, como é que pode?

Todos riam alto e faziam algazarra com a forma que Téo

contava essas histórias, fazendo até o mais trágico parecer não mais

que uma piada de bar.

— Eu acredito que todo mundo pode se tornar um

assassino, é só ter o motivo e a oportunidade — disse o doutor

Fargas, já meio bêbado. — Lembram daquele moleque da escola? O

cara foi vítima de bulling e ficou sempre na dele, foi só ter uma arma

na mão que se vingou. Motivo e oportunidade.

— Discordo categoricamente, meu bom doutor — disse

André. — Eu conheço muito bem todos aqui nessa mesa. E posso

garantir que metade de nós não seria capaz de fazer tal coisa não

importa o motivo e não importa a oportunidade.

— Metade? — Reclamou o faxineiro Carlão — a coisa é tão

feia assim?

Page 10: Olhos dourados

10

— O senhor não faz ideia — respondeu André. — Na sua

época talvez não fosse assim, velho, mas hoje em dia tudo se resolve

no gatilho. É o velho oeste americano de volta e em pleno Rio de

Janeiro. Mas continuando o raciocínio: vejam o Téo, por exemplo.

Esse aqui foi policial, é guarda agora, tem uma arma no armário a

disposição, e perguntem a ele quantas vezes ele já disparou contra

um ser vivo na vida! E digo mais, um cidadão que só come frango, e

assim mesmo envia condolências à galinha, não merece crédito de

nenhum matador, por mais esdrúxulo que seja, no mundo todo.

Todos aplaudiram apontando as palmas para Téo.

— Muito obrigado, André, agora todo mundo sabe o quanto

o guarda é “frouxo”, isso vai ajudar muito na minha promoção —

disse Téo, rindo e brincando com tudo que os bêbados diziam.

E no fim da noite Téo era sempre o último a chegar em casa

entre todos os que ali no bar estavam, pois era o “sóbrio” que sempre

levava um grupo pra casa. Com a “lei seca” ainda era perigoso ser

parado, mesmo se achando sóbrio, pois não se pode ultimamente

nem beber meia dúzia de cervejas sem ser considerado bêbado no

trânsito. Mas como a maioria do povo brasileiro, Téo não estava

muito interessado nas consequências disso. E naquela noite, como na

maioria, chegou bem em casa.

— Oi amor, como foi no trabalho hoje? — Perguntou Clara

com seu costumeiro tom macio de voz. — E no bar, como foi a

farra? — Perguntava ela sinceramente, sem repreensões, já

acostumada com a merecida confraternização de seu marido com os

colegas nas sextas-feiras. E agradecida por ele jamais ter chegado

bêbado em casa como fazia o pai dela durante sua infância.

— Foi tudo como de costume, a mesma coisa de sempre. E

aqui em casa, tudo bem? — Perguntava enquanto tirava as botas. —

E as crianças, dormiram cedo?

Como de costume, a conversa mole de marido e mulher

levou-os para cama. E como de costume, pelo menos duas horas de

sexo ininterrupto. E como de costume, conversaram na cama,

olhando para o teto, enquanto os corações se acalmavam.

Page 11: Olhos dourados

11

— Amor, eu já estou nesse emprego há oito anos. Acho que

já é hora de progredir — disse Téo.

— O que tem em mente? — Perguntou Clara.

— Tenho uma boa relação com a administração, acho que

se eu fosse formado poderia ganhar uma oportunidade. O salário é

quase seis vezes maior.

— Fazer faculdade agora? — Disse clara, sentando-se e

continuando com seu tom de voz costumeiro, sem alterações mesmo

na discordância. — Amor, no começo você me dava presentes quase

todo mês. Depois que a Marina nasceu, passou a ser duas vezes por

ano, aniversário e dia das mães. Já tem dois anos, depois que o

Marcos nasceu, que não ganho nada mais que um abraço e um

parabéns...

— Amor... — Téo tentou dizer algo, mas ela só levantou a

palma da mão, pedindo para ele deixa-la concluir.

— Eu não estou te cobrando, sei que você não teve nenhum

aumento acima da inflação... sei que eu não trabalho fora pra ajudar.

Não ligo de não ganhar peças de roupas ou joias há anos. Mas as

crianças não podem perder o pouco que tem.

— Eu pensei em transferir a Marina para uma escola

pública, só por quatro anos, afinal ela tá só começando. E quando eu

me formar a gente sobe o padrão de vida.

Clara se jogou com força no travesseiro, como forma de

protesto e encerrou a discussão imaturamente, como sempre fazia,

dizendo para Téo fazer o que quisesse. Sim, Clara não era perfeita, à

despeita do que poderiam os vizinhos e amigos do casal pensarem,

ela era caprichosa e birrenta. E com seu jeitinho “faça como achar

melhor”, sempre convencia a Téo a fazer o que ela achasse melhor.

Aquela foi a primeira de pelo menos uma dezena de

discussões sobre dinheiro. E nem sempre a pauta foi a desejada

graduação de Téo. Ao contrário, a desinteressada Clara começou a

mostrar-se de repente muito interessada em peças de roupa e

decoração, mesmo sabendo que seu marido não podia arcar com seus

planos. Era como se fosse uma forma de pressioná-lo a esquecer de

seus planos, para que eles não precisassem descer ainda mais o

Page 12: Olhos dourados

12

padrão de vida para que ele se graduasse. A única chance para os

planos de Téo era a possibilidade de ser promovido a encarregado,

cargo agora ocupado por um velho amigo que estava prestes a se

aposentar.

###

— Mas que merda é essa? — Téo praguejou e bateu a mão

na mesa do diretor do hospital.

— Entenda Theodoro, são as necessidades do hospital

agora. Precisamos de alguém tão dedicado quanto você no turno da

noite — explicava o diretor.

— O senhor sabe que eu estou prestes a ser promovido, não

sabe? Tudo indica que eu serei indicado para o lugar do meu

encarregado — disse Téo, com tom firme, mas agora mais calmo.

— Isso nunca aconteceu. Ele acabou de indicar o substituto,

e não é você, Téo.

Téo sentou-se, olhando para o nada, perdido em sua

decepção.

— Téo — disse o diretor Sheldon —, preste atenção: lhe

transferindo para o turno da noite, estarei lhe dando uma

oportunidade de mostrar a mesma excelência do serviço que

mostrava aqui de dia. E o encarregado da noite se aposenta em três,

quatro anos no máximo. Será sua chance, com certeza, eu mesmo

farei a indicação.

Téo preferiu não responder nem dizer mais nada. Não tinha

jeito mesmo. E antes que alguma ideia maldosa surgisse em seu

coração, ele simplesmente preferiu se levantar e sair. Foi ao vestiário

e começou a trocar de roupa. Estava indo para casa descansar, pois

iria assumir em algumas horas o turno da noite.

Após trocar de roupa, seguiu até a enfermaria a fim de se

despedir de André e depois pedir ao seu médico, o doutor Fargas

mais alguns comprimidos como o de costume, para mantê-lo calmo e

centrado. Ele já reclamara antes desses comprimidos, dizendo que o

estavam engordando e a esposa já estava reclamando, mas Fargas

Page 13: Olhos dourados

13

sempre dizia que era o único que faria o efeito desejado. E fazia. A

mente de Téo sempre funcionava focada e calculista.

Pensou estar com alguma sorte ao encontrar o Dr. Fargas

em uma sala antes mesmo da enfermaria. Já pensou em entrar, pedir

licença e então pedir os comprimidos, mas ouviu a voz da enfermeira

a qual chamava de vagabunda, a enfermeira Valquíria. Ele apenas

escondeu-se e acabou escutando a conversa pela porta entreaberta.

— Ouvi dizer que o salafrário vai pro turno da noite, saiu

melhor que a encomenda — dizia Valquíria.

— E eu ouvi dizer que a esposa dele está incomodada com o

fato de ele estar ganhando peso. Depois que o trouxa começou a

tomar o calmante que eu receitei, já engordou uns vinte quilos — ria

o doutor Fargas, gozando Téo com todo gosto.

— E o que acha? Já chega de avacalhar o canalha? —

Perguntou Valquíria.

— Claro que não — respondeu Fargas com um sorriso

sacana no rosto. — Ele vai pra noite, nosso objetivo é a demissão

dele, não é?

— Nossa, é isso que me dá mais tesão em você, sabia? —

Ao dizer isso, Valquíria beijou Fargas ardente, mas rapidamente. Em

seguida olhou para a porta. — Alguém vai acabar nos vendo um dia.

— Que se dane! — Disse Fargas, a puxando de volta contra

seu corpo e a apertando ferozmente enquanto tascava mais um beijo.

Ela os separou novamente e foi saindo, andando de costas e sorrindo

para ele, mandando beijinhos pelo ar. Téo já não estava mais lá

quando ela saiu.

— Desgraçados! — Dizia André após ter escutado a história

da boca de Téo.

— E o que eu faço agora, André? Esse merda ia me

engordar até acabar com o meu casamento.

— Você tem que processar. Processo neles! — Disse André

com aparente indignação.

— Mas eles são colegas aqui do hospital e eu já passei por

isso... — disse Téo com relutância.

Page 14: Olhos dourados

14

— Leva o caso ao diretor, ele não vai te proibir de processá-

los, vai até te instruir a processar os dois sem envolver o hospital, um

processo civil independente, já aconteceu antes, eu sei o que estou

dizendo, vai lá e fala com o diretor.

— Claro que não! — Disse o diretor Sheldon firmemente

em resposta ao pedido de Téo.

— Mas senhor, o que aconteceu foi muito sério — indagava

Téo, com lágrimas nos olhos, sentado diante do diretor.

— Theodoro, você já teve problemas ao delatar colegas,

acho que foi por isso que o Jarbas não te indicou. Agora quer fazer

isso de novo? Olha aqui, vou te fazer um favor. Não só vou te proibir

de abrir qualquer processo contra o doutor Fargas como também não

vou tomar nenhuma providência. Assim você evita essa imagem de

dedo-duro, o que é péssimo para sua posição no hospital.

Téo fez exatamente o que fizera da vez anterior. Perdeu-se

em suas decepções e dirigiu-se ao vestiário, quase que

mecanicamente. Pegou o frasco de comprimidos, pôs o último

comprimido na mão e quase o levou à boca. Mas por sorte saiu do

automático e arremessou o comprimido contra a porta, junto com o

frasco vazio e começou a chorar no vestiário. André entrou pela

porta coincidentemente e somente o abraçou, sem dizer nada, já

imaginando o que teria acontecido.

###

O turno da noite não era mais tranquilo do que o do dia,

diferente do que Téo poderia ter imaginado. Era a mesma correria,

doentes e acidentados não tem hora para se apresentar. E nem os

ladrões em potencial. Jovens viciados e pacientes terminais eram os

mais comuns, mas todo tipo de gente tentava roubar medicamentos,

agredir médicos e enfermeiros, e até mesmo fugir do hospital. Eram

todos os tipos de problemas, e o encarregado da noite parecia uma

lesma, na opinião de Téo. Por fim, todo o trabalho acabou mais uma

vez nas costas de Téo.

Page 15: Olhos dourados

15

Já eram duas horas da madrugada quando Téo conseguiu

encostar por um instante numa cadeira e apoiar sua cabeça numa

mesa. Pensou em ficar ali só por uns cinco minutos. Era uma

pequena sala desativada pela diretoria após um incidente com um

funcionário há uns dez anos atrás, antes de Téo começar a trabalhar

no hospital. E ele não sabia bem o que acontecera. Só que esteve

fechada, desde então, até aquela noite quando um guarda novato do

turno da noite arrombara a porta a fim de se esconder só um pouco

da loucura do hospital. Mal sabia ele que a própria loucura era o que

encontraria naquele lugar.

Os cinco minutos que ele intencionava se tornaram dez, e

depois vinte. Quando deu por si já eram três da manhã. Ele havia

pegado no sono e acordara de repente. Olhou rápido no relógio, as

luzes todas da sala estavam apagadas. Apertou o botão de acender a

luz do relógio, mas não conseguiu ver a hora, pois a visão estava

toda embaçada. Forçou um pouco a vista para ver a sala. Procurou o

interruptor e o encontrou rapidamente. Foi até ele e clicou, mas a luz

não acendeu. Tentou de novo e nada. Pensando bem, ele teve certeza

de que todas as luzes estavam acesas quando dormiu... merda,

alguém provavelmente o teria visto e talvez entregue ao superior.

Com tal pensamento ele deu um passo até a porta e girou a

maçaneta, mas estava trancada. Esta sala não tinha janelinha para ver

o exterior. Ele pensou em bater, mas e se estava enganado e alguém

fechara ali por engano? Bater seria como se entregar ao encarregado

e pedir por uma demissão. E no momento delicado que estava

passando com sua esposa, não seria nada interessante perder seu

emprego.

De repente escutou um som estranho na sala. Parecia uma

respiração forte, mas ao mesmo tempo se esforçando para ficar

escondida. Ele se virou lentamente e não viu nada naquela escuridão.

Pegou seu spray de pimenta, pois ainda escutava a respiração. Estava

bem escuro, mas a luz que entrava por baixo da fina fresta em baixo

da porta para o corredor ajudava bastante. Mesmo assim, três metros

à frente ainda era difícil de enxergar. Não se pode dizer que Téo

estava assustado, parecia mais um estado de prontidão. Afinal

Page 16: Olhos dourados

16

poderia ser um paciente da ala psiquiátrica escondido na salinha em

anexo.

Téo foi de vagar até a porta que dava para a outra salinha ao

lado, do mesmo tamanho dessa, e a abriu bruscamente, apontando

seu spray. Não viu nada na hora. Esta sala estava escura também,

mas era diferente. Era um escuro absoluto, simplesmente preto,

simplesmente a imagem do nada, como se a fraca luz da fresta da

porta só chegasse até esta segunda porta e não passasse por ali. E

olhando para o chão com mais cuidado, pôde comprovar isso. A luz

chegava exatamente ali e parecia bloqueada bruscamente na porta.

Téo escutou novamente a respiração e voltou seus olhos

mais uma vez para o breu, e foi neste momento que os avistou! Eram

olhos. Ele forçou a vista mais um pouco para ter certeza. Pareciam

duas pequenas lanternas, mas o formato era exatamente o de olhos

humanos, só que maiores, o dobro do tamanho de olhos comuns.

Mas ao invés de escleróticas brancas, eram douradas. A retina em si

era preta, contrastava bastante com o dourado luminoso que emanava

naquela escuridão. Apesar de parecerem lanternas douradas, não

iluminavam de verdade, parecia que a iluminação própria dos olhos

dourados serviam somente para iluminar a si mesmos.

Téo aproximou-se com cuidado, mas tinha certeza que era

somente uma brincadeira ou alguma coisa posta ali para assustar a

pacientes psiquiátricos. Na verdade os olhos eram tão profundos que

facilmente assustariam qualquer tipo de pessoa mais frágil.

Téo então deu um passo atrás e se lembrou que tinha uma

lanterna no cinto. Claro, idiota, ele sempre andou com tal lanterna.

Mas tinha acabado de acordar e ainda estava atordoado do sono,

então deu-se um desconto e simplesmente pegou a lanterna. Só que

no momento que ele apontou a lanterna para frente e tocou no botão

de ligar, algo monstruoso avançou ferozmente para cima dele. Não

pôde identificar o que era a fera, pois era negro como a própria

escuridão. A lanterna caiu para um lado e o spray para outro. Ele

começou a gritar desesperado, mas não parecia que alguém o

escutava. Téo pensou rápido e pegou o “taser” em seu cinto, uma

arma de choque não-letal, e aplicou em algum lugar na pele do

Page 17: Olhos dourados

17

bicho, apertando em seguida. Escutou um grito estranho, animalesco,

como o grunhido de um porco sendo abatido. E não percebeu o ser

de olhos dourados se afastando, apenas deixou de sentir o peso dele

sobre si, teve a impressão de que este desaparecera no ar, como se

tivesse esfumaçado e dissolvido.

Téo levantou-se lentamente, recuperou sua lanterna e a

ligou. Ele estava na primeira sala, que dava acesso ao corredor. A

porta para a segunda sala estava fechada. Ele não teve coragem de

abrir. Pegou seu spray de pimenta, guardou junto com seu taser e

sentou mais um instante. Na mesma hora a luz voltou, quase como se

a cadeira fosse o interruptor. Ele olhou em volta e prestou mais

atenção na sala. Era só uma sala vazia. Havia um armário de vidro na

parede, estava tudo perfeitamente limpo, só algumas portas de vidro

do armário estavam quebradas. Mas não havia cacos e nem mesmo

poeira, parecia limpa recentemente. Ele pensou bem no que

acontecera. Aquilo não podia ser real. Um monstro numa salinha

abandonada de hospital. Então lembrou-se de que não tinha tomado

seu remédio, que jogou fora o último comprimido e não queria mais

pedir ao canalha do Dr. Fargas.

Téo esfregou o rosto com as duas mãos, como se o estivesse

lavando e se levantou. Dessa vez se a porta para o corredor não

abrisse ele bateria. Até pensou antes em dar mais uma olhada na sala

em anexo pra provar a si mesmo que era tudo alucinação pela

abstinência do remédio, mas preferiu não arriscar acabar tendo outra

visão ainda mais assustadora. Ouvira falar horrores de alucinações

durante abstinência de drogas. E surpreendeu-se quando conseguiu

girar a maçaneta e a porta abriu normalmente. Será que até isso fora

alucinação?

Seis da manhã. Téo correu ao vestiário apenas para lavar o

rosto, foi pra casa de uniforme mesmo, como fazia às vezes, quando

tinha pressa para alguma coisa ou quando queria chegar em casa

uniformizado para dar um sinal à esposa de que ela poderia ajuda-lo

a tirar todo aquele pesado uniforme e aproveitar-se dele no chuveiro.

Page 18: Olhos dourados

18

Mas não naquele dia, ele só não queria ficar mais que um minuto do

que o obrigatório naquele hospital.

Chegou em casa dez minutos antes do previsto e quando

preparou para pôr a chave na fechadura, a porta abriu-se por dentro.

Era sua esposa. Estava levando André até a porta. Téo surpreendeu-

se com aquilo, não era de costume André vir até sua casa em sua

ausência. Mas aos maldosos de plantão, aviso logo que André até

então sempre fora acima de qualquer suspeita, não precisaria nem

explicar nada naquele dia que o próprio Téo era capaz de inventar

uma desculpa por ele, de tanto que André era confiável.

— Oi amor, bom dia — disse Clara, recebendo Téo com um

beijo, sorridente e levando tudo como se fosse absolutamente

normal.

— E aí Téo, como foi no hospital de noite? — Perguntou

André, no mesmo tom natural.

— Ah, amor — já foi dizendo Clara —, André acabou de

chegar, queria conversar com você antes que você pegasse no sono,

ouvimos a chave na porta e viemos te receber.

— Então vamos entrar — disse Téo, abrindo um sincero

sorriso. — Me diz durante o café.

— Eu conversei com o diretor Sheldon sobre sua situação

— dizia André enquanto tomavam café na mesa de jantar —, e ele

disse que é possível que o encarregado da noite troque de hospital, o

que abriria uma vaga para o cargo.

— Sério? Nossa, isso seria minha salvação para poder

estudar e tentar sair desse hospital.

— Téo, só peço que você não fale nada pra ninguém ainda,

nem comenta com o diretor que tivemos essa conversa, porque ele

pediu sigilo pra evitar de te dar falsas esperanças, caso não aconteça

a transferência... mas é quase certo.

— Claro amigo, fica tranquilo. E obrigado por vir me dizer.

Sem aquela merda de comprimido calmante, eu preciso de boas

notícias pra dormir bem.

Page 19: Olhos dourados

19

— Por isso eu vim aqui tão cedo, amigo. E veja se conversa

com outro médico pra te passar outro calmante.

— André... — Téo mudou o tom de voz. — Já ouviu falar

de alguém que teve uma alucinação por abstinência apenas algumas

horas sem usar a droga?

— Você teve uma alucinação? — Estranhou André.

— Mais ou menos — respondeu Téo, sussurrando e olhando

para os lados para ver se sua esposa não estaria por perto, tentando

ao mesmo tempo amenizar a história do que acontecera na

madrugada. — Vi uns olhos me observando no escuro. Só que eram

dourados. Apertei a visão pra tentar enxergar melhor e eles se

aproximaram, então me afastei e acabou, evaporou no ar.

— Que sinistro, cara — disse André, sorrindo com um leve

deboche. — Faz o seguinte, procura o Dr. Pierre hoje, dizem que ele

é muito bom, e entende especialmente desses efeitos colaterais. Pode

te indicar um calmante bom que não vai te engordar.

Téo suspirou preocupado, mas em seguida sorriu para o

amigo.

André não demorou mais, e assim que saiu, Téo tomou um

banho, beijou sua mulher, que lia um livro na sala, beijou seus filhos

que ainda dormiam e foi para cama. Dormiu até quatro da tarde, sem

pesadelos, o que até contrariou suas expectativas.

Trabalhou por mais vinte dias e chegou o último dia do mês.

Neste meio tempo, ele nunca mais pôs os pés na estranha sala. Ele

acreditava mesmo que teria sido apenas uma alucinação, mas

também tinha medo de tê-las novamente.

Assim que chegou, às 19 horas, foi até o Departamento de

Recursos Humanos buscar seu cheque. Só que ao abrir seu envelope,

constatou que não havia sido cogitado o adicional noturno que ele

tinha direito, pelo menos da metade do mês que trabalhou a noite.

Ele se voltou pra fazer uma reclamação, mas Aline, a responsável

pelas contas e única funcionária de plantão naquele momento, fechou

a porta de supetão.

— Aline, por favor... — tentou dizer Téo.

Page 20: Olhos dourados

20

— Reclamações só amanhã entre dez e meio dia como todo

mundo, Téo, a essa hora só fiquei pra pagar o pessoal da noite —

interrompeu Aline.

— Eu não posso vir aqui amanhã a essa hora, eu trabalho de

noite. Resolve isso pra mim, por favor — quase implorava Téo. Ele

sabia que precisava daquele adicional, que estava numa fase

financeira delicada e numa fase ainda mais delicada com sua esposa.

E já tinha prometido a levar para sair, contando com o adicional.

— Escuta, Téo — explicou Aline. — Esse tipo de problema

não tem pressa, essa diferença você não tem como receber este mês,

só no próximo.

— Mas Aline... — tentou argumentar Téo.

— Sem mais, vem no horário de atendimento que eu

conserto e adiciono no seu próximo pagamento — disse Aline

demonstrando soberba e superioridade com seu tom de voz, como se

estivesse fazendo um favor a Téo.

Téo não estava mais tomando seu comprimido havia 21

dias. Isso mesmo, ele não procurou o outro médico, simplesmente

achou que podia superar sua ansiedade por si só, como nunca

conseguira por vinte cinco anos desde que o primeiro surto de raiva

ocorrera. Talvez só por isso ele pôs a mão no portal que dava acesso

ao corredor, formando uma barreira para Aline não passar.

— Me dá licença, por favor — disse Aline com um ar ainda

maior de soberba.

— A incompetência foi só sua, Aline — disse Téo com uma

voz diferente, como com mais ódio. — Conserta teu erro agora e a

gente fica numa boa.

— Tá me ameaçando, guardinha?

Téo cerrou os lábios e os pulsos. Aline deu um passo para

trás, agora acreditando na sinceridade dos atos de Téo. E antes que

Téo pudesse tomar qualquer outra atitude, Aline pediu o

contracheque e o levou para a salinha do RH, a reabrindo e digitando

em seu computador a correção. Em seguida devolveu os papéis e

disse, um pouco preocupada, que fez a correção, mas que realmente

a única forma seria ele receber no próximo pagamento, não teria

Page 21: Olhos dourados

21

jeito. Ele não discutiu, apenas tomou seu documento e foi embora

em silêncio. A face de Aline mudou de medo para raiva em um

instante, observando Téo pelas costas.

Quando Téo chegou em casa, teve uma áspera discussão

com Clara. Ela já não parecia aquela mulher compreensiva e meiga

com quem tinha casado. Aquela que passaria até fome ao seu lado.

Agora discutia porque passariam um mês sem comer em um

restaurante no shopping.

A discussão acabou acordando os filhos, o que pôs um fim à

mesma. Ele abraçou sua filha com força. Esta adorava o pai, e muitas

vezes ele achava que era sua pedra fundamental, como se vê-la todo

dia o mantivesse centrado e sóbrio, mesmo sem o calmante. O filho

veio em seguida. Um menino lindo de dois aninhos. Téo ouviu vez

ou outra falarem sobre uma ou outra semelhança, mas ele mesmo

nunca achou seu filho Marcos parecido consigo. Tinha cabelos loiros

e lisos, Clara disse que eram como os da avó dela, alguns parentes

confirmaram. Téo não teve nem ideia do por que, mas naquele

momento veio em sua mente que aquele cabelo parecia cada vez

mais com o cabelo de André. E coincidentemente, até o corte de

André agora lembrava Marcos. Mas que coincidência, não? E que

bom que ele se pareça com alguém que goste tanto. Foi só o que veio

em seguida na mente de Téo. A desconfiança havia brotado por um

segundo, mas era extremamente infundada. E se ele já era incapaz

absurdamente de pensar que sua mulher seria capaz de traí-lo, que

diria pensar que sua mulher e seu amigo de maior confiança o

trairiam juntos. E assim, o pensamento desapareceu por completo da

mente perturbada do abstêmio. E porra, como ele precisava da droga

naquele momento.

Trabalhou na madrugada seguinte, de quinta para sexta-feira

e na noite seguinte, de sexta para sábado, logo no começo do

expediente, fora chamado na sala do diretor Sheldon.

— O que é isso? — Perguntou Téo, segurando um

envelope.

Page 22: Olhos dourados

22

— Sinto muito, Theodoro — respondeu Sheldon. —

Infelizmente seus serviços não serão mais necessários aqui. Este é

seu aviso prévio, você terá que nos prestar mais quinze dias de

serviço somente até arranjarmos um substituto.

— Senhor, eu não entendo... eu estive prestes a ser

promovido.

— Desculpa Theodoro, mas achamos que você precisa

passar por uma avaliação psicológica e...

Téo deu um soco forte na mesa do diretor, o assustando.

— Aquela puta desgraçada! — Praguejou Téo, se referindo

a Aline.

— Controle-se Theodoro — ordenou Sheldon com firmeza,

ocultando o medo da reação dele. — Por favor, volte ao serviço.

Téo lhe lançou um olhar de ódio e saiu, batendo a porta com

força. Pensou em ir até o RH para arrumar alguma briga com Aline,

mas lembrou que ela não estaria ali naquela hora. E também não

faria isso de manhã, não iria adiantar mesmo, o que estava feito,

estava feito. E ainda vinha a pior parte: contar para Clara.

— Merda Téo — disse André, na enfermaria, de frente para

o amigo, logo que soube da notícia. — Aquele desgraçado. Ele

prometeu...

— Mas a Aline tem muita influência sobre ele, eu devia ter

imaginado — disse Téo, cabisbaixo.

— Como uma funcionária de RH tem influência sobre o

diretor do hospital, Téo?

— Ela mais do que ninguém, André — explicou Téo. —

Por quem passa toda a documentação de funcionários? Eu sei como

funciona, fui mandado embora da polícia por não querer participar

de um esquema assim. É superfaturamento salarial. Eu já tinha visto

aqui no hospital algumas coisas que me levavam a crer nisso, mas

não é meu trabalho investigar, então deixei pra lá. Agora tudo fez

sentido.

— Bota pra foder, Téo — disse André enfurecido. — Bota

na justiça pelo menos o salafrário do médico te enganando com os

remédios. E pensando melhor, põe logo o hospital na justiça por isso.

Page 23: Olhos dourados

23

— Não estou preocupado com isso agora... tenho algo muito

mais sério com que me preocupar.

E não era exagero. Téo estava sentado em sua cama olhando

para o chão, ouvindo a pior frase que um homem que ama sua esposa

poderia ouvir: “quero que você vá embora”. Quase um minuto de

silêncio após isso.

— Clara... — Téo tentava argumentar. — As coisas vão

melhorar.

— Nossos filhos não merecem passar necessidade de novo.

Lembra aquela época que você se endividou?

— Me endividei com as contas que você fez, Clara —

começava Téo a se enfurecer, falando agora em tom mais firme.

— Os móveis da casa. Precisávamos mobilhar a casa,

dormimos no chão por quase um ano. As crianças não podiam passar

pelo mesmo — dizia Clara fortemente, quase gritando. Nem parecia

mais aquela mulher calma e compreensiva de pouco tempo atrás.

— Eu trabalhei por todos esses anos para nos sustentar e dar

o melhor possível pra você e as crianças e você vai me deixar agora

por causa de uma dificuldade? — Disse Téo, com a voz mais calma.

— Preciso de um tempo. Só eu e as crianças por um tempo.

É só pra pensar, pra organizar minhas ideias. Nem precisa levar suas

coisas, só algumas roupas. Passa um tempo fora daqui e depois a

gente conversa.

E acreditando nisso, Téo se despediu dos filhos, prometendo

voltar na próxima semana para vê-los.

Foi a semana mais longa na vida de Téo. Naquela semana

ele quase não viu André, pois diferente da semana anterior, nesta

André fora escalado apenas para um plantão de 24 horas. E a

conversa neste dia não fora muito produtiva. Apenas alguns abraços,

choro e palavras de esperança.

Téo estava dormindo no hospital secretamente, em um

quarto na oncologia. Não fora descoberto a semana toda.

Sexta-feira chegou e ele estava animado, pois veria os filhos

pessoalmente no dia seguinte. Até então só havia falado com eles

Page 24: Olhos dourados

24

pelo telefone no único dia que conseguira, na quarta-feira. E

trabalhar à noite não ajudava.

Na madrugada, foi chamado para imobilizar um velho que

estava agredindo a enfermeira e negando medicamentos. Após tudo

resolvido, continuou sua ronda. E foi só por ter atendido a este caso

que acabou passando em frente à saleta novamente. Aquela saleta da

alucinação. Durante todo aquele tempo, nunca mais tivera outra

alucinação. Nada mesmo. Continuava sem tomar seu calmante, mas

não vira mais nada. Ele então sorriu e debochou de si mesmo. Foi até

a sala e a abriu. Não entrou logo de cara, observou bem. Acendeu a

luz e deu tudo certo. Caminhou até a segunda porta, que dava para a

salinha sem saída e sem janelas e a abriu. Agora a luz atravessava a

porta e iluminava tudo lá dentro. Era ainda mais vazia do que a

primeira, sem mesa e com armário totalmente sem vidros. Ele riu de

si mesmo e fechou a porta. Em seguida, por que não? Sentou-se à

mesinha, fechou a outra porta e resolveu tirar outro cochilo. Que se

danasse tudo, a vida já estava uma merda mesmo, o que de pior

aconteceria? Que viessem as alucinações, o taser estaria pronto para

ajudar a destilar todo o ódio que Téo tinha naquele momento por seu

emprego.

O relógio marcava duas e meia da manhã. Dessa vez ele não

conseguiu dormir. Não conseguia parar de pensar nos seus filhos, em

especial na sua filha. Não sabia o motivo do “em especial”, mas era

verdade, pensou muito mais nela naquela noite, como se no caso de

um divórcio, ela fosse sentir muito mais do que o menino. Ele ficou

nesses pensamentos por mais meia hora. E exatamente quando deu

três da manhã e seu relógio apitou, a luz da salinha se apagou. Ele

imediatamente puxou seu taser e a lanterna. A acendeu e a

posicionou no centro da mesa, de forma a iluminar toda a salinha

facilmente. Ele deu um sorrisinho maroto e foi até a porta que dava

para o corredor. Mas ao girar a maçaneta, o mesmo do outro dia, ela

não destrancou. Ele começou a ficar assustado, mas se lembrou de

seus pensamentos de momentos atrás... que se danasse a alucinação.

Pegou a lanterna de volta e partiu para a outra porta. Girou a

Page 25: Olhos dourados

25

maçaneta com cuidado e empurrou lentamente para dentro da outra

sala.

Ah se pudéssemos explicar em palavras a profundidade do

medo que o ser humano é capaz de ter no limite da capacidade de

enfrenta-lo... pois lá estavam novamente os olhos dourados o

observando. Se aquilo fosse um monstro, porque os olhos eram tão

humanizados? Eram perfeitos olhos humanos, e meio femininos. Só

que dourados. Agora, mesmo diante de tanto medo, podia perceber

mais detalhes. A outra sala também tinha três metros de

profundidade, mas os olhos aparentavam estar mais longe, tipo a uns

cinco metros. Como isso seria possível?

— Uma alucinação, soldado Theodoro — disse Téo a si

mesmo — assim que é possível!

Téo deu passos para trás. Os olhos se aproximaram até

passar para a sala onde Téo estava. Este pegou a lanterna, que até

então iluminava só o chão, e apontou para os olhos dourados. O

espanto foi estrondoso, seus nervos entraram em colapso. O monstro

parecia um enorme cachorro, algo como um Rottweiler, só que muito

mais largo, com músculos enormes e humanizados, o rosto também

não era totalmente canino, tinha algo, além dos olhos, de humano

nele. E tinha expressão facial, como animal nenhum poderia ter. E

foi só por um segundo que pôde perceber todos esses detalhes, pois a

besta avançou sobre ele novamente. Téo conseguiu se desviar, a

besta passou totalmente para o cômodo onde Téo estava, derrubando

a mesa e se chocando contra a porta do corredor, o que não foi

suficiente para abri-la.

Téo puxou seu taser e apontou para dar o choque na besta,

mas esta agarrou sua mão com a mesma precisão que um ser humano

agarra a mão de outro. Eram mãos caninas e humanas ao mesmo

tempo. Com um forte impulso, arremessou Téo sobre a parede de

armários e quebrou alguns vidros, o que cortou Téo nos braços que

usou para proteger o rosto.

A besta rosnou e em seguida deu um tipo de grito

estrondoso, que parecia um rugido de leão. Foi ensurdecedor, fez

Téo se ajoelhar e pôr as mãos nos ouvidos.

Page 26: Olhos dourados

26

A respiração de Téo estava acelerada, ele nem tinha noção

do quanto sua adrenalina estava acima do máximo suportado. Foi

ficando zonzo e quase não percebeu quando o monstro agarrou seu

pescoço e abriu a boca a fim de mordê-lo. Sim, o monstro estava de

pé nas patas traseiras, tinha, em pé, uns três metros de altura. Téo já

sentia o bafo de carniça na boca do monstro. E no exato momento

em que o monstro preparou para abocanhar o rosto de Téo, acabou

pisando no taser e o esmagando, mas tomando um último choque, o

que foi o suficiente para dissolvê-lo como fumaça no ar. Os olhos

dourados sumiram por último, esvaecendo-se no ar ainda fixos em

Téo, e este caiu com violência no chão.

A luz voltou como um raio cortando a noite, mas

permaneceu. Téo levantou e correu até a porta, tossindo e cuspindo

muito, quase vomitando. Pôs a mão na maçaneta e a porta abriu

facilmente. Os poucos pacientes e enfermeiros que o viram sair

daquela forma da saleta não entenderam nada daquela situação. Um

enfermeiro ofereceu ajuda, mas ele simplesmente fechou a porta e

correu para o banheiro, vomitando tão logo chegou lá.

O dia amanheceu e Téo estava saindo do vestiário usando

sua melhor roupa. André encontrou Téo quanto este saía da farmácia

do hospital, tomando um comprimido.

— Nossa como está elegante o homem! — Espantou-se

André.

— Sobrevivi mais uma noite e vou ver meus filhos agora —

respondeu Téo, fechando o frasco de comprimidos.

— Vejo que foi ao médico.

— Não, meu amigo, são os mesmos comprimidos que me

engordam. Tudo bem, é só por hoje. Na segunda procuro um médico

pra trocar, prometo. Só não quero estar alterado em casa hoje.

— Claro amigo, tá certo. Boa sorte então, e não se

preocupa, você é um homem bom e íntegro, no final vai dar tudo

certo pra você — disse André e em seguida deu um abraço amigável

em Téo. — Ah, não esquece de ver a escala, você está neste fim de

semana todo.

Page 27: Olhos dourados

27

— Meu amigo, nem essa merda vai me fazer ficar triste

hoje, vou passar o dia com meus filhos e, se eu estiver disposto, a

noite eu venho trabalhar. O que eles vão fazer se eu não vier? Me

demitir?

André riu, não do humor negro de Téo, mas feliz por pelo

menos bom-humor ainda fazer parte da vida dele.

###

Téo chegou em casa e pôs a chave na fechadura. A chave

não abriu. Ele começou a sentir-se mal imediatamente. Bateu na

porta. Nada. Continuou batendo e apertando a campainha. Nem

sinal. Deus, o que estaria acontecendo? Téo subitamente deu com o

pé na porta, como foi treinado pra fazer na polícia, e a arrombou no

primeiro chute. Entrou apressado e percebeu que a casa estava vazia,

sem mais nenhum móvel, nada, absolutamente nada. Ele se ajoelhou

no chão e ficou imóvel por um tempo, o qual ele nem soube dizer

quanto foi. Podem ter sido dez minutos, podem ter sido duas horas.

Ele só ficou olhando para o nada. A mente estava absolutamente

vazia, como há muito tempo não ficava, desde que tivera o primeiro

surto, ainda na adolescência. Vazio. Apenas o vazio. Olhos quase

anuviados. Alguém teria dúvida se aquele ser estaria vivo ou morto

ou em coma. O rosto estava cada vez mais pálido, e quando a atitude

voltou foi só para se levantar e caminhar feito um zumbi para o

ponto de ônibus.

Chegou ao hospital e caminhou até a sala o qual dormira

durante a semana. Valquíria o viu no corredor e se aproximou.

— O que está fazendo aqui a essa hora? O diretor sabe que

está aqui fora do seu horário?

Téo olhou para ela com uma cara de puro ódio. A impressão

que dava era que toda a vida havia sido sugada de dentro daquele

invólucro e somente o ódio permaneceu para se multiplicar. Se ela

quisesse desenhar uma caricatura da face que viu de Téo naquele

instante, poderia acrescentar sangue ou fogo nos olhos. Valquíria

Page 28: Olhos dourados

28

simplesmente se afastou com uns passos para trás e depois correu

para a sala do namoradinho, o Dr. Fargas.

Téo continuou andando. Mas ao invés de se instalar no

quarto onde dormia costumeiramente, mudou seu rumo e caminhou

até a saleta da incursão com a besta de olhos dourados. Abriu a

primeira porta, entrou e viu que a mesa e os cacos de vidro estavam

ainda no chão. Seguiu até a segunda sala e sentou-se, encostando na

parede. A luz elétrica agora funcionava nesta segunda sala, e ele a

acendeu.

Ficou ali até meia hora depois do seu horário para trabalhar.

Se atrasou mesmo estando já no hospital desde cedo. Esqueceu tudo.

E só despertou quando a suave voz que chama por médicos o

chamou no alto-falante pedindo que se apresentasse caso estivesse

no hospital. Ele teve um pequeno despertar. Então correu para o

vestiário e se fardou prontamente. Em dez minutos estava na

recepção batendo seu ponto e justificando-se com seu encarregado

dizendo que tinha esquecido de bater no horário, mas já estava

rondando o hospital antes. O encarregado não acreditou, mas não

discutiu, sabia que estava falando com um homem que só cumpria o

aviso prévio.

Téo não sabia o que fazer. Agora que estava consciente

novamente, pegou o telefone da recepção e tentou ligar para um

monte de parentes da Clara, mas ninguém sabia dela. Fazia uma

considerável pausa entre uma ligação e outra para não levantar

suspeitas de fofoqueiros como um médico traidor ou uma enfermeira

vagabunda. Aproveitou uma dessas pausas para trocar os curativos

nos cortes dos braços, mesmo nem tendo ligado para eles durante

todo o dia, só um pretexto para fugir de sua função. Téo levou quase

sete horas para ligar pra todo mundo. E repetiu muitas ligações, no

meio tempo, como esperança de que Clara pudesse ter chegado

depois em algum lugar. Uma tia dela que morava em Arraial do

Cabo foi a única a não atender o telefone. Ela tinha bina, sabia que

era do hospital. Neste pensamento, Téo caminhou na direção de um

médico próximo na esperança de pedir o celular emprestado, mas no

Page 29: Olhos dourados

29

meio do caminho foi abordado por um homem de idade, de terno e

gravata, muito elegante e bem afeiçoado.

— Bom dia, o senhor é Theodoro Maximiliano da Silva? —

Perguntou o velho elegante.

— Sim, o que você quer? — Respondeu Téo secamente.

— Eu sou o advogado de sua esposa, e preciso lhe entregar

isso — entregou um envelope a Téo.

— E o que é isso?

— Os papéis do divórcio. Sabe, senhor Theodoro, hoje em

dia a lei facilitou muito esse tipo de situação, se o senhor assinar

agora, ela promete que não haverá uma batalha judicial, vocês

dividem os bens e ela deixa você ver seus filhos uma vez por

semana.

— E de que bens o senhor está falando? — Perguntou Téo,

caminhando lentamente na direção do advogado, como se fosse

brigar com ele. — Ela levou tudo que nós tínhamos.

— Ela deixou a casa, que só falta pagar a metade. A

fechadura foi trocada para evitar que o senhor voltasse lá antes da

hora e a visse arrumando as coisas, mas ela tinha deixado uma cópia

com o vizinho.

— O senhor quer que eu assine o divórcio aqui e agora? —

Téo continuava com a pior cara de ódio que conseguia.

— Ela pediu que eu viesse aqui na madrugada durante seu

expediente, seria a melhor forma de encontra-lo.

Téo novamente se viu próximo a entrar no seu estado de

paralização mental. Chegou a ver a realidade se afastando um pouco,

quase como se o chão estivesse pronto a fugir. Mas fez um esforço e

conseguiu agarrar um pouco da realidade ainda. Seus sentimentos,

por outro lado, ele não tinha muita certeza. Nem mesmo ódio parecia

estar sentindo, apenas um grande vazio. E com este mesmo vazio,

expressado até mesmo no seu falar, convidou o advogado a um lugar

mais reservado para que pudesse ler com calma o documento. O

advogado achou natural e o acompanhou até uma certa salinha de

três metros por dois que tinha uma porta em cada extremidade, uma

para o corredor, outra para outra salinha quase idêntica. Téo trouxe

Page 30: Olhos dourados

30

um banquinho pequeno de um quarto próximo e encontrou o

advogado lá na salinha, sentado à mesa com os documentos já

organizados para leitura. Téo sentou-se ali e começou a ler. Ah, que

nada, leu nada. Só fingiu por longos 37 minutos que estava lendo

aquela maldita papelada. O advogado não estranhou, essas coisas se

lêem com calma mesmo. E já eram quase três da manhã quando o

fingimento acabou e Téo virou a última página.

— E então, senhor Theodoro, alguma dúvida? — Perguntou

o advogado.

Téo olhou para ele com um sorriso no rosto, mas não um

sorriso feliz. Nem triste. Um sorriso vazio, como seus olhos. Vazios.

Então a luz se apagou abruptamente. O advogado se espantou, mas

não temeu de imediato.

— Oh droga — disse o advogado. — Se o senhor tiver a

bondade de assinar lá na mesa da recepção será excelente. Sem mais

delongas, de preferência.

— O senhor veio até aqui me entregar o documento que irá

arruinar toda a minha vida e a vida de duas crianças — disse Téo, o

mais friamente possível —, e me diz tudo isso com essa frieza?

Como se fosse uma solicitação qualquer?

— Senhor, entenda... — o advogado começou a ficar

preocupado. — Eu sou pago por hora, e tenho outros clientes

amanhã, preciso ir descansar.

Téo se levantou brusca e rapidamente, derrubando o banco.

O advogado correu para porta assustado, mas esta não abriu. Ele

então correu para a outra, contando os passos naquela escuridão. E

logo que a abriu, viu-se diante dos olhos dourados observando

famintos. Téo nem pensou. Apenas deu um chute forte na coluna do

advogado, o que o arremessou para cima dos olhos dourados. Os

gritos não duraram nem cinco segundos, foram substituídos pelo som

dos ossos quebrando, sangue jorrando e carne sendo mastigada. Téo

simplesmente fechou a porta e sorriu, sentando-se à mesa e

aguardando o pior.

Mas o pior não aconteceu. Pouco depois as luzes se

acenderam.

Page 31: Olhos dourados

31

Téo não sentiu remorso nem por um instante. Ele já não

conseguia sentir mais nada. A única coisa que fez a seguir foi abrir a

porta da sala dos olhos dourados novamente para ver o que precisaria

limpar. Mas estranhamente não havia nada lá. Era como se o

advogado também tivesse sido uma alucinação. A não ser pelo fato

da maleta e documentos ainda estarem sobre a mesa. Maleta e

documentos estes que Téo apenas misturou no lixo hospitalar no

fundo do hospital.

O dia amanheceu e Téo pegou no sono dentro desta mesma

saleta, sem nem ter o trabalho de se dirigir ao quarto que vinha

dormindo antes, e nem mesmo de tirar a roupa de vigilante. E passou

o dia dormindo, até quase às 19 horas. Seu celular chamou algumas

vezes, mas não o suficiente para acordá-lo ou alertar alguém fora da

sala. Ele dormiu como uma pedra.

Quando bateu seu ponto no horário correto, seu olhar ainda

era um profundo vazio. Não há de se saber se ele pensava alguma

coisa, mesmo que vagamente, ou se era totalmente um robô em

curto-circuito caminhando pelos corredores brancos e lotados de

gente. E as várias horas de sono não foram suficientes nem de perto

para reaver alguma humanidade naquele saco de carne e ossos. Ele

sabia que tinha alimentado a besta com um ser humano, mas saber

não quer dizer pensar a respeito, nem mesmo sentir algo a respeito.

A não ser talvez a vontade de fazer de novo. E esse pensamento

sinistro e vago veio em sua mente quando ele avistou Valquíria

caminhando ao lado do Dr. Fargas no corredor da recepção. E ela

ainda olhou para ele com desprezo. Fargas por sua vez o

cumprimentou de longe, com um aceno, como se estivesse tudo mais

que normal. Então finalmente um sentimento pareceu ter brotado no

mais profundo do ser de Theodoro Maximiliano da Silva. E esse

sentimento qualquer traduziu-se em um sorrisinho maroto em meio

àquela face vazia.

###

Page 32: Olhos dourados

32

Eram duas da manhã quando Dr. Fargas foi chamado no

quarto andar. Meia hora depois anunciaram o nome da enfermeira

Valquíria na sala 401. Dez para as três anunciaram o nome do diretor

Sheldon para resolver uma emergência na saleta selada no quarto

andar. Era plantão de Fargas e Valquíria, e o diretor Sheldon sempre

ficava madrugada adentro nos domingos, para resolver qualquer

problema recorrente pela escassez de médicos aos fins de semana.

Sheldon saiu rapidamente de sua sala e correu para a saleta,

imaginando o que poderia estar acontecendo. Nunca teve problemas

com aquela sala, mas lembrou-se de quando seu antecessor lhe fez

prometer que nunca a abriria. Naquela altura pensava que alguma

lenda urbana envolvendo aquele lugar poderia despertar algum

lunático ou desencadear uma reação na ala psiquiátrica toda, talvez

algo até pior, então preferiu manter sua promessa e esquecer aquele

lugar e qualquer lenda que pudesse o envolver.

Assim que chegou, Sheldon abriu a porta subitamente, sem

pensar nem refugar. E foi aí que teve o baque. Valquíria estava

amarrada na mesa, amordaçada. Fargas ao lado na cadeira, todo

amordaçado também. Diante da outra porta estava Téo, segurando

uma arma que não usava corriqueiramente no expediente, mas que

ficava em um armário da segurança, e todo guarda tinha a chave.

Téo apontou ameaçadoramente a arma para o diretor.

— Theodoro, o que vai fazer? — Perguntou o diretor

Sheldon, com as mãos para cima, após fechar a porta a mando de

Téo.

— O senhor chegou bem na hora. E a vantagem é que nem

mesmo vou precisar te amarrar. O senhor vai ser o primeiro — disse

Téo com um ar de satisfeito, mesmo misturado ao vazio que era sua

cara.

— Téo, não faça nenhuma besteira — implorava Sheldon

— você não tem como sair daqui impune.

— Eu tenho como sair impune de qualquer coisa, eu tenho a

arma perfeita para o crime perfeito. Se não houver corpo nem

suspeitas, como iriam acusar alguém?

— Sem corpos, como assim?

Page 33: Olhos dourados

33

Valquíria não tinha parado de chorar nem um instante, mas

ao ouvir a última declaração de Téo, danou-se a chorar ainda mais.

Até mesmo Dr. Fargas, sempre tão centrado e paciente, agora

chorava como uma moça, quase tanto quanto Valquíria.

E Sheldon não teve tempo de tentar dizer mais nada. As

luzes se apagaram todas de uma vez, como de costume. Sheldon

pensou que seria sua chance de escapar e tentou abrir a porta, sem

sucesso. Téo abaixou a arma, a pôs na cintura e pegou o taser.

— Calma, Theodoro — ainda implorava Sheldon.

— Eu estou calmo como nunca estive na vida — disse Téo

ainda mais friamente. — Mas ele está faminto!

Téo finalmente abriu a porta e dessa vez mal pôde se ver os

olhos da besta, pois esta saiu feroz já saltando com tudo que tinha e

abocanhando toda a cabeça de Sheldon, batendo seu corpo

violentamente contra a porta. Respingou um pouco de sangue, mas

antes mesmo que pudessem espalhar-se vísceras ou algo assim, a

besta pulou de volta para sua escuridão na outra sala, com Sheldon

ainda na boca, e desapareceu sombra adentro, como se houvesse um

longo caminho após os 3 metros. Como se as sombras fossem o

portal para uma estrada no infinito nada.

Valquíria e Fargas tentavam berrar e esbanjavam lágrimas

enquanto escutavam os ossos e a carne se destrinchando na outra

sala. Téo considerou-se bondoso ao tirar as mordaças de ambos e

ouvir gritos de misericórdia misturados com gritos de fúria,

palavrões e rogo de praga. Téo não sentiu nem uma centelha de

remorso, ele só sentou-se no chão e começou a rir da desgraça que

ambos passavam.

Dois minutos depois a besta passou pela porta, agora

andando lentamente, exibindo seus arregalados e assustadores olhos

dourados. Valquíria e Fargas berravam com tudo que tinham. Então

Fargas começou a vomitar e se engasgar com o vômito. E deve ter

sido o critério de escolha da besta, que o agarrou com suas enormes

garras, cravando as grandes e duras unhas nos músculos mal

trabalhados de seus braços, o que fez espirrar mais sangue, mas

como da vez anterior, sem tempo para espalhar, pois o monstro o

Page 34: Olhos dourados

34

levou para a escuridão em um segundo, deixando só a cadeira e as

cordas partidas para trás.

Valquíria parou de gritar enquanto escutava seu amante ser

devorado.

— Você não vai tirar minha dignidade, nem na hora da

minha morte — disse ela, erguendo a cabeça. — Vou morrer como

vivi, de cabeça erguida.

Téo levantou e se aproximou, pondo seu rosto tão perto do

dela que os narizes se tocaram.

— Você nunca teve nenhuma dignidade, sua piranha

desalmada... eu tinha uma família que você ajudou a destruir.

Conviva enquanto pode com isso e responda no inferno por tudo que

você fez.

E tão logo Téo tirou a cara dali, saindo da frente, os olhos

de Valquíria puderam contemplar a besta, agora andando como

bípede e se aproximando lentamente dela.

— O que foi, “Olhos Dourados”? — Perguntou Téo como

se tivesse toda a intimidade com a besta. — Comeu o prato principal

e agora vai querer esnobar a sobremesa? Ela é fêmea, a carne mais

macia, devia ter provado primeiro. — E danou-se a rir enquanto o

monstro agarrou e levou Valquíria para as sombras lentamente, com

mesa e tudo, sem nem desamarrá-la. Valquíria manteve-se firme,

cabeça erguida e sem chorar mais. Mesmo quando ouviu-se o som de

seus ossos quebrando, nenhum grito. Téo supôs que o primeiro osso

a se partir deva ter sido o pescoço.

E após esses preciosos minutos, as luzes se acenderam de

uma vez. Tudo em seu devido lugar, menos a mesa, que

desaparecera. Téo chegou a olhar na sala ao lado, mas nem sinal da

mesa, de qualquer vestígio dos corpos ou da existência da besta.

Ele só levantou a cadeira onde esteve sentado Fargas e

começou a rir histericamente. Riu e se satisfez como se não houvesse

amanhã. Reviveu mais e mais vezes as cenas em sua memória até

cair no sono, sentado só na cadeira. Acordou na hora certa,

momentos antes do horário de bater o ponto e começar o expediente.

Page 35: Olhos dourados

35

###

Segunda-feira. Normalmente é o dia da preguiça. Mas não

para o disposto e sempre vigoroso guarda Theodoro Maximiliano da

Silva. Mesmo estando à beira dos últimos dias no emprego, manteve-

se vigilante como um leão na selva. Resolveu sozinho um caso de

fuga da ala psiquiátrica, um outro de velhinho que revidava injeções,

sempre com maestria, sabendo ser gentil ou firme nas horas corretas.

Naquela noite o encarregado sentiu remorso de ter que perder o seu

melhor homem por causa de um miserável complô de RH.

E no meio de tanta vigilância ele acabou vigiando o que

almejava: a às da contabilidade, a chefia maior dos números, a

ameaça de qualquer um que ousasse se opor, a tirana ditadora de

todo o hospital, capaz de mandar até na diretoria, é ela mesma, a

temível Aline do RH. O mesmo RH que por acaso tinha sua sede no

quarto andar...

E já passava de meia noite quando a voz suave nas caixas de

som pediram a presença do segurança Theodoro na recepção. Ao

chegar lá ele observou que havia uma fila de funcionários de

diferentes cargos. Ao perguntar a um enfermeiro, este lhe disse que

havia um detetive para interrogar todos os funcionários que

trabalhavam exclusivamente à noite. Os residentes ficariam para o

dia seguinte. Téo sorrateiramente saiu da fila e seguiu para a saleta

do “Olhos Dourados”.

A voz suave o chamou mais umas cinco vezes, mas ele não

saiu da saleta. Até que o seu relógio marcou duas e meia e ele

resolveu ir até a recepção.

— Me desculpe, oficial — disse Téo, estendendo a mão em

cumprimento ao detetive Camargo. — Eu estive resolvendo um

problema sério. Eu sou Theodoro Silva. Do que se trata?

— O senhor deve ter ouvido falar que o diretor do hospital

não compareceu hoje ao trabalho — começou o detetive.

Page 36: Olhos dourados

36

— Na verdade estou sabendo agora — Téo fez cara de

surpresa. — Ele não está em casa? — Perguntou o óbvio talvez para

parecer inocente ou estúpido.

— Sua esposa nos acionou quando ele não voltou pra casa e

nem atendeu no hospital. A recepcionista da noite disse que o

anunciou algumas vezes, mas não teve notícias concretas. Quando

foi a última vez que o senhor o viu?

Téo pensou a fundo e sorriu confiante para o detetive.

— Na verdade o vi hoje pela manhã na minha sala.

— Ora, então o senhor teria sido o último a vê-lo —

surpreendeu-se o detetive Camargo. — Posso dar uma olhada na sua

sala?

— Perfeitamente, oficial, venha comigo por favor.

Eles caminharam até o elevador e chegaram rapidamente ao

quarto andar. Ao passar pelo banheiro, Téo pediu para utilizá-lo

rapidamente e o detetive não tinha porque não permitir. Ele entrou e

saiu estrategicamente em alguns minutos. Ele então caminhou com o

detetive até a porta da sala e olhou o seu relógio.

— Por que tanto olha este relógio, senhor Theodoro? —

Perguntou o perspicaz detetive.

— Um vício de infância na verdade. Sempre que chega as

três da manhã fico ligado como um louco, aguardando o sininho

tocar. Quando criança acordava neste horário só pra ouvir o toque do

relógio e voltava a dormir.

— Que estranho.

— Sabia que de acordo com algumas culturas do mundo,

esta é a hora em que as trevas zombam da luz? E em outras culturas

é simplesmente considerada a hora mais escura da noite, claro que

isso varia de lugar para lugar no mundo, estações do ano e tudo mais.

Mas definitivamente três da manhã é uma hora especial.

— Podemos entrar então? — Perguntou Camargo, agora ele

olhando para o celular a fim de ver a hora.

— Dez segundos mais, dez segundos menos... — disse Téo,

olhando para o relógio uma última vez antes de girar a maçaneta. Ele

então empurrou a porta e sinalizou para Camargo entrar primeiro.

Page 37: Olhos dourados

37

Camargo arregalou os olhos e o coração palpitou mais forte ao

avistar a estranhíssima cena no centro da salinha. Era Aline

amordaçada e amarrada na cadeira, bem no centro da sala, tentando

gritar e espernear, sem sucesso. A outra porta estava aberta.

Rapidamente Téo puxou o celular da mão de Camargo e o

empurrou porta adentro, fechando a porta em seguida. No momento

que Camargo correu para tentar abrir a porta, tudo se apagou.

Os enfermeiros, médicos, outros funcionários e pacientes

que porventura passassem em frente à porta da sala naquele instante

não poderiam de forma alguma escutar nenhum som vindo lá de

dentro, era como se nada estivesse acontecendo, como sempre, mas

naquela madrugada algo estava diferente: um guarda do hospital, um

competente homem chamado Theodoro Maximiliano da Silva estava

sentado diante da porta rindo histericamente, como se estivesse

assistindo ao melhor show de stand-up de sua vida. Mas bastava a

sua imaginação do que estaria acontecendo atrás da porta para deixá-

lo naquele estado de inabalável histeria.

###

Téo encontrava-se no vestiário esperando nada mais que o

amanhecer, uma hora conveniente para fazer uma ligação. O celular

de Camargo chamou duas vezes durante a noite e Téo simplesmente

não atendeu. O expediente acabou e ele não bateu o ponto de saída.

Apenas ficou ali aguardando. Considerou oito da manhã uma hora

conveniente, então ligou para a tia de sua esposa, a única que não

atendera ligações do hospital. O telefone chamou quatro vezes antes

da tia atender. Ele foi bem persuasivo no telefone. Não ameaçador de

qualquer forma, apenas persuasivo, foi ator, convenceu até que

estava chorando por saudades dos filhos, dizendo que ela não podia

fazer aquilo com ele. A tia meio que concordava com ele e acabou

dizendo que ela estava na casa de um cara que podia ser um tipo de

namorado. Ela disse isso como forma de prepara-lo para o que

poderia estar vindo. Eu não poderia dizer que o ódio em Téo

crescera, ele apenas ficou lá vazio como esteve nos últimos dias.

Page 38: Olhos dourados

38

Ele ainda confirmou com ela que Clara estava lá sozinha,

sem as crianças. Fez a tia jurar que as crianças estavam com ela,

então desligou e ligou imediatamente para o número que a tia lhe

deu.

— Alô! — Ele simplesmente largou o telefone no chão. Ele

não podia conceber o que ouviu... ele não podia conviver com a

realidade do que escutou naquele simples “alô”. Era a voz do seu

melhor amigo André! Agora sim! Agora posso dizer que o ódio dele

veio com força total e cresceu até onde pôde, se é que há um limite.

###

André desligou o telefone e disse a Clara que não era

ninguém. Ela se preocupou, mas ele disse que ela devia se acalmar,

que Téo não desconfiaria nunca que ela estaria ali, que ficasse

tranquila. E que podia ficar o tempo que precisasse até o divórcio

sair, era mais seguro que na casa da tia, onde provavelmente Téo a

procuraria.

Eram cinco para as três da manhã quando André assistia

televisão, insone como de costume. Pouco depois, uma notícia o

chamou atenção por ser do hospital. Um incêndio na rede de energia

subterrânea havia causado um apagão geral no hospital e os

geradores do hospital estavam todos sabotados. Pacientes já haviam

morrido por falta dos equipamentos e os mais graves estavam sendo

transferidos às pressas para outros hospitais enquanto os especialistas

tentavam reaver a luz ou os geradores.

Cláudia saiu do quarto correndo e já encontrou André se

levantando.

— Eu vi na televisão do quarto. Precisam de você lá —

disse ela.

— Eu sei, cuida de tudo aqui, eu volto quando puder —

disse André e foi caminhando até a porta.

De repente um som alto de batida de carro e a luz apagou na

casa também. Eles se mostraram surpresos. Alguém derrubara um

Page 39: Olhos dourados

39

poste na frente da casa com certeza! Luz e telefone já eram. Uma

única luz de emergência acendeu-se na sala.

André correu para a porta e assim que a abriu, tomou um

dos maiores sustos de sua vida, avistando seu melhor amigo Téo bem

na sua frente.

— Porra Téo! — Gritou André mais para alertar Clara do

que pelo enorme susto que realmente tomara.

— Desculpe, melhor amigo — disse Téo, com claro tom de

deboche e sarcasmo. — Eu já ia tocar a campainha.

— O que tá fazendo aqui? Tem uma crise no hospital,

vamos lá, anda! — André tentava tirá-lo dali.

— Só um instante, amigo, precisamos conversar — Téo

continuava no mesmo tom, adicionando até um sorriso cínico no

rosto.

— Conversamos no caminho — André já falava em tom

mais sério, como se já desconfiando que Téo soubesse que Clara

estaria ali.

— Conversamos agora! — Disse Téo, agora em tom

claramente ameaçador, apontando a arma para André, que levantou

as mãos imediatamente. Entraram em seguida.

— O que vai fazer, cara? — Perguntou André,

amedrontado.

— Clara, pode sair daí, vamos ter uma reunião familiar

aqui! — Ordenou Téo.

Clara nada podia fazer da posição em que estava no quarto,

apenas saiu e tomou o cuidado de fechar a porta calmamente.

— O que está fazendo, Téo? — Clara tentava manter a

calma. — Esse não é você, você nem come carne pra não participar

da morte de animais.

— Não estou matando bois aqui — disse Téo, calmamente.

— SENTA! — Gritou imperativamente.

Ela sentou-se ao lado de André, mantendo uma certa

distância respeitosa, o que fez Téo rachar de rir, como um lunático.

— Téo, se você fizer isso vão te pegar — disse André —,

você não quer ver seus filhos crescendo da cadeia.

Page 40: Olhos dourados

40

Mais uma risada histérica.

— Eu não vou preso — dizia Téo em meio a risadas

descontroladas enlouquecidas. — Pra eu ser preso precisam

apresentar alguns corpos. E de vocês é provável que não sobre nada.

Vou matar vocês e dar de comer ao meu bichinho.

— Cara, para com isso, você tá vendo muita televisão, o

último cara que fez isso tá mofando na cadeia, e o cara era famoso e

rico, imagina... — interrompeu André suas próprias palavras.

— Diz, André — incentivou calmamente Téo. — Diz:

“imagina você que é pobre!” — Gritou.

Clara teve total certeza naquele momento que aquilo tudo

era mais um teatrinho do policial falido que sempre foi seu marido, e

se posicionou ereta na sua frente, desafiadoramente.

— Guarda já essa arma, Theodoro! — Disse imponente. —

E vai pra casa, conversamos pelos advogados! Vai agora! —

Ordenou.

Téo deu um sorrisinho cínico. Ela se irritou e com confiança

o empurrou seus ombros com as duas mãos. A reação foi imediata,

Téo simplesmente atirou nela, acertando bem no ombro.

André misturou o susto com a oportunidade e saiu correndo

como louco para a porta da frente. Téo fingiu não ter tido tempo para

protestar, se quisesse atirar teria conseguido, mas havia uma surpresa

na porta.

Quando André abriu a porta e mirou a rua, freou sua corrida

abruptamente, caindo e arrastando a bunda uns centímetros pelo

chão, ainda empurrado pela inércia. Ele parou com os olhos tão

próximos dos olhos da besta que aquela luz nos olhos dela quase o

cegara. Ainda assim ele não conseguiu tirar os olhos dos olhos

dourados. Nem mesmo o bafo de morte da besta o afastara naqueles

últimos três segundos de vida em que misteriosamente a besta

demorou para ataca-lo. Mas atacou. E foi uma única mordida, que

arrancou toda a cabeça e metade do peitoral, o sangue jorrou muito

mais que nas outras vítimas, provavelmente por não estar no

ambiente habitual da besta. O corpo de André caiu no chão e podia

se observar de perto os pulmões partidos ao meio pela mordida única

Page 41: Olhos dourados

41

e mortal, e o coração ainda inteiro, metade pra dentro da carcaça,

metade pra fora, pulsando como se para abastecer um vivo.

O sorriso de Téo aconteceu juntamente com o berro de

Clara, que viu apenas uma pequena parte do ataque lá fora perto da

porta. Ela então começou a se arrastar para trás, para o corredor onde

ficavam as entradas dos dois quartos e do banheiro ao fundo. Téo

apontou a arma para ela.

A besta avançou casa adentro, mas ao tentar passar pela luz

de emergência no meio da sala, sua pele queimou e ela soltou o

monstruoso grunhido. Téo preocupou-se visivelmente com seu

animalzinho de estimação e prontamente atirou na lâmpada de

emergência, logicamente a apagando.

A besta passou por cima de sua cabeça num único e

longuíssimo salto, já caindo próximo a Clara, que parou de gritar um

instante e surpreendentemente rápido puxou o celular do bolso e

apertou um botão, iluminando os olhos da besta, a afastando

assustada a ponto de se desequilibrar e cair de cara no chão.

Téo viu a cena com ódio e atirou certeiro no celular, que

estourou-se. A bala pegou na mão dela também, arrancando dois

dedos e causando um grito de dor indizível, porém curto, visto que

sua cabeça imediatamente fora arrancada com uma só patada da

besta. E antes mesmo de tocar o chão, a besta a abocanhara. Téo

começou a rir enquanto a besta comia o restante do corpo, questão de

segundos, como uma cobra que nem mastiga, apenas engole. Só que

as vítimas desapareciam bem rápido no estômago, como se tivesse

um buraco negro lá dentro.

Em seguida a besta lambeu o sangue e uma enorme sombra

surgiu na escuridão, ainda mais negra que a escuridão e devorou todo

e qualquer átomo que pudesse ter existido de Cláudia, tal como

acontecera há alguns segundos com André. Estava tudo acabado.

A besta, satisfeita, caminhou um pouco e deitou-se,

apoiando a cabeça aos pés de Téo. Ela mesma nunca imaginara que

se tornaria fiel a um ser humano, mas este lhe alimentava e entendia

como nenhum outro em milênios de existência. E a sensação de

Page 42: Olhos dourados

42

liberdade era tamanha que já passara muito da hora da besta se

recolher e esta simplesmente queria ficar ali com seu dono.

Mas um som surpreendeu a ambos naquela madrugada. A

maçaneta da porta do quarto, de onde antes saíra Clara, tentou girar.

Em seguida um som de trinco destrancando e a maçaneta girando. A

besta se levantou e se pôs em prontidão. A porta se abriu e de lá,

lentamente saiu ninguém menos que Marina, a filha de cinco anos de

Téo.

A besta rosnou e se pôs em posição para ataca-la. Téo gritou

que não desesperadamente, mas não adiantou. A besta saltou sobre

ela ferozmente. Mas Téo foi tão rápido quanto e agarrou no pescoço

da besta com um “mata-leão”. Esta levantava e voltava a ficar de

quatro, alternando entre bípede e quadrúpede, empurrando e batendo

com força o corpo de Téo contra as paredes e móveis da sala. Ele

sentia dores fortes, ossos foram quebrados, mas ele não desistiria de

sua filha.

E Téo mal começara a batalha, avistou seu filho saindo e se

juntando à irmã. O desespero foi dobrado, se é que isso pudesse ser

possível. Com toda aquela ação, outro taser acabou caindo no chão e

quebrando. Téo não tinha nenhum recurso a não ser segurar o

máximo possível a besta para que seus filhos corressem. E ele gritou

para que o fizessem por várias vezes, mas eles estavam imobilizados

pelo medo. Então a besta finalmente conseguiu se soltar de Téo, o

arremessando com força nos móveis da sala.

Agora não tinha mais jeito. A besta se aproximava

lentamente dos irmãos.

— São meus filhos... não mate meus filhos! — Implorou

Téo.

Surpreendentemente, a besta pareceu ter entendido o que ele

disse. E ainda mais surpreendente o som que saiu de seu focinho

meio humanizado em seguida: um som que parecia um latido, mas

que exprimia palavras em português. “Filhos”. Ela tinha acabado de

dizer, ou latir, a palavra “filhos”!

Téo sorriu e deitou-se no chão, arrasado de dor, mas feliz. A

visão de seus filhos em segurança mesmo diante da besta começava

Page 43: Olhos dourados

43

a trazer sua humanidade de volta. E com isso ele começou a lembrar

do que tinha feito nos últimos dias.

Uma lágrima sincera desceu de seus olhos. E mais lágrimas

sinceras para cada vítima e para seus filhos que teriam que crescer

sem a mãe. Mas naqueles vinte segundos de pausa, tomou a decisão

de se recuperar e seguir em frente pelo bem dos filhos. Desistiria de

sua vida própria em prol do melhor para eles e quando não

precisassem mais dele, ele se entregaria e pagaria por seus crimes.

Eu cheguei a dizer que a pausa fora de vinte segundos

somente, não disse? Pois é, foi o tempo que a besta levou cheirando

as crianças. Dez segundos para Marina e um sorriso animalesco,

seguido novamente da palavra “filho”.

Mais dez segundos para Marcos... só que foi um rugido e a

palavra foi “mentira”!

Téo arregalou os olhos em profundo horror ao ver aquela

besta devorar seu filho com uma única bocada, sem nem mesmo

mastigar, apenas engoli-lo inteiro e depois ficar em duas patas

uivando para o teto, como que para a lua.

Marina desmaiara antes que pudesse testemunhar qualquer

outra coisa, como o que Téo pôde ver enquanto a besta uivava: a

barriga da besta se mexia, e por uns segundos eram claros os

membros e rosto de Marcos tentando sair da barriga, ainda vivo e

desesperado para sair de lá.

— Nããããããããããããããããããããããããããããoooooooooooooo!!! —

Gritou Téo desesperado. Mesmo com alguns ossos quebrados por

todo o corpo, reuniu todas as forças que pôde e correu na direção da

besta, mas imediatamente as luzes se reestabeleceram na sala e no

corredor e a besta começou a queimar e queimar. Em cinco segundos

de agonia desapareceu, esfumaçando-se no ar.

Téo caiu no chão chorando. Ele gritava e rosnava,

inconformado, chorando e rangendo os dentes, passando pelo maior

sofrimento que jamais imaginou passar na vida.

###

Page 44: Olhos dourados

44

Alguns meses se passaram. O pouco que se sabe do que

aconteceu depois é que Marina foi entregue pelo pai a avó e estaria

morando com ela até então.

Téo desapareceu no tempo, sendo considerado mais uma

vítima dos misteriosos desaparecimentos dos funcionários do

hospital. Jamais ninguém soube da verdade. E depois da noite dos

blecautes misteriosos, nunca mais ninguém desapareceu no hospital.

Nem mesmo Marina soube dar algum depoimento

consistente para o caso, só falava no monstro que levou seu

irmãozinho, e como seu pai tentou lutar com ele.

E na delegacia, o agora tenente Teixeira, arquivava o caso

dos desaparecidos junto com o montante de casos sem solução que já

quase tomavam todo o espaço nos depósitos da policia militar.

O trabalho administrativo foi tão árduo naquele dia que o

tenente Teixeira nem percebeu que a tarde se fôra e a noite

começara.

Teixeira tinha recebido um recado para comparecer na

residência do agora coronel Baptista naquela noite e partiu pra lá em

um carro civil, saindo da delegacia já sem farda e de banho tomado.

Provavelmente havia planos para algum serviço extraoficial para

levantar “um extra” naquela noite. O que mais se poderia esperar de

uma convocação do coronel Baptista?

Assim que chegou, estacionou em uma distância

considerável, a fim de não levantar suspeitas, caminhou até a

residência do coronel e apertou a campainha.

O coronel demonstrou surpresa ao ver o amigo em sua

porta.

— Teixeira, que houve?

— Às ordens, coronel! — Teixeira prestou continência.

— Tá falando de quê? Tá fazendo o que aqui?

— Vim pelo recado que o senhor deixou pra eu comparecer

aqui.

— Eu não deixei recado nenhum!

E enquanto essa dúvida pairava na prosa dos oficiais, ouviu-

se um som forte de explosão em um lugar próximo e a luz se

Page 45: Olhos dourados

45

ausentou imediatamente. Ambos puxaram suas armas e se puseram

em prontidão. Quando o coronel estava prestes a convidar o tenente

para entrar, por segurança, ouviram no meio da escuridão uma

conhecida voz.

— E aí corruptos?

Forçaram a visão e avistaram a uns dez metros de distância,

numa área até bem iluminada só pela lua, ninguém menos que o

desaparecido ex-colega: Theodoro Maximiliano da Silva. E não

estava sozinho, tinha em mãos uma coleira que emanava faíscas

elétricas segurando com força a enorme besta que babava diante

deles como se fossem a mais suculenta refeição.

— Será que a rua tá pra negócio hoje? — Debochou Téo.

Eles apontaram as armas.

— Vai garoto! — Disse Téo. E quando apertou o botão de

soltar a coleira, a besta praticamente voou pra cima dos dois, e foi

tão rápido que a reação deles nem foi a natural, de puxar o gatilho,

apenas de gritar desesperados naquele pequeno segundo antes da voz

cessar para sempre.

E a última imagem que irão levar para o inferno deste

mundo cruel que eles tanto contribuíram para que continuasse assim,

é a imagem de um par de olhos dourados fixos nos seus olhos. Olhos

dourados famintos e prontos para deliciar-se com a cota de carne

corrupta fresca daquela noite, ao som da verdadeira loucura que

exprimia a histérica risada do algoz.

FIM