OLHAR E OLHARES: A VISÃO COMPROMETIDA DE … E OLHARES A VISÃO... · lança um dos principais...
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FACULDADE ALFREDO NASSER INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇAO
CURSO DE LETRAS
OLHAR E OLHARES: A VISÃO COMPROMETIDA DE JOSÉ SARAMAGO
Eduardo Belchior Rodrigues Junior
APARECIDA DE GOIÂNIA 2010
EDUARDO BELCHIOR RODRIGUES JUNIOR
OLHAR E OLHARES: A VISÃO COMPROMETIDA DE JOSÉ SARAMAGO
Trabalho de Conclusão do Curso de Letras, apresentado ao Instituto Superior de Educação da Faculdade Alfredo Nasser, sob orientação da Prof. Dr. Michele Giacomet, como parte dos requisitos para a conclusão do curso de Letras
APARECIDA DE GOIÂNIA 2010
OLHAR E OLHARES: A VISÃO COMPROMETIDA DE JOSÉ SARAMAGO
Eduardo Belchior Rodrigues Junior1
RESUMO: O objetivo desse estudo é a necessidade de compreender as metáforas críticas contidas na obra de José Saramago, ensaio sobre a cegueira, que narra uma epidemia de cegueira branca, que constitui a alegoria criada para convidar o leitor a repensar o mundo em que vive. O processo de desumanização, o estereótipo da sociedade moderna retrata um autor revoltado com as atitudes do homem contemporâneo. Utilizaremos referências bibliográficas como: Jean-Paul Sartre, Leyla Perrone-Moisés, Antonio Candido, a obra, ensaio sobre a cegueira, e outros. Pois, Saramago em seu texto, mostrou para o homem, que precisamos enxergar o próximo, respeitar as diferenças sociais, respeitar a mulher, respeitar o mundo. E que essa mudança deve começar agora, antes que a cegueira torne-se irreversível, e a caminhada, iluminada pela falta da visão. Palavras chaves: Saramago. Cegueira. Metáforas. Engajado. Público.
O objetivo desse estudo é a necessidade de compreender as metáforas
críticas contidas na obra de José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, que narra
uma epidemia de cegueira branca, que constitui a alegoria criada para convidar o
leitor a repensar o mundo em que vive. O processo de desumanização, o estereótipo
da sociedade moderna retrata um autor revoltado com as atitudes do homem
contemporâneo. Utilizaremos referências bibliográficas como: Jean-Paul Sartre,
Leyla Perrone-Moisés, Antonio Candido, a obra, Ensaio sobre a Cegueira, e outros.
Pois, Saramago em seu texto, mostrou para o homem, que precisamos enxergar o
próximo, respeitar as diferenças sociais, respeitar a mulher, respeitar o mundo. E
que essa mudança deve começar agora, antes que a cegueira torne-se irreversível,
e a caminhada, iluminada pela falta da visão.
O escritor José Saramago, nasceu em dezesseis de novembro de 1922, no
vilarejo de azinhaga, Portugal, e faleceu em dezoito de junho de 2010, vítima de
falência múltipla dos órgãos, devido à leucemia. Ganhador do prêmio Nobel em
1998, é o único escritor da língua portuguesa ganhador deste prêmio, e é um dos
escritores portugueses mais lidos e mais traduzidos no estrangeiro. Antes de tornar-
se escritor, fez o curso técnico secundário. Foi serralheiro, mecânico, desenhista,
1 Acadêmico do 8º período noturno de letras da faculdade Alfredo Nasser. Artigo Científico orientado
pela professora Dr. Michele Giacomet, no segundo semestre do ano de 2010, como parte dos requisitos para a conclusão do referido curso.
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funcionário da saúde e da previdência social. Trabalhou em vários jornais. Publicou
seu primeiro livro em 1947, o que não lhe rendeu muitas críticas. A partir de 1976
passou a viver exclusivamente do seu trabalho literário, e em 1980, com o livro
levantado do chão, ele inaugura o estilo de escrita com o qual trabalharia dali em
diante. Leitor de Kafka, Baudelaire, Canetti, Fernando pessoa, faz de sua literatura
ferramenta crítica, escritor engajado e comprometido passou a viver na ilha de
Lanzarote, arquipélago das Canárias, onde surgiram várias criações, que com
certeza, imortalizaram-no na literatura portuguesa e mundial.
Sua obra, ensaio sobre a cegueira, é um livro essencialmente político, narra a
historia de um homem que perde a visão no meio do trânsito, uma súbita cegueira
repentina, diferentemente das outras cegueiras, que deixam o indivíduo na
escuridão, essa é como um mar de leite que inunda os olhos, uma neblina densa,
uma cegueira branca. Mas essa cegueira incomum, logo se torna uma epidemia,
pois todos que tiveram contato com o homem cego, logo cegam também, assim, o
médico oftalmologista, que analisou o caso, a mulher do médico, o ladrão de carros,
que roubou o carro do primeiro cego, a prostituta, o homem da venda preta, a
mulher do primeiro cego, todos tiveram contato com o homem na clínica. Assim, a
epidemia se alastra pela cidade, os primeiros cegos são colocados em um
manicômio em quarentena, onde viveram o terror e conheceram a verdadeira
natureza humana, reduzida as trevas. Mas, o escritor colocou uma pessoa, como
válvula de escape na obra, são seus olhos, o narrador e direcionador na obra. Essa
personagem, a mulher do médico, a única que enxerga, conduzirá um grupo, e fará
que eles criem um laço de amizade. O autor deixou claro, que a falta da
aproximidade do homem moderno com o viver em sociedade, a falta da visão, a
corrupção, o egoísmo, gerou as mazelas da sociedade. A impessoalidade do ser
humano, fez com que Saramago não utilizasse nomes para as personagens, as
pessoas são reconhecidas pela profissão, condição social, física.
Então, trabalhar a obra de Saramago, retratar a sua crítica ao homem
moderno, ao governo, a sociedade, faz desse artigo uma ferramenta de explanação
a indignação a condição do homem moderno em convívio com a sociedade.
Colocaremos em análise sua literatura comprometida com o leitor, com seu público
que possui papel de modificadores das ações humanas. Sua literatura é para refletir,
criticar, argumentar e conduzir a uma modificação. Saramago nos obriga a parar,
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fechar os olhos, e ver. Enxerga as necessidades do próximo, que várias vezes são
esquecidas pela velocidade da vida moderna.
Na obra, Ensaio sobre a Cegueira, nos deparamos com labirintos estreitos e
metáforas, propostas dos discursos ali inseridos: uma cegueira branca impossível de
ser diagnosticada pela medicina, a epidemia que cega os cegos, a mudança
repentina da realidade daqueles que deixam de ver. Isto nos remete a Jean Paul
Sartre, ao inquirir em sua obra Que é a literatura, sobre o destino da obra de arte
literária: “Para quem se escreve?” Para todos os homens, um público universal que
está engajado nela? Uma proposta que o escritor elucidou e discorreu com
intenções de modificar a sociedade?
Sartre mostrou que escrever é apelar para a liberdade dos leitores, tornando
a literatura política ferramenta de apelação, mas, o próprio autor nos fala que essa
decisão, esse abrir dos olhos, não depende tão somente do escritor, ser político e
social, mas da massa leitora que aceite e faça a transformação acontecer, que a
sociedade torne-se humanizada, que a doação seja mutua e satisfatória. Ambos se
entregaram, e ambos resgataram a sensibilidade da sociedade corrompida pelo
egoísmo. E é através dessa literatura partilhada que tentaremos entender o universo
saramaguiano e os signos contidos na obra ensaio sobre a cegueira. Nos
deparamos com uma sociedade pós-moderna, para qual o escritor mostrará todo
seu descontentamento através de uma literatura política e engajada, ele mostrará
para os leitores como nós nos tornamos pessoas ruins, e que reconhecer isso é
papel dificílimo.
Saramago retrata logo de início em sua obra a falta de sensibilidade do
homem; o individualismo, pressa, misturada com o egoísmo, impossibilita a visão do
homem ao mais necessitado. Dessa maneira, o autor narra em sua obra a entrada
de um homem no consultório do oftalmologista, acompanhado da esposa, acometido
por uma cegueira repentina, havia várias pessoas que esperavam pela chamada do
médico, castigadas por algum mau da visão. Intrigado com o novo caso de cegueira
repentina, o doutor deixa que o homem passe a frente dos outros pacientes pela
urgência do caso, desencadeando reações de protestos que logo foram suprimidos
pelo medo de sofrerem alguma represália do médico:
... Protestou que o direito é o direito, e que ela estava em primeiro lugar, e à espera há mais de uma hora. Os outros doentes apoiaram-na em voz baixa, mas nenhum deles, nem ela própria, acharam prudente insistir na
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reclamação, não fosse o médico ficar ressentido e depois pagar-se da impertinência fazendo-os esperar ainda mais. (SARAMAGO, 2009, p.22)
O precipício e a pressa existente na sociedade moderna ilustra o
direcionamento de Saramago na obra, e o egoísmo invade e adultera o ser, como
dito no ensaio “... na verdade ainda está por nascer o primeiro ser humano
desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo.” (SARAMAGO, 2009,
p.169). O autor enfatiza que esse distanciamento do homem que olha somente para
si e esquece o outro, corrompe a sociedade e faz o estereótipo do homem moderno,
lança um dos principais motivos da alegoria de terror do egoísmo. Sartre afirma que
as intenções do escritor em desmascarar a sociedade, em mostrar até onde
realmente enxergamos, é fruto de um escritor comprometido em dizer algo para ser
refletido, dessa maneira, percebemos que esse escritor compromissado abre as
portas para o romancista português, assim “... ninguém é escritor por haver decidido
dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo. E o
estilo, decerto, è o que determina o valor da prosa.” (SARTRE, 1999, p.22). E fazê-
lo, torna Saramago ícone da literatura mundial.
A literatura de Saramago, na modernidade, possui um público alvo, toda a
sociedade, é direcionadora do pensamento e idéia do escritor, mas, em
contrapartida a essa idéia de escritor comprometido, contemporâneo, Sartre
exemplifica esse pensamento, mostrando que esse estilo e forma de dizer algo, nem
sempre foram dessa maneira, por exemplo, “no século XVII, quando se decidia
escrever, abraçava-se uma carreira definida, com suas receitas, suas regras e seus
costumes, seu lugar na hierarquia das profissões.” (SARTRE, 1999, p.82). Esses
moldes existentes, essas barreiras empregadas pela elite dirigente fechava e
limitava o escritor daquela época a um público pré-estabelecido, os que não iriam ler
e criticar suas obras. Assim, o escritor engajado não fica restrito a uma forma de
expressar ideologias de lideres políticos e militantes, ele vai em busca de seu
público, através de uma literatura que o fará refletir sua condição humana, escreve
em consonância com o público, se ambos são estáticos, cabe o escritor romper essa
barreira, senão, ele passa a ser um parasita da classe alta, governante, dona do
poder. A diferença entre ser escritor contemporâneo, moderno, á escritores do
século XVII, por exemplo, é que estes fazem estremecer a elite do poder. Saramago
utiliza-se de sua obra literária como ferramenta discursiva crítica, fazendo crítica á
política, á sociedade e ao meio. Para que ela seja funcional utiliza-se dos próprios
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leitores como propagadores e atores dessa crítica. Ora, se fala de uma cegueira
branca que virou epidemia, que de maneira destruidora faz a higienização da
sociedade, a quem ele está se referindo, a nós enquanto leitores? Ou somente a
sociedade contida no livro.
Saramago em oposição a essa idéia do escritor como parasita da elite
posiciona-se diferentemente, ele mostra ao leitor sua visão, ele próprio faz
julgamentos de sua sociedade na obra, por exemplo; Enquanto nós vemos a
prostituta como a mulher marginalizada, vulgar e deturpada, o escritor a defende e
ameniza a situação no seu romance:
Ela tem, como a gente normal, uma profissão, e, também como a gente normal, aproveita as horas que lhe ficam para dar algumas alegrias ao corpo e suficientes satisfações às necessidades, as particulares e as gerais. Se não se pretender reduzi-la a uma definição primaria, o que finalmente se deverá dizer dela, em lato sentido, é que vive como lhe apetece e ainda por cima tira daí todo o prazer que pode. (SARAMAGO, 2009, p.31).
O autor mostra que julgamentos preconceituosos e definitivos impedem que
ela (os seres) tenha uma posição, e seja vista como parte importante da sociedade.
Outro momento na obra é quando o ladrão de carros é defendido pelo escritor, ele
não diz que não roubou, mas mostrou que roubar tem vários sentidos, significados e
motivos, cabe cada um fazer seu julgamento: “no fim das contas, estas ou as outras,
não é assim tão grande a diferença entre ajudar um cego para depois o roubar e
cuidar de uma velhice caduca e tatibitate com o olho posto na herança. ”
(SARAMAGO,2009,p.25). Então, o que está posto em questão são os motivos que
levam a busca de interesses, pois, se voltarmos a citação do autor “cuidar da velhice
caduca e tatibitate com o olho posto na herança” o ladrão teve a capacidade de
roubar um homem cego e desesperado pela sua desgraça repentina, não deve ser
mais ladrão do que aquele que tem a capacidade de doar parte de sua vida em
interesses financeiros, esperando a morte do moribundo para se apossar da
herança. Saramago diz que ambas as partes utilizaram-se de meios cruéis, e a
condição de roubo é que implica a condição de cada ladrão.
Se analisarmos o contexto saramaguiano, perceberemos a necessidade de
rever valores esquecidos pelo mundo moderno, ele nos faz viver uma inversão de
valores, pois a obra ensaio sobre a cegueira foi escrita para cansar, massacrar,
fazer o leitor sofrer com o cenário brutal e violento, é uma alegoria de terror pronta
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para estremecer o leitor, fazê-lo instrumento de crítica. Essa alegoria carregada de
metáforas, interpretações, reinterpretações, prontas para estimular o pensamento e
o senso crítico do leitor, nos remete ao cenário violento da obra. O escritor Tzvetan
Todorov em sua obra introdução a literatura fantástica diz que a alegoria não pode
ser totalmente instrumento de interpretação, ela possui níveis de interpretação e
leitura, onde a distinção de literal e alegoria problematiza os textos. O sentido Literal
em que o autor trabalha em sua obra está empregado no sentido de oposição ao
sentido figurado, possui seu caráter próprio, restrito ao rigor das palavras inseridas
no enunciado. Já a Alegoria, são níveis do falar, utiliza as metáforas continuamente
para falar de outros enunciados, de outras metáforas, uma representação da
literalidade da obra, assim: “uma metáfora isolada indica apenas uma maneira
figurada de falar; mas se a metáfora é continua, seguida, revela a intenção segura
de falar também de outras coisas além do enunciado” (TODOROV,1992,p.70). E
assim, ela passa ser alegórica. O autor em sua obra descreve graus de alegoria,
classificando em “evidente, ilusória, indireta e hesitante”, mas não nos deteremos
em cada uma delas, pois nosso intuito diz respeito ao processo de especulação
acerca da representação, ou melhor, do papel, mas inquirir a representação, o papel
dessa escrita utilizada por Saramago é nosso dever. Então, o texto saramaguiano é
uma alegoria que anseia fazer o leitor criar sua própria consciência, mostrar que
esse recurso utilizado abriu caminhos para o ponto de vista do autor. Saramago
torna a obra aberta a interpretações, uma conversa direta entre autor e leitor,
enquanto o escritor abre as portas para o sentido em que ele pretendeu dar à obra.
O leitor possui o direito de recriar seus próprios sentidos, é um jogo onde ambos são
inerentes ao texto, o escritor lança mão de metáforas que explicitamente ou não,
leve o leitor para seu mundo de terror, viver o que ele viveu e vive, essa alegoria,
essa ficção representada para dar idéia às mazelas do mundo, uma representação
das formas do mundo, o que torna a obra ensaio sobre a cegueira compreensível.
Mas, se percebermos esta alegoria apresentada pelo Saramago, notaremos que ela
abre os olhos para a luz no final do túnel, ou melhor, caverna. Assim, o próprio
Saramago no final de sua obra mostra através das palavras da mulher do médico o
que pensa da sociedade: “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos,
cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem.” (SARAMAGO, 2009, p.310). E é
esse limite entre ver e enxergar que deixa nosso romancista comprometido com a
sociedade, ele vê uma saída, e através da sua obra, a colocará em questão.
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A literatura engajada possui o papel de derrubar os muros da desmoralização
e iluminar os olhos dos leitores que se vêem presos no mar branco de injustiças,
presos a literaturas que são frutos da corrupção, maquineismos como práticas da
elite. Ela planeja como fazer literatura á classes favorecidas e direcionadas para tal,
evitando quebrar a rotina e pensamentos pré-preparados. Dessa maneira, o escritor
moderno e engajado possui a necessidade de quebrar esses paradigmas, e
Saramago é esse escritor, como vemos nas palavras de Sartre:
O escritor lhe apresenta a sua imagem e a intima assumi-la ou então a transforma-se. E de qualquer modo ela muda; perde o equilíbrio que a ignorância lhe proporcionava, oscila entre a vergonha e o cinismo, pratica a má-fé; assim, o escritor dá à sociedade uma consciência infeliz, e por isso se coloca em perpétuo antagonismo com as forças conservadoras, mantedoras do equilíbrio que ele tende a romper. (SARTRE, 1999, p.65)
E essa oposição de idéias das classes conservadoras o faz ser o grande
literato, em sua obra ele mostra essa oposição quando mais uma vez não julga a
rapariga dos óculos escuros. Ela a mulher marginalizada, consegue ter sua
absolvição na visão do escritor. A prostituta é molestada pelo ladrão de carros
quando seguiam em fila para ir ao banheiro. Sem pensar nas conseqüências de
seus atos a mulher crava a sola do sapato afiado na coxa do homem, mas se estão
isolados e impedidos de sair ou pedir qualquer ajuda exterior, as conseqüências de
tal ato não foram medidas e o homem com a perna em estado de decomposição por
causa do ferimento infeccioso vai até a porta de saída para pedir ajuda aos guardas,
que repentinamente lhe dão a sentença, uma rajada e balas que lhe tiram a vida,
assim, o ato da mulher é alvo de reflexão pelo autor como dito na obra:
... Se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala. (SARAMAGO, 1999, p.84)
Essa observação retrata a cegueira como uma falta de percepção das
conseqüências de nossas ações, o autor então faz uma absolvição da mulher,
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deixando o leitor envergonhado, mais uma vez pelos seus julgamentos repentinos
das coisas.
Assim, se pensarmos pelo lado mais fácil, ser escritor é ser um argumentador
das palavras, formador de opiniões diretas e indiretas que se colocará de frente para
todos em um auditório e terá bombardeios de perguntas. O mais difícil é que nem
sempre haverá tempo para recíproca, sua posição e dever com a sociedade emitirá
controversas e desavenças com a classe política, risco que nem todos assumirão,
dessa maneira, sua obra ficará guardada na cabeça de poucos desse tempo ou
tornara-se um ícone para as gerações. Se ensaio sobre a cegueira coloca-se esse
mérito, é fácil dizer, observando a quantidade de criticas e prêmios recebidos pelo
autor, sua capacidade de dialogar com o leitor e expor sua visão para a sociedade,
dessa maneira incomoda e incomodou a sociedade de hoje e, talvez, incomodará
gerações, assim provoca em seus leitores uma autocrítica e faz deles ferramenta de
discussão. Diferentemente da literatura do século XVII, citada por Sartre que
afirma que “é puramente descritiva: não se baseia tanto na experiência pessoal do
autor; corresponde mais a expressão estética daquilo que a elite pensa de si
mesmo. (Sartre, 1999, p.74). Não importa as psicologias humanas, ou os clássicos
que possui um público voltado a sua psicologia. Saramago obrigatoriamente revela a
que ponto chegou a sociedade, caracterizando aquele povo corrompido, o autor
expõe as tragédias, mostra todo seu descontentamento e desconforto como escritor
que através de leituras de clássicos descobriu Kafka, que como ele, abrange temas
sobre alienação, conflitos existenciais, aonde o homem se vê preso a uma vida sem
objetivos e sem rumos, e essa o faz caminhar a situações impossíveis de fuga, um
profundo estudo psicológico e comportamental, o homem é, sobretudo uma
alteração de comportamentos, atitudes, sentimentos e opiniões. Sendo assim,
Saramago através de pensamentos kafkniano abre os olhos daqueles que eram
incapazes de ver, brutalmente desumanizados e reflete de que maneira fará a
reestruturação dessa sociedade, através do médico e a mulher do médico, faz uma
reflexão da condição de ter olhos e não enxergar. O diálogo das duas personagens
acompanhados da rapariga do óculos escuros, faz um estereotipo da cegueira
involuntária, ora, a mulher do médico vê, mas como os outros não repara que sua
condição depende de suas ações, de sua humanização, o caminho da cura depende
da visão e condição de mundo, assim, ela diz:
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Estou cega da vossa cegueira, talvez pudesse começar a ver melhor se fôssemos mais os que vêem, temo que seja como a testemunha que anda à procura do tribunal onde convocou não sabe quem e onde terá de declarar não sabe quê.(SARAMAGO, 2009, p.283),
Saramago reflete a partir de seu ponto de vista e não da sociedade alienada,
não utiliza a visão do clérigo para privilegiar a igreja, não se utiliza de escritas
direcionadas e manipuladas para privilegiar a elite dominante, não se utiliza do grito
de liberdade, igualdade e fraternidade constantemente ditadas pela burguesia com
ideologias falsárias do século XIX, voltado para o capitalismo e regressão de um
novo império, novo regime político mascarado pelo próprio interesse.
O escritor não possui o papel somente psicológico, papel esse
constantemente contestado, possui papel social, papel de comunicar e ser ouvido.
Sartre nos revela que a arte não é contemplação, busca de verdades, interpretação
ou restauração, ele nos mostra que:
É por isso que a obra de arte não se reduz a idéia: em primeiro lugar, porque é produção ou reprodução de um ser, isto é, de alguma coisa que nunca se deixa ser inteiramente pensada; em seguida, porque esse ser é totalmente impregnado por uma existência, isto é, por uma liberdade que decide quanto à própria sorte e valor do pensamento. (SARTRE, 1999, p.88)
Então, pensar a arte é conflitar-se com seu mundo interior e elaborar sua
própria visão. Se a arte é revelação, ela é o meu estereotipo que demarcará a
sociedade e o pensamento a partir do meu ponto de vista, da minha necessidade.
Se a burguesia precisava alavancar seus ideais, utilizava-se da arte para eleger a
supremacia. Dessa maneira, Saramago trava a batalha da natureza humana contra
a natureza humana, escreve com intenção de criar um mundo revelador e ao mesmo
tempo o estereótipo do egoísmo, capitalismo exagerado, da falta de cumplicidade e
traição, então a arte aqui seria reveladora, reflexiva e comunicativa. O escritor
comprometido possui como papel principal direcionar o leitor para a crítica sobre a
crítica, ele descreve o cenário e vai conduzindo a sua opinião a partir da opinião do
leitor. A sociedade recebe o escritor a partir de suas condições de absorção, ela
nem sempre consegue redirecionar o assunto proposto da maneira que ele devia
ser, mas se pensarmos melhor, a literatura foi e ainda é demarcada pelas classes
dominantes que controlam e alienam seus controlados, ora, o escritor é um
facilitador das portas da corrupção, sendo ele o mediador das palavras, se existem
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alguns que fogem a esse mérito, sim, mas são caçados e às vezes só reconhecidos
após a morte. Então, escrever para um público em tom de liberdade é desprender-se
da coluna da elite dominante. É ter a capacidade de escrever para um público
realmente libertado, como falou Sartre, mas para que isso aconteça é necessário
que o público aceite e condicione suas idéias.
Saramago, em seu romance, descreve as mazelas do mundo por meio de
uma praga, uma doença: “mal branco”, que aterroriza a sociedade e faz uma
higienização da sociedade corrompida, ele escreveu com intenções, algumas
escondidas por meio de metáforas, ele escreveu suas intenções, como diz Sartre:
“Sua finalidade é apelar à liberdade dos homens para que realizem e mantenham o
reino da liberdade humana” (SARTRE, 1999, p.120). Ele escreveu para aqueles que
podiam receber seus escritos, aqueles que terão capacidades de refletir seus
pensamentos, que tenham a liberdade no sentido amplo da liberdade, desde andar,
falar, pensar, refletir e modificar sua realidade.
Saramago estabelece um diálogo com seu leitor por meio da escrita, promove
uma interpretação e compreensão mundana, aquece os leitores mais inflamados,
invadidos pelo senso crítico e fazem das letras um desabafo. Aos leitores menos
inflamados, promove uma idéia de transformação abrindo caminhos para que
possam preencher o seu espaço social como críticos. Faz ao leitor uma promoção
de liberdade, deixa o leitor refletir e analisar sua condição enquanto social, pois, a
literatura para ser ferramenta social precisa que o leitor a utilize, crie e recrie,
interpretando e compreendendo o que foi dito pelo escritor, dessa maneira, o escritor
Antonio Candido em sua obra Literatura e Sociedade, diz:
A literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito.(CANDIDO, 2002, p.74)
Então, pensar a literatura como um “sistema vivo”, dito por Antonio Candido é
pensar a literatura como ferramenta social e engajada, e é necessário que o leitor
faça da leitura um instrumento contínuo na sua vida, pois, se as obras literárias não
forem lidas, pensadas, criticadas, serão apenas páginas vazias, o escritor tornar-se-
ia um anônimo no mundo, estático, petrificado, inútil, somados a tantos outros na
sociedade, e para que o escritor conheça o público e a si mesmo, há necessidade
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de ser “usado” pelos leitores, e esse usado, fez com que Saramago escrevesse
cada linha de sua obra em análise, então, a troca de favores, a comunicação entre
escritor, obra e leitor, faz-se necessária, como dito por Antonio Candido:
Se a obra é mediadora entre o autor e o público, este é mediador entre o autor e a obra, na medida em que o autor só adquire plena consciência da obra quando ela lhe é mostrada através da reação de terceiros. Isto quer dizer que o público é a condição do autor conhecer a si próprio, pois esta revelação da obra é sua revelação. Sem o público, não haveria ponto de referência para o autor, cujo esforço se perderia caso não lhe correspondesse uma resposta, que é a definição dele próprio. (CANDIDO, 2002, pp.75.76)
Essa dependência do escritor pelo público, a necessidade de se ver refletir
quando promove o pensamento, opiniões coletivas, torna-se visível e faz desse
escritor socialmente engajado, um ser comprometido com seu público. Dessa
maneira, Saramago articulou suas palavras em sua obra como seu reflexo, suas
manifestações a cerca do mundo. Ele passou a ser um homem visível e criticado por
tantos, então, ele passou a ser socialmente interpretado, consequentemente lido.
Quanto mais nos aprofundamos na obra de Saramago percebemos que não
há limites para degradação humana; mesmo cegos, confinados como animais e
loucos, um grupo de cegos denominados pelo escritor de “cegos malvados” tira
vantagem na distribuição de alimentos, eles impedem que outros cegos tragam o
alimento, esse impedimento é fruto da corrupção, assim a notícia de que “ a partir de
hoje quem quiser comer terá que pagar” (SARAMAGO, 2009, p.138), mostra a
busca pelo lucro e vantagens. Ora, seria uma pretensão dizermos que eles esperam
a cura de bolsos cheios, ou seria um reflexo da sociedade corrompida pelo
capitalismo exagerado, onde a pessoa mesmo em situação de degradação não
esquece o moldes da sociedade vantajosa. Dessa maneira, Saramago mostra que o
homem é o animal mais perigoso, e sua falta de viver em comunidade provoca
destruições, assim, vários cegos voltaram frustrados pela sua busca ineficaz por
alimento. Mas, o terror instalado no manicômio não parece ter fim, agora os cegos
malvados não querem somente coisas materiais, mais a dignidade, e como animais
obrigam as mulheres a manter relações sexuais por comida, a humilhação,
dignidade, vergonha, desprezo, é trajado de fome e miséria, e esse ritual sexual
promovido por Saramago na obra, mostra a condição a que é capaz de chegar o
homem, uns buscam o prazer sexual e outros a necessidade de se alimentar, assim
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ele mostra o terror: ”Já aí vêm. De dentro saíram gritos, relinchos, risadas...
Depressa meninas, entrem,entrem, estamos todos aqui como uns cavalos, vão levar
o papo cheio, dizia um deles. Os cegos rodearam-nas, tentavam apalpá-las”
(SARAMAGO, 2009, p.175). E a humilhação toma conta das mulheres, que passam
a ser instrumento sexual e ferramenta de trabalho. Elas usam seus corpos para
alimentar seus maridos. Essa passagem nos remete a uma visão da mulher de hoje,
que sofre consequências da sociedade machista, onde elas são humilhadas,
estupradas, violentadas, tanto sexual quanto moralmente. Essa passagem, esse rito
sexual na obra é para desmascarar o homem que diz ser moderno e continua com
moldes da antiguidade, a mulher tratada como escrava em todos os sentidos. Essa
narração é bem detalhada pelo autor nessa passagem:
Há que dizer, ainda, que duplamente estão estas mulheres folgando, assim são os mistérios da alma humana, pois a ameaça, de todos os modo próxima, da humilhação a que irão ser sujeitas, acordou e axacerbou, dentro da camarata apetite sexuais que a continuação da convivência debilitado, era como se os homens estivessem pondo nas mulheres desesperadamente a sua marca antes que lhas levassem, era como se as mulheres quisessem encher a memória de sensações experimentadas voluntariamente para melhor se poderem defender da agressão daquelas que, podendo ser, recusariam.(SARAMAGO, 2009, p.169).
Essa passagem mostra todo ritual de auto-culpa infligida à mulher, ela é
servida pelos maridos aos cegos malvados e ainda são culpadas por tais
experiências. Essa crítica a relação humana, irracionalidade e à perversão humana
mostrada por Saramago nessas passagens fazem com que entendamos o motivo da
epidemia instalada na sociedade. Pois, a tolerância, a opressão, medo, também são
sintomas da cegueira, como evidencia essa passagem; “já éramos cegos no
momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos.
(SARAMAGO, 2009, p.131). Então, cabe o leitor ser o modificador de tal medo. Pois,
na obra de Saramago o medo domina todos, faz deles pessoas incapazes de
reações, dominadas pelo comodismo e frustrações, típicas da sociedade moderna,
incapazes de controlar suas emoções e que se entregam facilmente. Mas Saramago
na obra não deixa escapar a punição aos cegos malvados e utilizam a mulher do
médico e a mulher do isqueiro como ferramentas de punição. A mulher do médico
armada de uma tesoura e a capacidade de ver redimirá toda culpa por não ter
impedido a violência sexual, ela se sente obrigada a resgatar a dignidade das
mulheres e das pessoas aprisionadas, dessa maneira ataca o líder do grupo dos
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cegos malvados e corta garganta do homem, como um golpe de remição. Embora
chocante é necessária que mostremos, assim;” fez descer violentamente o braço. A
tesoura enterrou-se com toda a força na garganta do cego, girando sobre si mesma
lutou contra as cartilagens e os tecidos membranosos, depois furiosamente
continuou até ser detida pelas vértebras cervicais. (SARAMAGO, 2009, p.185).
Dessa maneira, a mulher do médico salva seus companheiros das garras dos
malvados. A mulher do isqueiro armada de seu isqueiro colocará fogo na barricada
de camas, posta pelos cegos como uma proteção, ela matará todos os cegos
malvados, fará uma barreira de fogo impedindo que eles saiam, mas nessa luta ela
irá se sacrificar, se percebermos melhor, as duas mulheres são utilizadas por
Saramago como uma esperança de que as pessoas ainda possuem caráter e a
capacidade de curar-se das mazelas do mundo. Uma possui a visão, a outra a
coragem.
Na obra ensaio sobre a cegueira, Saramago não utiliza os nomes das
pessoas, suas referências são feitas pela profissão, estado físico, ações, seu lugar
social, o autor não vê a necessidade de nomear as pessoas porque são como
animais, que se conhecem pelo toque, pelo cheiro, a impessoalidade, a falta de
enxergar o outro é fortemente criticada e mostrada para o leitor através do texto. Ele
narra que;
Tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembramos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir- nos os nomes, nenhum cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo- nos pelo ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse, eu ainda vejo, mas até quando.(SARAMAGO, 2009, p.64)
A omissão da identidade na obra mostra ao leitor os rumos que Saramago
tomou no texto, ele deixa claro que os cegos não precisam de um nome porque é
necessário que eles se descubram, tanto a si mesmo como o outro. A falta de
identificação são traços da cegueira, se pensarmos no mundo moderno, deixamos
de conhecer nossos vizinhos pelo nome, às vezes conhecemos por características
físicas, ou desconhecemos totalmente a sua existência. Saramago promove uma
reflexão ao leitor, e a impessoalidade é mais uma metáfora, mais um motivo que
leva à cegueira.
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Mas, para que essa mudança ocorra, foi necessária a realização desse
ensaio. Esse tipo de mudança, -leitura que Saramago propõe- é uma imposição as
mazelas do mundo corrompido. Ora, somos doutrinados a seguir ordens, de forma
arbitrária e, cruelmente penalizados no descumprimento de tal, nossos valores são
concebidos de acordo com a hierarquia, status social, onde tem voz os mais
capacitados, tanto política, quanto social. Assim, Saramago utiliza de sua arma, a
escrita, para fazer um reflexo da sociedade em seu ensaio, ele abre as portas para a
massa discutir e modificar-se diante dos fatos. Ao mostrar, em sua obra, que o
primeiro movimento do governo foi a imposição, o descrédito ao médico cego, um
cego em desespero, ao primeiro sinal de problemas, bastou o murmúrio do
moribundo: “É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade
de ruindade.” (SARAMAGO, 2009, p.40). Mas, a indiferença é maior quando o
governo em tom de alerta, manda os infectados para o manicômio, medida de
urgência: isolar a praga antes que atinja a massa; ação autoritária política; descaso
social, pois, o exército que cuidará dos isolados, isolados de tudo e todos, são
loucos jogados a própria sorte, e com obrigações de seguir regras, uma profunda
tortura aos isolados, ordens que provocam o leitor a uma reflexão da condição dos
cegos:
Primeiro, as luzes manter-se-ão sempre acesas, será inútil qualquer
tentativa de manipular os interruptores, não funcionam, segundo, abandonar o edifício sem autorização significará morte imediata, terceiro, em cada camarata existe um telefone que só poderá ser utilizado para requisitar ao exterior a reposição de produtos de higiene e limpeza... décimo quinto, essa comunicação será repetida todos os dias, a esta
mesma hora.(SARAMAGO, 2009, p.50)
E cabe ao autor expressar a situação através da voz do médico: “Estamos
isolados, mais isolados do que provavelmente já alguém esteve, e sem esperança
de que possamos sair daqui antes que se descubra o remédio para a doença”
(SARAMAGO, 2009, p.51). Essa imposição é falta da visão, visão social e humana.
Então, a escrita engajada, ou melhor, comprometida ou compromissada, como diz
Victor Manuel, possui o dever com o público em geral e não com a massa
hierarquizada. O referido autor diz que a escrita comprometida é “a defesa a
determinados valores morais, políticos e sociais nasce de uma decisão livre do
autor.” (AGUIAR E SILVA, 1973, p.127). Então, para que a escrita, e a literatura
tenham esse compromisso, há a necessidade de buscar o leitor para o seu contexto,
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criar um universo onde esse leitor possa modificar seu meio, a literatura como diz
Victor Manuel: “É o veículo de evasão, mas pode também constituir importante
instrumento de crítica social.“ (AGUIARE SILVA, 1973, p.139). E é esse tipo de
finalidade associada à literatura que Saramago utilizou para criticar a sociedade,
desde o governo até o ladrão de carros, destruindo os limites impostos pela própria
sociedade. Ele mostrou, através do primeiro cego, como a realidade mudou a sua
volta, antes ele via o semáforo a sua frente, agora: “É como se estivesse no meio de
um nevoeiro, é como se estivesse caído num mar de leite.” (SARAMAGO, 2009,
p.13). Se podemos ver, por que não começamos a reparar os outros.
Victor Manuel em sua obra, Teoria da Literatura, faz críticas as ideologias
sartriana, o referido autor mostra que Sartre trabalha os gêneros: prosa e poesia de
formas distintas. A poesia é colocada como texto lírico, figurativo: remete a imagens,
coisas. Necessitando que o leitor transforme essas imagens, pensamentos, em
linguagem, com menos caráter significativo, ou melhor, com menos caráter
desvelador da realidade do leitor, onde, promova uma reflexão político-social. Esse
gênero não possui papel modificador social, na visão de Sartre, essa função é
característica do gênero prosa, - ela será modificadora -, e é essa linguagem que o
escritor deve buscar, para que possa atingir a sociedade, fazer um texto
comprometido. Dessa maneira, Victor Manuel, critica a visão sartriana, pois, tanto a
prosa como a poesia, possuem papéis importantes no texto, o autor diz que os dois
gêneros possuem características significativas, e influenciam diretamente e
indiretamente na vida e ação do homem, ambos os gêneros possuem vozes nos
textos, e são capazes de promover elementos transgressores, que extravasam as
linhas e entrelinhas das obras.
Dentro dessa crítica, tomaremos como exemplo a obra de Saramago em
estudo, Ensaio sobre a cegueira, carregada de metáforas, poesia, um texto prosaico,
pleno de lirismo, que possui papel social. Veremos que a visão de Sartre ao gênero
poético seja limitada, pois, descartar dos poemas seus efeitos significativos, seus
significados, excluir do poeta e do leitor a capacidade de interação, através da
literatura, é o mesmo que dizer, na visão de Victor Manuel que o texto poético:
“Possui um significado e a palavra encerra sempre uma carga significativa.”
(AGUIARE SILVA, 1973, p.124). Dessa maneira: “Aparece como inaceitável a
asserção sartriana de que a poesia não pode comprometer-se, revelando e
modificando uma situação.” (AGUIARE SILVA, 1973, p.124). Sendo assim, nosso
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trabalho crítico e social, fruto dessa linguagem lírica, ou melhor, como diz Leila
Perrone: “um discurso crítico-inventivo no qual se fundem as características do
discurso crítico e discurso poético, até este momento consideradas como
inconciliáveis, a não ser num nível puramente estilístico.“(MOISÉS,1993, p.12).
Victor Manuel também critica a distinção feita por Sartre, ao dizer que a
literatura só possui papel social e modificador enquanto participante do seu meio. A
literatura não é universal, você escreve para uma determinada época, para um
determinado público, para uma determinada cultura, incapaz de ultrapassar
décadas, seria então, “suicídio da arte“, pois, equivale a desconhecer que o leitor,
através da cultura, pode reconstituir os contextos necessários para a interpretação
da obra e pode ler e compreender. “(AGUIARE SILVA, 1973, p.127). Isso reflete em
qualquer contexto crítico, Saramago escreveu sua obra em 1985, para um público
diferente do atual, mas isso não impede o entendimento ou novas interpretações, e
sua escrita servirá para futuras gerações.
O apelo saramaguiano mostra que o homem em busca de suas
necessidades, deixa de lado seu lado afetivo e princípios morais para saciar suas
vontades, são animais que se desprendem de vínculos para sobreviver no mundo. O
autor narra a cena, onde, cegos famintos, deixam de lado princípios como: união,
dever, solidariedade. Pois, havia morrido vários cegos assassinados, colegas de
manicômio, que desfrutavam do mesmo ambiente, das mesmas emoções, sepultá-
los, seria uma obrigação. Então, essa falta de humanismo, misturada com o
egoísmo e a necessidade de se alimentar, explica a cena: ”ninguém parecia
interessado em saber quem tinha morrido” (SARAMAGO, 2009, p.92). Os mortos
que esperem, pois a indiferença é superada quando os que estão, permanecem de
estômago vazio. E esse comodismo faz dos cegos mais cegos, e no mundo
sintomático da cegueira, o comodismo se enquadra no sintoma da epidemia. Dessa
maneira, é pertinente a colocação de Victor Manuel, de que na obra de arte o ponto
de ebulição, o centro dos estudos da linguagem pressupõem uma pluralidade de
funções, cada obra utilizará da melhor maneira sua função, seja ela funções da
literatura: catártica, estética, cognitiva e político-social(engajada); seja ela funções
gramaticais, figuras de linguagem: apelativa, emotiva, metafórica, irônica, etc. Para
não perdermos o foco do leitor, seu direcionamento, a motivação da leitura, é
necessário entendermos a motivação que levou Saramago a conceber seu texto
desprovido de certas pontuações, maneira essa de prender a atenção do leitor,
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criando um cenário brutal, afastando a necessidade do leitor de procurar o ápice da
historia, pois, ela não existe nesse universo, ou melhor, todo o texto é um conjunto
de desenrolar da trama, do começo ao fim, então, faz-se desnecessário como
Barthes diz: “saltarmos impunemente(ninguém nos vê) as descrições, as
explicações, as considerações, as conversações.“(BARTHES, 2006, p.17). No corpo
do texto, esta perca certamente acarretará em uma má conclusão, orientação e
crítica à obra, e à impunidade serão construídas se repararmos a falta de sentido e
significado do texto. Por outro lado, o próprio Barthes fala que há dois tipos de
leitores, os que buscam a leitura na explicação do escritor, no corpo do texto, e os
que buscam a leitura nas entrelinhas, nas discussões, no jogo de linguagem. Uns
buscam a “extensão (lógica)”, as verdades, outros leitores buscam, a significância,
sentidos. Se repararmos o enredo de Ensaio sobre a cegueira, seremos leitores
minuciosos que buscam os significados, diferenças, descobertas e fruições.
Saramago utiliza-se do fantástico, faz uma desumanização do homem, o
reduz na cadeia biológica, o homem torna-se animal, uma irracionalidade proposital,
ele possuía capacidade mais não a utiliza, perde a sensibilidade moral e reconstrói a
necessidade física, necessitando apenas da condição do ambiente, para que tais
atitudes despertem. Vence o mais forte, o mais bravo, voraz, feroz, o diálogo é feito
com o corpo, os olhos são substituídos pelas mãos e narinas, é o reflexo da
condição subumana. Saramago narra várias cenas que ilustram esse
comportamento dos cegos. Na primeira cena vemos os cegos desconfiados, tensos,
arredios, como se não quisessem ser reconhecido pelo outros cegos, esticam os
pescoços para sentir qualquer atitude suspeita. Assim, eles: “via-os crispados,
tensos, de pescoços estendido como se farejassem algo.” (SARAMAGO, 2009,
p.49). Em outra cena, são tratados como um rebanho de bois, lançados no
manicômio através de gritos e ordens. Vão se tocando, debatendo, atropelando os
mais fracos, essa confusão é narrada pelo autor: ”Ouviam-se ruídos confusos no
átrio, eram os cegos trazidos em rebanho, que esbarravam uns aos outros.”
(SARAMAGO, 2009, p.72). Agora nesta cena, são homens brigando como animais
pela fêmea brigam para saber quem manterá a relação sexual primeiro, brigam pra
saber quem ficará com a caça, o autor mostra que: “se empurravam uns aos outros
como hienas em redor da carcaça.” (SARAMAGO, 2009, p.177). Esse espelho
deixado por Saramago faz referência a nossa condição, enquanto homens que
vemos, e esquecemos de observar. A falta de um sentido reflete a perda da moral,
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compreensão, ética. E esse comprometimento com a escrita engajada faz do
escritor crítico e realista. Saramago busca esse compromisso, para Leyla Perrone
em sua obra Texto, Crítica e Escritura:
O escritor, persistindo através de todas essas metamorfoses, continua seduzindo os que buscam, para além das questões referenciais, militantes ou metodológicas, o fundamental engajamento com a linguagem. (MOISÉS, 1993, p.111)
Essa linguagem social leva o leitor a refletir seus pensamentos. Ora, o
homem é tratado como subespécie, um animal que luta pela sobrevivência no
espetáculo da natureza, só que as personagens principais somos nós, Leyla Perrone
fala que: “O escritor é aquele que desloca, que se desloca, que a cada vez imposta
diferentemente a mesma voz.” (MOISÉS, 1993, p.111). Tal voz é passiva de erros,
de discordâncias. Mas, o escritor engajado escreve “a todos os homens“, esses
transformam a leitura em modificador de espaço, partindo dele para o outro, e se
atentarmos para a escrita de Saramago, perceberemos esse escritor transbordando
de emoções, usando seu ensaio como uma transcontextualização significativa, de
símbolos, metáforas, signos, e que essa resignificação, seja feita pelos leitores
atentos. Ora, escritor comprometido tem o dever de alimentar as idéias, motivações
dos leitores, essa é a responsabilidade do escritor engajado, Sartre diz em sua obra
“Que é a literatura”, que:
... Podemos concluir que o escritor decidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade... a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele.(SARTRE, 1993, p.21).
Saramago partiu desse princípio, compartilhou todo terror com seus leitores,
descreveu a sociedade de sua obra, para o leitor não conseguir ignorá-la, e sim,
fazer parte dela.
Saramago em sua obra, além de promover a alegoria de terror, narrar a
destruição da cidade, a desumanização do homem, transformá-lo em animal, mostra
que ainda existe cura para a epidemia de cegueira. E essa cura para epidemia do
terror, está em uma personagem da obra, a mulher do médico. Pois, a mulher do
médico é a única que não cega, possui a capacidade de ver, em meio a tanta
destruição, é a válvula de escape da sociedade devastada, é a esperança de que o
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terror ainda possua um fim. Saramago, além de situar uma pessoa no texto que
possui a capacidade de ver, propositalmente colocou esse papel a uma personagem
feminina. Ora, é mais uma crítica, dessa vez, as ações preconceituosas da
sociedade modernista e machista. É a igualdade de papeis na sociedade. Saramago
fez da mulher, o ponto de partida para o recomeço, mostrou através da personagem,
que nossas ações são modificadoras da sociedade, é a mudança de atitude que
tratará as mazelas do mundo. A mulher do médico, para Saramago, possui as
características necessárias para a sociedade torna-se imune à cegueira, e essa
imunização depende de nossas atitudes, mas, a compreensão para tal, acarretou
todo esse reflexo de terror contido na obra.
Saramago utiliza a personagem, a mulher do médico, como seus olhos na
narrativa. É ela que conduzirá todos em meio à opressão e intolerância. Em uma
cena da obra, onde a mulher do médico, em ato repentino, diz estar cega para
acompanhar o marido na ambulância, que leva todos os cegos para ficarem de
quarentena em um manicômio. O autor narra a seguinte passagem:
Finalmente subiu e sentou-se ao lado do marido. O condutor da ambulância protestou do banco da frente, Só posso levá-lo a ele, são as ordens que tenho, a senhora saia. A mulher, calmamente, respondeu. Tem de me levar também a mim, ceguei agora mesmo. (SARAMAGO, 2009, p.44)
Essa ação, esse ato, mostra como a mulher determinada e convicta de seu
dever, sacrifica sua liberdade, para poder cuidar de seu marido, pois, ela é esposa,
amiga, companheira e mulher. Essa pureza e determinação são várias vezes
castigadas pelo narrador. Ora, a personagem é testemunha da barbárie e
degradação humana, suportar essa carga, ter os olhos para enxergar a sociedade
em pleno conflito existencial, provoca temores e medo de não conseguir conduzir os
que não vêem. Esse momento de medo é narrado por Saramago, quando o
manicômio em pleno caos, incêndio, e os cegos lutando pela sobrevivência,
conseguem fugir do lugar, conseguem fugir para tão sonhada liberdade, mas, a
mulher do médico, a única a ter a visão, vislumbra a seguinte cena narrada:” As ruas
estão desertas, por ser ainda cedo, ou por causa da chuva, que cai cada vez mais
forte. Há lixo por toda parte a parte. ”(SARAMAGO, 2009, p.214).”... não há água,
não há eletricidade, não há abastecimento de nenhuma espécie, encontramo-nos no
caos, o caos autêntico deve de ser isto... ”(SARAMAGO, 2009, p.244). Mas, o
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comodismo várias vezes contestado pelo autor, como sintoma da cegueira, é
deixado para os fracos, e a mulher tomada pelo espírito de liderança conduz os
cegos pelas ruas da cidade, como diz o autor: ”Agarrando-se uns aos outros, depois
dispuseram-se em fila, à frente a dos olhos que vêem, logo os que tendo olhos e não
vêem.” (SARAMAGO, 2009, p.214). Se a mulher age, faz as coisas acontecer, lidera
e conduz o grupo, sendo ela a dona da visão, com certeza sua punição, castigo, é
vivenciar vendo a destruição, pois, ela é escrava, coloca-se em igualdade com os
outros cegos, age em meio o caos, cede sua casa, os alimenta, sentindo-se
cansada, mas convicta e determinada. Mas, quando, em meio à gritaria e alegria, o
primeiro cego a cegar, diz: ”-vejo, vejo!”, os cegos, voltaram a enxergar, o mundo
voltará a enxergar. A mulher do médico fica abatida pela solidão e cansaço,
enquanto todos comemoram, é como se sua missão estivesse cumprida, e que
agora ela iria cegar, como os outros, Saramago narra a seguinte cena:
A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, chegou minha vez pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava. (SARAMAGO, 2009, p.310).
Mas, não passa de uma ilusão, ela ainda estava ali, vendo, para presenciar o
recomeço.
Abstract: The goal of this study is the necessity to understand metaphors criticism contained in the work of José Saramago, Essay on blindness, that narratis na epidemic of White blindness, constituting the allegory created to invite the reader to rethink the world that lives. The dehumanization process, the stereotype of society depicts na author revolted with the attitudes of contemporany man. It Will use as bibliografic references: Jean-Paul Sartre, Leyla perrone-Moisés, Antonio Candido, the work essay on blindness, and others. Therefore, Saramago in his text, showed to the man, that is necessary to see the other, to respect the social differences, to respect the woman, to respect the world. And that this change should start now, before the blindness become irreversible and the walk, illuminated by lack of vision.
Key-words: Saramago. Blindness. Metaphors. Engaged. Public.
REFERÊNCIAS
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura?. 3. ed. São Paulo: Ática, 1999.
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TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. BARTHES, Roland. O prazer do texto. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e historia literária. 8. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000. MOISÉS, Leyla Perrone. Texto, crítica, escritura. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993. SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e.Teoria da literatura. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1973. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das letras, 2009.