Olavo de Carvalho - A Nova Era e a Revolução Cultural

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a nova era e a revoluo cultural -- fritjof capra & antonio gramsci por olavo de carvalho 3a edio, revista e aumentada. the blood-dimmed tide is loosed, and everywhere the ceremony of innocence is drowned; the best lack all conviction, while the worst are full of passionate intensity. william butler yeats, the second coming. ndice * introduo geral Trilogia * prefcio Segunda edio e nota prvia [da 1 edio] * captulo i: lana caprina, ou: a sabedoria do sr. capra * captulo ii: sto. antonio gramsci e a salvao do brasil * captulo iii: a nova era e a revoluo cultural * apndices: o i. as esquerdas e o crime organizado o ii. o brasil do pt observaes finais

introduo geral trilogia manual do usuRio de o imbecil coletivo: atualidades inculturais brasileiras e dos volumes que o antecederam: a nova era e a revoluo cultural: fritjof capra & antonio gramsci e o jardim das aflies: de epicuro Ressurreio de csar ensaio sobre o materialismo e a religio civil. texto lido no lanamento de o imbecil coletivo. faculdade da cidade, rio de janeiro, 22 de agosto de 1996. o imbecil coletivo encerra a trilogia iniciada com a nova era e a revoluo cultural ( 1994 ) e prosseguida com o jardim das aflies ( 1995 ). cada um dos trs livros pode ser compreendido sem os outros dois. o que no se pode , por um s deles, captar o fundo do pensamento que orienta a trilogia inteira. a funo de o imbecil coletivo na coleo bastante explcita e foi declarada no prefcio: descrever, mediante exemplos, a extenso e a gravidade de um estado de coisas - atual e brasileiro - do qual a nova era dera o alarma e cuja precisa localizao no conjunto da evoluo das idias no mundo fora diagnosticada em o jardim das aflies. o sentido da srie , portanto, nitidamente, o de situar a cultura brasileira de hoje no quadro maior da histria das idias no ocidente, num perodo que vai de epicuro at a "nova retrica" de chaim perelman. que eu saiba, ningum fez antes um esforo de pensar o brasil nessa escala. meus nicos antecessores parecem ter sido darcy ribeiro, mrio vieira de mello e gilberto freyre, o primeiro com a tetralogia iniciada com o processo civilizatrio, o segundo com desenvolvimento e cultura, o terceiro com sua obra inteira. separo-me deles, no entanto, por diferenas essenciais: ribeiro emprega uma escala muito maior, que comea no homem de neanderthal, mas ao mesmo tempo procura abranger esse imenso territrio desde o

prisma de uma determinada cincia emprica, a antropologia, e fundado numa base filosfica decepcionantemente estreita, que o marxismo nu e cru. vieira de mello, com muito mais envergadura filosfica, no se aventura a remontar alm do perodo da revoluo francesa, com algumas incurses at o renascimento e a reforma. quanto a gilberto, o ciclo que lhe interessa o que se inicia com as grandes navegaes. de modo geral, os estudiosos da identidade brasileira deram por pressuposto que, tendo entrado na histria no perodo chamado "moderno", o brasil no tinha por que tentar enxergar-se num espelho temporal mais amplo. estou, portanto, sozinho na jogada, e posso alegar em meu favor o temvel mrito da originalidade. temvel porque originalidade singularidade, e a mente humana est mal equipada para perceber as singularidades como tais: ou as expele logo do crculo de ateno, para evitar o incmodo de adaptar-se a uma forma desconhecida, ou as apreende somente pelas analogias parciais e de superfcie que permitem assimillas erroneamente a alguma classe de objetos conhecidos. entre a rejeio silenciosa e o engano loquaz, minha trilogia no tem muitas chances de ser bem compreendida. mas a singularidade, nela, no est s no assunto. est tambm nos postulados filosficos que a fundamentam e na forma literria que escolhi para apresent-la, ou antes, que sem escolha me foi imposta pela natureza do assunto e pelas circunstncias do momento. quanto forma, o leitor h de reparar que difere nos trs volumes. o primeiro compe-se de dois ensaios de tamanho mdio, colocados entre duas introdues, vrios apndices, um punhado de notas de rodap e uma concluso. o todo d primeira vista a idia de textos de origens diversas juntados pela coincidncia fortuita de assunto. a um exame mais detalhado, revela a unidade da idia subjacente, encarnada no smbolo que fiz imprimir na capa: os monstros bblicos behemot e leviat, na gravura de william blake, o primeiro imperando pesadamente sobre o mundo, o macio poder de sua pana firmemente apoiado sobre as quatro patas, o segundo agitando-se no fundo das guas, derrotado e temvel no seu rancor impotente. no usei a gravura de blake por boniteza, mas para indicar que atribuo a esses smbolos exatamente o sentido que lhes atribuiu blake. detalhe importante, porque essa interpretao no nenhuma alegoria potica, mas, como assinalou kathleen raine em blake and tradition, a aplicao rigorosa dos princpios do simbolismo cristo. na bblia, deus, exibe behemot a j, dizendo: "eis behemot, que criei contigo" ( j, 40:10 ). aproveitando a ambigidade do original hebraico, blake traduz o "contigo" por from thee, "de ti", indicando a unidade de essncia entre o homem e o monstro: behemot a um tempo um poder macrocsmico e uma fora latente na alma humana. quanto a leviat, deus pergunta: "porventura poders puxlo com o anzol e atar sua lngua com uma corda?" ( j, 40:21 ), tornando evidente que a fora da revolta est na lngua, ao passo que o poder de behemot, como se diz em 40:11, reside no ventre. maior clareza no poderia haver no contraste de um poder psquico e de um poder material: behemot o peso macio da necessidade natural, leviat a infranatureza diablica, invisvel sob as guas - o mundo psquico - que agita com a lngua. o sentido que blake registra nessas figuras no uma "interpretao", na acepo negativa que susan sontag d a esta palavra: , como deve ser toda boa leitura de texto sacro, a traduo direta de um simbolismo universal. para blake, embora behemot represente o conjunto das foras obedientes a deus, e leviat o esprito de negao e rebelio, ambos so igualmente monstros, foras csmicas desproporcionalmente superiores ao homem, que movem combate uma outra no cenrio do mundo, mas tambm dentro da alma humana. no entanto no ao homem, nem a behemot, que cabe subjugar o leviat. s o prprio deus pode faz-lo. a iconografia crist mostra jesus como o pescador que puxa o leviat para fora das guas, prendendo sua lngua com um anzol. quando, porm, o homem se furta ao combate interior, renegando a ajuda do cristo, ento se desencadeia a luta destrutiva entre a natureza e as foras rebeldes antinaturais, ou infranaturais. a

luta transfere-se da esfera espiritual e interior para o cenrio exterior da histria. assim que a gravura de blake, inspirada na narrativa bblica, nos sugere com a fora sinttica de seu simbolismo uma interpretao metafsica quanto origem das guerras, revolues e catstrofes: elas refletem a demisso do homem ante o chamamento da vida interior. furtando-se ao combate espiritual que o amedronta, mas que poderia vencer com a ajuda de jesus cristo, o homem se entrega a perigos de ordem material no cenrio sangrento da histria. ao faz-lo, move-se da esfera da providncia e da graa para o mbito da fatalidade e do destino, onde o apelo ajuda divina j no pode surtir efeito, pois a j no se enfrentam a verdade e o erro, o certo e o errado, mas apenas as foras cegas da necessidade implacvel e da rebelio impotente. no plano da histria mais recente, isto , no ciclo que comea mais ou menos na poca do iluminismo, essas duas foras assumem claramente o sentido do rgido conservadorismo e da hbris revolucionria. ou, mais simples ainda, direita e esquerda. o drama inteiro a descrito pode-se resumir iconograficamente no esquema em cruz que coloquei depois em o jardim das aflies, mas que j est subentendido em a nova era e a revoluo cultural, pois constitui a estrutura mesma do enfoque analtico pelo qual procuro a apreender a significao das duas correntes de idias mencionadas no ttulo: o holismo neocapitalista de fritjof capra e o empreendimento gramsciano de devastao cultural. nesse primeiro volume, a forma adotada inicialmente no podia ser mais clara e foi imposta pela natureza mesma do assunto: uma introduo, um captulo para capra, outro para gramsci, um retrospecto comparativo e uma concluso inescapvel: as ideologias, quaisquer que fossem, estavam sempre limitadas dimenso horizontal do tempo e do espao, opunham o coletivo ao coletivo, o nmero ao nmero; perdida a vertical que unia a alma individual universalidade do esprito divino, o singular ao singular, perdia-se junto com ela o sentido de escala, o senso das propores e das prioridades, de modo que as ideologias tendiam a ocupar totalitariamente o cenrio inteiro da vida espiritual e a negar ao mesmo tempo a totalidade metafsica e a unidade do indivduo humano, reinterpretando e achatando tudo no molde de uma cosmoviso unidimensional. as notas e apndices, que aparentemente colocam alguma desordem na forma do conjunto, servem a a dois propsitos opostos e complementares: de um lado, indicar as bases mais gerais que o argumento conservava implcitas, mostrando ao leitor que a anlise de capra e gramsci era apenas a ponta visvel de uma investigao muito mais ampla que, quela altura, s meus alunos conheciam atravs das aulas e apostilas do seminrio de filosofia, mas que, nas condies de uma vida anormalmente agitada, eu no estava certo de poder redigir por completo algum dia; de outro lado, indicar que minhas anlises no pairavam do cu das meras teorias, mas que se aplicavam compreenso de fatos polticos que se desenrolavam na cena brasileira na hora mesma em que eu ia escrevendo o livro - da as arestas polmicas que do a trechos desse ensaio uma aparncia de jornalismo de combate. se alguns leitores no viram no livro mais que essa superfcie - como outros no vero em o imbecil coletivo seno a crtica de ocasio a certos figures do dia e em o jardim das aflies um ataque ao establishment uspiano -, no posso dizer que perderam nada, pois o restante e o melhor do que se contm nesses livros no foi feito realmente para esses leitores e bom mesmo que permanea invisvel aos seus olhos. se no primeiro volume permiti que a idia central fosse apenas esboada em fragmentos, um tanto maneira minimalista, para que o leitor, antes pressentindoa do que percebendo-a, tivesse o trabalho de ir busc-la no fundo de si mesmo em vez de simplesmente peg-la na superfcie da pgina, no segundo, o jardim das aflies, segui a estratgia inversa: ser o mais explcito possvel e dar exposio o mximo de unidade, obrigando o leitor a seguir uma argumentao cerrada, sem saltos ou interrupes, ao longo de quatrocentas pginas. mas, para no dar a iluso de que essa forma completa abrangesse a totalidade do meu pensamento a respeito do tema, espalhei ao longo do texto centenas de notas de

rodap que indicavam os pressupostos tericos implcitos, as possibilidades de aprofundamentos por realizar ( ou j realizados s oralmente em aula ), e mil e uma sementes de desenvolvimentos possveis e interessantes, que eu realizaria se tivesse uma vida sem fim, mas que os leitores inteligentes bem podem ir realizando por sua conta. a unidade de argumentao de o jardim das aflies, que na minha inteno, confirmada por alguns leitores, d a esse livro no obstante pesadssimo e complexo a legibilidade de um romance policial, mostra assim no ser a unidade cerrada de um sistema, mas a unidade de um holon, como diria arthur koestler: algo que, visto de um lado, um todo em si, e, de outro lado, parte de um todo mais vasto. esta homologia de parte e todo repete-se, por sua vez, na estrutura interna do livro, onde o evento aparentemente insignificante que lhe serve de ponto de partida j contm, na sua escala microcsmica, ou microscpica, as linhas gerais da interpretao global da histria do ocidente, que apresentada nos captulos restantes. aqueles leitores que se queixaram de que um livro to substancioso comeasse pelo comentrio polmico de um acontecimento menor, mostraram no compreender bem uma das mensagens principais do livro, que a de que, luz de uma metafsica da histria, no h propriamente acontecimentos menores - o grande e o pequeno esto coeridos na unidade orgnica de um sentido que tudo pervade. aquilo que nada pesa na ordem causal pode muito revelar na ordem da significao. e, na verdade, se houvesse acontecimentos perfeitamente insignificantes, que nada merecessem seno o desprezo e o silncio, o terceiro volume da srie, o imbecil coletivo, no poderia sequer ter sido escrito: pois o que nele apresento um mostrurio comentado de banalidades culturais que muito significam precisamente na medida em que no valem nada. e, se decidi reuni-las num volume, dando-lhes a dignidade de serem lembradas quando seus autores j nada mais forem seno sombras no hades, que o sepulcro do irrelevante, foi precisamente porque entendi que, partindo de cada uma delas, e girando em crculos concntricos cada vez mais amplos, se poderia chegar a vises de escala universal semelhantes quela em que, partindo de uma picuinha cultural ocorrida no museu de arte de so paulo em 1990, mostrei aos leitores de o jardim das aflies o combate de leviat e behemot no horizonte inteiro da histria ocidental. e, no podendo refazer tamanho esforo hermenutico a cada nova babaquice cultural que lesse nos jornais, decidi reunir algumas e oferec-las aos leitores como amostras para fins de exerccio. o imbecil coletivo , portanto, o livro de tarefas que acompanha o texto-base trazido em o jardim das aflies, ficando a nova era como abreviatura para principiantes. quem leia assim o imbecil coletivo, buscando ali as lies de casa para reconstituir, desde trs dezenas de exemplos, os lineamentos da viso da histria e do mtodo interpretativo exposto nos volumes anteriores, e buscando sempre a unidade orgnica entre a parte e o todo, entre a viso filosfica de uma cultura milenar e as amostras da incultura momentnea de um pas esquecido margem da histria, esse ter conquistado para si a melhor parte do que lhe dei. pois assim que se lem os livros dos filsofos, mesmo quando se trate apenas de um filosofinho como este que lhes fala. admito que, se em qualquer dos trs livros tivesse adotado uma forma expositiva mais ao gosto acadmico, eu no precisaria estar agora chamando a ateno para uma unidade de pensamento que transpareceria primeira vista. mas essa visibilidade custaria a perda de todas as referncias vida autntica e o aprisionamento do meu discurso numa redoma lingstica que no combina nem com o meu temperamento nem com a regra que me impus alguns anos atrs, de nunca falar impessoalmente nem em nome de alguma entidade coletiva, mas sempre diretamente em meu prprio nome apenas, sem qualquer retaguarda mais respeitvel que a simples honorabilidade de um animal racional, bem como de nunca me dirigir a coletividades abstratas, mas sempre e unicamente a indivduos de carne e osso, despidos das identidades provisrias que o cargo, a posio social e a filiao ideolgica superpem quela com que nasceram e com a qual ho de comparecer, um dia, ante o trono do altssimo. estou profundamente persuadido de que somente nesse nvel de discurso se pode filosofar autenticamente. ademais, existe algum mrito pedaggico em no ser bem arrumadinho, em poder

dispor os dados no na ordem mais costumeira em que os desejaria o espectador preguioso, mas em desarrum-los inteligentemente de modo a obrigar o leitor a tomar parte ativa na investigao. e h um prazer imenso em misturar os gneros literrios quando se autor de um livreto que antes os distinguiu e catalogou com requintes de rigidez formal1. estou imensamente satisfeito de ter podido concluir esta trilogia e de poder estar aqui hoje, nesta celebrao que para mim menos a do lanamento de um livro que a da concluso de uma parte, de uma etapa da tarefa que me cabe nesta vida. tarefa que , em essncia, a de romper o crculo de limitaes e constrangimentos que o discurso ideolgico tem imposto s inteligncias deste pas, a de vincular a nossa cultura s correntes milenares e mais altas da vida espiritual no mundo, a fazer em suma com que o brasil, em vez de se olhar somente no espelho estreito da modernidade, imaginando que quatro sculos so a histria inteira do mundo, consiga se enxergar na escala do drama humano ante o universo e a eternidade. tarefa que , no seu mais elevado e ambicioso intuito, a de remover os obstculos mentais que hoje impedem que a cultura brasileira receba uma inspirao mais forte do esprito divino e possa florescer como um dom magnfico a toda a humanidade. 22/08/96 notas 1. v. os gneros literrios: seus fundamentos metafsicos ( rio, stella caymmi / ial, 1993 ) voltar

prefCio segunda edio decorridos alguns meses da primeira edio, rapidamente esgotada, os acontecimentos no fizeram seno confirmar com igual rapidez os diagnsticos que apresentei neste livro. o brasil vive, de um lado, uma crise profunda da inteligncia, de que reflexo o deslumbramento apalermado com que recebemos e enaltecemos, como altas produes do esprito, as idias mais sonsas e descabidas que nos chegam do estrangeiro. o sr. capra no foi o ltimo da srie. depois dele recebemos a visita e as luzes do sr. richard rorty, cuja proposta, filosoficamente indecorosa e moralmente repugnante, os pensadores locais no ousaram criticar seno com precaues e desculpas que raiavam o servilismo1. esse fenmeno , em parte, efeito passivo da crise da inteligncia norteamericana, como explico num outro livro que dever sair logo aps esta segunda edio2. mas, de outro lado, ele tambm o resultado de uma poltica deliberadamente conduzida pelos movimentos de esquerda, interessados em reduzir toda a vida intelectual brasileira a um coro unanimista de reclamaes. o rebaixamento das artes, da filosofia e at de algumas cincias condio de megafones da propaganda revolucionria, que os melhores pensadores marxistas sempre rejeitaram como uma tentao aviltante, tornou-se a praxe estabe lecida, que ningum ousa contestar, menos pelo temor de um revide explcito do que pela certeza absoluta de que seus ouvintes j no podero compreend-lo, to longe esto de imaginar que a cultura possa ter outros e mais elevados fins. pois o dogma da cultura militante no se adotou como opo consciente, vencedora no confronto com outras concepes possveis, mas se infiltrou sorrateiramente, como um pressuposto implcito, aproveitando-se da ignorncia das novas geraes, que ao despertarem para o mundo da "cultura" j a encontram identificada propaganda ideolgica como se este fosse o seu estado natural e seu destino eterno. o pior que essa propaganda j no transmite sequer idias ou smbolos de uma doutrina revolucionria, mas limita-se a repetir, de maneira rasa, literal e direta, as reivindicaes do dia: fora collor, morte aos corruptos, viva o betinho, queremos sexo. todos os anes do congresso, reunidos e somados, no fizeram tanto mal a este pas quanto essa

prostituio completa da inteligncia s ambies polticas imediatas e s paixes mais corriqueiras. o dinheiro perdido pode-se ganhar novamente; o esprito, quando se vai, no volta mais. os templos abandonados - a experincia universal tornam-se para sempre covis de feiticeiros e bandidos. pelo efeito conjugado da decadncia norte-americana e da ao local tendente a amassar e fundir todos os crebros deste pas na frma sem rosto do "intelectual coletivo" gramsciano, o fato que a inteligncia nacional est indo ladeira abaixo, ao mesmo tempo que sobe, das ruas e dos campos, o rumor sombrio de uma revoluo em marcha. sim, o brasil est inequivocamente entrando numa atmosfera de revoluo comunista. a imbecilizao no seno um sintoma: o temporrio obscurecimento da luz, mencionado pelo i ching, no qual se geram, entre as dobras da noite, os monstros que iro povoar as vises de um despertar temvel. esses monstros j no so to pequenos para que um olhar atento no consiga enxerg-los e espantar-se com a velocidade com que vo crescendo no ventre da inconscincia nacional. o prprio unanimismo da intelectualidade um dos sinais. mas outro, aparentemente contraditrio, a proliferao das reivindicaes gremiais, do esprito de diviso, na hora em que o pas mais necessita do sacrifcio das partes pelo bem do todo. em cada classe, em cada regio, em cada sindicato, em cada empresa, em cada famlia, em cada alma, o que se nota um sentimento agudo e exasperado dos prprios direitos e o completo amortecimento do senso do dever. o predomnio desastroso do reivindicar e protestar sobre o criar e oferecer. quanto menos cumpre sua obrigao, mais cada um se cr no direito de acusar o prximo. o governo reprime os aumentos abusivos de preos enquanto protege as elevadas taxas de juros e alimenta a gigantesca tnia petrolfera que pela majorao peridica dos combustveis vai marcando o compasso para a subida generalizada do custo de vida. o pai de famlia vocifera contra a corrupo dos polticos enquanto solicita a um contador que "d uns retoques" na sua declarao de rendimentos para tornar mais verossmil a mentira que o isentar do imposto. as empresas censuram o governo no instante mesmo em que elevam os preos de seus produtos e servios acima de tudo quanto permite a lei e recomenda a decncia. a esquerda clama contra as oligarquias enquanto promove greves de funcionrios pblicos voltadas diretamente contra os direitos da populao. os intelectuais e artistas clamam contra as injustias enquanto levam vida de prncipes s expensas do errio pblico. a imprensa acusa, delata, aponta homens e instituies ao oprbrio, enquanto discretamente, em congressos de profissionais longe dos olhos da multido, confessa sua prpria falta de decoro, tica e dignidade. os sem-terra exibem diante das cmeras sua pobreza comovente enquanto gastam fortunas em operaes paramilitares que o prprio exrcito no teria verba para sustentar. o discurso do unanimismo , como o coro entusistico das torcidas durante a copa, no seno um ersatz, a ostentao de uma unidade postia que encobre a luta covarde e sem regras de todos contra todos. o egosmo, a inconscincia, a maldade ganham terreno a cada nova investida da "campanha pela tica". quia bono? a quem aproveita o crime? quem lucra com a dilacerao da alma nacional num confronto vil de todos os egoismos e de todas as inconscincias? as pesquisas de opinio respondem que, de todos os brasileiros, o nico que no tem medo de ser feliz j ganhou quarenta por cento das intenes de voto para a presidncia. poderia ser uma coincidncia, o efeito acidental de uma conjuntura. mas, recuando em busca das suas razes, vemos que esse efeito foi longamente desejado e meticulosamente preparado pela mais hbil e talentosa gerao de intelectuais ativistas j nascida neste pas. a gerao que, derrotada pela ditadura militar, abandonou os sonhos de chegar ao poder pela luta armada e se dedicou, em silncio, a uma reviso de sua estratgia, luz dos ensinamentos de antonio gramsci. o que gramsci lhe ensinou foi abdicar do radicalismo ostensivo para ampliar a margem de alianas; foi renunciar pureza dos esquemas ideolgicos aparentes para ganhar eficincia na arte de aliciar e comprometer; foi recuar do combate poltico direto para a zona mais profunda da sabotagem psicolgica. com gramsci ela aprendeu que

uma revoluo da mente deve preceder a revoluo poltica; que mais importante solapar as bases morais e culturais do adversrio do que ganhar votos; que um colaborador inconsciente e sem compromisso, de cujas aes o partido jamais possa ser responsabilizado, vale mais que mil militantes inscritos. com gramsci ela aprendeu uma estratgia to vasta em sua abrangncia, to sutil em seus meios, to complexa e quase contraditria em sua pluralidade simultnea de canais de ao, que praticamente impossvel o adversrio mesmo no acabar colaborando com ela de algum modo, tecendo, como profetizou lnin, a corda com que ser enforcado. a converso formal ou informal, consciente ou inconsciente da intelectualidade de esquerda estratgia de antonio gramsci o fato mais relevante da histria nacional dos ltimos trinta anos. nela, bem como em outros fatores concordantes e convergentes, que se deve buscar a origem das mutaes psicolgicas de alcance incalculvel que lanam o brasil numa situao claramente pr-revolucionria, que at o momento s dois observadores, alm do autor deste livro, souberam assinalar, e alis mui discretamente3. a expectativa, a esperana, o anseio da revoluo so to velhos, to arraigados na alma da intelligentzia nacional4 que, mesmo diante do fracasso mundial do socialismo, ela no ter foras para resistir tentao de faz-la, agora que a conjuntura local, pela primeira vez na nossa histria, lhe oferece os meios de chegar ao poder. o brasil, de fato, tem um descompasso crnico em relao ao tempo da histria universal. o reconhecimento mundial da debacle do comunismo ecoou neste pas - paradoxalmente, segundo a lgica humana, mas coerentemente, segundo a linha constante da histria nacional - como um toque de esperana: chegou a nossa vez de conquistar aquilo que j ningum mais quer. durante algum tempo, nutri a insensata esperana de que o pt expeliria de si o veneno gramsciano e se transformaria no grande partido socialista, ou trabalhista, de que o brasil precisa para compensar, na defesa do interesse dos pequenos, o avano neoliberal aparentemente irreversvel no mundo, e propiciar, pelo sadio jogo de foras, o movimento regular e harmnico da rotatividade do poder que a pulsao normal do organismo democrtico. movido por essa iluso, votei em lula para presidente. hoje no votaria nele nem para vereador em so bernardo. que, pela sucesso de acontecimentos desde a campanha do impeachment, o pt mostrou sua vocao, para mim surpreendente, de partido manipulador e golpista, capaz de conduzir o pas s vias fraudulentas da "revoluo passiva" gramsciana, usando para isso dos meios mais covardes e ilcitos - a espionagem poltica, a chantagem psicolgica, a prostituio da cultura, o boicote a medidas saneadoras, a agitao histrica que apela aos sentimentos mais baixos da populao -, e de adornar esse pacote de sujidades com um discurso moralista que recende a sacristia. o partido que, para sabotar um candidato, promove no lanamento da nova moeda algo como uma "greve preventiva" sob a espantosa alegao de uma possibilidade terica de danos salariais futuros, sabendo que essa greve resultar em aumento do preo dos combustveis e em retomada do ciclo inflacionrio, dando facticiamente confirmao retroativa aos danos anunciados, que, francamente, decidiu imitar o capeta: produz o mal para no ventre dele gerar o dio, e no ventre do dio o discurso de acusao. a greve dos petroleiros no deu certo, mas ela o mais puro exemplo do que o povo denomina "apelao": o recurso extremo usado para fins levianos. se o pt faz isso, porque perdeu sua confiana no futuro majestoso a que o destinava a nossa democracia em formao, e, excitado por indcios de um sucesso momentneo que teme no repetir-se nunca mais, resolveu apostar tudo no jogo voraz e suicida do it's now or never. no quer mais apenas eleger o presidente, governar bem, submeter seu desempenho ao julgamento popular daqui a cinco anos, fazer histria no ritmo lento e natural dos moinhos dos deuses: quer tomar o poder, fazer a revoluo, desmantelar os adversrios, expelir da poltica para sempre os que poderiam derrot-lo em eleies futuras. nos termos da poesia de murillo mendes, preferiu, s "lentas sandlias do bem, as velozes hlices do mal". a mitologia gramsciana, diagnosticando pomposamente a "transio para um novo bloco histrico", deu uma legitimao verbal a essas pretenses, e eis que o brasil, mal tendo ingressado no caminho da democracia, j se apressa a abandon-lo pelo atalho

da revoluo. aonde ele leva, algo que o mundo sabe, mas que importa o conhecimento do mundo s hordas de menores-de-idade que a lisonja esquerdista consagrada em norma constitucional transformou na parcela decisiva do eleitorado, dando-lhes poder antes de lhes dar educao? o que importa aproveitar o momento, levar a todo preo o lulal, carregado nos ombros de garotos raivosos, insolentes e analfabetos, e, antes que o "consenso passivo" da populao tenha tempo de avaliar o que se passa, atrelar irreversivelmente o pas ao carro-bomba que se precipita, morro abaixo, no rumo da revoluo. a gerao que atingiu a idade adulta no momento em que a ditadura fechava as portas de acesso vida poltica est agora com cinqenta anos. ao longo dos ltimos trinta ela esperou, sonhou, planejou, desejou, cobiou entre lgrimas de rancor impotente, e, sobretudo, leu muito antonio gramsci. que a revoluo socialista j tenha mostrado ao mundo sua verdadeira face, que ela j tenha provado cabalmente que no vale a pena, isto pouco interessa. a gerao dos guerrilheiros far o que longamente se preparou para fazer. pouco importa que, pelo relgio do mundo, tenha passado a hora. o fim da festa , para o catador de lixo, o sinal de que a sua festa est para comear. por essas razes que este livro, aparentemente constitudo de pedaos inconexos, comea a mostrar, pela fora dos acontecimentos externos, a unidade que, no plano literrio, o autor no teve o tempo ou o engenho de lhe dar. sob a aparncia comprometedora de uma salada histrica que mistura lnin, o i ching, max weber, freud e o comando vermelho, ele aponta, pela ordem e, segundo creio, com lgica, o sintoma e a causa da doena da intelectualidade brasileira: a origem ao menos parcial da nossa vulnerabilidade falsa mensagem do sr. capra est nas idias de antonio gramsci, transformadas em prtica pela gerao de intelectuais esquerdistas que, na ilha grande, fez ofcio de parteira do comando vermelho, e que agora d o tom da vida mental neste pas. se, na primeira edio, no consegui dar desse fenmeno uma exposio seguida e coesa, tendo de adotar, em vez disso, um enfoque prismtico e desnivelado, antes sugerindo em fragmentos do que declarando por extenso o sentido do conjunto, no foi por nenhuma inteno profunda: foi por autntica incapacidade de fazer de outro modo. mas no creio, por isto, merecer censura: afinal, aqui foi dito aos trancos e pedaos o que ningum mais disse de maneira alguma. do primeiro a esboar a unidade de um quadro confuso, no se exige que seja completo; e do primeiro a anunciar um perigo terrvel, no se exige que fale claro e ordenado segundo o bom estilo. esbaforido e gaguejante, semilouco e abstruso, ele afinal presta um servio de emergncia. como diz um provrbio rabe: "no repares em quem sou, mas recebe o que te dou."5 rio de janeiro, junho de 1994.

nota prVia [ da 1a edio ] a "nova era" da qual fritjof capra se tornou festejado porta-voz e a "revoluo cultural" de antonio gramsci tm algo em comum: ambas pretendem introduzir no esprito humano modificaes vastas, profundas e irreversveis. ambas convocam ruptura com o passado, e propem humanidade um novo cu e uma nova terra. a primeira vem alcanando imensa repercusso nos crculos cientficos e empresariais brasileiros. a segunda, sem fazer tanto barulho, exerce h trs dcadas uma influncia marcante no curso da vida poltica e cultural neste pas. nenhuma das duas foi jamais submetida ao mais breve exame crtico. aceitas por mera simpatia primeira vista, penetram, propagam-se, ganham poder sobre as conscincias, tornam-se foras decisivas na conduo da vida de milhes de pessoas que jamais ouviram falar delas, mas que padecem os efeitos do seu impacto cultural. para os adeptos e propagadores conscientes das duas novas propostas, nada mais reconfortante do que a passividade atnita com que o pblico letrado brasileiro tudo recebe, tudo admite, tudo absorve e copia, com aquele talento para a imitao

maquinal que compensa a falta de verdadeira inteligncia. mas a revoluo cultural de gramsci e o movimento da "nova era" no so simples modas, que se possam adotar e abandonar vontade, com a despreocupao de quem troca de cuecas. so propostas de imensa envergadura, que, uma vez aceitas, mesmo implicitamente, mesmo informalmente, mesmo hipoteticamente, levam a conseqncias de alcance incalculvel. essas conseqncias no pouparo, decerto, aqueles que tiverem aderido s suas causas por mero passatempo, sem uma clara conscincia das responsabilidades em jogo. no pouparo ningum que esteja dentro do seu raio de ao. e todos estamos. , portanto, uma leviandade suicida absorver idias como essas sem um exame crtico preliminar. este exame que inauguro no presente livreto, ciente de que, ao faz-lo, me adianto a uma lerda opinio pblica que nem de longe levantou ainda as questes aqui discutidas, mas nem por isto o fao com menor atraso em relao s exigncias de minha prpria conscincia, que me cobra este trabalho desde que pela primeira vez falei em pblico sobre estes assuntos, em l987. falador prolfico, sou tardo em escrever, motivo pelo qual meu sentimento de urgncia se transforma, s vezes, em sentimento de culpa. a urgncia, no caso, era a de esclarecer a ligao entre aquelas duas correntes de pensamento; ligao que, uma vez percebida, revela a inconsistncia de ambas, e de ambas nos liberta. por no perceb-la, a mente brasileira gira hoje em falso em torno do eixo balizado por esses dois plos. pelo nmero de adeptos e pelos postos estratgicos que alguns destes ocupam na sociedade, capra e gramsci dominam as duas correntes mentais mais atuantes deste pas. o fato de que jamais tenham sido confrontados e de que a idia mesma de confront-los soe estranha mostra apenas que o pas no tem clara conscincia das alternativas em que se debate, e que a vida mental nele tende a cindir-se em devoes estanques a deuses que se desconhecem mutuamente e que mutuamente se hostilizam nas trevas, como espadachins vendados. trata-se portanto, aqui, de esclarecer um conflito subconsciente, em que o destino de um pas se decide entre as sombras de um sonho. brasil sonmbulo: para que sustentas com dinheiro e lisonjas os teus intelectuais, se no para te revelarem a ti mesmo, para te dizerem o que se passa contigo para alm da superfcie do noticirio? os trs captulos que compem este livro reproduzem, tanto quanto possvel, o contedo de aulas e conferncias que dei sobre os respectivos temas, seja no seminrio permanente de filosofia e humanidades, que dirijo no instituto de artes liberais, seja fora dele. o captulo sobre fritjof capra foi redigido e distribudo aos meus alunos em setembro de l993, quando se anunciava a prxima vinda ao brasil do guru da nova era, promovida pela universidade holstica de braslia. os outros, seus naturais complementos como se ver, foram escritos agora em fevereiro de l994, especialmente para este livro. os apndices ilustram detalhes que importam compreenso do cap. ii. reconheo que, ao menos quanto a gramsci, o exame que apresento superficial, que haveria ainda milhares de coisas a dizer que aqui no foram ditas.6 mas algum tem de comear, e, na falta de melhores crebros que se dispusessem a digerir o assunto, a coisa sobrou para mim. quanto a capra, ele est longe de representar a "nova era" na sua totalidade; embora alguns vejam nele uma sntese desse movimento, ele constitui apenas um seu sintoma, ainda que agudo e sonante. que ningum me censure, portanto, a incompletude destas anlises: minhas amostras levam o rtulo de amostras, com altiva modstia. tambm no tem, este trabalho, a menor pretenso de interferir no curso das coisas. seu nico anseio fornecer, aos que tenham um sincero desejo de compreender os acontecimentos, alguns meios de faz-lo. ora, os que tm esse desejo so sempre poucos, no meio do vozerio, entusistico ou ameaador, dos que crem j saber tudo e que no aguardam seno com impacincia que o mundo se curve s suas propostas. queles poucos e silenciosos, portanto, dedicado este trabalho. dentre eles, destaco o romancista herberto sales, que leu em verso datilogrfica o primeiro captulo e lhe fez referncias generosas, que agradeo comovido. tanto mais comovido porque, se eu tivesse de escolher um guru estilstico, ele no seria outro, na presente fase da nossa literatura, seno herberto sales. destaco ainda o valente grupo de alunos e

ouvintes que h anos acompanha meu trabalho com um interesse que me reconforta. rio, fevereiro de l994 olavo de carvalho notas 1. v. jos Arthur gianotti, "conversa com richard rorty", jornal do brasil, 26 de maio de 1994. no mnimo estranho que um homem como gianotti, to valente ao expor idias polticas mesmo quando lhe atraiam a ira dos sumos-sacerdotes da esquerda nacional, se cubra de cautelas ao criticar um pensamento to vulnervel como o de rorty. explica-se, talvez, pela crnica timidez uspiana, inibio intelectual que se tornou, em verso fetichizada, a caricatura tupiniquim do "rigor" ensinado pelos primeiros mestres - franceses - fundadores da usp. o "rigor" uspiano na verdade moleza, tremor da gelia terceiromundana ante a autoridade dos dolos da moda - compensao junguiana pela petulncia ante o legado espiritual do passado. mesmo em sua verso original europia, herdeira de nobres tradies filosficas, um rigorismo acadmico inibitrio torna-se muitas vezes o refgio comunitrio onde o intelecto mal dotado vai abrigar-se contra os perigos da investigao solitria - vale dizer, contra o exerccio mesmo da filosofia. o verdadeiro rigor filosfico, ao contrrio, pura coragem interior, no se curva seno ante a evidncia e no tem nada de temor reverencial adolescente ( ou colonial ) ante os prestgios acadmicos do dia. com a ascenso da intelectualidade paulista ao primeiro plano da vida nacional, a inverso uspiana do rigor, que devota ao prestgio o culto que nega verdade, ameaa contaminar o pensamento brasileiro como um todo, selando a morte da inteligncia nesta parte do mundo. nada vai aqui contra gianotti, homem capaz e correto, que s peca por admirar quem no merece - ou por fingir admirar, talvez, j que o floreio bajulatrio involuntariamente irnico outra marca registrada do estilo uspiano, onde faz as vezes de polidez acadmica. voltar 2. o imbecil coletivo. atualidades inculturais brasileiras, rio, ial & stella caymmi editora, 1994, que forma, com o presente volume e com o jardim das iluses. epicuro e a revoluo gnstica, que tambm vir a pblico em breve, uma trilogia dedicada ao estudo da patologia cultural brasileira na presente fase da nossa histria. voltar 3. um deles foi fernando henrique cardoso ( jornal do brasil, 11 nov. 93 ), um homem que conhece as esquerdas muito bem e que, por isto mesmo, sentiu o dever de se opor a elas no momento em que mais poderia ajud-las. o outro foi oliveiros da silva ferreira, que vem explorando o assunto em vrios artigos publicados em o estado de s. paulo. voltar 4. o mito da revoluo brasileira um componente ativo do pathos esquerdista desde a dcada de 30. "fadado a um grande destino, o brasil seria a terceira grande revoluo neste sculo. a primeira, a unio sovitica, segunda a repblica popular da china, e a terceira, a repblica democrtica popular do brasil" ( lus mir, a revoluo impossvel, so paulo, best seller, 1994, p. 10 ). voltar 5. nada retirei nem alterei do original nesta segunda edio, apenas corrigi erros de grafia, acrescentei este prefcio, uns quantos adendos, e adendos de adendos, e muitas notas de rodap. o leitor austero achar que so excrescncias complicatrias, mas gosto delas justamente por isso, porque eliminam do texto a enganosa linearidade e lhe do aquele aspecto vivente de rede nervosa, de trama vegetal, que faz com que, precisamente, um texto seja um texto. voltar 6. limito-me ao estudo da estratgia e, mais brevemente, de alguns aspectos da gnoseologia, sem tocar por exemplo na sociologia gramsciana, que mereceria - no por seu valor cientfico, mas pela fora persuasiva da sua alucinante falsificao da realidade - um exame mais atento. prometo faz-lo no livro o antroplogo antropfago. a misria das cincias sociais, a sair no ano que vem. tambm no pude seno mencionar de longe as concepes estticas e literrias de gramsci, to influentes at hoje, mas sobre as quais no pretendo escrever nada nunca, se os deuses me pouparem esse castigo. [ nota da 2a. ed. ] voltar

i lana caprina, ou: a sabedoria do sr. capra no comeO de novembro7 estar chegando ao brasil o sr. fritjof capra, chamado pela universidade holstica de braslia para falar sobre a nova era que ele anuncia no seu livro o ponto de mutao. a voz do sr. capra no clamar no deserto. a universidade holstica j reuniu uma congregao de intelectuais locais para dizer-lhe amm. entre os aclitos contamse frei betto e o ex-reitor da unb, christovam buarque. o sr. capra, j se v, no um escritor como os outros: um lder, uma autoridade espiritual e, admitamos logo, um profeta. o contedo de suas profecias bastante conhecido: o ponto de mutao anda at nas mos das crianas, que o debatem nas escolas. mas, segundo a universidade holstica, isso no basta. o sr. capra tem de ser ouvido por todos os amigos da espcie humana. pois, embora homnimo de um cineasta que se celebrizou pelas fitas de happy end, ele no garante nenhum final feliz para o nosso sculo a no ser que a humanidade siga os seus conselhos. passemos portanto a examin-los, com a urgncia requerida pelo caso. segundo o sr. capra, a histria do mundo chegou a um turning point, e deve mudar o seu curso. as trs principais mudanas em pauta so as seguintes: primeira, a humanidade deixar de consumir combustveis fsseis ( petrleo ); segunda, o patriarcado vai acabar; terceira, o paradigma cientfico vigente ser substitudo por um outro, de base holstica. estas trs coisas j esto acontecendo, mas, assegura o sr. capra, urge apressar a sua consumao, que marcar o advento da nova era. ao falar do primeiro item, o sr. capra muito breve, como convm aos profetas. em vez das longas anlises que concede aos dois outros temas, ele emite apenas esta profecia: "esta dcada ser marcada pela transio da era do combustvel fssil para uma nova era solar, acionada por energia renovvel oriunda do sol." tendo o livro sido publicado em 1981, a dcada a que o sr. capra se refere terminou em 1990. bem, nem todos os profetas do sorte. mas, se a mencionada profecia vier a cumprir-se com quatro, cinco ou nove dcadas de atraso, o sr. capra sempre poder alegar que s. joo evangelista tambm no foi muito preciso quanto data do apocalipse. como muitos outros profetas, o sr. capra pode queixar-se de ser um incompreendido. eu, por exemplo, no compreendo como que o mundo poderia ter saltado direto da era dos combustveis fsseis para a da energia solar, sem passar pela era atmica, na qual j estvamos na data de emisso da profecia e na qual continuamos a estar aps a data do seu vencimento. mas talvez a intuio proftica do sr. capra opere velocidade da luz, saltando etapas. eis a alis um bom motivo para saltarmos logo para o item seguinte, j que o primeiro captulo da mutao no teve um happy end. o patriarcado consiste, segundo o sr. capra, num complexo de trs elementos: primeiro, o domnio do homem sobre a mulher; segundo, o domnio da espcie humana sobre a natureza; terceiro, o predomnio da razo ( faculdade masculina ) sobre a intuio ( feminina ). so trs lados de um fenmeno nico, que o sr. capra resume como a supremacia do yang sobre o yin. , como se v, um tipo especial de patriarcado, bem diferente daquele que podemos encontrar nos livros de histria e sociologia. pois estes nos dizem que o aumento do poderio tcnico sobre a natureza abalou o regime de propriedade rural no qual se esteava o patriarcado; e que o advento do imprio da razo, trazido no bojo da revoluo francesa, promoveu logo em seguida a igualdade de direitos para homens e mulheres, desferindo o golpe de misericrdia na autoridade do pater familias. em suma, que das trs coisas que o sr. capra rene sob o rtulo comum de

"patriarcado", duas so precisamente o contrrio. mas os profetas no ligam para as cincias profanas. non enim cogitationes meae cogitationes vestrae, j nos tinha advertido a bblia. o sr. capra, com efeito, no pensa como ns. mas h algo nele que pelo menos alguns de ns podem compreender perfeitamente bem. sendo a lgica, no seu entender, uma expresso do abominvel patriarcado cujo fim ele deseja, ele no poderia mesmo obedec-la sem tornar-se, ipso facto, ilgico. ento por uma simples questo de lgica que ele opta por ser ilgico. qualquer beb de colo pode compreender isto. o difcil compreend-lo quando j no se um beb de colo. para ser admitido nos cus da nova era, o leitor deve portanto tornar-se como os pequeninos. eis aqui um caso tpico. para livrar-se do odioso patriarcado, diz o nosso profeta, a humanidade deveria inspirar-se no exemplo da civilizao chinesa, cuja concepo da natureza humana, expressa sobretudo no i ching, "est em flagrante contraste com a da nossa cultura patriarcal". buscando agora munio antipatriarcal nas pginas do i ching, o leitor encontrar, no hexagrama 37, as seguintes recomendaes: "a esposa deve ser sempre guiada pela vontade do senhor da casa, isto , pelo pai, pelo marido ou pelo filho adulto. o lugar dela dentro de casa." a vida que betty friedan pediu a deus. alis, segundo informa marcel granet no clssico la civilisation chinoise8, o feudalismo chins, perodo no qual se redigiu o grosso dos comentrios do i ching, "repousa sobre o reconhecimento do predomnio masculino". a china a que o sr. capra se refere no deve portanto ser a mesma que os gegrafos profanos conhecem por esse nome. o que o sr. capra no pode mesmo ser acusado de facciosismo sinfilo. pois, se ele rejeita a lgica ocidental, nem por isto se curva s exigncias da oriental. segundo ele, o yang representa a razo analtica, que divide, e o yin a intuio, que unifica. os chineses, nada entendendo destas sutilezas, representaram o divisivo yang por um trao contnuo, e o unificante yin por um trao dividido ao meio. na nova era, as edies do i ching viro devidamente retificadas. enquanto essas edies no aparecem, o sr. capra j vai tratando, por conta, de introduzir no pensamento chins umas modificaes mais srias. ele diz, por exemplo, que na civilizao chinesa o homem no procura dominar a natureza, mas integrar-se nela. novamente, a sabedoria chinesa do sr. capra pegou a china desprevenida: um chins nem mesmo entenderia essa frase, pela razo de que na sua lngua no h uma palavra que signifique "natureza" no sentido ocidental, isto , ao mesmo tempo o mundo visvel e a ordem invisvel que o governa ( ambiguidade que as lnguas modernas herdaram do grego physis ). o chins nisto, com o perdo da palavra, mais "analtico": tem um termo para designar o mundo visvel ( khien ), e um outro ( khouen ) para a ordem invisvel. para compensar, o mundo visvel ou khien abrange, "sinteticamente", tanto a natureza terrestre quanto a sociedade humana. o sr. capra no diz a qual das duas "naturezas" o homem deveria integrarse, mas claro que ningum poderia integrar-se em ambas simultaneamente e de um mesmo modo. os antigos chineses j haviam advertido isto, e resolveram a contradio propondo uma dualidade de atitudes para fazer face a esse duplo aspecto da natureza: o sbio, diz o i ching, deve buscar ativamente integrar-se na ordem invisvel ou khouen ( chamada por isto "perfeio ativa" ) e contornar suavemente as exigncias da natureza terrestre ( khien ou "perfeio passiva" ). dito de outro modo: integrar-se na ordem celeste, integrando em si e superando dialeticamente a ordem terrestre ( e portanto absorvendo-a, por sua vez, na ordem celeste ). o "celeste" e o "terrestre", nesse sentido, identificam-se respectivamente ao dharma e ao kharma da tradio hindu. o homem no se "integra" no kharma, porm "absorve-o" na medida em que se integra no dharma: livra-se do peso da terra na medida em que atende ao apelo celeste. exatamente no mesmo sentido diz o cristianismo que o homem vence a necessidade natural na medida em que segue as vias da providncia. no bem o que diz o sr. capra. o ideograma wang ( "o imperador" ) esclarece isso melhor. ele constitui, por si, um compndio de cosmologia chinesa. compe-se de trs traos horizontais - o cu em cima, a terra em baixo, o homem no meio, formando a trade tien-ti-jen, "cu-

terra-homem" - cortados por um trao vertical, o tao, que se traduz um tanto convencionalmente por lei ou harmonia. a harmonia consiste em que cada coisa fique no lugar que lhe cabe, de modo que, por trs de todas as mudanas por que passa o mundo, a ordem suprema no seja violada ( embora neste mundo de aparncias ela o seja necessariamente, pois, como dizia o evangelho, " necessrio que haja escndalo"; mas no fim todas as desordens parciais so reintegradas na ordem total ). na trade chinesa, o homem chamado "filho do cu e da terra". sendo o cu o pai, j se v, pelo hexagrama 37, quem que manda. o homem governa portanto o mundo visvel, mas no o faz por arbtrio prprio, e sim em nome de uma ordem transcendente. tien no significa o "cu" no sentido material, mas a "perfeio celeste" ou mais propriamente a "vontade do cu"; em ingls, que o sr. capra compreende melhor, no o sky, mas o heaven, morada do esprito santo. o sbio ou imperador apreende no invisvel a vontade do cu e a pe em execuo na terra. na sala central do seu palcio, ele cumpre diariamente ritos de um complexo simbolismo geomtrico e numerolgico ( similar ao do pitagorismo ), mediante os quais os arqutipos celestes "descem" ( exatamente como na missa "desce" o esprito santo ) para trazer Terra a ordem e a harmonia. se o imperador pra de fazer os ritos, a terra - sociedade e natureza ao mesmo tempo - entra em convulso, espalham-se por toda parte a ignorncia, o medo, a violncia, a fome, a peste. no era s a interrupo dos ritos que podia trazer a catstrofe. "o imperador escreve max weber em a religio da china - tinha de se conduzir segundo os imperativos ticos das escrituras clssicas. o monarca chins permanecia basicamente um pontfice. ele tinha de provar que era mesmo 'filho do cu', o regente aprovado pelos cus, para que o povo, sob o seu governo, vivesse bem. se os rios arrebentavam os diques ou a chuva no caa apesar de todos os ritos, isto era prova - acreditava-se expressamente - de que o imperador no tinha as qualidades carismticas requeridas pelo cu." o homem governa a terra, mas em nome do cu. governa como pontifex, "construtor de pontes", que liga a terra ao cu atravs do reto caminho, o tao. caso se afaste do reto caminho, ele perde de vista a vontade do cu e j no pode governar seno em nome prprio, como tirano e usurpador. a, num choque de retorno, ele perde seu poder e cai sob o domnio das potncias terrestres que antes comandava. como a terra designa ao mesmo tempo a natureza fsica e a sociedade humana, o choque pode significar tanto uma revoluo civil ou golpe militar, quanto uma tempestade ou terremoto. o monarca que cai representa, por analogia, qualquer homem que, rompendo com a ordem celeste, perca de vista o seu destino ideal e caia presa das paixes abissais. a situao descrita no hexagrama 36, o obscurecimento da luz: "primeiro ele subiu ao cu, depois mergulhou nas profundezas da terra." o comentrio tradicional, resumido por richard wilhelm, o seguinte: "o poder da treva subiu a um posto to alto que pode trazer dano a quantos estejam do lado do bem e da luz. mas no fim o poder das trevas perece por sua prpria obscuridade." j se v que o conselho do sr. capra, afetado pela ambiguidade da palavra "natureza", pode ter dois significados opostos: com "integrar-se", pretende ele que obedeamos Vontade do cu ou que mergulhemos nas profundezas da terra? as falas dos profetas, quando obscuras, merecem interpretao. interpretemos. na verso do sr. capra, o cu no mencionado. a trade fica reduzida a uma dualidade: de um lado o homem, de outro a natureza visvel. o macho e a fmea. o yang e o yin. a cada um s resta a alternativa de subjugar o outro ou "integrarse" nele. o homem da civilizao industrial optou pela primeira hiptese. o sr. capra advoga a segunda. verdade o que diz o sr. capra, que a civilizao ocidental optou por dominar a natureza. mas verdade tambm que, desde o renascimento ao menos, ela apagou ( exatamente como o sr. capra ) toda referncia a uma ordem transcendente ( tien ) e deixou o homem sozinho, face a face com a natureza material. desde ento a histria das idias ocidentais tem sido marcada por uma oscilao pendular entre as ideologias da dominao e as ideologias da submisso: classicismo e romantismo,

revoluo e reao, historicismo e naturalismo, cientificismo e misticismo, ativismo prometico e evasionismo quietista, marxismo e existencialismo e, last not least, revoluo cultural socialista versus ideologia da "nova era". neste ltimo par de opostos que reside a chave para a compreenso do nosso profeta. o sr. capra acerta na mosca ( nenhum profeta pode realizar o prodgio de errar sempre ) ao dizer que sua viso da histria cultural uma alternativa ao marxismo. para marx e seus epgonos, a natureza nada mais que o cenrio da histria humana. est a no como um ser, uma substncia ontolgica que o homem deva contemplar e respeitar em sua constituio objetiva, mas como matria-prima a ser apropriada e transformada livremente segundo o arbtrio humano. a natureza, em marx, ancilla industriae. o marxismo prossegue a tradio de prometeanismo revolucionrio do renascimento, potencializando-a mediante a submisso completa e explcita da natureza histria. a isto que se ope a ideologia da nova era. mas ela no se ope somente ao marxismo em geral, e sim a uma forma especfica de marxismo, que tambm, como ela, quis operar uma "mutao", um giro de cento e oitenta graus na orientao do pensamento humano. o fundador desta corrente marxista foi o idelogo italiano antonio gramsci ( 1891-1937 ). o gramscismo prope uma revoluo cultural que subverta todos os critrios admitidos do conhecimento, instaurando em seu lugar um "historicismo absoluto", no qual a funo da inteligncia e da cultura j no seja captar a verdade objetiva, mas apenas "expressar" a crena coletiva, colocada assim fora e acima da distino entre verdadeiro e falso. a total submisso do "objeto" ( natureza ) ao "sujeito" ( humanidade histrica ). neste novo paradigma, a nfase da atividade cientfica j no cai no conhecimento objetivo da natureza ( descrio exata da sua aparncia visvel e investigao dos princpios invisveis que a governam ), mas sim na sua transformao pela tcnica e pela indstria, a isto correspondendo, na esfera das idias, uma espcie de "revoluo permanente" de todas as categorias de pensamento a suceder-se numa acelerao vertiginosa do devir histrico. contra isto levantou-se a ideologia da nova era. ao prometeanismo revolucionrio, ela ope a "integrao na natureza"; acelerao da histria, o equilbrio "ecolgico" da nova ordem mundial; e, ao historicismo absoluto, o "fim da histria". capra inconcebvel sem fukuyama. capra a casca da qual fukuyama o miolo. todo o vistoso "esoterismo" da nova era, com suas iniciaes secretas, seus gurus, seus magos e seus ritos, no constitui seno o exoterismo, o aparato religioso externo e social, cujo interior, cujo "sentido esotrico" na verdade uma cincia bem moderna, racional e profana: o planejamento estratgico. fukuyama est para capra exatamente como o esoterismo est para o exoterismo, como a igreja de joo est para a igreja de pedro. mas ambas, cada qual no seu plano e pelos meios que lhe so prprios, combatem um mesmo adversrio. o gramscismo fez muito sucesso nos anos 60, inspirando a febre passageira do eurocomunismo e revigorando algumas esperanas comunistas. no brasil, conquistou praticamente a esquerda inteira, e o pt um partido essencialmente gramsciano, admita-o ou no explicitamente. mas o intento de renovao foi fraco e tardio: o comunismo acabou sendo derrotado pela ascenso mundial da ideologia da nova era. afinal, a mistura de fsica quntica e simbolismos orientais, experincias psquicas e sexo livre, promessas de paz e miragens de auto-realizao, que essa ideologia oferece, infinitamente mais sedutora do que qualquer "historicismo absoluto". o brasil, sempre atrasado, um dos poucos lugares do mundo onde o combate ainda prossegue, com um feroz ncleo de remanescentes gramscianos oferecendo uma quixotesca resistncia local aos exrcitos triunfantes da nova era. mas, se o prometeanismo revolucionrio representou o mximo da hybris, da avidez dominadora do homem sobre a natureza, a ideologia da nova era no outra coisa seno o choque de retorno anunciado pelo i ching. a nova era venceu a revoluo gramsciana. mas foi uma teratomaquia: um combate de monstros. diriam os chineses que foi um combate suicida: que, sem a obedincia comum a tien, a luta entre ti e jen s pode terminar pelo "obscurecimento da luz". a vitria da nova era prenuncia, portanto, o prximo passo do ciclo das mutaes:

a humanidade vai cair da autoglorificao prometica na passividade inerme; vai integrar-se, "ecologicamente", no equilbrio da nova ordem mundial, onde o conformismo coletivo ser assegurado mediante a justa repartio dos meios de satisfazer as paixes mais baixas e mediante um arremedo de religiosidade externa que dar a essas paixes uma aura lisonjeira de "profundidade" e "autoconhecimento". pode-se interpretar isso psicanaliticamente. grard mendel, no seu livro la rvolte contre le pre, uma das mais importantes contribuies das ltimas dcadas psicanlise freudiana, diz que, ao longo da histria, o impulso do homem para superar o pai tem sido, como pretendia freud, um dos mais potentes motores do progresso. mas este impulso, prossegue ele, pode tomar duas direes: ou o homem supera e vence o pai carnal integrando-se na ordem racional representada pelo pai ideal, ou manda logo s urtigas a ordem ideal para, livre de toda trava moral, matar o pai carnal e tomar posse da me. esta ltima alternativa a revolta prometica, a que se segue, num choque de retorno, a queda no irracional, a regresso uterina, a "integrao" do homem nas trevas. da, segundo mendel, a importncia antropolgica, e tambm psicoteraputica, das palavras da mais clebre orao crist: a "revolta contra o pai" s saudvel e frutfera quando empreendida "em nome do pai". trocando em midos chineses: o pai carnal , para o homem adulto ( jen ), nada mais que um aspecto de ti, a terra. preciso submetlo ordem celeste, tien ou pai ideal, para a ento poder assumir, sem usurpao nem violncia, o governo justo e harmnico da terra. sempre achei que o dr. freud tinha algo de chins. nos termos de mendel, a revoluo gramsciana a revolta destrutiva contra o pai, e a ideologia da nova era, com seus apelos fuso das conscincias individuais numa sopa de miragens holsticas, a regresso uterina que se lhe segue. todas as regresses uterinas anunciam-se pela exacerbao da fantasia, pelo chamamento hipntico das esperanas insensatas, pela anteviso medinica de delcias sem fim. todas terminam na escravido abjeta, na passividade inerme ante a agresso das foras abissais, no obscurecimento da luz. inevitvel que haja escndalo. a nova era venceu o prometeanismo gramsciano, e sai de baixo: l vem o hexagrama 36. there's coming a shitstorm e fritjof capra o seu profeta. mas, no fim, que por certo no se anuncia breve, o poder das trevas sucumbir por fora da sua prpria obscuridade. findo o perodo das trevas, assegura o apocalipse, a loucura dos novos profetas que arrastaram a humanidade ao erro ser exibida plena luz do dia, e todos a vero. como a nova era ainda mal comeou, no est na hora de fazer o show completo. por enquanto, tudo o que se pode fazer dar umas amostras preliminares, que atestem, para as geraes vindouras, a realidade de um passado que lhes parecer inverossmil. como disse o sbio richard hooker ante o avano do besteirol puritano no sc. xvi, quando tudo isto tiver passado "a posteridade poder saber que no deixamos, pelo silncio negligente, as coisas se passarem como num sonho". de amostras est cheio o livro do sr. capra. porm manda a justia que as selecionemos segundo a gradao de importncia que lhes d o prprio autor. devemos portanto agora examinar o terceiro "ponto de mutao": a revoluo do paradigma cientfico. neste terreno o sr. capra no parece estar em desvantagem como no mundo chins, que s conheceu por fontes de terceira mo. doutor em fsica pela universidade de viena, ele no pode ignorar a histria da cincia ocidental como ignora a civilizao chinesa. mas quem disse que no pode? aos profetas tudo possvel. segundo o sr. capra, "o paradigma ora em transformao dominou a nossa cultura por muitas centenas de anos"; ele "compreende certo nmero de idias" que "incluem a crena de que o mtodo cientfico a nica abordagem vlida do conhecimento; a concepo do universo como um sistema mecnico composto de unidades materiais elementares; a concepo da vida em sociedade como uma luta competitiva pela

existncia". essas concepes tm os nomes respectivos de: cientificismo, mecanicismo e social-darwinismo ou darwinismo social. repito: segundo o sr. capra, elas dominam a nossa cultura h muitas centenas de anos. isto sugere duas perguntas. primeira: que "dominar uma cultura?" segunda: quanto "muitas centenas"? dizemos que uma certa idia domina uma cultura quando: primeiro, ela acreditada pelos intelectuais mais importantes de todos os setores; segundo, as idias concorrentes ou j no so frteis, quer dizer, j no se expressam em obras poderosas e significativas, ou ento desapareceram completamente de cena. assim, por exemplo, o cristianismo dominou a idade mdia porque, de um lado, todos os filsofos e os homens cultos em geral eram cristos e, de outro lado, as correntes de pensamento no-crists, ainda que persistindo vivas pelo menos no subconsciente coletivo, no produziram nesse perodo nenhuma obra digna de ateno. dizemos que o marxismo dominou a cultura sovitica at a dcada de 60 porque nesse perodo nenhum intelectual eminente que residisse na urss produziu nenhuma idia que sasse dos quadros conceptuais do marxismo e porque as subcorrentes no-marxistas ( exceto no exlio e em lnguas ocidentais ) nada criaram de significativo. nesse sentido estrito, nenhuma das trs idias que compem o "paradigma dominante" jamais foi dominante em parte alguma do ocidente. desde que surgiram, as trs foram incessantemente contestadas, combatidas, refutadas, rejeitadas no todo ou em parte por intelectuais importantes. de outro lado, correntes abertamente hostis a essas idias continuaram frteis o bastante para produzir algumas das obras mais significativas de seus respectivos campos. vejamos o mecanicismo. como pode ser "dominante" uma corrente que, desde seu nascimento, rejeitada por gigantes como leibniz, schelling, vico, schopenhauer, driesch, fechner, boutroux, nietzsche, weber, kierkegaard e muitos outros, at ser derrubada no sculo xx pela teoria de planck? a rigor, o mecanicismo s foi dominante, e mesmo assim com reservas, numa certa parte do mundo, que para o sr. capra "o" mundo: os crculos universitrios anglo-saxnicos. que esse mundinho tradicionalmente presunoso e seguro de si se abra hoje para novas idias, que se disponha at a ouvir os orientais sem a tradicional incompreenso colonialista, sem dvida uma novidade auspiciosa. mas uma novidade local. no h meio mais seguro de tornar provinciano um povo do que persuadi-lo de que ele o centro do mundo. desde esse momento ele declara inexistente ou irrelevante tudo o que saia do seu campo de viso, e quando finalmente descobre algo que todo o resto do mundo j sabia d a esta descoberta uns ares de revoluo mundial. quanto ao cientificismo, tanto se escreveu contra ele, que perfeitamente errado consider-lo dominante mesmo num sentido atenuado do termo. para isto seria preciso excluir do primeiro plano da cultura o marxismo, a psicanlise, a fenomenologia, o neotomismo e o existencialismo, pelo menos. aqui, novamente, o sr. capra toma como mundialmente dominante a opinio de um grupo restrito. o darwinismo social, por sua vez, s chegou a ser dominante, como crena pblica, num nico pas do mundo: nos estados unidos. nunca entrou, por exemplo, nos pases comunistas e no mundo islmico, que, somados, completam quase dois teros da humanidade. nos pases catlicos, foi recebido desde logo como perversa anomalia, suscitando reaes de escndalo de que do testemunho as encclicas sociais dos papas desde pelo menos leo xiii. mas, alm de afirmar que essas trs crenas "dominam o mundo", o sr. capra ainda assegura que o fazem "h muitas centenas de anos". contemos a histria. a mais velha das trs o mecanicismo. prenunciado por descartes, foi formulado plenamente por isaac newton ( princpios matemticos da filosofia natural, 1687 ), mas s se tornou conhecido da intelectualidade europia em geral a partir de 1738, quando voltaire divulgou em linguagem compreensvel aos leigos os elementos da filosofia de newton. no foi s fazendo divulgao cientfica que voltaire promoveu a vitria de newton. ele tanto difamou com ironias grosseiras o principal opositor de newton, g.-w. von leibniz, que os contemporneos cessaram de prestar ateno ao que este

dizia. leibniz caiu em quase descrdito at o sculo xx, quando a redescoberta de suas idias ocasionou avanos prodigiosos nas matemticas, na lgica e nas cincias da natureza. a nova fsica de planck e heisenberg veio a dar razo a leibniz contra newton, substituindo o mecanicismo pelo probabilismo. esta substituio poderia ter ocorrido dois sculos antes, se voltaire, imperador da opinio pblica no sculo xviii, no tivesse tecido em torno de leibniz uma teia de preconceitos duradouros. por ironia, voltaire entrou para a histria como o inimigo de todo atraso e de todo preconceito. mas, de qualquer modo, a opinio de voltaire no se propagou com a velocidade do raio. demorou duas ou trs dcadas, pelo menos, para tornar-se crena dominante na europa inteira. por volta de l780, o mecanicismo gozava de um prestgio invejvel, e pode ser dito, desde ento, dominante, se dominante no quer dizer unanimemente aceito, ou aceito sem reservas. no se pode esquecer a oposio que lhe moveram o vitalismo de goethe e driesch, o contingencialismo de boutroux e muitas outras correntes, at o golpe de misericrdia desferido por planck e heisenberg. no momento em que o sr. capra redigia o ponto de mutao, o mecanicismo estava completando portanto dois sculos de glria incessantemente contestada e de periclitante reinado sobre as faces majoritrias do mundo acadmico. isto bem diferente de um domnio de muitos sculos sobre todo o mundo. quanto ao darwinismo social, um filhote do darwinismo biolgico e no poderia ter nascido antes do pai. o princpio da "subsistncia do mais apto" surgiu como uma teoria biolgica e s depois, aos poucos, foi se transformando num argumento ideolgico para a legitimao retroativa da concorrncia capitalista. a origem das espcies de 1859. herbert spencer, nos seus primeiros princpios, publicados em l862, amplia o alcance das idias evolucionistas, fazendo delas um princpio sociolgico. paralelamente, ocultistas como allan kardec e madame blavatski pegam no ar o termo "evoluo" e lhe do um sentido mstico, ou misticide: j no so somente os anfbios que evoluem em rpteis, e estes em mamferos; so as almas desencarnadas que, no outro mundo, evoluem em "seres de luz", subindo na escala csmica enquanto os macacos descem das rvores. revestida de mil e um sentidos, a palavra "evoluo" se dissemina, e surgem os debates pblicos, que atraem a ateno dos intelectuais para o potencial polticoideolgico do evolucionismo. os debates alcanam um auge de sucesso com a conferncia de thomas henry huxley, "evoluo e tica", em 1892. a est aberto o caminho para a legitimao do capitalismo liberal pela "sobrevivncia do mais apto". o resto vem com os livros de gustav ratzenhofer ( natureza e finalidade da poltica, 1893 ) e william g. sumner ( folkways, l906 ), que fundamentam explicitamente a noo de "evoluo social", dando aos idelogos capitalistas o precioso slogan de que necessitavam. o darwinismo social tem, portanto, pouco mais ou pouco menos do que um sculo. tinha menos no momento em que o sr. capra redigia o seu livro. finalmente, o cientificismo. a rejeio formal e completa, em nome da cincia, de qualquer explicao filosfica ou teolgica da realidade, foi proposta, pela primeira vez, por augusto comte ( discurso sobre o esprito positivo, l844 ). mas comte ainda reservava para a filosofia a tarefa de sntese e ordenao do conhecimento cientfico, e comte s foi aceito sem contestao num nico lugar deste planeta: no brasil! ( em 1914, o positivista alain atribua a guerra mundial ao fato de nenhum outro pas do globo haver seguido o exemplo do brasil, que adotara na bandeira republicana o positivismo como doutrina oficial do estado: ordem e progresso , com efeito, o resumo da filosofia comtiana. ) uma declarao formal e taxativa de cientificismo, com a completa demisso de todas as demais formas de conhecimento como vazias ou insignificantes, s veio mesmo em 1934, com rudolf carnap, em sintaxe lgica da linguagem. mas carnap no era nenhum voltaire, para contar com a imediata aprovao de um vasto pblico. a maioria dos filsofos do sculo xx rejeitou categoricamente o cientificismo, que s exerceu domnio sobre grupos determinados, principalmente no mundo anglo-saxo. contemporaneamente declarao de carnap, o matemtico e filsofo edmund husserl, fundador da fenomenologia - escola que iria gerar heidegger, scheler, hartmann, sartre e

merleau-ponty, entre outros -, fazia na universidade de praga as clebres conferncias depois reunidas no livro a crise das cincias europias, em que negava o cientificismo pela base e desde dentro: as cincias fsicas, dizia ele, haviam perdido o seu essencial fundamento cientfico e j no serviam como modelo de conhecimento da realidade. husserl era e pelo menos to influente quanto carnap, embora no tanto no mundo anglo-saxnico que o limite do horizonte mental do sr. capra. em suma, o cientificismo, que "domina a nossa cultura desde h sculos", est completando sessenta primaveras neste ano de 1994. mas, para cmulo, sua primeira manifestao ostensiva j foi posterior, de trs dcadas, publicao dos primeiros trabalhos de max planck, cujo indeterminismo viria a ser uma das bases do "novo paradigma" cujo advento o sr. capra veio agora nos anunciar. o novo paradigma um tanto anterior ao velho. o sr. capra, como se v, pouco entende dos assuntos em que exerce, para um pblico multitudinrio, uma autoridade proftica. ele prima pela carncia de informao elementar sobre a cosmologia chinesa, na qual diz basear sua viso da histria cultural, bem como sobre a histria cultural mesma, que ele procura, mediante generalizaes grosseiras, e escandalosas alteraes da cronologia, encaixar fora num modelo preconcebido. no questiono, aqui, a validade da proposta holstica em geral. reservo-me o direito de faz-lo num outro trabalho. apenas creio que ela deve ter defensores um pouco mais qualificados do que o sr. capra. meu propsito foi dar um testemunho sobre um fato de relevncia mundial, que acontece bem diante das nossas barbas, e de cuja realidade as geraes vindouras tero o direito de duvidar. pois, para a razo e o bom-senso, no verossmil que milhares de intelectuais de prestgio, em seu juzo perfeito, possam aceitar e aplaudir como um marco da histria do pensamento uma obra como o ponto de mutao, que no atende sequer aos requisitos mnimos de informao fidedigna, de autenticidade das fontes e de rigor conceptual que se exigem de uma tese de mestrado. dentre tantos outros defeitos que um livro pode ter, este padece do nico que no se pode tolerar em hiptese alguma: a ignoratio elenchi, a ignorncia completa do assunto. o sr. capra define o seu livro, pretensiosamente, como um novo modelo de histria cultural baseado nas concepes chinesas do homem e do universo. mas ele no estudou o suficiente nem a histria cultural nem as concepes chinesas para que sua opinio a respeito possa ter qualquer importncia objetiva, fora do seu crculo de convivncia pessoal. o contedo de sua propalada sabedoria do assunto pura lana caprina. o sucesso deste livro s pode ser explicado por um nico fator, inteiramente alheio ao seu valor intrnseco: sua oportunidade. ele diz o que as pessoas desejam ouvir, no momento em que o desejam. ele oferece uma perspectiva sedutora a um pblico que pede para ser seduzido. que esse pblico no inclua somente populares incultos, mas intelectuais de projeo, e que estes se prontifiquem a aceitar as promessas do autor sem pedirlhe sequer as credenciais cientficas que se exigem de um estudante de faculdade, realmente um acontecimento inverossmil. mas, dizia aristteles, no mesmo verossmil que tudo sempre se passe de maneira verossmil. o inverossmil aconteceu. ele atesta que, aps sculos de fria iconoclstica voltada contra todas as crenas do passado e os valores de outras civilizaes, a opinio letrada do ocidente enfim se cansou de ser arrogante; mas, em vez de um arrependimento sincero, est encenando diante de ns um arremedo de converso, que deixa mostra todas as marcas do fingimento histeriforme. estonteada pela viso sbita de suas prprias culpas, ela abjurou de toda precauo crtica como quem repele um vcio do passado; e entregou-se, inerme e crdula, ao culto do primeiro dolo que lhe ofereceu uma promessa de alvio. ela pensa ou finge pensar que esse dolo o seu salvador. na verdade a sua nmesis. mas no s ela que est enganada. o profeta do engano tambm se engana: ele imagina trazer ao mundo a sabedoria, quando traz o obscurecimento e a confuso.

imagina trazer uma nova profecia, quando traz o cumprimento de uma velha maldio. mas no posso encerrar estas consideraes sobre o profeta da nova era sem fazer, tambm eu, uma profecia: nos sculos vindouros, quando puderem encarar o nosso tempo com alguma objetividade, o fenmeno da nova era ser considerado um escndalo que depe contra a inteligncia humana. foroso que venha o escndalo. nada se pode fazer para evit-lo. nem mesmo vou sugerir, como jesus, que se amarre ao seu portador uma pesada pedra, para jog-lo ao fundo do mar. pois, como diria o hexagrama 36, ele j est no fundo. tudo o que posso fazer deixar posteridade, se vier a ter notcia destas pginas, um testemunho pessoal destes tempos obscuros: nem todos, nem todos acreditaram no falso profeta9. adendo h no livro do sr. capra uma infinidade de erros e contra-sensos, alm dos mencionados. apont-los e corrigi-los todos requereria um volumoso comentrio: uma lei constitutiva da mente humana concede ao erro o privilgio de poder ser mais breve do que a sua retificao. mas vale a pena dar mais algumas amostras, para que o leitor veja quanto um erro nas premissas pode ser frtil em consequncias: l. o sr. capra combate o uso da energia nuclear, mesmo para fins pacficos, mas, ao mesmo tempo, faz da fsica moderna um dos fundamentos do "novo paradigma" que prope. ele separa a fsica enquanto modalidade de conhecimento terico e a natureza das suas aplicaes prticas, como se uma no decorresse da outra necessariamente. o sr. capra , nisto, perfeitamente inconsequente com o mtodo holstico que advoga. para o holismo, toda separao estanque entre uma idia e suas manifestaes prticas nada mais que um abstratismo. holisticamente falando, o efeito benfico ou destrutivo dos engenhos nucleares tem de estar arraigado no prprio modus cognoscendi que os produziu. se o sr. capra enxerga ligaes at mesmo entre o mecanicismo e a estrutura da famlia patriarcal, como pode ser cego para as relaes, muito mais prximas, entre o contedo teortico de uma cincia e suas aplicaes prticas? 2. em nossa sociedade, afirma o sr. capra, o trabalho entrpico ( trabalho repetitivo que no deixa efeitos duradouros, como por exemplo cozinhar um jantar que ser consumido imediatamente ) desvalorizado, e por isto atribudo s mulheres e aos grupos minoritrios. esta desvalorizao, diz ele, tpica da sociedade industrial. nesse caso, deveramos considerar sociedades industriais as tribos do alto xingu, as cidades-estado da antiga grcia, a sociedade europia da idade mdia. no existiu jamais uma sociedade em que os servios entrpicos fossem mais valorizados que os outros. mas, segundo o sr. capra, existiu. ele d como exemplos os mosteiros de monges budistas e cristos, onde cozinhar uma honra e limpar as privadas um mrito invejvel. ser preciso explicar ao sr. capra que uma ordem monstica no constitui uma "sociedade", mas uma comunidade minoritria que pressupe em torno a existncia de uma sociedade a cujos valores possa se opor? se, dentro de um mosteiro, o trabalho entrpico tem valor, justamente porque no o tem na sociedade maior em torno. os trabalhos humildes adquirem ali dentro um valor espiritual e disciplinar justamente na medida em que no "mundo" tm pouco prestgio social ou valor econmico. a desvalorizao social do trabalho entrpico no caracterstica da sociedade industrial, mas da sociedade humana em geral; inversamente, a sua valorizao espiritual um trao distintivo das minorias espiritualizadas envolvidas em alguma forma de rejeio religiosa do "mundo". 3. "tradies como o vedanta, a ioga, o budismo e o taoismo assemelham-se muito mais a psicoterapias do que a filosofias ou religies", diz o sr. capra. bem, se h um trao caracterstico do ocidente moderno, que o distingue radicalmente das tradies orientais, justamente o desenvolvimento, nele, de uma psicologia como

cincia independente de qualquer referncia mstica ou religiosa; e, em decorrncia, o esforo para dar uma explicao "psicolgica" de todos os fenmenos espirituais. ao englobar as tradies espirituais do oriente no conceito de "psicoterapia", o sr. capra mostra a tpica incapacidade do cientificista moderno para apreender tudo quanto h nelas de puramente metafsico e no-psicolgico. dizer, ademais, que essas tradies "se baseiam no conhecimento emprico e, assim, apresentam mais afinidades com a cincia moderna" pretender enquadrar fora as idias orientais numa moldura ocidental e moderna, para torn-las aceitveis ao provincianismo acadmico. acontece que, nessa operao, tudo que h nelas de essencialmente oriental se perde por completo. o vedanta, por exemplo, afirma categoricamente que a experincia no pode trazer conhecimento espiritual de espcie alguma, e esta afirmao mesmo um dos pontos basilares da doutrina, que o sr. capra parece desconhecer completamente: toda experincia ao, e a ao, no sendo o contrrio da ignorncia, no pode destru-la ( cf. brihadaranyaka upanishad, livro 10 ). por esse exemplo, v-se que o sr. capra est muito mais preso a esquemas mentais de acadmico ocidental mdio do que desejaria deixar transparecer. algum mais prximo da perspectiva oriental jamais procuraria explicar as doutrinas sapienciais da ndia ou da china luz da moderna psicologia ocidental, mas, ao contrrio, emitiria sobre esta, em nome delas, um julgamento bastante severo ( v., por exemplo, wolfgang smith, cosmos and transcendence, new york, l970, ou titus burckhardt, scienza moderna e sagezza tradizionale, torino, l968 ). 4. aps realar o sentido holstico das concepes fisiolgicas de hipcrates, o sr. capra insinua que esse sentido desapareceu completamente da medicina ocidental e agora temos de ir busc-lo na tradio chinesa: "a noo chinesa do corpo como um sistema indivisvel de componentes inter-relacionados est muito mais prxima da moderna abordagem sistmica do que do modelo cartesiano clssico." se o sr. capra no seguisse o hbito ocidental moderno de saltar direto do pensamento grego para o renascimento, teria reparado que a mesma concepo holstica domina todo o pensamento mdico e biolgico do ocidente medieval, com destaque para sto. alberto magno e roger bacon. na verdade, as concepes chinesas so muito mais parecidas com as da idade mdia que com a "moderna abordagem sistmica". 5. ao explicar a psicoterapia de arthur janov, o sr. capra diz que, segundo este eminente psiquiatra, as neuroses so tipos simblicos de comportamento que "representam as defesas da pessoa contra a excessiva dor associada a traumas de infncia". quem quer que tenha lido janov sabe que, na teoria deste, a etiologia das neuroses no de ordem traumtica, mas reside na frustrao constante e habitual de necessidades bsicas, frustrao que s vezes no sequer percebida no nvel consciente. um trauma, na psicopatologia de janov, nada mais que um fator superveniente. a minimizao da importncia etiolgica dos traumas justamente o que singulariza o sistema de janov. embora conhecendo o assunto de orelhada, o sr. capra no se inibe de opinar a respeito com ar professoral: "o sistema conceitual de janov no suficientemente amplo para explicar experincias transpessoais..." o que certamente no amplo o conhecimento que o sr. capra tem do sistema de janov. sugestes de leitura alm das obras citadas no texto, o leitor poder consultar com proveito as seguintes: l. quem aprecie o holismo e deseje ter uma informao sria a respeito, sem aberraes caprinas e com mais ensinamento valioso, leia o livro de jol de rosnay, le macroscope. vers une vision globale ( paris, le seuil, l975 ). o prof. de rosnay ensinou no mit e trabalha no instituto pasteur de paris. interessante ler tambm as obras de edgar morin, que foi alis quem lanou a expresso "novo paradigma". v. especialmente la mthode, em dois tomos ( i, la nature de la nature, paris, le seuil, l977; ii, la vie de la vie, id., 1980 ). 2. o i ching tem trs tradues ocidentais famosas: a de james legge ( verso brasileira de e. peixoto de souza e maria judith martins, so paulo, hemus,

l972 ), a de richard wilhelm ( verso inglesa de cary f. baynes, london, routledge and kegan paul, l95l, vrias reedies; verso brasileira de lya luft e alayde mutzembecher, so paulo, nova acrpole ), e a de p.-l. f. philastre: le yi:king. livre des changements de la dynastie des tsheou. annales du muse guimet, t. huitime, 2 vols. ( paris, adrien maisonneuve, l975 ). um estudo srio do assunto requer o exame das trs. a de wilhelm mais didtica e fcil de consultar. legge enfatiza muito as ligaes estruturais entre as partes e abre para um estudo mais aprofundado. das trs a de philastre de longe a mais interessante, pois a nica que transcreve integralmente e pela ordem as glosas das dez "geraes" de comentaristas chineses. 3. sobre os smbolos da tradio chinesa, v. o livro clssico de ren Gunon, la grande triade ( paris, gallimard, 1957 ). convm recorrer ainda, quanto aos ideogramas, obra monumental do pe. l. wieger, chinese characters. their origin, etimology, history, classification and signification. a thorough study from chinese documents, transl. by l. davrout, s. j. ( new york, dover, 1965; a primeira edio de 1915 ). 4. sobre o pensamento chins ainda indispensvel, a quem deseje aprofundar o assunto, estudar: quanto s concepes cosmolgicas, marcel granet, la pense chinoise ( paris, albin michel, l968 ) e la rligion des chinois ( paris, payot, 1980 ). quanto s instituies e ao governo, granet, la civilisation chinoise ( paris, la renaissance du livre, 1929 ). sobre a moral, o direito e as classes sociais, max weber, the religion of china, transl. by h. h. gerth and c. wright mills ( new york, the free press, 195l ). 5. um "novo modelo de histria cultural" baseado em concepes orientais algo que j estava realizado pelo menos desde l945, em le rgne de la quantit et les signes des temps, de ren Gunon ( paris, gallimard ). um monumento de sabedoria. 6. sobre a disputa leibniz-newton pode-se ler: jos Ortega y gasset, la idea de principio en leibniz y la evolucin de la teora deductiva ( em obras completas, t. 8, madrid, alianza, 1983 ); paul hazard, la crise de la conscience europenne 1660-1715 ( paris, gallimard, 1961 ); edwin a. burtt, as bases metafsicas da cincia moderna, trad. jos Viegas filho e orlando arajo Henriques ( braslia, unb, 1983 ). notas 7. escrito em setembro de 1993. voltar 8. livro i, cap. iii. voltar 9. tendo enviado a frei betto uma cpia deste captulo antes de sua publicao em livro, recebi dele uma resposta em duas linhas, que um singular documento psicolgico. ela diz: "apesar das suas reservas, o evento [ nb: recepo ao sr. capra ] foi bom para quem l esteve." deve ter sido mesmo um barato, imagino eu. mas o ilustre frade no me compreendeu. longe de mim depreciar o evento em si - a organizao do programa, o servio de som ou o tempero dos salgadinhos. o que eu disse que no presta a filosofia do sr. capra, subentendendo que celebr-la num congresso de intelectuais jogar dinheiro fora; e quanto melhor o evento, mais lamentvel o desperdcio. caso, porm, o missivista tenha pretendido alegar a qualidade do evento como um argumento em favor do sr. capra, isto seria o mesmo que dizer que o preo da vela prova a qualidade do defunto. alm disso, que opinio se poderia ter de um pensador que argumentasse em favor de uma filosofia mediante a alegao de que ela lhe d a oportunidade de freqentar lugares agradveis? [ n. da 2 ed. ] voltar

ii sto. antonio gramsci e a salvao do brasil quem deseje reduzir a um quadro coerente o aglomerado catico de elementos que se

agitam na cena brasileira, tem de comear a desenh-lo tomando como centro um personagem que nunca esteve aqui, do qual a maioria dos brasileiros nunca ouviu falar, e que ademais est morto h mais de meio sculo, mas que, desde o reino das sombras, dirige em segredo os acontecimentos nesta parte do mundo. refiro-me ao idelogo italiano antonio gramsci. tendo-se tornado praxe entre as esquerdas jamais pronunciar o nome de gramsci sem acrescentar-lhe a meno de que se trata de um mrtir, apresso-me a declarar que o referido passou onze anos numa priso fascista, de onde remeteu ao mundo, mediante no sei que artifcio, os trinta e trs cadernos de notas que hoje constituem, para os fiis remanescentes do comunismo brasileiro, a bblia da estratgia revolucionria. mas no est s nisso a razo da aura beatfica que envolve o personagem. da estratgia, tal como vista por ele, constitua um captulo importante a criao de um novo calendrio dos santos, que pudesse desbancar, na imaginao popular, o prestgio do hagiolgio catlico ( uma vez que a igreja, na viso dele, era o maior obstculo ao avano do comunismo ). o novo panteo seria inteiramente constitudo de lderes comunistas clebres, e baseado no critrio segundo o qual "rosa luxemburgo e karl liebknecht so maiores do que os maiores santos de cristo" - palavras textuais de gramsci. os seguidores do novo culto, com inteira lgica, puseram ainda mais alto na escala celeste o instituidor do calendrio, motivo pelo qual no se pode falar dele sem a correspondente uno. e eu, temeroso como o sou de todas as coisas do alm, no poderia iniciar esta breve exposio do gramscismo brasileiro sem a preliminar invocao ao seu patrono, em quem se depositam, neste momento, muitas esperanas de salvao do brasil. digo, pois: sancte antonie gramsci, ora pro nobis. atendida esta devota formalidade, retorno aos fatos. gramsci ficou, dizia eu, meditando na cadeia. mussolini, que o mandara prender, acreditava estar prestando um servio ao mundo com o silncio que impunha quele crebro que ele julgava temvel. aconteceu que no silncio do crcere o referido crebro no parou de funcionar; apenas comeou a germinar idias que dificilmente lhe teriam ocorrido na agitao das ruas. homens solitrios voltam-se para dentro, tornam-se subjetivistas e profundos. gramsci transformou a estratgia comunista, de um grosso amlgama de retrica e fora bruta, numa delicada orquestrao de influncias sutis, penetrante como a programao neurolingustica e mais perigosa, a longo prazo, do que toda a artilharia do exrcito vermelho. se lnin foi o terico do golpe de estado, ele foi o estrategista da revoluo psicolgica que deve preceder e aplainar o caminho para o golpe de estado. gramsci estava particularmente impressionado com a violncia das guerras que o governo revolucionrio da rssia tivera de empreender para submeter ao comunismo as massas recalcitrantes, apegadas aos valores e praxes de uma velha cultura. a resistncia de um povo arraigadamente religioso e conservador a um regime que se afirmava destinado a benefici-lo colocou em risco a estabilidade do governo sovitico durante quase uma dcada, fazendo com que, em reao, a ditadura do proletariado - na inteno de marx uma breve transio para o paraso da democracia comunista - ameaasse eternizar-se, barrando o caminho a toda evoluo futura do comunismo, como de fato veio a acontecer. para contornar a dificuldade, gramsci concebeu uma dessas idias engenhosas, que s ocorrem aos homens de ao quando a impossibilidade de agir os compele a meditaes profundas: amestrar o povo para o socialismo antes de fazer a revoluo. fazer com que todos pensassem, sentissem e agissem como membros de um estado comunista enquanto ainda vivendo num quadro externo capitalista. assim, quando viesse o comunismo, as resistncias possveis j estariam neutralizadas de antemo e todo mundo aceitaria o novo regime com a maior naturalidade. a estratgia de gramsci virava de cabea para baixo a frmula leninista, na qual uma vanguarda organizadssima e armada tomava o poder pela fora, autonomeando-se representante do proletariado e somente depois tratando de persuadir os apatetados proletrios de que eles, sem ter disto a menor suspeita, haviam sido os autores da revoluo. a revoluo gramsciana est para a revoluo leninista assim como a seduo est para o estupro.

para operar essa virada, gramsci estabeleceu uma distino, das mais importantes, entre "poder" ( ou, como ele prefere cham-lo, "controle" ) e "hegemonia". o poder o domnio sobre o aparelho de estado, sobre a administrao, o exrcito e a polcia. a hegemonia o domnio psicolgico sobre a multido. a revoluo leninista tomava o poder para estabelecer a hegemonia. o gramscismo conquista a hegemonia para ser levado ao poder suavemente, imperceptivelmente. no preciso dizer que o poder, fundado numa hegemonia prvia, poder absoluto e incontestvel: domina ao mesmo tempo pela fora bruta e pelo consentimento popular - aquela forma profunda e irrevogvel de consentimento que se assenta na fora do hbito, principalmente dos automatismos mentais adquiridos que uma longa repetio torna inconscientes e coloca fora do alcance da discusso e da crtica. o governo revolucionrio leninista reprime pela violncia as idias adversas. o gramscismo espera chegar ao poder quando j no houver mais idias adversas no repertrio mental do povo. que esse negcio tremendamente maquiavlico, o prprio gramsci o reconhecia, mas fazendo