Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

50
OLAVO DE CARVALHO Artigos publicados no Jornal da Tarde 1998

description

Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Transcript of Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Page 1: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

OLAVO DE CARVALHO

Artigos publicados no

Jornal da Tarde

1998

Page 2: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Duas notas de ano-novo

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 8 de janeiro de 1998

Quando um dia se escrever a história das nossas dívidas intelectuais, um capítulo bem extenso será dedicado

ao filósofo Romano Galeffi, nascido em Montevarchi, Itália, em 17 de novembro de 1915 e morto em

Salvador (BA) no primeiro dia deste ano-novo.

Entre outras coisas que fez por nós desde que se instalou neste país em 1949, ele criou a disciplina de crítica

de arte nas nossas universidades, primeiro passo para o reconhecimento da profissão. Quando depois se

fundou uma Associação Brasileira de Críticos de Arte e ele tentou se inscrever como sócio, seu registro foi

recusado por anos a fio: oficialmente, Galeffi só se tornou "crítico de arte" um ano e meio antes de morrer.

Membro do Instituto Brasileiro de Filosofia, catedrático de Estética da Universidade Federal da Bahia,

Galeffi muitas vezes representou o Brasil em congressos internacionais, com trabalhos que revelavam a

contínua floração criadora de seu pensamento, não abatida nem mesmo pelas doenças graves que

atormentaram seus últimos anos. Foi escritor forte, eloqüente, traduzindo em português deliciosamente

italianado, mas perfeito, um pensamento que não raro se elevava ao mais genuíno arrebatamento espiritual.

Sua produção escrita, na qual se destaca a melhor obra sobre Kant já produzida neste país, foi sempre vítima

de revisores imbecis que trocavam "teleológico" por "teológico" e coisas do gênero, obrigando o autor a

corrigir exemplar por exemplar.

Galeffi estudou com os principais filósofos italianos do século: Benedetto Croce, Giovanni Gentile, Franco

Lombardi, Ugo Spirito. Tinha especial afeição a Croce, do qual foi discípulo, mas jamais repetidor passivo.

A filosofia de Croce, com efeito, esgota-se numa pura metodologia das "ciências do espírito", que ele

subdivide em Lógica, Estética, Ética e Econômica, conforme as quatro dimensões mutuamente irredutíveis

em que se projeta o espírito humano: o verdadeiro, o belo, o bem e o útil. Galeffi tornou-se um pensador

original ao dar o passo que seu mestre não quisera dar: argumentando que o espírito não podia ser apenas a

soma de suas partes, concluía que a quaternidade croceana deixara subentendida uma quinta dimensão, a

dimensão do espírito propriamente dito, a dimensão da unidade. Com isto, a metodologia croceana adquiria

uma profundidade metafísica ante a qual o próprio Croce havia recuado, temeroso de sair do círculo do

cultural e do histórico, que constituía o extremo limite do seu pensamento.

Casado com uma cultíssima filóloga, Galeffi foi ainda o fundador de uma família de batalhadores culturais,

sem cuja atividade incansável o intercâmbio cultural Brasil- Itália não teria sido o que foi. Os Galeffi sempre

fizeram de sua casa o ponto de conexão quase obrigatório pelo qual entravam no Brasil professores,

escritores, artistas que traziam a este país o aporte vitamínico de uma das mais poderosas culturas do mundo.

A dra. Gina Galeffi, por sua vez, muito sacrificou de sua carreira científica para se dedicar aos pobres e

desabrigados da cidade de Salvador, desde uma época em que a caridade não era "politicamente correta" e

só trazia a seu praticante o desprezo dos pseudo-intelectuais de narizinho empinado.

Não vou dizer que Romano Galeffi morreu satisfeito. Morreu amargurado, vendo o obscurecimento injusto

em que caíra seu trabalho e amaldiçoando a ingratidão mesquinha que cercava as obras sociais de sua

esposa.

Recebeu algumas homenagens, nada mais que justas, nos últimos anos. Mas nunca as duas únicas

homenagens que um homem de pensamento realmente deseja: a edição decente de suas obras, a discussão

séria de suas idéias.

Católico anticlerical - uma combinação bem italiana -, Galeffi acreditava firmemente na vida após a morte.

Muitos de nós também acreditam. Mas isto não é motivo para deixarmos para a eternidade a reparação de

Page 3: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

todas as injustiças. Há alguma coisa, modesta, mas decisiva, que podemos fazer aqui e agora: confessar que

não soubemos merecer Romano Galeffi.

* * *

O indefectível dr. Emir Sader já começou o ano informando a um estupefato mundo por que este país perdeu

a chance de se tornar uma coisa linda. É que em 1964 o imperialismo ianque tomou Brasília e está lá até

hoje, o malvado. Quando eu tinha 17 aninhos, os sujeitos que diziam essas coisas me pareciam muito

intelectuais. Meu sonho era ser um deles quando crescesse. Eu não percebia que a conditio sine qua non para

isso era, precisamente, não crescer. Pessoas como o dr. Sader permanecem infantis para poder projetar sobre

uma imagem paterna negativa todo o mal que carregam dentro de si.

O imperialismo ianque pode ter nos feito algum dano, porém qual o peso real dele na produção do nosso

destino histórico? Basta comparar esse destino com o de um país que se livrou dos gringos quase na mesma

época em que, segundo o dr. Sader, caíamos sob o domínio deles. Cuba não apenas ficou isenta da

exploração imperialista, mas ainda recebeu, durante 30 anos, uma ajuda anual soviética de US$ 6 bilhões; e

ganhou, em remédios e alimentos, mais US$ 400 milhões anuais enviados pelos exilados cubanos de Miami,

com o que se tornou a primeira ditadura do mundo a ser alimentada pela generosidade de suas próprias

vítimas. Com todas essas condições excepcionalmente favoráveis, conseguiu baixar, na escala dos PNBs da

América Latina, dos primeiros para os últimos lugares. Para chegar a esse brilhante resultado, o governo de

Fidel fuzilou pelo menos 9 mil pessoas e, tendo alcançado em certa época a taxa recorde de 100 mil

prisioneiros políticos, ainda tinha, no ano passado, pelo menos 1.173, segundo a ONU. Como se vê, nenhum

país necessita da ajuda do imperialismo ianque para fazer de si uma bela porcaria.

Page 4: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Desejo de matar

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 22 de janeiro de 1998

Amigos e leitores pedem-me uma opinião sobre o aborto. Mas, inclinado por natureza à economia de

esforço, meu cérebro se recusa a criar uma opinião sobre o quer que seja, exceto quando encontra um bom

motivo para fazê-lo. Diante de um problema qualquer, sua reação instintiva é apegar-se ferozmente ao

direito natural de não pensar no caso. Mas, ao argumentar em favor desse direito, ele acaba tendo de se

perguntar por que afinal existe o maldito problema. Assim, o que era uma tentativa de não pensar acaba por

se tornar uma investigação de fundamentos, isto é, o empreendimento mais filosófico que existe. Os futuros

autores de biografias depreciativas dirão, com razão, que me tornei filósofo por mera preguiça de pensar.

Mas, como a preguiça gradua os assuntos pela escala de atenção prioritária mínima, acabei por desenvolver

um agudo sentimento da diferença entre os problemas colocados pela fatalidade das coisas e os problemas

que só existem porque determinadas pessoas querem que existam.

Ora, o problema do aborto pertence, com toda a evidência, a esta última espécie. O questionamento do

aborto existe porque a prática do aborto existe, e não ao contrário. Que alguém decida em favor do aborto é

o pressuposto da existência do debate sobre o aborto. Mas o que é pressuposto de um debate não pode, ao

mesmo tempo, ser a sua conclusão lógica. A opção pelo aborto, sendo prévia a toda discussão, é inacessível

a argumentos. O abortista é abortista por decisão livre, que prescinde de razões. Essa liberdade afirma-se

diretamente pelo ato que a realiza e, multiplicado por milhões, se torna liberdade genericamente reconhecida

e consolidada num "direito". Daí que o discurso em favor do aborto evite a problemática moral e se apegue

ao terreno jurídico e político: ele não quer tanto afirmar um valor, mas estatuir um direito (que pode, em

tese, coexistir com a condenação moral do ato).

Quanto ao conteúdo do debate, os adversários do aborto alegam que o feto é um ser humano, que matá-lo é

crime de homicídio. Os partidários alegam que o feto é apenas um pedaço de carne, uma parte do corpo da

mãe, que deve ter o direito de extirpá-lo à vontade. No presente score da disputa, nenhum dos lados

conseguiu ainda persuadir o outro. Nem é razoável esperar que o consiga, pois, não havendo na presente

civilização o menor consenso quanto ao que é ou não é a natureza humana, não existem premissas comuns

que possam fundamentar um desempate.

Mas o empate mesmo acaba por transfigurar toda a discussão: diante dele, passamos de uma disputa ético-

metafísica, insolúvel nas presentes condições da cultura ocidental, a uma simples equação matemática cuja

resolução deve, em princípio, ser idêntica e igualmente probante para todos os seres capazes de compreendê-

la. Essa equação formula-se assim: se há 50% de probabilidades de que o feto seja humano e 50% de

probabilidades de que não o seja, apostar nesta última hipótese é, literalmente, optar por um ato que tem

50% de probabilidades de ser um homicídio.

Com isso, a questão toda se esclarece mais do que poderia exigi-lo o mais refratário dos cérebros. Não

havendo certeza absoluta da inumanidade do feto, extirpá-lo pressupõe uma decisão moral (ou imoral)

tomada no escuro. Podemos preservar a vida dessa criatura e descobrir mais tarde que empenhamos em vão

nossos altos sentimentos éticos em defesa do que não passava, no fim das contas, de mera coisa. Mas

podemos também decidir extirpar a coisa, correndo o risco de descobrir, tarde demais, que era um ser

humano. Entre a precaução e a aposta temerária, cabe escolher? Qual de nós, armado de um revólver, se

acreditaria moralmente autorizado a dispará-lo, se soubesse que tem 50% de chances de acertar numa

criatura inocente? Dito de outro modo: apostar na inumanidade do feto é jogar na cara-ou-coroa a

sobrevivência ou morte de um possível ser humano.

Chegados a esse ponto do raciocínio, todos os argumentos pró-aborto tornaram-se argumentos contra. Pois

aí saímos do terreno do indecidível e deparamos com um consenso mundial firmemente estabelecido:

Page 5: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

nenhuma vantagem defensável ou indefensável, nenhum benefício real ou hipotético para terceiros pode

justificar que a vida de um ser humano seja arriscada numa aposta.

Mas, como vimos, a opção pró-aborto é prévia a toda discussão, sendo este o motivo pelo qual o abortista

ressente e denuncia como "violência repressiva" toda argumentação contrária. A decisão pró-aborto, sendo a

pré-condição da existência do debate, não poderia buscar no debate senão a legitimação ex post facto de algo

que já estava decidido irreversivelmente com debate ou sem debate. O abortista não poderia ceder nem

mesmo ante provas cabais da humanidade do feto, quanto mais ante meras avaliações de um risco moral. Ele

simplesmente deseja correr o risco, mesmo com chances de zero por cento. Ele quer porque quer. Para ele, a

morte dos fetos indesejados é uma questão de honra: trata-se de demonstrar, mediante atos e não mediante

argumentos, uma liberdade autofundante que prescinde de razões, um orgulho nietzschiano para o qual a

menor objeção é constrangimento intolerável.

Creio descobrir, aí, a razão pela qual meu cérebro se recusava obstinadamente a pensar no assunto. Ele

pressentia a inocuidade de todo argumento ante a afirmação brutal e irracional da pura vontade de matar. É

claro que, em muitos abortistas, esta vontade permanece subconsciente, encoberta por um véu de

racionalizações humanitárias, que o apoio da mídia fortalece e a vociferação dos militantes corrobora. Porém

é claro também que não adianta nada argumentar com pessoas capazes de mentir tão tenazmente para si

próprias.

Page 6: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

O ovinho da serpente

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 5 de fevereiro de 1998

Nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Suécia, há organizações nazistas assumidas - militantes, ativas,

armadas. Nunca uma delas foi manchete nos principais jornais. David Duke, o líder nazista que quase foi

candidato à Presidência norte-americana, nunca saiu em corpo 120 na primeira página do New York Times ,

do Washington Post ou do Washington Times.

No Brasil não existe qualquer militância nazista, exceto nos hospícios. Este é um país onde até mesmo

clássicos da literatura acusados de simpatias nazistas estão expulsos do mercado livreiro há décadas sem que

ninguém dê pela falta deles. É um país onde, em suma, o nazismo é apenas a evanescente recordação de um

pesadelo distante, perdido nas brumas do passado. Pois bem: neste país, oito adolescentes que numa redação

escolar expressam uma vaga apreciação pela figura histórica de Adolf Hitler não apenas se tornam

manchete, mas suscitam uma onda nacional de advertências apocalípticas contra a ameaça nazista. Lida por

um observador desinformado, a reação da imprensa brasileira ao caso da Escola Militar de Porto Alegre

produz a inequívoca impressão de que hordas de camisas-pardas estariam em vias de marchar sobre o

Palácio do Planalto.

Mas, quando reações de pavor histérico ante o imaginário coexistem numa mesma alma com a tranqüilidade

olímpica ante um outro perigo, este real e iminente, então cabe perguntar: loucura ou método? A quase

totalidade dos porta- vozes do alarmismo antinazista constitui-se de jornalistas e intelectuais de esquerda que

vêem com calma simpatia a anunciada invasão de ministérios, bancos e edifícios privados pelos militantes

armados do MST. A estratégia maliciosa é mais que evidente. A esquerda mundial sempre buscou impingir

o socialismo como a única alternativa ao nazismo (como se este não fosse um socialismo!). A proposta

indecente - "ou eles ou nós" - brota quase automaticamente nos lábios esquerdistas sempre que surge um

perigo nazista no horizonte. A novidade que a esquerda brasileira acaba de introduzir nesse joguinho safado

consiste em elevá- lo ao supra-sumo da calhordice: não havendo perigo nazista para servir de arma de

chantagem, inventa-se um. Para tanto, infla-se até à demência, transformando-o em manchete nos grandes

diários das capitais, um episódio que mal daria assunto para uma crônica de seminário do interior. Cria-se a

notícia do nada, como Deus ao fazer o mundo.

O falecido Jean Mellé, virtuose do escândalo, fez o sucesso de Notícias Populares por esse método. Ao não

obter da Rede Record uma informação precisa sobre o hotel onde se hospedara o ídolo máximo da "Jovem

Guarda" em Nova York durante uma viagem de passeio, mandou estampar em oito colunas: "Roberto Carlos

sumiu!" As fãs, em lágrimas, fizeram fila nas bancas de jornais. Outro tanto conseguia o velho Chagas

Freitas em O Dia e A Notícia . Uma operária passara mal após comer um cachorro- quente? Manchete:

"Cachorro fez mal à moça." Trata-se de jogar com as palavras para mudar, seja o sentido, seja as proporções

dos acontecimentos.

A classe jornalística, que tanto se gaba de sua capacidade de autofiscalização, não dá o menor sinal de

perceber que, quando a grande imprensa adota os procedimentos de Jean Mellé, algo, de fato, apodreceu na

consciência dos profissionais. Se todos se recusam a sentir-lhe o cheiro, é sob o pretexto edificante de que os

altos objetivos políticos da operação transfiguraram miraculosamente a porcaria em sublime coisa. Todos

dão por pressuposto que a luta pelo poder seja mais digna de estima do que a luta pelo dinheiro. Em nome da

causa, torna-se lindo jogar pela janela os últimos escrúpulos de ética profissional.

E os protagonistas da farsa não são todos principiantes iludidos. Zuenir Ventura, numa dramática meia

página do Jornal do Brasil , quer nos persuadir de que enxerga no episódio de Porto Alegre um "ovo de

serpente". Teria Zuenir se equivocado? Teria perdido, num transe de embriaguez ideológica, todo o senso

das proporções? Não, uma velha raposa do jornalismo não toma tão ingenuamente por ovos de serpente ovos

de codorna. Não há equívoco: ao denunciar os meninos de Porto Alegre como culpados de "delinqüência

Page 7: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

mental" - notem bem o termo -, Zuenir deixa à mostra seu intuito de fazer do jornalismo uma "Polícia do

Pensamento", diretamente copiada do 1984 de George Orwell. E se essa ofídica entidade, ainda extra-oficial,

já reina soberana sobre boa parte da imprensa brasileira sem que ninguém tenha a ousadia de contestar suas

pretensões (o presente artigo jamais seria aceito num jornal do Rio), que não fará ela no Brasil socialista de

amanhã, quando seus serviços forem reconhecidos e premiados pelo Estado? A serpente de Porto Alegre,

além de estar ainda em estado de ovo, é um ovo hipotético e fingido, um ovo de papelão fabricado por uma

cerebração artificiosa. Mas esta outra de que estou falando já saiu da casca há muito tempo, está viva e passa

bem. Nem sempre está visível, mas todo mundo pode ouvi-la - sendo esta, precisamente, a sua

peculiaridade: toda as serpentes botam ovos, mas, quando uma delas começa a cacarejar, algo de muito

estranho está acontecendo. E se, para explicar o seu insólito procedimento, ela ainda nos diz que o motivo de

sua histeria galinácea está no pavor que lhe inspira a simples visão de um ovinho, então, meus filhos, é que

alguma ela está tramando.

Portanto, entre a hipótese da loucura e a do método, opto pelas duas. A exploração metódica de uma loucura

induzida com fins políticos é, em si mesma, loucura no mais alto grau. É a loucura fria, racional, dos

revolucionários dispostos a justificar os meios pelos fins, como se o emprego de certos meios, uma vez

tornado habitual, não passasse a determinar a natureza dos fins.

Page 8: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Esquerda inteligente

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 19 de fevereiro de 1998

Se a esquerda conquistou a hegemonia cultural neste país, não foi só por meio de truques sujos - ocupação

forçada de espaços na mídia, badalação mútua entre seus próceres, patrulhamento ideológico, etc. Foi

também por mérito. Na década de 60, quando começou a etapa decisiva da sua escalada, a esquerda pensante

estava na sua melhor forma. Uma corrente ideológica só se torna a expressão legítima do seu tempo quando

se mantém um pouco acima dele e consegue enxergar a linha do seu horizonte. Naquela época, a esquerda

tinha uma visão global, conseguia dar ao panorama do mundo a inteligibilidade de um sentido. Hoje ela

perdeu a unidade do sentido e o controle intelectual dos dados: não entende mais nada, não sabe onde está e

se agita no escuro como uma ratazana presa num bueiro. Sua única certeza é o ódio irracional que sente por

aquilo que não compreende. No empenho de preservar à força uma hegemonia que rapidamente vai se

tornando mero simulacro, ela atira para todos os lados, na esperança vã de que sua impotência teórica possa

ser compensada por uma retórica de insultos e de apelos moralísticos.

Nem tudo, porém, é baixeza e estupidez no templo do esquerdismo letrado. Alguns sinais de vida inteligente

e de nobreza de espírito ainda se notam ali, e o mais luminoso deles - justamente o mais desprezado pela

massa dos intelectuais militantes - é a obra de Roberto Mangabeira Unger. Ela é extensa demais para ser

analisada aqui, e por isto me limito a chamar a atenção para um de seus muitos méritos, no qual se manifesta

também a sua limitação intrínseca.

Em seu livro Conhecimento e Política , que, publicado em 1978 pela Forense, ainda não despertou a atenção

que merece, Unger faz a crítica das premissas psicológicas subentendidas nas teorias políticas que sustentam

o liberalismo capitalista. Tais premissas, segundo ele, implicam uma visão dualista que separa tragicamente

a razão e o sentimento, o público e o privado, as exigências da ordem social e as necessidades interiores do

homem.

Na desocultação dessas premissas psicológicas Unger mostra uma notável capacidade de apreender as

intenções fundamentais por trás de uma variedade imensa de idéias e acontecimentos. É muito séria,

também, a crítica que ele faz da mutilação espiritual que essas premissas impõem ao ser humano.

Mas ele passa a muitos metros do alvo ao supor que essa crítica se aplicará, por extensão e mutatis mutandis

, ao liberalismo como prática social. Nem por um momento ele parece suspeitar que a mesma prática pode

ser sustentada - e de fato o foi - a partir de premissas psicológicas inteiramente diversas e até opostas. Na

verdade, uma prática bem-sucedida nem sempre é prova da teoria que a legitima, podendo ser resultado de

causas supervenientes não previstas na teoria.

O sistema político inglês, por exemplo, não é um traslado plano e raso das idéias liberais, mas o resultado do

enxerto delas num tronco muito antigo, cuja seiva brota de tradições religiosas medievais às quais o

liberalismo, em teoria, era francamente hostil.

Do mesmo modo, o sistema norte-americano jamais refletiu o puro e incontaminado liberalismo da teoria,

mas, ao contrário, apenas o resultado de sua fusão com um legado religioso profundamente conservador e

tradicionalista, cujas premissas psicológicas são radicalmente opostas àquelas que Unger aponta como

características do liberalismo. Seria interessante que ele examinasse, por exemplo, o transcendentalismo de

Emerson ou a "ética da lealdade" de Josiah Royce, e se perguntasse como elementos tão estranhos ao

mencionado dualismo puderam se integrar tão utilmente na ideologia do capitalismo norte-americano.

Malgrado a profundidade do olhar que Mangabeira Unger lança sobre o subconsciente moral do capitalismo,

ele não escapa às limitações inerentes ao que chamarei razão progressista : a confusão entre ideal e futuro,

que, atribuindo a um futuro indeterminado - e portanto necessariamente sempre adiado - o prestígio e a

Page 9: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

autoridade do supratemporal, se arroga o direito de tudo julgar segundo uma norma tanto mais dogmática e

autofundamentada quanto mais mutável e deslizante.

É em grande parte com base no viés progressista, e não com plena isenção, que Unger empreende sua crítica

do liberalismo. Essa crítica é ideológica no sentido restritivo da palavra, isto é, ela amplia

desproporcionalmente certos aspectos de seu objeto e diminui outros, não em razão de simples ênfase

pedagógica ou figura de linguagem, mas com vistas a um resultado político.

O próprio liberalismo, como teoria e proposta de reforma política, nada mais foi que um momento do

perpétuo deslizamento progressista, momento "superado" quando novas críticas e novas propostas

fatalmente emergiram, para atribuir ao liberalismo as culpas que ele, por sua vez, atribuíra a seu antecessor

na série. A proposta de Mangabeira Unger é um momento posterior do mesmo processo, um novo adiamento

do ajuste de contas entre as idéias e suas conseqüências práticas.

Page 10: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

O pai da porcaria

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 5 de março de 1998

No dia 20 de dezembro de 1994, publiquei as seguintes afirmações num jornal carioca: "Artistas e

intelectuais são um dos mais ricos mercados consumidores de tóxicos e não desejam perder seus

fornecedores: quando defendem a descriminação dos tóxicos, advogam em causa própria. Mas não são

apenas consumidores: são propagandistas. Quem tem um pouco de memória há de lembrar que neste país a

moda das drogas, na década de 60, não começou nas classes baixas, mas nas universidades, nos grupos de

teatro, nos círculos de psicólogos, rodeada do prestígio de um vício elegante e iluminador."

O autor dessas linhas foi imediatamente diagnosticado como um caso de paranóia aguda e completa inépcia

sociológica. Cartas com imprecações e pedidos de cabeça choveram sobre a redação, todas assinadas por

pessoas ilustres.

Passados quatro anos, um documento da ONU, emitido na semana passada, confirma que o sujeitinho estava

com a razão, que a glamourização do vício é um formidável esteio publicitário do tráfico ilícito, que todo

combate à praga internacional das drogas estará condenado ao fracasso se não conseguir, antes de tudo,

persuadir aquelas lindas criaturas do pedantismo moderno, os intelectuais e artistas, a controlar o que sai de

suas amáveis boquinhas tão bem alimentadas.

Não anoto isso para registrar minha candidatura a profeta. Anoto-o para fazer constar que a intelectualidade,

uma classe estipendiada com o dinheiro do povo com o objetivo nominal de dizer ao povo o que se passa no

mundo, esqueceu maciçamente o seu dever e, quando um de seus membros decide cumpri-lo por vontade

própria, ela cai de pau no infeliz como se fosse um criminoso, um traidor, um adúltero, um malvado. Cada

vez mais ela se ocupa, em escala internacional, de ocultar as mais óbvias verdades sob um manto de

especulações insensatas e palavras alucinógenas. Ela tornou-se um perigo, talvez o principal obstáculo à

solução de todos os males maiores que afligem a espécie humana. Pois a intelectualidade é o olho do mundo,

e já dizia Jesus Cristo que, se o olho se corrompe, o corpo inteiro se arruína.

Paul Johnson demonstrou, num livro memorável ( Intellectuals , 1988), que o tipo moderno do intelectual,

cuja primeira encarnação ele localiza em Rousseau (poderia também ter dito Voltaire, ou Diderot), é

substancialmente um mentiroso contumaz, um perverso egocêntrico e imoral, incapaz de guiar-se a si

mesmo e metido, não obstante, a guiar a humanidade.

Num ensaio publicado em 1942, Otto Maria Carpeaux acreditava encontrar a causa da perversão intelectual

na decadência das universidades, reduzidas a escolas profissionais e cursinhos de ideologia: "Os iletrados

têm sempre razão, porque são muitos e ocupam um lugar de elite, esse 'proletariado intelectual'... Lêem os

livros e decidem sobre os sucessos de livraria, criticam os quadros e as exposições, aplaudem e vaiam no

teatro e nos concertos, dirigem as correntes das idéias políticas, e tudo isto com a autoridade que o grau

acadêmico lhes confere. Em suma, desempenham o papel de elite. São os nouveaux maitres, os señoritos

arrogantes, graduados e violentos; e nós sofremos as conseqüências, amargamente, cruelmente."

Tudo isso é verdade, mas não basta para explicar o fenômeno, que vem do século 18, é anterior à queda das

universidades. Esta é efeito, não causa. Faz parte do processo geral de laicização da vida intelectual, que, se

por um lado teve o mérito de aliviar a inteligência dos abusos da autoridade eclesiástica, o fez à custa de

liberar os intelectuais de toda obrigação moral, de lhes conferir, junto com uma saudável liberdade, uma

autoridade excessiva e sem limites. Pois o olho é a luz do corpo, mas tem um limite natural: a realidade que

o circunda. O abuso começa quando o olho, desistindo de enxergar, começa a inventar. E esta revolução não

começa com Voltaire ou Rousseau, mas com um homem que ninguém diria desonesto ou perverso. Começa

com Immanuel Kant. Foi ele o primeiro que, negando a nossa capacidade de conhecer a realidade como tal,

atribuiu ao mesmo tempo à inteligência humana o poder de inventar um mundo válido. Com isto ele

Page 11: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

substituiu involuntariamente, à legítima pretensão de conhecer, uma ambição ilimitada de poder. Diante da

porcaria intelectual moderna, está na hora de alguém bater à porta do ilibado Immanuel Kant e dizer aquelas

palavras fatídicas:

- Toma que o filho é teu.

Page 12: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Benedita e a lei maldita

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 19 de março de 1998

A mais recente iniciativa da senadora Benedita da Silva é a lei que garante a pessoas nominalmente "negras"

- mesmo com ancestralidade branca - uma cota de 40% em empregos, vagas universitárias, etc.

Essa lei, se aprovada, terá quatro conseqüências imediatas.

Primeira: os brasileiros, que agora vivem numa confortável mixórdia e indistinção de raças, serão divididos

em dois campos antagônicos: brancos e negros. Será proibido ficar no meio - exatamente onde hoje está a

maioria.

Segunda: 60% das referidas vagas estarão garantidas para os brancos.

Terceira: "branco" será somente o indivíduo de raça pura, sem uma gota de sangue negro; mas, ao contrário,

será negro quem quer que carregue essa gota no seu corpo, ainda que diluída por três séculos de

miscigenação. Ou seja: ficarão instituídos o purismo racial branco e a mentira genética negra.

Quarta: em toda disputa de oportunidades, a raça, que o ideal democrático manda ignorar, se tornará um

fator decisivo. Os casos duvidosos terão de ser arbitrados por testes genéticos, como na Alemanha nazista.

E, preenchidos os 40%, nada poderá forçar o empregador branco a aceitar um negro a mais - exceto, talvez,

a apresentação de um falso atestado de brancura.

A lei contém muitos outros absurdos, que analisarei depois. Por enquanto, bastam esses quatro para definir

um estado de conflito racial ostensivo. E, então, das duas uma: ou a senadora enxerga isso com clareza, e é

precisamente o que deseja para o Brasil, sendo neste caso culpada de racismo e de conspiração contra a

democracia, ou não enxerga nada e é apenas uma ignorante a dar palpites em assuntos que estão

formidavelmente acima da sua capacidade. Tertium non datur : não há terceira alternativa.

Não sendo inclinado a adivinhar más intenções no coração alheio, opto, decididamente, por esta última

alternativa.

Antigamente, a expressão "líder popular" designava o homem do povo que, por seu talento e personalidade,

se erguia acima da sorte comum de seus pares. Neles o povo reconhecia o melhor de si - uma imagem

daquilo que todos gostariam de ser. Seu sucesso era uma refutação viva do determinismo social, econômico

ou racial: a criatura excelente vencia o destino e afirmava a liberdade do espírito humano. Era o que se via

no falecido Esmeraldo Tarquínio, negro, de origem pobre, cultíssimo, herói de minha juventude, que chegou

a prefeito de Santos e deputado - sempre defendendo a raça, mas sem jamais alegá-la como credencial

política. É o que vejo, hoje, no escritor Ronaldo Alves, favelado de origem, que me dá a honra de ser meu

assistente na Faculdade da Cidade Editora. Subiram do nada - mas não subiram só socialmente.

A decadência geral da política criou um tipo caricatural de líder popular cujo sucesso não se deve às suas

qualidades, mas precisamente à falta delas. Vêm do povo, mas não se destacam dele senão pela posição que

ocupam, sem que a essa coordenada exterior corresponda nenhuma individualização qualitativa. Neles o

povo não reconhece o melhor de si, mas apenas a sua auto-imagem banal de todos os dias, a identidade rasa

e direta do irrelevante com o irrelevante. Ninguém quer ser como eles, porque todos já o são; querem apenas

ter o que eles têm, estar onde eles estão. São objeto de inveja, não de admiração. Votar neles não é prestar-

lhes homenagem: é lisonjear o próprio ego.

O exemplo dessas criaturas não é um reconforto para os pobres e oprimidos, mas para os medíocres e os

tolos, que, distribuídos por igual entre pobres e ricos, oprimidos e opressores, constituem uma poderosa

Page 13: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

facção do eleitorado. Daí que, ao contrário dos verdadeiros líderes populares, que são odiados pelas classes

altas, elas recebam, da parte dos poderosos - oficialmente seus inimigos ideológicos -, um tratamento

paternal e carinhoso. Um dos motivos da simpatia que os une é que entre os ricos predominam também os

que se tornaram ricos sem mérito.

Houve um tempo em que, para subir, o sujeito precisava apenas ser de "boa família". O prestígio, a

idealização mágica da origem social era tudo. E resgatava tudo: tolice, inépcia, preguiça, até mesmo

desonestidade. A disseminação do esquerdismo entre as classes elegantes fez com que o mesmo dom

transfigurante fosse atribuído à origem pobre. O pobre - palavra que certas pessoas não pronunciam sem o

tremolo característico - tem um não sei quê de especial, que o dispensa de valer pessoalmente alguma coisa.

Se além de pobre é negro, melhor ainda: não precisa ser nada, não precisa provar nada, porque veio ungido

pelo dom da graça mercadológica. E as eleições o confirmam: elege-se porque nasceu eleito. Não posso

deixar de ver na senadora Benedita da Silva um exemplar típico dessa nova espécie de líderes. E a prova

mais contundente de que subiram por mérito extrínseco é que, por mais que subam, por mais poder que

acumulem, conservam sempre o direito do pobre e do desamparado a um tratamento caridoso e protetor.

Não faltará quem, diante das palavras duras que aqui digo à sra. Benedita da Silva, se enterneça de dó da

senadora, criticada em público como se fosse gente grande. Só rezo para que essa piedade deslocada e kitsch

não leve o Senado inteiro a aprovar, entre lágrimas de desvelo paternal para com a coitadinha da autora, a

maldita lei da Benedita.

Page 14: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

O imbecil juvenil

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 3 de abril de 1998

Já acreditei em muitas mentiras, mas há uma à qual sempre fui imune: aquela que celebra a juventude como

uma época de rebeldia, de independência, de amor à liberdade. Não dei crédito a essa patacoada nem mesmo

quando, jovem eu próprio, ela me lisonjeava. Bem ao contrário, desde cedo me impressionaram muito

fundo, na conduta de meus companheiros de geração, o espírito de rebanho, o temor do isolamento, a

subserviência à voz corrente, a ânsia de sentir-se iguais e aceitos pela maioria cínica e autoritária, a

disposição de tudo ceder, de tudo prostituir em troca de uma vaguinha de neófito no grupo dos sujeitos

bacanas.

O jovem, é verdade, rebela-se muitas vezes contra pais e professores, mas é porque sabe que no fundo estão

do seu lado e jamais revidarão suas agressões com força total. A luta contra os pais é um teatrinho, um jogo

de cartas marcadas no qual um dos contendores luta para vencer e o outro para ajudá-lo a vencer.

Muito diferente é a situação do jovem ante os da sua geração, que não têm para com ele as complacências do

paternalismo. Longe de protegê-lo, essa massa barulhenta e cínica recebe o novato com desprezo e

hostilidade que lhe mostram, desde logo, a necessidade de obedecer para não sucumbir. É dos companheiros

de geração que ele obtém a primeira experiência de um confronto com o poder , sem a mediação daquela

diferença de idade que dá direito a descontos e atenuações. É o reino dos mais fortes, dos mais descarados,

que se afirma com toda a sua crueza sobre a fragilidade do recém-chegado, impondo-lhe provações e

exigências antes de aceitá-lo como membro da horda. A quantos ritos, a quantos protocolos, a quantas

humilhações não se submete o postulante, para escapar à perspectiva aterrorizante da rejeição, do

isolamento. Para não ser devolvido, impotente e humilhado, aos braços da mãe, ele tem de ser aprovado num

exame que lhe exige menos coragem do que flexibilidade, capacidade de amoldar-se aos caprichos da

maioria - a supressão, em suma, da personalidade.

É verdade que ele se submete a isso com prazer, com ânsia de apaixonado que tudo fará em troca de um

sorriso condescendente. A massa de companheiros de geração representa, afinal, o mundo, o mundo grande

no qual o adolescente, emergindo do pequeno mundo doméstico, pede ingresso. E o ingresso custa caro. O

candidato deve, desde logo, aprender todo um vocabulário de palavras, de gestos, de olhares, todo um

código de senhas e símbolos: a mínima falha expõe ao ridículo, e a regra do jogo é em geral implícita,

devendo ser adivinhada antes de conhecida, macaqueada antes de adivinhada. O modo de aprendizado é

sempre a imitação - literal, servil e sem questionamentos. O ingresso no mundo juvenil dispara a toda

velocidade o motor de todos os desvarios humanos: o desejo mimético de que fala René Girard, onde o

objeto não atrai por suas qualidades intrínsecas, mas por ser simultaneamente desejado por um outro, que

Girard denomina o mediador.

Não é de espantar que o rito de ingresso no grupo, custando tão alto investimento psicológico, termine por

levar o jovem à completa exasperação impedindo-o, simultaneamente, de despejar seu ressentimento de

volta sobre o grupo mesmo, objeto de amor que se sonega e por isto tem o dom de transfigurar cada impulso

de rancor em novo investimento amoroso. Para onde, então, se voltará o rancor, senão para a direção menos

perigosa? A família surge como o bode expiatório providencial de todos os fracassos do jovem no seu rito de

passagem. Se ele não logra ser aceito no grupo, a última coisa que lhe há de ocorrer será atribuir a culpa de

sua situação à fatuidade e ao cinismo dos que o rejeitam. Numa cruel inversão, a culpa de suas humilhações

não será atribuída àqueles que se recusam a aceitá-lo como homem, mas àqueles que o aceitam como

criança. A família, que tudo lhe deu, pagará pelas maldades da horda que tudo lhe exige.

Eis a que se resume a famosa rebeldia do adolescente: amor ao mais forte que o despreza, desprezo pelo

mais fraco que o ama.

Page 15: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Todas as mutações se dão na penumbra, na zona indistinta entre o ser e o não-ser: o jovem, em trânsito entre

o que já não é e o que não é ainda, é, por fatalidade, inconsciente de si, de sua situação, das autorias e das

culpas de quanto se passa dentro e em torno dele. Seus julgamentos são quase sempre a inversão completa

da realidade. Eis o motivo pelo qual a juventude, desde que a covardia dos adultos lhe deu autoridade para

mandar e desmandar, esteve sempre na vanguarda de todos os erros e perversidade do século: nazismo,

fascismo, comunismo, seitas pseudo-religiosas, consumo de drogas. São sempre os jovens que estão um

passo à frente na direção do pior.

Um mundo que confia seu futuro ao discernimento dos jovens é um mundo velho e cansado, que já não tem

futuro algum.

Page 16: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Um título de Dostoievski

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 16 de abril de 1998

O ciclo de palestras que começou dia 13 na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) sob o título

"Globalização: o fato e o mito" apresenta-se com a finalidade declarada de combater o "pensamento único".

Quem o diz, na sua edição do dia 12, é o Jornal do Brasil , o qual, co-patrocinador do evento, deve

naturalmente saber do que se trata. Consultando, pois, o venerável periódico para averiguar que raio de coisa

seria o "pensamento único" descubro que, nas palavras do repórter Cláudio Cordovil, sujeito fidedigno a

mais não poder, é "um pensamento dominante entre as elites tecnocráticas, políticas, econômicas e

jornalísticas que, basicamente, busca assegurar que, nos domínios da ação pública, só há um caminho". Para

combater esse execrável monstro empastelador de consciências, reuniu-se na UERJ um pugilo de bravos

intelectuais brasileiros, sob a indispensável tutela de prestigiosos convidados franceses.

Esfrego os olhos, incrédulo. Teria a intelligentsia virado casaca? Teria ela, após décadas de compressivo

uniformismo coletivista - que descrevi em O Imbecil Coletivo com meticulosidade suficiente para não ter de

repetir- me agora -, optado repentinamente pela variedade, pelo incentivo à divergência, pelo estímulo à

reflexão pessoal fora de toda subserviência à opinião da coletividade bem pensante?

Que o responda o próprio leitor. Para tanto, basta conhecer dois detalhes sobre o evento.

O primeiro é a alternativa que a estrela do conclave, o sociólogo Robert Castel, diretor de pesquisas da École

de Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, oferece ao "pensamento único". Para combater a maldita

uniformização das mentes, diz o professor, é preciso quatro coisas: mais união das esquerdas, mais

solidariedade coletiva, mais controle da sociedade pelas leis e, last not least , aumento do poder do Estado,

"guardião último da coesão social". Em suma: haverá mais liberdade e variedade de pensamento quando

todos pensarem igual e, em caso de divergências, a autoridade estatal der a última palavra sob a forma de um

calaboca geral.

A maravilhosa receita consta do livro Metamorfoses da Questão Social , cuja tradução brasileira o professor

Castel entregou ao deleite de um estupefato mundo durante o mesmo acontecimento.

Alguns podem imaginar que o professor Castel esteja brincando. Lamento decepcioná-los, mas trata-se de

um homem sério, que acredita piamente no que diz, não havendo, portanto, nada mais a fazer por ele.

O segundo detalhe é a lista dos convidados brasileiros, em que avultam, para o máximo abrilhantamento do

simpósio, os nomes de Maria da Conceição Tavares, José Luís Fiori, Paulo Arantes e Emir Sader. Quem não

os conhece? Antecipando-se pioneiramente na aplicação, em escala miniaturizada, das propostas que o

professor Castel oferece para a remodelagem do mundo, os planejadores do ciclo tiveram a sábia precaução

de escolher conferencistas que estivessem de acordo no essencial, de modo a evitar aquelas situações

vexatórias nas quais pudesse se tornar necessário apelar ao poder público para restabelecer a coesão

ameaçada.

Diante desses dois detalhes, o leitor não terá a menor dificuldade para constatar que a nossa intelligentsia

universitária, como o inglês da piada, morto e ressurgido sob a forma aparente de cocô de vaca, realmente

não mudou nada.

Tanto no conclave quanto nas doutrinas do professor Castel, a única novidade, se é que chega a sê-lo, é de

ordem retórica e semântica: após quase dois séculos de combate à variedade anárquica do mercado e de

apologia do dirigismo entrópico cuja versão soviética George Orwell tão bem descreveu em 1984 , a

intelectualidade esquerdista descobriu que o velho discurso uniformista perdera todo atrativo mercadológico

e decidiu apelar para o mais desesperado e psicótico dos expedientes: inverter de vez e ostensivamente o

Page 17: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

significado de todas as palavras. Doravante, a liberdade de mercado é que passa a ser uniformizante,

enquanto o controle estatal de tudo se torna, magicamente, o provedor da variedade. O truque de ilusionismo

verbal só não chega a funcionar muito bem porque, no fim, a linda variedade, cansada de representar à força

o papel do seu contrário, acaba confessando que não passa de "coesão", "solidariedade" e "controle", coisas

que todo mundo sabe perfeitamente o que são, embora, na experiência histórica do socialismo, tenham

assumido formas realmente variadas, que iam da espionagem eletrônica da vida privada ao fuzilamento em

massa nas praças públicas.

Mas o discurso alucinógeno, para ser acreditado ainda que seja por alguns minutos, requer uma situação de

discurso também alucinógena: a elite falante que detém o poder sobre o universo cultural denuncia que o

universo cultural está sob o poder de uma elite falante - e, para a nobre finalidade de expulsá-la, reivindica

mais poder. Se a encenação aí montada parece ultrapassar por instantes os limites de uma impostura

meramente humana, também nisto não há nada de substancialmente novo: em 1872 Fiódor N. Dostoievski já

dava ao seu livro sobre a mentalidade da intelligentsia esquerdista o título de Os Demônios .

Page 18: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

A vitória do mais apto

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 30 de abril de 1998

O que tem circulado de besteira a respeito de "darwinismo social" é de natureza a sugerir que o homem não

apenas descende do macaco, mas quase chega a ombrear-se, em inteligência, a esse seu engenhoso

antepassado.

Emprega-se essa expressão, sistematicamente, num contexto em que denota a concorrência capitalista brutal,

que esmagaria os pequeninos se não fossem socorridos, em tempo, pelo igualitarismo marxista.

O socialismo aparece aí como a antítese por excelência da struggle for life, como o chamado celeste à

resolução fraternal dos conflitos que, abolindo a competição natural, estabelecerá sobre a Terra a igualdade

contratual dos fracos e dos fortes.

Karl Marx, infelizmente, não concordava com isso. Entusiasta do evolucionismo, propôs a Darwin (que

modestamente rejeitou a oferta) dedicar-lhe a segunda edição de O Capital, e enxergava na luta de classes o

exato equivalente histórico da seleção natural. No seu entender, nada ilustraria de maneira mais eloqüente a

"sobrevivência dos mais aptos" do que a futura vitória do proletariado sobre a burguesia, espécie votada à

extinção por sua incapacidade de ajustar-se evolutivamente ao desenvolvimento dos meios de produção.

O paralelismo não ficou na teoria. Vitoriosa a Revolução de Outubro, o evolucionismo foi integrado na

doutrina oficial do Estado soviético, com a incumbência de justificar cientificamente a extinção sistemática

dos dissidentes, dos alienados e dos inúteis.

Mais tarde, a ideologia que associa a mudança revolucionária com o sucesso e a saúde foi levada às últimas

conseqüências, quando os inimigos do regime passaram a ser tratados como doentes mentais: submetidos

pela força a injeções de haloperidol que tanto acalmam os delirantes quanto perturbam os sãos, acabavam

mostrando sintomas delirantes que tornavam necessário tratá-los com injeções de haloperidol - o que bem

demonstra a infalibilidade da medicina evolucionista.

Fora e antes do mundo comunista, houve alguns doutrinários que buscaram associar a seleção do mais apto à

concorrência comercial e buscar nela um argumento para legitimar a exploração imperialista dos povos mais

fracos. Mas essa corrente encontrou sempre forte resistência, sobretudo dos conservadores, que viam na

concorrência capitalista uma "seleção inversa" que privilegiava, em vez dos melhores, os piores e os mais

descarados. Foi também abominada pelos principais artistas e escritores, como Tolstoi e Flaubert, a quem

repugnava uma ética de alpinistas sociais. Enfim, foi taxativamente condenada pela Igreja, que, rejeitando o

darwinismo tout court, não teria como engolir seus corolários político-ideológicos. O darwinismo social foi

enfim, nos países capitalistas, nada mais que uma idéia entre outras, jamais hegemônica, sobretudo jamais

elevada ao status de uma doutrina do Estado.

Os únicos lugares do mundo onde foi apadrinhada oficialmente pelo culto estatal foram, de um lado, a

Alemanha nazista, de outro, os países comunistas. Ambos esses totalitarismos encaravam a História,

substancialmente, como uma concorrência darwiniana entre as espécies. A diferença era apenas de nuance:

para os nazistas, "espécie" queria dizer "raça"; para os comunistas, "classe". O método para realizar a

sobrevivência dos mais aptos, em ambos os casos, era o mesmo: matar os inaptos.

Para maior glória da teoria darwiniana, houve mesmo uma concorrência evolutiva entre os dois

evolucionismos estatais. A competição mostrou, acima de toda dúvida, que o mais apto era o comunismo:

matando mais gente, sobreviveu mais tempo. E, enquanto o nazismo se encontra hoje sepultado sob

toneladas de filmes, livros e jornais que o marcaram para sempre com o estigma do horror e da

monstruosidade, seu concorrente vitorioso ainda desfruta, depois de oficialmente extinto, uma honrada

Page 19: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

sobrevida espiritual nas pessoas laureadas de seus porta-vozes acadêmicos e eclesiásticos, em cuja conduta

intelectual ninguém parece enxergar nada de particularmente indecoroso. Se isto não prova o darwinismo,

prova ao menos a reencarnação.

Mas, se menciono os eclesiásticos, não é por acaso. Para fazer uma idéia de quanto a força darwiniana do

comunismo superou a capacidade de sobrevivência de seu adversário, basta atentar para o seguinte fato:

enquanto a Igreja católica hoje se submete a um abjeto mea culpa ante a mídia por "não ter combatido

vigorosamente o nazismo" - imitando os acusados dos Processos de Moscou que para posar de bons meninos

confessavam crimes que não tinham cometido -, o clero católico parece jamais ter sentido vergonha alguma

do "pacto de Metz", pelo qual, mediante promessa de não fazer nas declarações oficiais do Concílio

Vaticano II nenhuma denúncia concreta contra o regime comunista que àquela época já matara 100 milhões

de pessoas, se obteve para esse divino conclave o aplauso unânime da mídia elegante, que até hoje ressoa

aos nossos ouvidos como um hino de amor à hipocrisia universal. Também a Igreja, afinal, evolui.

Page 20: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

O capital

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 14 de maio de 1998

Todos os políticos, intelectuais, artistas, líderes comunitários, enfim, todas as pessoas maravilhosas querem

que o povo brasileiro seja rico e feliz (subentendendo-se que o dinheiro não traz felicidade a quem não o

tem). Para esse fim, concebem programas de ação que consistem em distinguir quem deve ir para o governo

e quem deve ir para a cadeia (ou, nos casos agudos, para o cemitério). Os programas divergem somente

quanto aos grupos de pessoas que formam as duas colunas da lista. Os militares achavam que eles mesmos

deveriam estar no governo, e na cadeia os que achavam o contrário, isto é, os chamados corruptos e

subversivos . Hoje, os esquerdistas acham que quem deve estar no governo são eles, e na cadeia os corruptos

e reacionários , isto é, todos os outros.

Descontados os eufemismos e outras figuras de estilo, é nisso, substancialmente, que consiste o chamado

debate nacional.

Não posso assegurar que a distribuição dos lugares mais confortáveis e mais desconfortáveis da sociedade

seja totalmente irrelevante para o destino do bolso popular, mas tenho razões para crer que há outros fatores

que deveriam ser examinados antes de se decidir tão transcendente disputa.

Um deles é o seguinte. Lao-tsé já dizia que sem dinheiro é muito difícil fazer dinheiro. Não disse exatamente

com essas palavras, mas disse. Significa que para ser rico é preciso fazer alguma coisa e esta coisa custa

alguma coisa. Tão decisiva é esta segunda coisa, que recebeu o nome de capital. Quaisquer que sejam as

ações a cumprir para tornar você rico, o capital é que lhe dá os meios de executá-las – despesas de material e

transporte, sustento próprio e dos subordinados durante a realização do projeto, etc., etc.

Só há quatro métodos para obter o capital.

O primeiro é ter sorte. Ter sorte é estar de bem com o céu e receber dele aquilo de que se precisa, como por

exemplo um alimento no deserto ou um caminho no meio do mar. Moisés usou muito este método na fuga

do Egito, com sucesso comprovado. A Bíblia fornece várias receitas de como praticá-lo, em duas versões,

antiga e moderna ou judaica e cristã. Ambas exigem que você confie, reze, seja um bom sujeito, não mexa

com a mulher do próximo e, de modo geral, não encha o saco.

O segundo, mais apropriado aos descrentes, é usar aquilo que você já tem e espremer, se existirem, as

últimas gotas de um limão seco que já deu cinco limonadas. Num velho filme de Sidney Lumet, O Homem

do Prego (“ The Pawnbroker ”) , o usurário – judeu, mas morbidamente ateu – representado por Rod Steiger

explicava a técnica ao jovem porto-riquenho que queria montar um negócio: “Viva apenas de pão seco, use

sempre o mesmo par de calças, reduza para a metade a ração de leite das crianças e, se chorarem de fome,

espanque-as. Ao fim de umas poucas décadas você terá o capital para começar.”

As eruditas páginas de Karl Marx sobre a acumulação primitiva do capital não valem essas palavras, ainda

que reproduzidas imperfeitamente.

O terceiro método é roubar, supondo-se que você tenha suficiente força física – um precioso capital natural –

para derrubar seu vizinho e torcer-lhe o pescoço antes de esvaziar-lhe a carteira, posto que haja nela o que

justifique tamanho risco. Caso não se trate de enriquecer um indivíduo, mas uma nação, é preciso ter armas

e soldados em número superior ao do adversário, o que supõe que antes de recorrer a este terceiro método se

tenha praticado o primeiro ou o segundo, ou ambos, durante um bom tempo.

O quarto e último método é pedir a quem tem, seja sob a forma de empréstimos, seja de investimentos. Nas

duas hipóteses é preciso aceitar a seguinte conseqüência implacável: se você conseguir ficar rico, um outro

Page 21: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

sujeito vai ficar mais rico ainda, e, se você não conseguir deixar de ser pobre, ele vai deixar você mais pobre

ainda.

Não há um quinto método. O problema com o Brasil é que nenhum dos quatro nos agrada. A resistência a

todos está, como se diz, na nossa cultura, a qual, por mal dos pecados, é obra das mesmas pessoas

maravilhosas que querem pôr umas às outras na cadeia com o objetivo de enriquecer o povo.

Objetamos ao primeiro que é demorado e incerto (além de anticientífico), ao segundo que é escorchante, ao

terceiro que é imperialista e ao quarto que resulta, segundo dizia Leonel Brizola, em intoleráveis “perdas

internacionais”.

Não dispondo, portanto, de capital, não podemos agir no campo econômico. Em compensação, atuamos com

raro entusiasmo e proficiência no terreno mais próximo dele, que é a política. A política consiste, segundo

Carl Schmitt, em favorecer os amigos e sacanear os inimigos – o que é precisamente o que temos feito,

empregando para isso o melhor de nossos recursos financeiros, intelectuais, jurídicos, musculares, vegetais,

animais e hidromineralógicos.

Não é um método de gerar riqueza, mas não deixa de ser um método de repartir equitativamente os bens

existentes: quando todos tivermos passado um tempo no governo e um tempo na cadeia, estará realizada a

justa redistribuição da riqueza, preconizada pela Constituição. Aí pode ser que estejamos felizes, e sempre

nos restará a esperança de que, se o dinheiro não traz felicidade, a felicidade venha talvez a trazer dinheiro.

Page 22: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Provas científicas

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 28 de maio de 1998

Os esforços devotados de intelectuais e da mídia para provar que o Brasil é um país racista seriam

desnecessários se o Brasil fosse racista. Ninguém teve de provar cientificamente o racismo da África do Sul.

Quando a prova tem de ser obtida mediante contorcionismos estatísticos, o que fica provado é apenas o

desejo incontido que uma certa elite tem de produzir, desde cima, um conflito racial que jamais brotaria de

baixo espontaneamente, como de fato não brotou.

Mas essa política pode considerar-se vencedora desde que foi apadrinhada pela Rede Globo de Televisão,

fabricante monopolística da mentalidade nacional. Não passa um dia sem que mensagens a atestar as

supostas inclinações racistas do nosso povo sejam marteladas e remarteladas por meio de noticiários,

entrevistas e novelas, até tornar-se, pela repetição goebbelsiana, verdade evangélica, cuja contestação

acabará por se tornar, por sua vez, crime de racismo: está próximo o dia em que louvar a democracia racial

brasileira dará cadeia.

Não sei se a responsabilidade, no caso, incumbe aos proprietários da Rede Globo ou aos iluminados da

esquerda ali inseridos, que, agindo segundo uma técnica muito conhecida nos anais da estratégia

revolucionária, se aproveitam de algum cochilo da direção e se apressam a mandar na empresa como se já

fosse propriedade do futuro Estado comunista.

Afinal, muito antes de o “politicamente correto” tomar de assalto a cultura do Novo Mundo, já circulava a

ordem do Comintern, de 1931, para que os comunistas buscassem acirrar a luta entre as raças, dando-lhe um

sentido de luta de classes (William Waack, Camaradas , São Paulo, Cia. das Letras, 1993). Como diria

Vicentinho: “A luta continua”; agora, em rede nacional de televisão.

O novo capítulo da série vem sob a forma de mais uma mentira impingida ao público como verdade

científica. Uma pesquisa da assistente social Maria Inês da Silva Barbosa, celebrada pela GNT como prova

final (mais uma!) do racismo brasileiro, informa que negros e brancos, em São Paulo, não morrem das

mesmas causas: os brancos sucumbem mais de enfarte (9,8%), os negros, de homicídio (7,5%, contra 2,5%

de brancos). A sociedade racista branca , conclui a pesquisadora, está exterminando sistematicamente os

negros .

Os números podem ser válidos, mas a conclusão é pura fraude. Em primeiro lugar, a raça branca é mais

sujeita a doenças cardíacas do que a negra, o que já basta para explicar a diferença do número de enfartes.

Quanto ao de homicídios, para concluir que se deve a um racismo exterminador seria preciso provar que

foram, na maioria, cometidos por brancos. Pois caso seja maior entre os negros não somente o número de

vítimas, mas também o de assassinos, o resultado da pesquisa sugerirá apenas, se tanto, que os negros são

mais violentos que os brancos. Ora, esta conclusão, declarada em público, seria instantaneamente rotulada

de racista, mas não o é menos a sua contrária, que resulta em atribuir aos brancos, mediante a ocultação de

um dado essencial, a responsabilidade global pelos homicídios de vítimas negras, mesmo os cometidos por

negros. Ou não haverá racismo algum em forçar o resultado de uma pesquisa para acusar de homicida uma

raça inteira, contanto que seja a branca?

A pesquisadora escondeu muito mal suas intenções ao declarar que o racismo da África do Sul ou do

Alabama, com seus morticínios, seus guetos, sua virtual proibição de casamentos mistos, nunca foi nada pior

que o nosso “racismo sutil” – tão sutil, digo eu, que só se materializa sob a forma abstrata de frações numa

estatística, e mesmo assim não se torna visível senão aos olhos da fé.

“Para mim, racismo é racismo”, afirmou a entrevistada, atestando sua carência do senso das proporções.

Page 23: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Ora, entre uma sociedade que diluiu tão bem as desavenças raciais que elas, se não sumiram de todo,

acabaram por se reduzir a uma vaga e evanescente tendência subconsciente, e uma outra que as exacerbou

numa cultura que enfatiza a identidade racial acima da unidade do gênero humano, qual a mais racista e

perversa, qual a mais justa, bondosa, sábia?

Mas há outra diferença. Foi por seus méritos próprios, pela sua sabedoria espontânea e quase sem a

intromissão do Estado que o povo brasileiro conseguiu reduzir ao mínimo a discriminação racial neste país.

Na África do Sul, nos Estados Unidos, uma cultura arraigadamente racista teve de ser controlada pela polícia

e pelos tribunais, e, sob todo o peso da máquina repressiva, ainda explode, de vez em quando, em descargas

de uma violência sem paralelo na nossa história.

Quem pode negar essa diferença sem uma considerável dose de cegueira intelectual ou de interesses

políticos maliciosos?

Page 24: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Assessoria gratuita

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 11 de junho de 1998

A Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis e o Grupo Gay da Bahia acabam de pedir ao

Conselho Federal de Psicologia (CFP) a punição, por crime de charlatanismo , dos psicólogos que

participarem do III Encontro Cristão sobre Homossexualismo, marcado para hoje em Viçosa, MG.

O encontro, que reunirá terapeutas, pastores e missionários, é promovido pela Exodus , a maior rede mundial

de ministérios cristãos de ex-homossexuais, e tem por objetivo oferecer uma alternativa de inspiração

religiosa às pessoas que desejem retornar a uma conduta sexual compatível com a moral evangélica.

Segundo a denúncia que as entidades gays e lésbicas enviaram ao CFP, todo psicólogo que participar desse

acontecimento cometerá infração, porque:

1) A Organização Mundial da Saúde (OMS) excluiu o homossexualismo do Código Internacional de

Doenças.

2) As propostas do encontro “não têm o mínimo embasamento médico ou psicológico, mas se baseiam

apenas em considerações religiosas altamente discutíveis”.

3) A Associação Psiquiátrica Americana acha os ministérios de ex-gays fraudulentos e prejudiciais.

Além do castigo dos psicólogos, os reclamantes exigem do Conselho Federal de Psicologia que denuncie

publicamente a proposta do encontro como “preconceituosa e discriminatória, inspirada em crendices

religiosas”.

Do ponto de vista lógico, o que há a observar é o seguinte:

1) O fato de a OMS retirar o homossexualismo da lista de doenças quer dizer apenas que não há consenso

científico suficiente para enquadrá-lo como doença. A implicação inevitável é que o homossexualismo não é

um problema médico e sim um problema moral, sobre o qual cada um tem o direito de tomar posição

conforme sua consciência: precisamente o contrário da conclusão que os gays pretendem tirar. A pretensão

de proibir opiniões pessoais onde não haja consenso científico é absurda, além de totalitária. Mas, mesmo

que houvesse consenso estabelecido, ir contra o consenso é um direito elementar e universal cuja negação

implicaria automaticamente a proibição de emitir novas hipóteses e a paralisação, portanto, de toda pesquisa

científica.

2) O homossexualismo é condenado, de maneira literal e inequívoca, no Antigo e no Novo Testamento ,

assim como nas escrituras sagradas dos muçulmanos e dos hinduístas. Qualquer fiel dessas religiões tem não

somente o direito, mas o dever de proclamar sua repulsa a essa prática. Proibir que o façam é violar

totalitariamente a consciência religiosa de dois terços da humanidade – uma parcela bem maior que a dos

gays e lésbicas, por mais espalhafatosa que seja esta última. Se o direito de louvar o homossexualismo não é

apenas o oposto complementar do direito de censurá-lo, então já não se trata mais de justiça e direitos

humanos, e sim da ditadura de uma minoria rancorosa e fascista. Ninguém, em sã consciência, pode aceitar

isso.

3) Ao proclamar que as crenças que embasam o encontro são “altamente discutíveis” e opor a elas a opinião

da Associação Psiquiátrica Americana, o documento deixa subentendido que esta última é, por seu lado,

absolutamente indiscutível – o que é uma tolice monumental, mesmo porque em ciência, por definição, tudo

é essencialmente discutível e aliás é científico justamente por causa disto.

Page 25: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Mas é do ponto de vista jurídico que as coisas se tornam ainda mais interessantes:

1) Oferecer uma alternativa religiosa, declarando que é religiosa, não é o mesmo que oferecer uma

terapêutica dizendo que é cientificamente reconhecida quando não o é. Somente neste último caso poderia

haver suspeita de charlatanismo. Não sendo verossímil que as entidades signatárias da denúncia ignorem

coisa tão banal que a mais breve consulta ao Código Penal bastaria para confirmar, a acusação de

charlatanismo configura nitidamente o crime de denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal: “dar

causa a instauração de inquérito policial ou de processo judicial contra alguém, imputando-lhe crime de que

o sabe inocente”). Sendo a denunciação caluniosa crime de ação pública , o CFP, tão logo receba o infame

documento, tem a obrigação de solicitar imediatamente à Justiça que tome as providências legais cabíveis

contra os criminosos: Associação Brasileira de Gays e Lésbicas e Movimento Gay da Bahia.

2) Depreciar como “crendice” os preceitos que condenam o homossexualismo na Torá, no E vangelho e no

Corão configura nitidamente o crime de ultraje a culto (artigo 208 do Código Penal: “Escarnecer de alguém,

publicamente, por motivo de crença ou função religiosa”). Os signatários da denúncia estão portanto sujeitos

a responder também por este crime.

Corrigir a lógica capenga do documento gay é coisa que posso fazer, dada a minha condição de ofício. (Não

precisa agradecer, que eu fico sem jeito.) Quanto à parte legal do caso, apelo aos advogados deste país para

que ofereçam assessoria jurídica gratuita à Associação e ao Grupo Gay da Bahia, de modo a que estas

entidades, ensandecidas pela sanha punitiva que lhes inspira uma doutrina fanática, não acabem se enrolando

perante a Justiça, mais do que seria preciso para defender, de maneira sensata e dentro da lei, a causa que

representam.

Page 26: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

TV Stalin

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 25 de junho de 1998

A TV Futura continua ensinando às criancinhas que o uso do masculino “homem” para designar toda a

humanidade é um odioso preconceito machista, sem lhes explicar por que raio de motivo o feminino

“humanidade” usado para designar ambos os sexos não seria um odioso preconceito feminista.

Sujeitos metidos a educadores deveriam, antes de tudo, tentar recuperar o seu senso da linguagem, abalado

pelo consumo excessivo de panfletagem política e pela carência de alimento intelectual sólido.

Mas o que se passa na TV Futura é algo mais grave do que uma exibição de ignorância presunçosa.

Essa emissora, cujos anúncios despertaram no telespectador a esperança de ter um canal cultural à altura das

exigências contemporâneas, logo mostrou não ser nada mais que uma central de doutrinação comunista,

empenhada em adornar com um feitio visual moderno e um vocabulário americanizado as velhas mentiras

do Komintern.

O intuito político que a inspira se tornou patente na retransmissão comentada da minissérie Anos Rebeldes ,

baseada no livro 1968: O Ano que Não Terminou , de Zuenir Ventura. (Zuenir, para os que não sabem, é

aquele colunista carioca que se notabilizou por ter clamado pioneiramente por medidas policiais contra os

“crimes do pensamento”, antecipando uma medida saneadora que será decerto adotada na república

socialista dos seus sonhos.)

Nessa retransmissão, a separação dos bonzinhos e dos malvados, que até as crianças de 5 anos já sabem

relativizar, apareceu absolutizada por uns comentários pretensamente científicos que, sob a desculpa de

“reconstituir a História”, na verdade a fabricavam no molde dos preconceitos ideológicos mais rasteiros: os

comunistas eram sempre jovens lindos imbuídos dos mais altos ideais democráticos, enquanto seus

adversários eram movidos apenas pela sede de poder, por interesses econômicos mesquinhos e pelo desejo

sádico de oprimir os fracos.

Numa época em que até o Batman já reconheceu que o Coringa tinha lá suas razões, esse insólito retorno ao

maniqueísmo explícito não pode, no entanto, ser compreendido como mero anacronismo simplório: por trás

de sua aparente inépcia existe a opção consciente e maquiavélica por um esquematismo doutrinário que, se

falha às exigências da cultura superior, atende com superior eficácia aos desígnios da manipulação

publicitária.

Para inculcar na população uma visão falseada dos fatos históricos, os responsáveis pela minissérie omitiram

completamente as ligações do movimento esquerdista com o governo cubano que àquela altura já havia

fuzilado mais de 10 mil pessoas. Omitiram que os militantes da guerrilha, em vez de cultuar qualquer ideal

democrático, riam da “democracia burguesa”, cuja única serventia, diziam, era a de um trampolim para a

revolução comunista. Omitiram que a única democracia desejada por Marighela ou Câmara Ferreira era o

“centralismo democrático” que haviam aprendido na URSS. Omitiram que, quando os “jovens idealistas” da

esquerda nacional recusavam alinhar-se com a ditadura soviética, não era por amor à liberdade, mas por

adesão à política ainda mais autoritária de Mao Tsé-tung, carrasco de 60 milhões de chineses.

Os responsáveis pela minissérie fizeram isso conscientemente, deliberadamente, para impedir que ocorresse

ao público a única pergunta decisiva: os militares, quaisquer que fossem seus defeitos e seus enganos, não

tinham alguma razão ao prever que a chegada daquela gente ao poder seria o início de décadas de massacre

ininterrupto, como o fora até então qualquer governo comunista em toda parte e sem exceção? Se, para

evitar isso, cometeram excessos, foram estes por acaso comparáveis ao banho de sangue que Marighelas e

tutti quanti fariam se tivessem vencido, como seus queridos parceiros internacionais fizeram em Cuba, no

Page 27: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Camboja, em Angola e por toda parte onde puderam? Nestes dias em que se tornou moda desenterrar

cadáveres, fazer essas perguntas seria exumar o único cadáver que a esquerda deseja manter sepultado para

sempre: o cadáver da verdade histórica.

É evidente que existia, em muitos esquerdistas e terroristas, algo como um idealismo, se bem que pervertido

pelo realismo cínico da doutrinação partidária. Que exaltem esse idealismo, que o beatifiquem da maneira

mais bocó, vá lá. O que não se pode aceitar é o esquematismo fanático que nega, in limine , qualquer sinal

de virtude nos combatentes do outro lado, atribuindo aos adeptos da ideologia mais assassina que já existiu

no mundo o monopólio do bem universal, pelo simples fato de serem jovens, como se não fosse jovem, por

fatalidade biológica inerente ao exercício da violência física, a maioria dos terroristas, incendiários,

dinamitadores e assassinos em geral.

Page 28: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Café, chá e abstrações

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 9 de julho de 1998

Um dos costumes temíveis que a cultura norte-americana transmitiu ao mundo é a crença literal em certas

metáforas científicas que, entrando na linguagem corrente, acabam por deformar a percepção da realidade e

perverter todas as relações humanas.

Arrastadas pela credibilidade aparente dos termos, as pessoas adquirem novos padrões de julgamento que,

reputados capazes de lhes dar a correta medida do mundo, na verdade as instalam num reino de fantasias e

de puro nonsense .

Comecei a pensar nisso quando, em Bloomington, Indiana, vendo que eu tomava minha segunda xícara de

café sucessiva na intenção de adoçar o paladar para um charuto, um cidadão local observou que meu

organismo se afeiçoara a determinada quantidade de cafeína, já não podendo viver sem ela.

– Um momento, respondi. – Quem toma cafeína é americano. Eu tomo é café.

– E que diferença faz?

– A diferença é que, se a cafeína como tal servisse de antepasto ao charuto, eu poderia tomar chá, que às

vezes a tem em quantidades maiores. No entanto abomino chá.

– Isso é subjetivo, protestou o meu interlocutor. Bioquimicamente, café e chá são a mesma coisa.

– Com todo o respeito, meu amigo: subjetiva é a distinção entre o aspecto bioquímico e o restante da minha

pessoa. Afinal, quem toma café não é a minha bioquímica: sou eu. Bioquimicamente café pode ser chá, mas

não tem o mesmo sabor, o mesmo aroma nem as mesmas evocações de infância, o mesmo gosto daquelas

longas noites do interior, ao pé do fogo, ouvindo histórias de assombrações. Nenhum inglês vai trocar por

café o seu chá, sob a alegação de que é também cafeína. E os beduínos achariam ridículo tomar chá em vez

daquele seu café amargo e denso, com pó no fundo.

– São meras diferenças pessoais e culturais.

– Sim, mas é em busca dessas diferenças, e não do mero efeito bioquímico, que um sujeito toma café ou chá.

Se o importante fosse o efeito bioquímico, as diferenças que você chama de culturais não teriam razão de

ser, e as bebidas poderiam ser trocadas sem que ninguém desse pela coisa.

– Por que então os cafeinômanos não aceitam café descafeinado?

– Primeiro porque não tem gosto de café, segundo porque está escrito no rótulo: “Descafeinado”, o que

significa que se bebe por medo de morrer, não por prazer de viver.

Não logrei convencer o meu amigo americano.

Mas, se a conversa não fosse sobre bebidas, daria na mesma. O americano, quando agarra uma mulher

pelada, acredita ser um bicho em busca de orgasmo, efeito que poderia ser obtido mais facilmente por meios

manuais ou eletrônicos, se não fosse as tais “diferenças subjetivas” que a nossos olhos separam, por

exemplo, uma bela atriz de 20 anos de uma provecta professora.

A crença em que o ponto de vista científico é mais válido, mais veraz do que as motivações pessoais com

que explicamos nossas ações espontaneamente incorporou-se de tal modo à mentalidade corrente, que hoje

Page 29: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

substitui as percepções diretas, depreciadas como preconceitos de velhos caipiras. A americanização da

cultura mundial deixa prever que esse hábito contaminará todos os povos, todas as culturas, acabando por se

tornar o critério decisivo nos debates públicos e nas disputas privadas entre marido e mulher, entre pai e

filho, em que cada um, em lugar de expressar seus sentimentos, cada vez mais os racionalizará com

argumentos postiços de origem científica.

O problema é que tudo isso vem de uma visão fetichizada – e, esta sim, profundamente caipira – do que seja

a ciência. O ponto de vista de uma determinada ciência sobre a realidade é sempre um recorte parcial e

hipotético, que só pode valer para os propósitos limitados dessa ciência, jamais para a generalidade do

conhecimento. Mesmo porque as ciências são muitas e ninguém sabe articular os pontos de vista de todas

para criar, acima da realidade comum, uma supra-realidade mais verdadeira. Bioquimicamente, tomar café

ou chá é uma carência de cafeína, mas do ponto de vista econômico é um padrão de consumo determinado

por um marketing que independe totalmente da composição real dessas substâncias, enquanto que,

antropologicamente, pode ser um hábito cultural que resistiria mesmo à propaganda adversa (como aliás

acontece com o fumo). Ninguém pode sintetizar, numa teoria única, a bioquímica, a economia e a

antropologia do café ou do chá; no entanto essa síntese é precisamente aquilo que cada um de nós realiza

inocentemente, sem poder expressá-la em palavras, cada vez que toma, com gosto, seu café ou seu chá. Aqui

estamos em plena vida real, o Lebenswelt de Husserl, ao qual à ciência – cada ciência ou o conjunto delas –

só pode se referir de maneira indireta e alusiva, impotente para dar conta de um único fato concreto , com

toda a densidade das determinações inseparáveis que o constituem. Eis então que o antigo apego norte-

americano aos hard facts se tornou hoje apenas um fingimento retórico, que oculta uma secreta devoção a

esquemas e teorias sofisticados e artificiosos, nostalgia de uma onipotência mental de adolescentes e

prenúncio do Brave New World em que viveremos no século 21.

Page 30: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Operação Avestruz

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 23 de julho de 1998

O novo mundo de governo planetário e “paz perpétua” que se anuncia para o século vindouro só é

reconfortante e tranqüilizador para a população dos cemitérios. Para o restante da humanidade, ele é tão

estranho, incompreensível e atemorizador, que as mentes mais fracas se recusam a vê-lo e se refugiam numa

feroz nostalgia das guerras e revoluções do século 20, onde pelo menos todo mundo acreditava saber o que

estava em jogo. Como fantasmas num teatro abandonado, continuam a reencenar mecanica-mente os velhos

enredos, para uma platéia vazia, enquanto em torno o universo rui.

Quando ouço os miúdos discursos domésticos de nossos esquerdistas e de nossos liberais, em defesa do

Estado ou da livre empresa, não posso deixar de constatar que tudo não passa de uma regressão uterina para

um extinto mundo simples, em reação de autodefesa psíquica ante um súbito e temível alargamento do

cenário histórico.

Entre nossos intelectuais, acadêmicos, jornalistas, políticos e comentaristas de tevê, quase ninguém quer

realmente saber o que se passa, e, bem ao contrário, todos buscam produzir ansiosamente um discurso

qualquer que os dispense de olhar para o mundo e lhes dê a ilusão de estar pisando no terreno firme da

década de 40.

Mas a simples ignorância natural não bastaria para defendê-los de um mundo que se precipita, em

velocidade atordoante, para dentro do desconhecido. Para manter-se numa reconfortante penumbra, têm de

produzir com esforço deliberado uma espécie de ignorância ativa , reforçada todos os dias mediante novas e

mais engenhosas negações dos fatos. Toda a imprensa nacional, sem exceções visíveis, é hoje apenas um

mecanismo auxiliar dessa vasta Operação Avestruz, a força-tarefa designada para a missão de tapar os olhos

da massa às notícias incatalogáveis.

Um exemplo característico é a facilidade unânime com que se dá por pressuposto, seja para maldizê-la, seja

para enaltecê-la, que a Nova Ordem Mundial não é se-não um novo nome do bom e velho imperialismo

norte-americano. Partindo dessa premissa, tudo não passa de uma questão de reeditar o discurso varguista

contra o inimigo estereotípico da soberania pátria, ou de, inversamente, louvar os benefícios de uma

economia transnacional. Ano após ano, enquanto o mundo em torno vai se tornando cada vez mais sinistro e

ininteligível, o confronto nacional de idéias repete o debate Almino Affonso versus Carlos Lacerda, ou, na

mais atualizada das hipóteses, sambão versus Tropicália. A moçada das redações, ignorante até o limite do

sublime, reproduz as velhas notícias, com o entusiasmo caipira do trilionésimo Colombo.

Há certos temas de atualidade, no entanto, que por sua simples menção bastariam para desmantelar todo o

teatrinho mental em que essa gente se refugia, e os quais, por isso mesmo, jamais entrarão na nossa

imprensa, se não for pelo preciso canal por onde estão entrando agora, isto é, por um artigo assinado do

campeão nacional de atipicidade jornalística, que não é outro senão este vosso atento criado, obrigado.

Digo logo um deles: em muitos meios conservadores norte-americanos – aqueles mesmos que, no nosso

catálogo mental, seriam os mais associados aos interesses das grandes empresas –, a Nova Ordem Mundial é

abominada como temível ameaça à soberania nacional dos Estados Unidos . Na visão dessas pessoas, o

Federal Reserve System que governa hoje a economia norte-americana é uma intervenção estrangeira, o

resultado de uma conspiração de poderosos interesses multinacionais que pretendem transformar a nação

ianque em instrumento passivo de um inédito esquema onde, pela primeira vez na História humana, o futuro

será inteiramente fabricado em laboratório, re-baixando a democracia à condição de um véu de fumaça para

encobrir secretos manejos de engenharia social.

Page 31: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Como os sujeitos que dizem isso destoam das nossas expectativas quanto ao que deve ser a conduta

supostamente típica de um imperialista ianque, livramo-nos deles num relance, decretando que devem ser

uns esquisitões irrelevantes ou então agentes disfarçados da mesma conspiração que condenam. À horrenda

perspectiva de ter de pensar para poder compreender um fenômeno estranho, optamos, no primeiro caso, por

imaginar que sabemos melhor que os americanos quem é e quem não é importante na sua política interna; no

segundo, como bons paranóicos, apostamos num maquiavelismo hiperbolicamente satânico do denunciante

para não ter de nos preocupar com a hipótese mais dosadamente maquiavélica que ele denuncia.

Em ambos os casos, é a Operação Avestruz em marcha.

A intelectualidade brasileira nunca foi muito hábil em prever para onde vai o mundo, e nós dentro dele. Pois

agora sua minguada capacidade preditiva vai sendo ainda mais debilitada, com a ajuda de uma imprensa

unanimista onde o que não sai num jornal não sai em nenhum deles, e em coro, diante de qualquer fato

novo, recua com o horror do poeta García Lorca ante a “sangre derramada” de seu amigo, toureiro morto na

arena:

– No! Yo no quiero verla!

Page 32: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Ralé de toga

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 6 de agosto de 1998

Embora não seja estrita verdade o que pretendia Karl Marx, que a condição social dos homens determine a

sua consciência, ela o faz às vezes, e no mínimo é imprudente esquecer que ela pode impor severos

obstáculos ao conhecimento. É característico dos modernos acadêmicos precaver-se contra esse erro no

estudo de todos os assuntos humanos, salvo no deles mesmos. Se há um tema raro nas investigações

acadêmicas, é o das relações entre a estrutura do poder universitário e as idéias dominantes entre estudantes

e professores.

Mas é claro que a organização social e econômica do trabalho intelectual molda em parte a temática e os

pressupostos da investigação e do debate, e não é possível que um tipo qualquer de organização – seja dos

letrados chineses, seja a do clero medieval, seja a da moderna burocracia acadêmica – deixe a mente

totalmente livre de entraves para enxergar a verdade tal e qual. Por isso é da mais alta conveniência que,

numa mesma época, coexistam várias modalidades de esforço intelectual, somando, por exemplo, ao

trabalho coletivo das academias as contribuições de free lancers e outsiders . Afastar ou menosprezar estes

últimos trará a consagração da organização acadêmica como o único canal permitido de atividade intelectual

– e, quanto mais homogênea a classe pensante, mais hão de proliferar nela os erros consagrados em dogmas.

Por isso mesmo jamais me atraiu a profissão universitária, inadequada a uma vocação pessoal demasiado sui

generis . O primeiro assunto que me interessou nesta vida foram as religiões comparadas, das quais não

havia curso universitário no Brasil e ainda são anêmicos entre nós. Foi a necessidade de esclarecer certos

problemas de teologia mística – islâmica, para tornar a coisa ainda mais exótica – que me levou aos estudos

filosóficos; e a busca de uma precisa diferenciação entre o discurso da mística, o da poesia, o da filosofia,

etc. foi que me pôs na pista da “teoria dos quatro discursos” ( Aristóteles em Nova Perspectiva , Rio,

Topbooks, 1997), a qual, se tem algum valor filosófico independente, não é para mim senão etapa de um

percurso que começa e termina na vida interior. Como poderia eu adequar esse trajeto às exigências de

programas e chefetes, é coisa que escapa à minha imaginação.

Tão alheias são essas questões ao nosso mundinho universitário que ninguém, absolutamente ninguém na

universidade brasileira, se deu o trabalho de discutir minhas teses, e, se alguém aí quis dizer algo a respeito,

foi para dar o show de inépcia daquele parecerista da SBPC que escrevia “inverossímel”, com “e”, e

confundia Santo Alberto Magno com São Gregório Magno. Várias vezes observei que todo o nosso primeiro

escalão acadêmico reunido não teria força para empreender uma discussão séria do meu livrinho – e ao dizer

isso não estava sendo nada hiperbólico, mas fazendo uma descrição precisa de um estado de coisas

alarmante.

Para complicar, a teoria dos discursos incluía estudos de argumentação e persuasão, que depois apliquei ao

exame de mil e um debates da atualidade, em artigos de imprensa cuja ligação íntima com um trabalho

filosófico nem todos os leitores perceberam, ainda que eu a declarasse no prólogo a Como Vencer um

Debate Sem Precisar Ter Razão (Topbooks, 1998). E jamais a burrice acadêmica se desmascarou tanto

quanto nas suas reações a esses artigos. Quando um posudo acadêmico, apanhado em flagrante delito de

vigarice intelectual, reage com insultos ou insinuaçõezinhas, sem sequer se dar conta de que não foi vítima

senão da aplicação rigorosa de distinções lógicas que ele teria a obrigação de conhecer e praticar, isso só

denuncia, mais enfaticamente ainda, a situação calamitosa de um ensino universitário no qual faltam menos

verbas do que quem as mereça.

Nessas condições, a entrada em cena de um trabalhador intelectual autônomo, simpático ou antipático não

vem ao caso, mas capaz de renovar uma certa ordem de estudos longamente abandonada neste país, deveria

ter sido saudada como uma ajuda providencial, o que não se deu porque a nossa casta universitária não tem,

para tanto, nem o necessário amor ao conhecimento, nem suficiente desapego a vaidades corporativas.

Page 33: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Mas não é só com os de fora que o meio acadêmico tem má vontade. Quando se vê, de um lado, a indolência

com que esse círculo adiou até agora um exame do pensamento urgente e revigorante do professor Roberto

Mangabeira Unger, e, de outro, o entusiasmo indecente com que estudantes açulados por professores da

UFRJ se apressam em agredir com gritos e pancadas um reitor que não veio ao seu gosto – então se percebe

a miséria de uma casta tão empenhada em fugir do seu dever quanto em mandar no que não é da sua alçada.

É a essa gente arrogante e burra, a essa ralé togada que vamos entregar o futuro da inteligência no Brasil?

Page 34: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Ciência e demência

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 20 de agosto de 1998

Vocês já tiveram a ingrata ocasião de tentar aplacar os temores de um paranóico quanto à conspiração urdida

pelo universo para destruí-lo?

Quem tentou conhece a dificuldade do empreendimento. Toda argumentação é impotente no caso. Um

doente de paranóia raciocina tão bem quanto qualquer outra pessoa, às vezes até um pouco melhor: o medo

acende todos os seus bytes de uma vez e ele nos prova , por a + b, que as rotas dos aviões foram

propositadamente desviadas para bombardear sua casa, que seu vizinho instalou no porão uma máquina para

ler seus pensamentos, etc., etc. Logo percebemos que o erro dele não está no raciocínio, mas nas premissas.

Ele parte de informações erradas, porque lhe faltam certas percepções intuitivas e o senso das proporções.

Como estas coisas só se adquirem por experiência direta, e as palavras só podem transmitir signos e não os

fatos mesmos, é inútil tentar reconduzir o infeliz à realidade comum: nosso discurso cai e se perde no fosso

intransponível entre dois mundos eternamente separados.

É desesperador.

Pois bem: de uns anos para cá, discutir com certos intelectuais – chamemô-los assim – tornou-se uma

experiência desse tipo. Eles falam, raciocinam, argumentam como se fossem pessoas normais, porém, depois

de uns minutos de conversa, percebemos que eles simplesmente não sabem do que estamos falando.

Provavelmente a dose de informações eruditas desencontradas ou falsas que receberam na universidade os

desarticulou de tal modo que se tornaram incapazes de confiar em suas próprias percepções. Não crendo

mais no que enxergam individualmente, apegam-se com desespero ao que imaginam coletivamente. É o

primeiro grau da maluquice: a histeria. Mas o histérico, se toma o imaginado como percebido, ao menos só

faz isto em estado de excitação. Aos poucos, porém, a quantidade de estímulo necessária para produzir o

equívoco vai diminuindo, como num experimento de hipnose, em que a força do hábito faz com que sinais

cada vez mais brandos emitidos pelo hipnotizador bastem para produzir o transe. O sujeito que começara por

confundir intensidade e realidade termina por afirmar, com toda a calma e frieza, que realmente não sabe se

um feto humano é humano, que não enxerga diferença moral entre fazer sexo com uma mulher adulta e com

um bebê de 2 anos, que não vê distinção de qualidade entre a Catedral de Chartres e as obras de Basquiat,

que entre o carinho físico e uma facada no estômago a diferença é apenas de grau, que a consciência humana

não existe, que o amor de uma mãe por seus filhos é efeito da exploração capitalista do proletariado, etc.,

etc. Aí ele está totalmente esquizofrênico e provou, portanto, sua habilitação a uma cátedra universitária.

Um psicastênico não percebe coisas por trás das palavras, e o enviamos ao médico; um desconstrucionista

também não, e lhe confiamos a educação de nossos filhos.

O chamado progresso do conhecimento obriga-nos a discutir, fingindo seriedade, assuntos que um

pythecantropus erectus desprezaria como indignos de sua inteligência. Sempre que me vejo na contingência

de ter de fazer isso, tenho de me imbuir daquele espírito de mentira piedosa que se sobrecarrega de

precauções para não contrariar o louco de frente. Tenho medo de terminar como os empregados do Henrique

IV de Pirandello, os quais, à força de fingir que são cortesãos de Henrique IV para não contrariar o patrão

maluco que imagina que é Henrique IV, terminam acreditando que são mesmo cortesãos de Henrique IV.

Quando não agüento mais e parto para a gozação ostensiva, creiam: faço-o somente em legítima defesa da

minha saúde.

Uma das mais trágicas ironias da História é que o prestígio social da ciência tenha contribuído para reduzir

multidões inteiras de intelectuais a um estado de idiotice mal disfarçado pela linguagem pedante em que se

expressa. Pois a ciência é apenas uma das formas derivadas da razão, e cultuada fora de um senso global da

racionalidade se torna um fetiche hipnótico. Quando um sujeito, sob a pressão da vida moderna, vai

Page 35: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

perdendo a capacidade de perceber certas coisas, certas qualidades, certas diferenças, ele pressente, num

primeiro momento, que está ficando maluco. Mas, em seguida, quando lê que “não há provas científicas” de

que essas coisas existam, sente um alívio tremendo e, escorado na autoridade da ciência, proclama que cego

é quem as vê. Raramente ou nunca um sujeito imbuído dessa ilusão encontrará um professor honesto para

lhe ensinar que a ausência atual de provas científicas é, na rigorosa acepção do método, fraquíssimo

argumento contra a existência do que quer que seja, principalmente daquilo que se conhece de longa data

por percepção direta. Mas, para ensinar isto, é preciso algo mais que conhecimento científico: é preciso

saber o que é ciência e o que não é – e isto, em pleno apogeu da autoridade científica, se tornou para a quase

totalidade das classes falantes algo como um mysterium tremendum.

Page 36: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

O texto sem mundo

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 3 de setembro de 1998

Um homem que decidisse dilapidar sua fortuna em champagne, cruzeiros marítimos e corridas de cavalos

estaria fazendo alguma coisa inequivocamente estúpida por meios inequivocamente elegantes. Esse exemplo

ilustra a idéia de que a elegância dos meios nada tem a ver com o valor dos fins. Aplicada às teorias

hermenêuticas em voga no nosso meio universitário, ela nos ensina que uma teoria perfeitamente idiota pode

ser exposta por meio de raciocínios sumamente elegantes que lhe dêem ares de alta sabedoria.

Muitas dessas teorias, aquelas que vão do estruturalismo ao desconstrucionismo, baseiam-se no pressuposto

de que o conhecimento objetivo de um texto consiste em enfocá-lo “em si mesmo”, como objeto a ser

descrito e analisado, sem nenhuma referência a significados exteriores.

Mas, para provar que é possível explicar um texto “em si mesmo” e sem referência a nenhum objeto

exterior, seria preciso, primeiro, demonstrar que esse texto efetivamente não remete a um objeto exterior,

que ele é efetivamente um universo fechado, completo e auto-explicável. Caso contrário, a hipótese da

clausura textual seria ela mesma um texto cerrado que não se referiria a objeto algum, isto é, que nem de

longe poderia ter algo a ver com o texto que diz analisar.

Seria preciso esclarecer, em seguida, se o autor do texto percebeu ou não estar escrevendo a respeito de nada

ou se ele, ao contrário, tinha a ilusão de estar se referindo a alguma coisa, isto é, estava radicalmente

enganado quanto à índole do seu próprio escrito, a qual só será revelada por nós. Nesta última hipótese, seria

preciso dar algum fundamento razoável à nossa pretensão de conhecer o nexo interior de um texto mais do

que foi preciso para produzi-lo.

Seria preciso, ademais, demonstrar como veio a ser possível que nossa explicação, por sua vez, não

constituísse um todo fechado, que ela, na medida em que tem por objeto um outro texto, escapasse

miraculosamente à lei da clausura textual que ela mesma proclama.

Como essas condições jamais se realizam nem mesmo hipoteticamente, por impossibilidade absoluta de

concebê-las de modo simultâneo sem autocontradição lógica, os adeptos da teoria do texto fechado

recorreram ao expediente de alegar que um texto se refere a outro texto que se refere a outro texto e assim

por diante indefinidamente, de modo que o conjunto dos textos só fala de si mesmo sem jamais chegar a se

referir a um objeto verdadeiramente exterior. Concedendo que o texto não é um todo fechado, asseguram

que o mundo textual no seu conjunto o é.

Mas isso não melhora em nada a situação, porque um texto não é outro texto, e restaria explicar como um

texto pode ter por objeto outro texto sem a mediação de algo que não é texto, como por exemplo os olhos do

leitor, o papel ou, no caso da leitura em voz alta, o ar. Afinal, textos não lêem textos.

Evidentemente o clausurista fanático poderia objetar que essa mediação é apenas a condição exterior da

existência dos textos e nada tem a ver com o seu significado, mas, esta afirmação por sua vez, distinguindo

entre o que é texto e o que não é, fala de algo que não é texto. Ela escapa, portanto, à regra que proclama.

Então, ou admitimos que essa afirmação não é texto, embora possa ser feita por escrito, ou admitimos que

pelo menos um texto, isto é, aquele mesmo que o nosso clausurista acaba de escrever, escapa à lei universal

da clausura textual – o que nos coloca na desagradável contingência de ter de justificar teoreticamente essa

mágica exceção.

Não resta, enfim, para explicar o prestígio hipnótico dessas teorias, senão a hipótese de que a

impossibilidade mesma de perceber aí algum sentido razoável contribua para fixar nelas, como num quebra-

cabeças indefinidamente auto-renovável, a atenção do leitor. Como a busca de solução ao que não tem

Page 37: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

solução é um movimento masturbatório que excita o desejo e a fantasia em progressão geométrica à medida

que aumenta a intensidade da dedicação, e vice-versa, logo o leitor entra num estado alterado que, com um

pouco de boa vontade, será tomado por sinal de inteligência. E como, enfim, esse estado é compartilhado

por milhares de pessoas dedicadas por ofício universitário a esse gênero de práticas, acaba por se formar

entre elas algo como um campo semântico especial, semelhante ao dos drogados ou ao dos aficionados de

UFOs, que pela interconfirmação de cacoetes verbais lhes dá o sentimento de saber do que estão falando –

como se fosse possível, na sua teoria, falar de alguma coisa.

Uma boa parte da nossa atividade universitária no domínio das ciências humanas consiste precisamente

disso e de nada mais.

Page 38: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Neutralidade e ortodoxia

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 17 de setembro de 1998

As novas diretrizes para a educação primária, emanadas do MEC em elegantes volumezinhos coloridos sob

o imponente rótulo Parâmetros Curriculares Nacionais , sugerem que, em matéria de instrução sexual, os

professores devem assumir uma atitude de neutralidade moral verdadeiramente weberiana. Sem dizer uma

palavra contra ou a favor, devem descrever diante da classe, com sublime indiferença científica, “as

orientações sexuais existentes”, para que as criancinhas, livres de pressões autoritárias, “façam suas próprias

opções”. Não sei o que é aí mais comovente: o respeito devoto pela liberdade dos infantes ou o rigor da

isenção científica que inspira as diretrizes do ministério. Pergunto-me, apenas, quais e quantas seriam as

orientações sexuais que viriam a merecer inclusão no currículo – um ponto de magna importância

pedagógica sobre o qual o MEC nada nos informa. À luz da neutralidade axiológica e do rigor científico,

porém, não haveria a menor justificativa para reduzi-las às três mais vulgares (hetero, homo e bi), excluindo

as variedades minoritárias como o sadomasoquismo, a pedofilia, a coprofilia e a bestialidade (termo

pejorativo que busca cobrir de preconceituosa infâmia a prática do amor com vacas, jumentas e outras

dignas criaturas do reino animal). A exclusão dessas práticas, além de ser cientificamente indefensável,

resultaria numa autoritária limitação do leque de opções que a educação deve oferecer aos pimpolhos, que

afinal são, porca miséria!, o futuro da Pátria. Diante da omissão dos livretos, e para não alimentar na opinião

pública suspeitas de que haja nas concepções sexológicas do ministério algum resíduo de moralismo

preconceituoso, o ministro Paulo Renato faria bem em divulgar a lista completa e explícita das opções

sexuais atualmente reconhecidas pela ciência, sem esquecer, é claro, aquelas jamais vistas e só conhecidas

em estado de hipóteses. Somente assim a tranqüilidade voltará a reinar no seio e demais partes erógenas da

família brasileira.

Mas, em contraste com a neutralidade e frieza que devem imperar na escolha dos objetos de desejo, o MEC

não julga que idêntica objetividade científica deva prevalecer em outros domínios do conhecimento, como

por exemplo a História e as ciências sociais. Aqui, não apenas é desnecessário examinar com imparcialidade

as várias escolas, estilos e teorias explicativas, mas, bem ao contrário, a escolha pode ser dada por

pressuposta sem que seja preciso sequer informar às crianças que houve alguma escolha. A interpretação

marxista da História deve ser ensinada não como uma teoria entre outras, mas como a única teoria possível,

a ortodoxia suprema jamais contestada. É o que se vê em vários textos aprovados pelo ministério para o

ensino dessas disciplinas, como por exemplo a Nova História Crítica, de Mário Schmidt, para o 2.º grau

(Editora Nova Geração), Iniciação à Sociologia , de Nelson Dacio Tomazzi, e outros (Atual Editora),

Estudando as Paisagens , de Oswaldo Piffer, para a 7.ª série (Ibep) e dezenas de outras obras do mesmo

teor. Nessas cartilhas sacramentadas pelo aval mequiano, o predomínio absoluto dos fatores econômicos, a

luta de classes, a conveniência de uma aliança operário-camponesa para liquidar os malditos capitalistas,

bem como outros itens do cardápio marxista tradicional, não são ensinados como opiniões de uma

determinada corrente ideológica contestadíssima por muitas outras, mas como verdades universais primeiras

e últimas que jamais foram ou serão objeto de dúvida.

Nos casos em que não tenha sido possível evitar toda menção a escolas e teorias divergentes, como por

exemplo as de Weber e Pareto, Ortega e Croce, Jouvenel e Voegelin, estas são cuidadosamente reduzidas a

meros instrumentos de dominação ideológica a serviço da execrável classe capitalista, de modo a que,

neutralizadas pela vacina marxista, não possam fazer mal às mentes juvenis dando-lhes a impressão de que

nesses campos do conhecimento exista algo a discutir.

Educada desde pequena na linha justa do materialismo dialético, a alma infantil é assim poupada de dúvidas

e perplexidades intelectuais, podendo resguardar o melhor das suas energias para dedicá-las a questões mais

puramente teóricas e científicas, como por exemplo a da escolha de um objeto de desejo erótico numa gama

de opções que abrange imparcialmente loiras, morenas, estivadores, soldados da PM, cães, bebês, chicotes e

vibradores.

Page 39: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Escalada neofascista

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 1o de outubro de 1998

Desde a extinção da URSS, o programa da esquerda mundial resume-se nas reivindicações de homossexuais,

abortistas, feministas, pedófilos e racistas do anti-racismo. Tais reivindicações podem parecer modestas em

comparação com os objetivos revolucionários francamente prometéicos do velho movimento comunista,

mas, quanto mais concessões essa gente obtém de uma sociedade infinitamente complacente, mais irados se

tornam os seus gritos, mais vastas as suas ambições, mais profundas e temerárias suas exigências.

Os homossexuais, por exemplo, que começaram choramingando pelo direito de não ser presos pela prática

da sodomia entre adultos em recinto privado, agora falam grosso em defesa da pedofilia, exigindo que não

apenas seja tolerada pelo Estado, mas ensinada nas escolas. Já existe, nos Estados Unidos, uma “Associação

dos Homens que Amam Meninos”, e ninguém ousa acusar os seus membros de apologia do crime, pois todo

mundo sabe que, se o fizer, correrá o risco de ser espancado, preso, ou no mínimo esmagado sob as patas do

lobby midiático homossexual.

Os ativistas negros, que começaram reivindicando a oportunidade de desfrutar em paridade com os brancos

dos direitos e benefícios criados pela civilização ocidental, agora que os obtiveram exigem que, nas escolas,

essa civilização seja abertamente condenada, e exaltadas aquelas culturas africanas que desprezavam a vida

humana e lutaram de armas em punho para preservar o sistema escravista quando a Inglaterra começou a

reprimir o tráfico negreiro.

Os ecologistas, que começaram bradando alertas em favor das espécies animais em vias de extinção, hoje

cobram do governo a proibição de matar mesmo espécies em irrefreável crescimento quantitativo, como os

coiotes, cuja proliferação apocalíptica ameaça de extinção os rebanhos de ovelhas do Estado norte-

americano de Utah. Os filmes de ideologia ecológica, que começaram com idílios arcadianos entre vacas e

leões para o deleite de velhinhas e criancinhas, hoje apresentam como supremo ideal moral a destruição

sangrenta da humanidade por lobos e leopardos, elevados à condição de anjos vingadores a serviço de não

sei qual divindade justiceira das trevas, contrafação technopop do Jeová bíblico.

Quanto às feministas, que começaram reivindicando simplesmente o direito de votar, nada revela melhor o

fundo de suas ambições atuais do que esta declaração de uma amiga de Lorena Bobbit: “Cortando o pênis do

marido e depois chamando uma ambulância para socorrê-lo, Lorena tornou-se um símbolo da mulher ideal

do nosso tempo.” Non raggionam di lor, ma guarda e passa.

Qualquer pessoa adulta que, consciente da absurdidade grotesca desses discursos, se limite a ridicularizá-los

como a meras extravagâncias inofensivas, ri apenas da desgraça de seus próprios filhos, condenados a viver

num mundo onde tais caprichos delirantes serão lei e terão a maciça força policial do Estado para garanti-

los. Uma amostra dos critérios morais que determinarão a vida no Estado futuro já foi dada pelo presidente

Clinton, que, concedendo direito de asilo a todos os homossexuais que se sintam incomodados nas suas

pátrias de origem, negou idêntico direito às mães chinesas que se neguem a abortar seus filhos, bem como

aos médicos ameaçados de fuzilamento por se recusarem a praticar as cirurgias de aborto impostas pelo

governo chinês: nossos filhos viverão sob a guarda de um Estado onde as fantasias do erotismo mais frívolo

terão proteção oficial e a consciência moral será, no mínimo, reprimida como um desvio de comportamento.

Todo riso, aí, é no fundo apenas o risinho histérico de uma convulsão de pavor. Por toda parte, escorados

numa retórica de ódio cada vez mais feroz e insano, no apoio cada vez mais global e avassalador do grande

capital e da mídia milionária, bem como na cumplicidade cada vez mais cínica de autoridades oportunistas,

esses movimentos espalham uma atmosfera de medo e auto-repressão obsessiva, onde o mero pensamento

de desagradá-los infunde na alma do cidadão os mais sinistros presságios.

Page 40: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Essa atmosfera é inconfundivelmente fascista, e sua disseminação se torna tanto mais fácil quanto mais se

apóia num discurso fingidamente alarmista voltado contra a ameaça de ressurgimento dos regimes

nacionalistas de direita extintos 50 anos atrás – ressurgimento que tanto mais se denuncia como iminente

quanto mais se tem a certeza de que as atuais condições de economia globalizada o tornam completamente

impossível: açoita-se o cavalo morto para que o coice do cavalo vivo seja aceito como uma carícia.

Page 41: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

A origem da nossa confusão

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 15 de outubro de 1998

A Independência do Brasil, como a das colônias espanholas, não foi uma independência senão do ponto de

vista jurídico. Política e economicamente, apenas passamos de uma órbita de influência a outra, em mais um

episódio da histórica rasteira que a coroa britânica deu em seus concorrentes ibéricos.

É claro que, entre os fundadores do País, havia quem fizesse força no sentido de uma independência mais

efetiva. É o caso do grande Andrada, que começou por aconselhar o País a que não fizesse dívida com os

grandes banqueiros europeus, porque a dívida, afirmava ele, jamais pararia de crescer. Demitimos o Andrada

e estamos rolando a dívida até hoje.

A política inglesa era incentivar rebeliões e reivindicações progressistas nas colônias e áreas de influência

alheias, sempre em defasagem com as possibilidades efetivas da economia local, para gerar crises e destruir

a hegemonia dos impérios concorrentes. Estimuladas pelos ingleses a dançar num ritmo que não tinham

força para acompanhar, as nações afetadas por essa política desenvolveram um complexo cultural crônico,

que é a contradição de valores básicos: se buscam adaptar-se às exigências éticas e políticas da civilização

progressista, têm de se submeter à potência internacional e perdem autonomia; se querem preservar a

autonomia, têm de negar a seus cidadãos os novos direitos criados pela sociedade mais avançada. Daí que,

nessas nações, os governos mais democratizantes tendam ao “entreguismo” (JK), e os governos

nacionalistas ao “autoritarismo” (Bernardes, Geisel). O reflexo disto na cultura e na vida psicológica é um

ambiente geral de farsa e irrealidade, onde todas as propostas têm algum vício secreto e onde ninguém pode

dizer plenamente o que pensa, porque todos se sentem, no fundo, culpados de inconsistência.

Mais tarde o centro ativo da transformação mundial saiu da Europa e foi dividido entre os Estados Unidos e

a União Soviética, hoje parece estar voltando para a Europa Ocidental. Mas não importa: são sempre os

outros que ditam o nosso ritmo e nos forçam a mudanças que, se ampliam os direitos nominais da

população, restringem a autonomia nacional e, se ampliam a autonomia nacional, atrasam a evolução dos

direitos. Isso acontece hoje, por exemplo, com muita clareza, na questão da ecologia: ou defendemos o

interesse nacional e nos tornamos ecologicamente “atrasados”, ou adotamos as novas normas ecológicas

abdicando de nossa soberania, como ocorre nas reservas indígenas onde ONGs estrangeiras mandam e

desmandam e onde um cidadão brasileiro não pode sequer entrar. Nenhuma das alternativas nos satisfaz, e

não podemos também dispensar uma ou a outra. As potências que dirigem o nosso movimento estão

plenamente conscientes da posição insustentável de duplo desconforto em que cronicamente nos colocam.

Nós é que, às vezes, não percebemos o jogo e, aderindo a aparências, a palavras e rótulos atraentes, ora

louvamos o nacionalismo sem assumir a responsabilidade pelo atraso político que ele criará

necessariamente, ora proclamamos idealisticamente novos direitos sociais e políticos sem termos a coragem

de confessar que o preço deles será a nossa submissão maior a potências internacionais.

Hoje estamos, com FHC, numa fase democratizante-internacionalista; amanhã ou depois, com Lula ou outro

petista no governo, voltaremos ao nacionalismo autoritário de Vargas (ou – por paradoxal que pareça – de

Geisel). Em qualquer dos casos, sentimos uma profunda frustração, pois nossos melhores esforços são

viciados por um mal secreto. É a contradição básica que torna tão difícil a um brasileiro sustentar um

discurso político coerente: a coerência das idéias torna-se incoerência dos atos, e vice-versa. Por isso os

nossos governantes mais eficazes foram os que tinham o discurso aparentemente mais ambíguo e mais oco,

ideologicamente, e por isso os nossos políticos mais caracteristicamente “coerentes a seus ideais”, como

Luiz Carlos Prestes e Carlos Lacerda, acabam nada deixando atrás de si senão um rastro de belas palavras...

Meio farsa, meio tragédia, a nossa independência perenemente semifrustrada poderia nos levar à loucura, se

não fosse a proverbial habilidade do brasileiro para viver na ambigüidade. Mas esta capacidade é por seu

lado parte do estilo tradicionalmente nacional de vida, que um progressismo moralista hoje nos convida a

Page 42: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

abandonar em troca de um rigorismo legalista de tipo americano que, por sua vez, custará ao nosso país

novas submissões. E assim por diante. Até quando?

Page 43: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

S. Exa. e o fumo

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 29 de outubro de 1998

Em circunstâncias normais o mundo jamais teria ouvido falar de S. Exa., o Meritíssimo Juiz da 4.ª Vara

Federal de Porto Alegre. Mas o mundo de hoje não é normal: é um mundo espremido, compactado,

miniaturizado, que cabe numa tela e é varrido, de Leste a Oeste, num piscar de olhos, pelas lupas eletrônicas

de satélites bisbilhoteiros. Na nova escala microscópica das coisas, é bem natural que qualquer criatura de

dimensões exíguas apareça formidavelmente ampliada.

Foi preciso, de fato, que o mundo mudasse muito para que um infinitesimal togado pudesse alterar, com um

simples toque de caneta, os hábitos e o estado de humor de milhares de pessoas de todos os quadrantes da

Terra. Proibindo sumariamente o fumo nos aviões comerciais brasileiros, pouco importando a duração do

vôo, seja para Catolé do Rocha ou Tashkent. Posso atestar que, no vôo da Varig que me trouxe de volta à

pátria amada no último dia 22, pelo menos durante os 15 minutos da profecia de Andy Warhol S. Exa. foi

objeto das atenções de bolivianos, franceses, americanos e japoneses, os quais, em suas respectivas línguas,

proferiram a respeito comentários dos quais uma parte não compreendi e a outra parte não ouso reproduzir.

É razoável conjeturar que conversações similares tenham se desenrolado em muitos outros vôos, perfazendo,

no conjunto, um ibope nada desprezível.

Não me interessa, aqui, sondar as razões de S. Exa. Suponho que se imagine um benfeitor da humanidade. E,

se tal é o caso, em nada abalará essa sua crença a informação de que o primeiro governo a reprimir o fumo,

sob pretextos humaníssimos, foi o da Alemanha nazista, e de que o conceito de “fumante passivo” foi

contribuição pessoal do Führer ao progresso da ciência: duvido que S. Exa. tenha intuição sociológica

bastante para captar aí algo mais do que mera coincidência, e afinal a hipótese de um neofascismo

disfarçado sempre poderá ser exorcizada mediante um daqueles jogos verbais em que são proverbialmente

hábeis os juristas. S. Exa. dirá, por exemplo, que tão graves são os males do fumo que até mesmo a mente

nebulosa de Adolf Hitler os percebeu. Em seguida irá dormir o sono dos justos, a salvo de toda comparação

incômoda. Nem o poderá abalar a ponderação de que o mencionado conceito, antes de adquirir foros de

coisa científica, circulou por décadas no submundo ocultista, até impregnar-se no imaginário coletivo com a

obsessividade de um íncubo.

Afinal, que podem estas vãs palavras contra a autoridade pontifícia da Organização Mundial da Saúde?

OMS locuta, causa finita . É verdade que as pesquisas tremendamente científicas que associam o fumo às

fogueiras do inferno omitiram todo diagnóstico diferencial entre tabacos diversamente tratados, portanto

quimicamente diferentes, e se limitaram a calcular estatisticamente os efeitos de um universal abstrato.

Também é verdade que não houve diagnóstico diferencial entre fumantes de regiões poluídas e limpas, nem

entre fumantes ansiosos e calmos, embora seja o pulmão a sede por excelência das somatizações de angústia.

É verdade, ainda, que a própria OMS instituiu o erro sistemático das estatísticas, ao autorizar a classe

médica a incluir o tabagismo entre as causae mortis de qualquer fumante que morra de doença pulmonar,

independentemente de exames que comprovem a conexão de uma coisa e outra no caso concreto. É verdade

que a histeria antitabagística erige em norma legal a suscetibilidade mórbida do paciente alérgico, um

neurótico que não consegue desviar a atenção do que o incomoda, e debilita por efeito da propaganda

adversa a tolerância normal do indivíduo são. É verdade que a “saúde pública” é hoje um temível

instrumento de controle social. Nem mesmo os intelectuais ousam desafiar a nova divindade: as críticas

jamais respondidas da contracultura da década de 60 à então chamada “máfia de branco” cederam lugar a

uma temerosa e patética subserviência universal, prelúdio de catástrofes. Finalmente, é verdade que todo

paternalismo, que alega proteger um homem contra si mesmo, é um atentado contra a dignidade humana.

Tudo isso é verdade, mas S. Exa. não está nem aí. Afinal, sua sentença é apenas uma liminar, esse

maravilhoso expediente que permite à consciência jurídica gastar em um segundo seus 15 minutos de fama,

sem ter de arcar com a responsabilidade das decisões definitivas e irremediáveis.

Page 44: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Tudo sob controle

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 12 de novembro de 1998

O ringue político brasileiro está dividido entre duas e não mais de duas forças: comunistas e social-

democratas. Esquerda e esquerda.

A margem de existência de qualquer política francamente anticomunista é cada vez mais restrita. Direita e

conservadorismo foram criminalizados, e as palavras mesmas que os designam adquiriram nova

significação: consagraram-se como sinônimos de neonazismo e neofascismo. Usadas mil vezes nesse

sentido, adquirem poder letal quando ocasionalmente referidas a algum liberal incômodo.

Conservadores simplesmente já não existem, e liberais mal são tolerados: os poucos que restam se atacam

uns aos outros como cachorros loucos, cada qual procurando caprichar mais na demonstração de ferocidade

para agradar à platéia esquerdista, ansiando pela chance de mostrar lealdade a alguma “união nacional”

improvisada para fazer a caveira de algum desastrado remanescente direitista.

Tal como acontece invariavelmente nas situações em que a esquerda domina hegemonicamente, sua ala mais

moderada é incumbida de posar no papel de “direita”, ocupando o espaço de modo que conservadores e

liberais não possam entrar e, desaparecidos do horizonte, acabem por desaparecer do mundo.

Dentre os social-democratas incumbidos de posar de direita ad hoc , o principal é, evidentemente, o

presidente Fernando Henrique Cardoso.

Nada mais elucidativo, para ilustrar a dubiedade desse misterioso governante, do que comparar a orientação

de sua política econômica com a de sua política educacional. Um governo que faz todo o possível para ser

tomado como representante fiel do capitalismo globalista ao mesmo tempo que promove a doutrinação em

massa de nossas crianças dentro do mais puro cânone da luta de classes é, afinal, direitista ou esquerdista?

FHC é um tucano, dirão, aninhado, como é costume das aves da sua espécie, em cima do muro. Mas há

muros e muros: há o muro retórico que separa as facções ideológicas e há o muro dos tempos que separa o

hoje e amanhã, o espetáculo midiático superficial e a engenhosa gestação do futuro no ventre discreto das

sombras.

FHC já se declarou um gramsciano. Como tal, ele não crê na pressa leninista que, na ânsia de “tomar o

poder”, se desdobra entre a concorrência eleitoral nas cidades e a luta armada nos campos. Ele despreza a

superficialidade apressada de petistas e sem-terra. Ele aposta no tempo, na lenta transfiguração das

consciências, na revolução cultural gramsciana enfim, que avança a passos silenciosos, gradual e segura, sob

a crosta opaca do dia. Por isso ele permanece indiferente às críticas esquerdistas e não tem medo de se

comprometer, se necessário, com “alianças espúrias” destinadas a ser, no devido tempo, atiradas à lata de

lixo da História: lugar apropriado, de fato, a todos aqueles que, por medo de ficar com medo, buscam

acreditar na lenda de que FHC mudou. Ele mudou, sim, mas de estratégia.

Em compensação – uma compensação que na verdade não compensa nada, apenas piora tudo

formidavelmente –, iludem-se também todos aqueles que, na esquerda, acreditam que a virada do Brasil

rumo ao socialismo nos libertará do poder globalitário. O mundo unificado está perfeitamente apto a integrar

nos seus esquemas um socialismozinho aqui, outro acolá, resguardada uma certa margem de liberdade

econômica para os grandões, coisa a que aliás a esquerda mundial já deu gentilmente seu aval sob a elegante

denominação de “terceira via”. E, finalmente, os mais iludidos de todos são os empresários nacionais que

proclamam, com ar de tranqüilidade sapientíssima, que o novo mundo de globalismo tecnocrático está

definitivamente imunizado contra o socialismo. Sim, imunizado ele está: por isto mesmo um socialismo

brasileiro não lhe fará mal nenhum e, aliás, não fará diferença nenhuma.

Page 45: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

A política nacional transformou-se num fantástico intercâmbio de ilusões, cuja única verdade só é visível a

léguas de distância e se chama, em Nova York e Genebra, “gerenciamento de conflitos”. Está tudo, enfim,

sob controle, e ninguém tem nada a perder, exceto os brasileiros.

Page 46: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Se...

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 27 de novembro de 1998

Peço ao leitor que examine com atenção o seguinte parágrafo (grifos meus):

“Na Faculdade de Direito ensinaram-me que o profissional capaz era aquele que mais conhecia a lei. No

exercício da advocacia percebi que não bastava o conhecimento do direito positivo, necessário era saber o

que pensavam os juízes, qual o caminho da jurisprudência. Ao assumir a magistratura, quando não tinha

mais a responsabilidade ética de pedir bem, mas sim de decidir, descobri, em meio a angústia e sofrimento,

que saber da lei e da jurisprudência não era suficiente. Os dispositivos legais, ao serem aplicados, com

freqüência resultavam em decisões injustas. A jurisprudência, por comprometida com situações

concretizadas, nem sempre chegava ao justo.”

Agora veja:

Se um jovem advogado confessa que, nos seus anos de estudo, nunca percebeu a importância da

jurisprudência e sempre imaginou que a lei escrita bastasse para resolver todos os problemas num tribunal,

temos de concluir que esse estudante relapso jamais abriu um livro de introdução à ciência do direito, pois

não há um só deles que não o advertisse da enormidade de seu erro, inadmissível não apenas num estudante

de letras jurídicas, mas em qualquer cidadão leigo medianamente culto.

Se, não contente de alardear tanta inépcia, o infeliz ainda acrescenta que, durante anos de prática

profissional, continuou imaginando que a lei e a jurisprudência juntas perfizessem a encarnação mesma da

idéia do justo, só tardiamente descobrindo que não, aí não apenas compreendemos que esse advogado jamais

consultou uma só obra de filosofia do direito, já que praticamente todas começam pela discussão das

relações problemáticas entre direito e justiça, mas também somos forçados a admitir que,

independentemente de sua catastrófica privação de leituras, esse indivíduo é um idiota por natureza, já que a

distinção entre o ideal e a prática é coisa de apreensão intuitiva que não requer estudos especiais.

Se, ademais, quem faz essas declarações não as apresenta como o simples mea culpa de um relapso

arrependido, mas antes as trombeteia orgulhosamente como uma descoberta inédita e fundamental para o

mundo, vendo nelas uma crítica arrasadora ao sistema jurídico e não à sua própria burrice pessoal, não

podemos concluir daí senão que estamos diante de um caso patológico de ignorância pretensiosa que beira

os limites da insanidade.

Mas, se descobrimos em seguida que o depoente não é um simples advogadinho de porta de xadrez e sim um

juiz concursado e togado, aí à nossa reação de espanto ante sua anomalia individual se soma um sentimento

de angústia e preocupação quanto ao sistema Judiciário inteiro, que, afetado de uma falha grave em seu

processo de seleção, permitiu que as altas responsabilidades da magistratura fossem entregues às mãos de

semelhante cretino.

Se, para ir ainda mais longe no território do absurdo, o magistrado em questão não é apenas magistrado, mas

também professor de direito, nossa angústia ante o estado presente do sistema Judiciário se converte em

temor maior ainda quanto ao seu estado futuro, tendo em vista a ameaça de propagar-se entre os magistrados

em formação um tão pernicioso exemplo, sacramentado pela aprovação oficial e conjunta das autoridades

judiciárias e pedagógicas.

E, por último, se constatamos que esse professor de ignorância não é apenas um obscuro juiz de comarca do

interior, docente de uma faculdade de fundo de quintal, mas sim juiz de um Tribunal de Alçada e professor

de uma prestigiosa Escola de Magistratura, e que em vez de ser objeto de chacota e desprezo na roda de seus

colegas ele é seriamente tido na conta de uma autoridade intelectual e de um maître à penser habilitado a

Page 47: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

remoldar todo o pensamento jurídico nacional, então, meus filhos, é a derrocada final, tudo está perdido e já

não há mais nada a fazer por este país insano, sendo até mesmo inútil prosseguir escrevendo o presente

artigo.

Encerro-o, portanto, declarando que o trecho citado se encontra na abertura do livro Magistério e Direito

Alternativo , de autoria de S. Exa. o dr. Amílton Bueno de Carvalho, juiz do Tribunal de Alçada do Rio

Grande do Sul, professor da Escola Superior da Magistratura do mesmo Estado e, last but not least, o

principal mentor da nova escola do “direito alternativo”.

Page 48: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Morte aos reacionários

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 10 de dezembro de 1998

Durante algum tempo, acreditei que chamar os outros de “reacionários” era manifestação de um impulso

catalogante primitivo, forma incipiente do pensamento categorial observada nas camadas inferiores da

evolução biológica. A divisão do mundo em reacionários e progressistas assinalava, segundo essa hipótese,

o dualismo invencível da percepção do mundo nos animais dotados de apenas dois neurônios, um contra e

um a favor, notando-se às vezes a presença de um terceiro incumbido de paralisar, em caso de dúvida, toda

atividade cerebral.

Hoje devo refutar minha própria teoria. Por elementar e grossa que seja, a ação catalogante já manifesta a

capacidade de referência a um objeto externo. Ora, esta capacidade não pode estar presente em criaturas que

ainda não transcenderam o narcisismo primevo das amebas e protozoários, cuja cosmovisão hermeticamente

umbigocêntrica nada tem a manifestar senão expressões de seu próprio estado interno, resumindo-se

portanto o seu repertório cognitivo em dois juízos, dos quais o primeiro afirma “que delícia!” e o segundo

declara: “Ai, me dói!”

Na célebre classificação das três funções da linguagem por Karl Bühler, o mencionado ato de rotulação nada

tem portanto a ver com a função denominativa – que descreve e cataloga objetos e estados do mundo –, mas

apenas com a função expressiva, que manifesta o estado do sujeito falante e nada diz exceto sobre ele

mesmo.

Força é convir, no entanto, que a terceira função enumerada por Bühler, a função apelativa, em que o

emissor se utiliza da linguagem para agir sobre seus semelhantes, intimidando-os ou estimulando-os, não

está de todo ausente no mencionado procedimento, e talvez até exerça, nele, o papel preponderante. Prova

disto é que, quando um desses animais chama alguém de reacionário, o efeito que exerce sobre os ouvintes é

infalível e automático, independentemente de o mencionado epíteto ser inadequado, quer ao seu objeto, quer

à correta expressão do sentimento do emissor. Proferido por um membro da espécie “progressista” (nome

científico: Homo adorabilis, normalmente traduzido por “pessoa maravilhosa”), o epíteto de reacionário às

vezes nada diz sobre o objeto ou o sujeito, mas indica a alta probabilidade de que, no instante seguinte, a

horda estimulada por semelhante apelo se precipitará sobre o objeto para fazê-lo em pedaços. A mensagem

enfim convoca a tribo para uma operação de linchamento, e raramente o faz sem resposta. Ao longo das

décadas, o grito de “Reacionário!”, proferido ante platéias sensíveis, tem exercido sobre elas um efeito

magnetizante instantâneo, disparando a imediata ação corretiva que extirpará do reino dos vivos a criatura a

quem ocorra a má sorte de ser assim designada.

Mas a ampla comprovação do poder mortífero desse expediente lingüístico, constituída de cem milhões de

reacionários assassinados neste século, longe de sugerir aos usuários da expressão a conveniência de

empregá-la com extrema moderação, ou mesmo de suprimi-la por completo do arsenal polêmico decente, só

fez despertar o desejo de usá-la com mais freqüência ainda, e mesmo de estender o seu emprego,

originariamente político, a todos os campos da atividade humana, acusando a presença de reacionários sob

toda sorte de moitas artísticas, religiosas, científicas e filosóficas.

Na atual campanha pelo policiamento do vocabulário, que professa suprimir as palavras sujeitas a despertar

ódio coletivo, a seleção dos termos proibidos deveria banir em primeiro lugar os de eficácia homicida mais

comprovada, e, destes, nenhum supera a palavra “reacionário”: o total de vítimas nos grupos perseguidos por

todos os outros motivos somados (raça, religião, sexo, etc.) não perfaz mais de um quinto do total de pessoas

assassinadas sob a acusação de reacionarismo. No entanto, a própria campanha pela exclusão das palavras

odientas se apresenta, orgulhosamente, como uma caça mundial aos reacionários. Mais uma vez, na gloriosa

história da modernidade, o assassino veste a toga de juiz e aponta contra suas vítimas o dedo acusador.

Page 49: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

Batendo com duas mãos

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 24 de dezembro de 1998

O único tema importante deste fim de século, e por isto mesmo o mais ausente da imprensa brasileira, é o

governo mundial que está se formando não sei se sob as nossas barbas ou sobre as nossas cabeças, e do qual

a globalização financeira, tão falada, não é senão meio e instrumento. Tenho tentado, em vão, introduzir

uma visão mais abrangente desse assunto nas páginas dos nossos jornais, encontrando neles (com a honrosa

exceção do JT ) aquela resistência típica do cérebro cansado que, não sabendo como processar uma

informação nova, se nega a recebê-la.

Uma brecha no muro da indiferença burra foi aberta por Arnaldo Jabor, na sua coluna de 11 de novembro

em O Globo , onde ele denuncia o Multilateral Agreement on Investment (MAI) como um golpe fatal na

autonomia dos Estados nacionais. Mas não sei se devo cumprimentar o colunista pela sua sensibilidade de

perceber o fato novo ou lamentar que o tenha interpretado segundo os velhos cânones do nacionalismo de

esquerda, os quais nunca ajudaram a compreender nada e não é agora que vão começar a ajudar.

O MAI, explica Jabor, é um acordo internacional que “dá poderes totais às corporações mais fortes do

mundo (leia-se G-7), para processar os países signatários (leia-se „emergentes') por qualquer política

governamental que possa prejudicar seus lucros”. A informação é perfeita. Perfeita é também a previsão das

conseqüências: o MAI “será assinado pelos Estados nacionais, mas é todo talhado para acabar com o poder

dos mesmos Estados nacionais”.

O absurdo é que, sabendo de tais coisas, Jabor não consiga equacioná-las senão nos termos do consagrado

esquema neoliberalismo versus social-democracia, com a ênfase na voracidade pirata do primeiro e nas

virtudes salvíficas da segunda. Ele se mostra escandalizado, com efeito, de que tamanho acréscimo do poder

das empresas sobre os Estados ocorra justamente na hora em que, prenunciando dias melhores, ia

“renascendo a preocupação de se instalar um „novo keynesianismo' global contra a voracidade financeira,

preocupação ostensiva até de homens como Alan Greenspan, diretor do FED”. O keynesianismo, para os

que não sabem, é uma doutrina que, sem chegar a abolir o capitalismo, favorece o fortalecimento do papel

do Estado na economia – uma tendência sintética que hoje ressurge com o nome de “terceira via”, e na qual

Jabor acredita residir toda a esperança nacional de sair da paralisia patrimonialista sem cair vítima “da fome

cega do capitalismo corporativo”.

Desse ponto de vista, a globalização do poder é idêntica a neoliberalismo (liberdade total para as empresas)

e oposta à social-democracia (controle da economia privada pelo Estado). Assim, embora enfatizando

nominalmente a novidade absoluta do acordo e rejeitando com veemência os argumentos globalistas que

vêem nele apenas a inócua implementação de práticas jurídicas já existentes, Jabor acaba por reduzir o

episódio a mais um capítulo da velha luta entre o imperialismo capitalista e o esquerdismo nacionalista.

Dificilmente alguém poderia com mais eficácia neutralizar aquilo que afirma.

O esquema neoliberalismo-social-democracia, bem como sua pretensa síntese ou “terceira via”, não apenas

não permite compreender nada, como foi posto em circulação precisamente para que ninguém

compreendesse nada. Foi posto em circulação pelos mesmos poderes que conceberam o MAI, aos quais

serve de areia para jogar nos olhos da imprensa. Os homens que dirigem o mundo não são neoliberais nem

social-democratas, e aliás não teriam chegado aonde chegaram se não tivessem passado anos estudando a

teoria e a técnica do chamado “gerenciamento de conflitos”, justamente para aprender a controlar o fluxo

dos acontecimentos mediante o jogo de oposições em cuja realidade aparente se deleita, se embasbaca e se

confunde a imprensa do Terceiro Mundo, como um sapo hipnotizado pela serpente.

Se o globalismo que vai arrasando os Estados nacionais é monopólio dos neoliberais e imperialistas, da

“direita” em suma, como se há de explicar que a esquerda, em toda parte, lute pela uniformização mundial

Page 50: Olavo de Carvalho - Arquivo - 1998

de direitos (como por exemplo os do trabalhador imigrante), a qual resulta em golpear os Estados nacionais

mais fundo – e mais baixo – do que estes foram atingidos pelo MAI? Também não tem aí explicação o fato

de que, desejando deter a globalização, a esquerda fomente por toda parte ressentimentos raciais que,

integrando os ressentidos na grande comunidade mundial da sua raça, os transforma ipso facto em fatores

debilitantes de qualquer união nacional possível. E muitíssimo menos se explicaria racionalmente, na

perspectiva jaboriana, a mobilização histérica das esquerdas em favor de um ecologismo global que, por

definição, não pode ser administrado autonomamente pelos Estados nacionais, e que, aplicado ao Brasil, já

resultou em entregar a ONGs estrangeiras o controle de regiões mais extensas do que alguns Estados da

Federação, sem encontrar oposição senão entre os militares, tradicionais bêtes noires da fantasia esquerdista.

Não, não: o globalismo não é neoliberal, pela simples razão de que não é one way . É um movimento de mão

dupla, que tanto debilita os poderes nacionais pela apologia do livre comércio e da abolição das fronteiras,

quanto o faz pela disseminação de insatisfações e reivindicações esquerdistas que, não podendo ser

atendidas na escala dos Estados, terminam por subjugar as nações ao despotismo branco das organizações

supranacionais.

Dos esquerdistas que colaboram para esse fim, somente uns poucos o fazem com plena consciência, e destes

não posso dizer em público o que penso.

Podem ser facilmente identificados pelo teor ecológico, futurista e vagamente esotérico (“Nova Era”) do seu

discurso. Nomeei um deles, semanas atrás, numa nota publicada na revista República , da qual me permito

recordar um trecho:

“No folclore midiático brasileiro, „esquerda' ainda significa aquele velho complexo de progressismo e

nacionalismo que se opunha às multinacionais. Mas essa esquerda não existe mais: todos os seus

remanescentes se tornaram servidores das causas neo-esquerdistas (negros, gays, aborto, etc.) calculadas

para debilitar os Estados nacionais e favorecer o poder global.

Todos servem a um novo senhor, parasitando o prestígio do velho – uns por ingenuidade, outros por excesso

de esperteza. Por enquanto ainda iludem a opinião pública e talvez a si mesmos. Mas, aos poucos, todos,

sem exceção, irão perdendo as inibições, tirando as máscaras e declarando, alto e bom som, quem são e a

que vieram. Com sua entrevista em Veja de 26 de agosto, o dr. Leonardo Boff tornou-se o pioneiro desses

globalistas neo-assumidos: „O mundo – declarou ele – vai ao encontro de uma grande crise, e a saída será a

criação de uma central de gerenciamento planetário.' Que o advento desse tremendo poder central terá algo

como a glória e o prestígio de uma nova revelação religiosa, é algo que também o sr. Boff não esconde:

„Segundo ele, afirma Veja , os empresários andam com uma fome imensa de espiritualidade e estão atentos

para a necessidade de uma nova ordem mundial.' Governo mundial e Nova Ordem: é o paraíso espiritual do

FMI.”

Quanto aos outros, que colaboram às tontas e por mera incapacidade de escapar do esquema dualista, a estes

digo apenas que está na hora de acordar, de perceber que as causas e bandeiras nada significam apenas pelas

belas palavras do seu enunciado abstrato (direitos, igualdade, humanismo, etc., etc.), mas pelo esquema

concreto de poder no qual se enquadram como lances de uma estratégia bem complicada, na qual o bem é às

vezes calculado precisamente para gerar o mal.

Muitos se gabam de ter superado o esquematismo esquerda-direita, mas continuam presos numa versão mais

sutil do mesmo esquema, que é o confronto progressismo-reacionarismo. O futuro deste país depende de que

essas pessoas, entre as quais estão algumas de nossas melhores cabeças e alguns corações sinceros, se dêem

conta finalmente de que nenhum poder é uniformemente progressista ou reacionário, mas que todas as

ambições políticas justas ou injustas, neste mundo, sempre se realizaram dosando espertamente uma coisa e

a outra e batendo, em suma, com duas mãos.