Ok NOVELLI, Gustavo. Discurso competente da reação social - criminalização e cidadania na fala...

download Ok NOVELLI, Gustavo. Discurso competente da reação social - criminalização e cidadania na fala do formador de opinião.docx

of 83

Transcript of Ok NOVELLI, Gustavo. Discurso competente da reação social - criminalização e cidadania na fala...

69

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINACENTRO DE CINCIAS JURDICASDEPARTAMENTO DE DIREITOCURSO DE GRADUAO EM DIREITO

GUSTAVO DAL TO NOVELLI

A COMPETNCIA DISCURSIVA DA REAO SOCIAL: CRIMINALIZAO E CIDADANIA NA FALA DO FORMADOR DE OPINIO

Florianpolis2014GUSTAVO DAL TO NOVELLI

A COMPETNCIA DISCURSIVA DA REAO SOCIAL: CRIMINALIZAO E CIDADANIA NA FALA DO FORMADOR DE OPINIO

Trabalho de Concluso apresentado ao Curso de Graduao em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito obteno do ttulo de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa

Florianpolis2014

Termo de aprovao

AGRADECIMENTOS

...

Nada impossvel mudarDesconfiai do mais trivial,na aparncia singelo.E examinai, sobretudo, o que parece habitual.Suplicamos expressamente:no aceiteis o que de hbito como coisa natural,pois em tempo de desordem sangrenta,de confuso organizada,de arbitrariedade consciente,de humanidade desumanizada,nada deve parecer naturalnada deve parecer impossvel de mudar.

Bertolt Brecht (1898-1956)

RESUMO

Palavras-chave: anlise do discurso, linguagem, cidadania, criminalizao, criminologia.

SUMRIO1. O CONTROLE SOCIAL E A INCOMPLETUDE DA LINGUAGEM141.1 UMA PERSPECTIVA TRANSLCIDA DA LINGUAGEM151.1.1 Uma concepo de ideologia da Anlise do Discurso171.1.2 Sobredeterminao ou estabilidade: o discurso enquanto estrutura ou acontecimento191.2 O FUNCIONAMENTO DA LINGUAGEM NAS FORMAS DISCURSIVAS221.2.1 A parfrase e a polissemia no posicionamento locutor/leitor221.2.2 A leitura e a formao do sujeito do discurso251.2.3 O Silncio constituinte de sentidos272. O LUGAR DO CIDADO E DO CRIMINOSO312.1 A PUNIO NA CONSTITUIO DO PAPEL DO CRIMINOSO NA SOCIEDADE A PARTIR DO PARADIGMA DA REAO SOCIAL322.1.1 O Forjar da disciplina na fabricao de proletrios342.1.2 Separar o joio do trigo: a emergncia de um modelo atuarial de controle social422.2 DIREITO E DISCIPLINA NA CONSTITUIO DA CIDADANIA442.2.1 A pirmide invertida da cidadania462.2.2 O lugar do cidado: produo/reproduo533. DISCURSOS COMPETENTES583.1 NINGUM PRESO AO POSTE61CONCLUSO66Referncias69

INTRODUO

A prxis em relao a cidadania e a criminalidade no obedecem a uma evoluo linear num ganho de sofisticao, diversamente do que possa fazer crer o senso comum. O imaginrio a respeito do cidado e o distanciamento que se cria entre este e o criminalizado convivem em meio a contradies e permanncias, ou seja, encontram-se inscritos na histria.O presente trabalho busca demonstrar como a hodierna anttese entre a pessoa cidad e aquela etiquetada criminosa[footnoteRef:1] aparece no imaginrio punitivo enquanto uma categoria de terceiro excludo, ou seja, inscrita entre x ou no x, e ainda, como tal anttese tributria de ideias criminolgicas, de suas concepes sociais e filosficas. [1: As pessoas etiquetadas enquanto criminosas no necessariamente praticaram alguma conduta delineada como crime pela dogmtica, mas foram reconhecidos e sofreram reao da sociedade e/ou jurdica como autores de ao denominada tpica, antijurdica e culpvel (teoria tripartite) pelo ordenamento jurdico.]

Adota-se como pressuposto o conhecimento do desdobramento das ideias criminolgicas na Europa e a traduo destas no Brasil[footnoteRef:2]. Contudo, as criminologias no podem ser compreendidas ao estilo de um verbete, uma vez que definies desse tipo, nos dizeres de Theodor Adorno, pertencem ao tipo de pensamento tradicional, que fixa e organiza conforme conceitos rgidos[footnoteRef:3] e, ao contrrio, uma leitura dialtica deixa claro que cada parcela singular de conhecimento social ou de crtica social contrabalana conceitos gerais, definidores e abrangentes[footnoteRef:4]. Deste modo, a pergunta o que criminologia irrespondvel, e o que se busca indagar sobre a formao das criminologias diversas. [2: Recomenda-se a leitura de Evandro Charles Piza Duarte (2002).] [3: ADORNO, Theodor W. Introduo sociologia (1968). So Paulo: UNESP, 2008. p. 72.] [4: ibidem. p. 71.]

Faz-se necessria, portanto, uma breve recapitulao do desdobramento das concepes modernas de criminologia. Contudo, no se concebe tal roteiro de modo enquanto possibilidade una, um modo nico de conceber as ideias criminolgicas. Desta forma, de optou a exposio por meio de paradigmas no sentido kuhnteano, ou seja, a maneira que cada comunidade cientfica partilhou, dentro do modelo normal e oficial de fazer cincia, a cada maneira histrica de cultivar a cincia.Por meio de uma leitura organizada por meio de paradigmas, apresentamos breve recapitulao do paradigma etiolgico e o surgimento do paradigma do labelling approach visando a situar a desconstruo da criminologia tradicional e, ao mesmo tempo a permanncia desta forma de conceber as criminologias[footnoteRef:5]. [5: A respeito, consultar Baratta (2002), Vera (2012).]

Ademais, as discusses a respeito de ambos os paradigmas, seja o etiolgico ou o paradigma da reao social e seus desdobramentos sero pontualmente retomados seja durante a formao do dispositivo analtico, seja pelos conceitos tericos, na temtica proposta para a anlise, ou no prprio exerccio de anlise de discursos.

1.1 A CRIMINOLOGIA TRADICIONAL

As abordagens tradicionais em criminologia, tratam de um ente, um ser, seja ele normativo, um dever ser, como na escola clssica italiana, ou em um ente natural, sociolgico abordado pela Escola italiana do sculo XIX, a escola positiva. Diante de tal concepo, se faz breve relato de ambas as escolas, sobretudo fundamentado em seus autores mais destacados.

1.1.1 Cesare Beccaria e a fundamentao filosfica do direito penal na Escola liberal clssica italiana

A Escola Clssica se originou no marco do Iluminismo, na transio do estado absolutista para o estado liberal de direito na Europa. Numa primeira fase, de perodo filosfico do direito penal, os representantes destacados so Cesare Beccaria, Jeremias Bentham, Gaetano Filangieri, Giandomenico Romagnosi e Pablo Anselmo Von Feuerchach. Em fase posterior, no perodo jurdico a escola clssica representada especialmente por Francesco Carrara e passa a funo de fundamentao da cincia do Direito Penal.Embora a denominao clssica tenha sido cunhada a posteriori e se caracterize por uma variedade de tendncias possvel enumerar similaridades. No que tange a primeira fase da escola, essas caractersticas encontram-se na obra de Cesare Beccaria, Dos Delitos e das Penas, que constitui, nas palavras de Andrade, o marco mais autorizado do incio da Escola e a expresso mais fidedigna do seu primeiro perodo.[footnoteRef:6] Assertiva que vem ao encontro do entendimento de Alessandro Baratta, segundo o qual, o livro de Beccaria: [6: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A iluso da segurana jurdica: do controle da violncia violncia do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 47.]

como h muito a crtica amplamente demonstrou, menos a obra original de uma genial personalidade do que a expresso de todo um movimento de pensamento, em que conflui toda a filosofia poltica do Iluminismo europeu e, especialmente o francs. A consequncia resultante para a histria da cincia penal, no s a italiana, mas europeia, a formulao pragmtica dos pressupostos para uma teoria jurdica do delito e da pena, assim como do processo, no quadro de uma concepo liberal do estado de direito, baseada no princpio utilitarista da maior felicidade para o maior nmero, e sobre as ideias do contrato social e da diviso dos poderes.[footnoteRef:7] [7: BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal: introduo sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p 33.]

Portanto, para explicitao no exaustiva, tendo como fim a difuso dessas ideias no imaginrio punitivo, passa-se a abordar a escola em seu perodo filosfico do direito penal, mais especificamente na obra dos Delitos e das Penas.O livro de Beccaria apresenta uma concepo liberal de estado, de princpio utilitarista, ou seja, da maior felicidade para o maior nmero de pessoas, fundamentado na ideia de contrato social, na qual, a sociedade est igualmente ligada a cada um de seus membros por um contrato que, por sua natureza, obriga ambas as partes, seja sociedade e membro[footnoteRef:8] e de diviso de poderes. O contrato social, seria a base de legitimidade do estado, onde os signatrios sacrificam parte da liberdade para poder gozar o restante com segurana. Assim, a soma dessas pores de liberdade sacrificada ao bem comum forma a soberania de uma nao e o soberano o seu legtimo depositrio e administrador.[footnoteRef:9] [8: BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Traduo: Jos Faria Costa. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, Servio de Educao, 1998.p 44] [9: ibidem. 39]

Apreende o autor, ainda, a importncia da diviso de poderes, de modo a privilegiar a legitimidade do contrato, no entender de Beccaria, frente s pequenas tiranias de muitos. As leis deveriam ser claras e sua interpretao obedecer a um perfeito silogismo, de modo a se exigir um juiz obediente lei.Tais acepes buscam dar arrimo ao fim ltimo de limitar os poderes de punio do estado frente a liberdade individual, de modo a se constituir em garantias individuais, e a combater a justia penal do antigo regime em sua obscuridade e arbitrariedade.A segurana da certeza do direito e da segurana individual frente aos poderes do estado se conciliam com um indivduo que empreende, arrisca, um sujeito racional que diante do claro conhecimento dos seus direitos e deveres pode escolher os melhores caminhos em busca de mais felicidade.O classicismo no buscou fundamentar suas teorias a respeito da criminalidade a partir da anlise da pessoa, em busca de algo que a diferenciasse do restante da sociedade, uma vez que a escola liberal clssica, partidria da teoria que todos os homens so iguais a priori e cuja diferena, no que tange ao fenmeno criminal que uns respeitam a lei, outros no.

1.1.2 O homem delinquente na explicao patolgica da criminalidade da escola positiva

A escola positivista possui um enfoque antropolgico, um sociolgico e outro jurdico, dos quais, os tericos mais destacados so, respectivamente Lombroso, Ferri e Garfalo. Contanto, buscar-se-, brevemente apontar o liame que liga a escola positivista em seus desdobramentos atravs de Lombroso e especificamente sua obra O Homem Delinquente enquanto parmetro.Rosa Del Olmo, ao tratar da ascenso e declnio de diferentes concepes de criminologia no imaginrio, do senso comum ou dos tericos, assevera que as cincias no nascem espontaneamente, qualquer inovao terica manifestao de uma mudana necessria e j realizada na prxis social e vice-versa.[footnoteRef:10] [10: OLMO, Rosa del. A Amrica Latina e sua criminologia. traduo, Francisco Eduardo Pizzolante e Sylvia Moretzsohn. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p 40.]

Nesse horizonte, Vera de Andrade enumera dentre as transformaes na funo do Estado que marcaram a ascenso da Escola positivista, o intervencionismo na ordem econmica e social, a gide de novas polticas de cunho social, o predomnio de uma concepo positivista de cincia e o declnio do jusnaturalismo. De posse dessas mudanas, a autora caracteriza a crtica do positivismo ao classicismo em duas dicotomias; i) individual x social e; ii) racionalismo x empirismo.Pela primeira crtica, a escola clssica teria exagerado na proteo dos abusos de poder do estado, de modo a resultar na diminuio dos direitos da sociedade em prol dos direitos dos delinquentes. J a segunda, a dicotomia entre racionalismo e empirismo, a escola clssica buscou eliminar a metafsica[footnoteRef:11] do livre arbtrio por uma cincia capaz de diagnosticar as causas do delito, localizada no indivduo. [11: A filosofia positivista de Comte vislumbra trs estados epistemolgicos, o teolgico, o metafsico e o positivo, numa escala evolutiva, na qual se almeja o estado positivo ao conhecimento.]

Uma primeira resposta da escola positiva foi dada por Cesare Lombroso atravs da obra o Homem Delinquente na qual fica clara a sua escolha em usar os mesmos mtodos de estudo da natureza na sua antropologia, pois, inicia o livro pelo que denominou aparente delito em plantas, seguido pelo mundo zoolgico para, nessa escala evolutiva e interligada, alcanar o delinquente, que foi configurado pelo tritpico lombrosiano: atavismo, epilepsia e loucura moral.Partidrio do determinismo biolgico, Lombroso no negligenciou os fatores psquicos e sociais. Tais fatores, tiveram suas relaes de causalidade desenvolvidos por Ferri, de modo que o crime seria um resultado previsivel destes, e o criminoso, portanto, causalmente determinado.Para a escola positivista, a criminalidade concebida enquanto fenmeno natural, e a escola buscou explicar suas causas pelo mtodo cientfico experimental, em busca do potencial de periculosidade social, que foi identificado pelos positivistas com anormalidade.Em O Homem Delinquente, Lombroso caracterizou o delinquente enquanto anttese da pessoa normal, seja por tatuagem, falta de sensibilidade, falhas morais, caractersticas fsicas. Suas teses a respeito do delinquente tem como matriz a ociosidade enquanto causa do delito e caracterstica ltima do delinquente.Da se conclui que, na concepo de Lombroso que os delinquentes fazem parte de uma minoria anormal, o mal, em oposio a maioria, a sociedade que representa o bem. Tal entendimento, com pequenas dissonncias na maneira de conceber tal concluso compartilhado pela escola positiva.

1.2 DO LABELLING APPROACH CRIMINOLOGIA CRTICA

Na comparao de Alessandro Baratta, tanto a escola clssica quanto as escolas positivistas realizam um modelo de cincia penal integrada, com uma concepo geral do homem e da sociedade. Ainda que estas, sejam profundamente diferentes, em ambos os casos nos encontramos, salvo excees, em presena da afirmao de uma ideologia da defesa social, como n terico e poltico fundamental.[footnoteRef:12] [12: BARATTA, Alessandro. op. cit. p 41.]

No livro, Criminologia Crtica e crtica do Direito Penal, Baratta elenca caractersticas da ideologia da defesa social, dentre os quais o princpio da legitimidade do estado, o princpio do bem e do mal, da culpabilidade (pessoal), da finalidade ou preveno, da igualdade (nas criminalizaes) e do interesse natural e delito natural. Princpios que foram desconstrudos, segundo o criminlogo pela crtica das teorias sociolgicas, no mbito das criminologias liberal[footnoteRef:13]. [13: Para compreenso dessa desconstruo, ver Baratta (2002)]

Das pesquisas das teorias sociolgicas, se percebe o acumulo do conhecimento cientfico da cincia normal, no sentido atribudo por Thomas Kuhn, no qual a pesquisa cientfica se dirige aquilo que j fora fornecido pelo paradigma, e alcana um perodo de crise, onde o prprio paradigma se torna problemtico, limitador de possibilidade. Dessa desconstruo do paradigma etiolgico, emerge um novo paradigma, o labelling approach.No desenvolvimento do paradigma da reao social, uma conduta no criminosa per se e tampouco o(s) autor(es) dessa podem ser distinguidos por traos fsicos, psquicos, sociais ou ambientais. A criminalidade se revela, principalmente, como um status atribudo a determinadas pessoas nos trs nveis explicativos do labelling, conforme apresentado por Barata: i) um nvel a respeito do processo de definio das condutas a serem consideradas desviadas, ii) a investigao da atribuio do processo de criminoso e iii) o impacto da atribuio dessa etiqueta.Da mudana do paradigma etiolgico para o da reao social, entre as dcadas de 60 e 70 do ltimo sculo surgem as teorias denominadas crtica, nova, radical, que, diante da limitao do labelling enquanto teoria de mdio alcance, buscam, em comum, estudar, meios e razes estruturais, sociais e histricas que sustentam o processo de definio, etiquetamento, enquadramento[footnoteRef:14]. [14: Em relao as criminologias crticas, consultar Andrade (2012).]

Importante salientar ainda a importncia da traduo efetuada dessas concepes de criminologia na Amrica Latina e no Brasil, de modo a se apreender as especificidades do continente e pas dentre as quais a escravido[footnoteRef:15] e o direito penal subterrneo. [15: Consultar nota n. 2.]

Resgatadas, brevemente, algumas concepes de criminologia e a irreversibilidade do paradigma da reao social, o presente trabalho, em seu primeiro captulo apresenta a anlise do discurso enquanto instrumento que liga o simblico da linguagem, como estrutura e como acontecimento ao real da histria, mais especificamente naquela concepo do labelling que considera o controle social de maneira ampla, ao abranger o controle social formal dos sistemas de justia e os meios de controle social informais, dentre os quais se encontram os discursos. Os conceitos de anlise do discurso apresentados configuram-se enquanto dispositivo terico que permitir encampar os textos que sero analisados no terceiro captuloO segundo captulo constitui o recorte proposto para a anlise[footnoteRef:16]. Este se compe pela discusso em torno da anttese entre o lugar concebido ao criminalizado na sociedade, ou seja, institucionalizado ou separado, e o lugar do cidado, passivo e partcipe da vida poltica somente em perodo eleitoral, o modo que essas concepes estruturam o senso comum a respeito das polticas criminais. Enumera-se crticas ao crcere e a iluso de naturalidade deste, e a crtica ao ciclo temporal trabalho, descanso e consumo, no qual o consumo engloba o conceito de cidadania. [16: Um mesmo texto pode ser analisado sob recortes diversos, como, uma anlise que busca desvelar relaes de gnero, uma ideologia econmica.]

Pela conjugao do primeiro e do segundo captulo, torna-se possvel a formao de um dispositivo analtico (dispositivo terico e temtica abordada), de modo a encampar o objeto de anlise, a pesquisa qualitativa de discurso de opinio jornalstica que tratam de questes relacionadas a criminalidade e a cidadania, e possibilitar o batimento do texto discursivo com o instrumental terico, possibilitando o trabalho de anlise e a comprovao da tese de permanncia do paradigma etiolgico da criminologia em tais discursos e a separao ocorrida nestes entre os cidados e os criminosos, este o contedo do terceiro captulo.

1. O CONTROLE SOCIAL E A INCOMPLETUDE DA LINGUAGEM

O paradigma do labelling approach se desenvolveu em trs nveis explicativos. Um nvel relacionado ao processo de definio das condutas que sero consideradas desviadas, um nvel da aferio da etiqueta de criminoso e terceiro nvel que estuda a influncia de tal etiquetamento na identidade do receptor.Por meio destes nveis, o paradigma da reao social (em conjunto com as teorias do conflito) problematizou as definies legais de crime, de modo a negar que tais definies sejam fruto da sapincia de uma entidade superior, da leitura da natureza ou da razo e, tampouco um consenso social, assim se impossibilitou uma justificativa a existncia de delitos naturais.Atravs do paradigma da reao social, portanto, no mais subjaz a possibilidade de buscar nas caractersticas fisiolgicas, psicolgicas, ambientais, uma relao de causa e consequncia enquanto justificativa de uma poltica criminal. Portanto, restou demonstrado, conforme entendimento de Vera de Andrade que:

O processo de criminalizao acionado pelo sistema penal se integra na mecnica do controle social global da conduta desviada de tal modo que para compreender seus efeitos necessrio apreend-lo como um subsistema encravado dentro de um sistema de controle e de seleo de maior amplitude.[footnoteRef:17] [17: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. op. cit. p. 210]

Partidria da mesma perspectiva, Lola Aniyar de Castro, ao tratar do paradigma da criminologia etiolgica e a introduo do paradigma da reao social demonstra a ampliao (declarada) do objeto de estudo da criminologia no paradigma do labelling, especialmente no que tange a realidade da Amrica Latina:

Nenhum clssico, nenhum positivista se proclama terico do controle social, entendendo-o como as medidas tendentes a manuteno e reproduo da ordem socioeconmica e poltica estabelecida. Este ser o sentido que daremos, em todo este trabalho, ao conceito de controle social, e no o que Ihe comumente conferido pela criminologia funcionalista, isto , como as medidas atravs das quais a reao social se expressaria ante uma conduta que frustre as presumidas expectativas sociais.[footnoteRef:18] [18: CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da libertao. Traduo: Sylvia Moretzsohn. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2005.p 43.]

A autora venezuelana prope uma criminologia que seja uma teoria crtica do controle social[footnoteRef:19], de modo a no interessar se a ela dar-se- o nome de criminologia ou algum outro, como controlologia[footnoteRef:20]. Castro considera que a criminologia sempre se debruou sobre o controle social, seja como objeto de estudo declarado (que ela prope) ou enquanto meio para legitimao do poder, o que ocorre com a criminologia tradicional, segundo a autora.[footnoteRef:21] [19: ibidem. p. 57.] [20: Consultar VIANA (2006) sobre a mitologia do controle social fundamentada nos arqutipos de Deus e de Lcifer, este ltimo, representao da desobedincia a norma.] [21: CASTRO, Lola Anyar de. Op.cit. p. 57.]

No mbito desse objeto amplo da criminologia se insere o proposto estudo da linguagem atravs da anlise do discurso de vertente francesa e a brasileira que se desenvolveu a partir desta (atravs da pesquisa de Eni Orlandi) de modo a demonstrar a ideologia, a histria e as condies de produo dos discursos que tem o controle social como objeto. Busca-se ainda apresentar conceitos da anlise do discurso com fim no trabalho de anlise que ser apresentado no terceiro captulo.

1.1 UMA PERSPECTIVA TRANSLCIDA DA LINGUAGEM

As anotaes feitas por Ferdinand de Saussure dos cursos que ministrou de lingustica geral, aliadas as notas dos seus alunos, deram origem ao livro homnimo a partir do qual emanam os princpios basilares da lingustica moderna. Por meio do estruturalismo[footnoteRef:22], Saussure buscou conceder rigor terico lingustica, at ento orientada pela subjetividade. [22: A respeito, consultar Saussure (2006), indica-se tambm Piaget (2003).]

A partir da anlise do Curso de Lingustica Geral, Pcheux, Haroche e Henry, afirmam que possvel verificar o cuidado que Saussure empenhou em separar teoricamente lngua e linguagem[footnoteRef:23]. Nessa diviso a lngua perde todos as suas caractersticas empricas e individuais, de forma a se caracterizar enquanto uma dimenso esttica e social. Estes aspectos relegados pela lngua (individuais, empricos) restam abrangidas na fala. [23: PCHEUX, Michel. HAROCHE, Claudine; HENRY, Paul. A Semntica E O Corte Saussuriano: Lngua, Linguagem, Discurso. Disponvel em:< http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao03/traducao_hph.php>. Acesso em: 30 de out. 2014.]

O divrcio entre lngua e fala em Saussure explicitado na equao de Pedro de Souza: (linguagem [fala]) = lngua, a partir da qual Souza conclui que a estratgia de Saussure moldar o objeto da Lingustica de tal modo que a fala imbricada nela no intervenha, comprometendo o objetivismo pretendido[footnoteRef:24], desse modo se explicita que h uma tenso entre a concepo social da lngua e a individual da fala. O discurso, por outra via, contm a ideia de curso, de movimento, de percurso, assim se distancia da fala saussuriana. [24: SOUZA, Pedro de. Anlise do Discurso. Florianpolis: LLV/CCE/UFSC, 2011. p. 13.]

O discurso se caracteriza enquanto mediao necessria entre as pessoas e a realidade social e, portanto, no se restringe a esquema entre o emissor, mensagem, receptor, contendo um referente e um cdigo com fim a transmisso de uma informao. Trata-se de um complexo sistema de constituio dos sujeitos, de argumentao, subjetivao.Por sua natureza constitutiva, a lngua no vislumbrada como sistema abstrato, mas enquanto maneira de significar, diverge, desta forma, da presuno de transparncia da linguagem encampada pelas Cincias Sociais.A anlise do discurso entende que, quando h pessoas se comunicando, seja por som, por meio da escrita ou mesmo por formas no verbais de linguagem, h discurso. Deste modo, busca analisar a produo de efeitos de sentido entre interlocutores.A anlise de contedo busca detectar o que um texto significa, uma traduo em sentido, utiliza-se das frases do texto, do contexto imediato. Por outra via, a anlise do discurso procura analisar a produo de sentidos por meio do discurso, ou seja, como a ideologia, a histria, as condies de produo implicam nos sentidos atribudos ao texto. A anlise do discurso demonstra a partir desse trabalho analtico que a linguagem impossibilitada de significar per se, depende destes meios, as condies de produo.Neste sentido, se insere a concluso de Pcheux, para o qual no h discurso sem sujeito e no h sujeito sem ideologia[footnoteRef:25]. Diante deste modo de encarar a linguagem, por meio do discurso, a Anlise do Discurso recorre a outras filiaes tericas. Alm da lingustica, se filia a psicanlise e ao materialismo. [25: ORLANDI, Eni. Anlise do Discurso: princpios e procedimentos. 12. ed. Campinas: Pontes, 2004. p. 17.]

Se a anlise do discurso interpela a lingustica de modo a afirmar que a linguagem no transparente, a psicanlise, por outra via, se interessa pelo mbito que fora excludo da lingustica saussuriana, a fala, esta, necessria para que a psicanlise possa acordar o inconsciente, que juntamente ideologia interpelam o sujeito do discurso.A noo de ideologia interpelada pelo materialismo e, com base nesta, a anlise do discurso considera que a histria em sua forma material, assim como a linguagem, padece da falta de transparncia.

1.1.1 Uma concepo de ideologia da Anlise do Discurso

Ao traar um histrico da ideologia, Michael Lwy afirma que existem poucos conceitos na histria da cincia social moderna to enigmticos e polissmicos quanto o de ideologia[footnoteRef:26]. [26: LWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Baro de Mnchhausen. Marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 7.ed. So Paulo: Cortez. p. 9-10.]

Diante da pluralidade de significados, Lwy localiza a origem do termo em Destut de Tracy, em um tratado chamado Elementos da Ideologia, no qual inscreve numa perspectiva cientfico naturalista, uma cincia das ideias estruturada como uma parte da zoologia. Por esse critrio, os idelogos faziam oposio metafsica e a teologia, com vistas ao rigor cientfico que almejavam enquanto mtodo.Napoleo cunhou o termo idelogos de modo a caracteriz-los enquanto metafsicos abstratos, fora da realidade, em sentido diametralmente oposto aquilo que os idelogos buscaram se denominar. Marx retomar o termo de modo a conceber a ideologia enquanto falsa conscincia. Esta corresponderia a interesses de classe, a um conjunto de ideias que os homens formam da realidade por meio da religio, moral, metafsica.Neste esteio, Louis Althusser constri a sua concepo de ideologia de onde fica estabelecida, segundo Pcheux, que no h discurso sem sujeito e no h sujeito sem ideologia. Contudo, antes de tratar propriamente da compreenso da ideologia em Althusser se mostra fundamental demonstrar as suas bases tericas.Althusser concebe a base econmica, constituda pelas foras produtivas e relaes de produo, enquanto infraestrutura da sociedade. A superestrutura possui, por sua vez dois nveis: o jurdico-poltico, concebido pelo direito e pelo estado e o nvel ideolgico em suas aparies concretas, seja religiosa, poltica, escolar, familiar.Para esclarecer a relao entre infraestrutura e superestrutura, Althusser busca a analogia com um edifcio cuja infraestrutura a base, de onde se erigem dois andares de superestrutura (jurdico-poltico e ideolgico). Da, sugere que os andares superiores no poderiam sustentar-se sozinhos (no ar), se no se assentassem sobre sua base.[footnoteRef:27] Do edifcio, visualiza a autonomia relativa da superestrutura sobre a base e a existncia de uma ao recproca da primeira sobre a segunda. [27: ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos de estado. (Notas para uma investigao) In: iek, Slavoj. Um mapa da ideologia. Traduo: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p 107.]

Para Althusser, os aparelhos de Estado, tribunais, polcia, presdios, representam o aparelho repressivo, os quais funcionam pela violncia[footnoteRef:28]. J os aparelhos ideolgicos de Estado[footnoteRef:29] funcionam predominantemente pela ideologia, contudo, no h uma fronteira precisa entre os aparelhos de estado e os aparelhos ideolgicos de estado, trata-se esta classificao de sua atuao predominante. [28: Na sua obra Ideologia de Estado, Althusser denomina violncia somente aquela de carter fsico, quando no assume essa forma denomina represso administrativa.] [29: A denominao Aparelhos ideolgicos de estado no se refere a titularidade dos mesmos, mas ao seu papel social, uma vez que instituies privadas podem se configurar enquanto aparelhos ideolgicos de estado.]

Os Aparelhos ideolgicos de Estado so exemplificados pela religio, famlia, sindicato, escola. Da anlise destes aparelhos, Althusser concebe a sua afirmao que a ideologia (em abstrato) no tem histria (prpria)[footnoteRef:30]. [30: A expresso utilizada por Althusser : ideologia no tem histria. Foram adicionadas as expresses em geral e prpria entre parnteses de modo a facilitar a compreenso da tese.]

Para elucidar essa teoria, o filsofo francs busca arrimo em trs teses: i) a ideologia representa a relao imaginaria dos indivduos com suas condies reais de existncia, ii) a ideologia tem uma existncia material e, a tese central iii) A ideologia interpela os indivduos como sujeitos.No que tange a representao da relao imaginria dos indivduos com suas condies reais de existncia, Althusser, ao passo que considera que as ideologias se constituem de iluses, aponta entendimento no qual admite que estas efetivamente se referem realidade, e que s precisam ser interpretadas para que se descubra a realidade do mundo que est por trs dessa representao imaginria desse mundo (ideologia = iluso/aluso).[footnoteRef:31] [31: ALTHUSSER, Louis. op. cit. p 107.]

A iluso da ideologia distancia o sujeito do real, de forma a alien-lo, ao mesmo tempo que constri, por meio da aluso, uma iluso de contato com a realidade. Na ideologia se representa a relao imaginria dos indivduos com as relaes reais.No que tange a tese a respeito da existncia material da ideologia, o filsofo francs afirma que uma ideologia existe sempre num aparelho e em sua prtica ou prticas[footnoteRef:32]. Por meio dessa tese Althusser visa a elucidar que o comportamento que os indivduos adotam dependem das ideias que possuem como sujeito, de modo que, como exemplifica, se um sujeito acredita na justia, submete-se as normas do Direito, pode at ser por meio de protesto, manifestao ou peticionamento, contudo, manter sua submisso. [32: Ibidem. p. 129.]

Por meio da tese central, na qual Althusser afirma que a ideologia interpela os indivduos como sujeitos, visa a demonstrar que s existe ideologia para sujeitos concretos. Essa categoria, de sujeito constitutiva de qualquer ideologia, ao mesmo tempo que o sujeito constitudo pela ideologia.A anlise do discurso resignifica a noo de ideologia, de forma a relacion-la a linguagem de modo a aduzir que no existe sentido no texto a priori[footnoteRef:33], tampouco um sentido literal, estes so sempre fruto de interpretao, um modo a completar a linguagem no processo de produo de sentidos. [33: Conforme se busca explicitar no item 1.2.1]

A interpretao ocorre, portanto, junto a linguagem, pela histria, por meio de uma viso social de mundo, nunca desvinculada do seu objeto. Deste modo, por meio da histria, um sentido se sobrepe de modo a parecer inquestionvel. Trata-se de uma relao necessria entre a linguagem e o mundo[footnoteRef:34] de forma a um sentido se impor, apagando a possibilidade de ser outro. [34: ORLANDI, Eni. Interpretao; autoria, leitura e efeitos do trabalho simblico. Campinas, SP: Pontes, 2004. p. 31]

Foucault, embora no analise conceito de ideologia, considera a existncia de relao entre o social, histrico e a produo de sentido, em consonncia a contruo do conceito de ideologia (para anlise do discurso) que adotamos:

as condies polticas, econmicas de existncia no so um vu ou um obstculo para o sujeito de conhecimento e, por conseguinte, as relaes de verdade. S pode haver certos tipos de sujeito de conhecimento, certas ordens de verdade, certos domnios de saber a partir de condies polticas que so o solo em que se formam o sujeito, os domnios de saber e as relaes com a verdade.[footnoteRef:35] [35: FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas. Traduo: Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002. p 37.]

1.1.2 Sobredeterminao ou estabilidade: o discurso enquanto estrutura ou acontecimento

Na obra Discurso: estrutura ou acontecimento, Michel Pcheux, traa caminhos divergentes, mas ao mesmo tempo mutuamente retocados para uma visita aos procedimentos tcnicos da anlise do discurso. Dentre estes o da caracterizao do discurso enquanto acontecimento e o da sua apresentao como estrutura.O acontecimento representa um ponto de encontro entre uma atualidade e uma memria (discursiva), o fato novo. Tal conceito explicitado pelo terico francs atravs do enunciado on a gan, ganhamos, que atravessa a Frana com a eleio de Franois Mitterand presidncia daquele pas, fato relatado por Pcheux como estupor.Com a divulgao do resultado da eleio, todos aqueles para quem o acontecimento foi uma vitria se reuniram para comemorar a vitria. Dentre os enunciados, o que pega com intensidade, on a gangnr, ganhamos, retoma no campo poltico, a sensao de uma partida esportiva, onde o enunciado costuma ser proferido.O lxico ganhamos, vem a sobredeterminar o prprio ocorrido, com ele, questes como a quem realmente ganhou com a eleio, alm das aparncias, o ganho histrico, deixam de fazer sentido, pois absurdas num resultado esportivo, de onde advm a memria de on a gan. Por outro lado o enunciado profundamente opaco. A ausncia de relaes associativas, s o permite produzir o sentido almejado naquelas condies bastante especficas, no possuindo estabilidade lgica. A mesma relao de sobredeterminao fica clara atravs da matria de Eliane Brum, entitulada Onde est Amarildo? na qual relata a colunista:

to comum como triste quando, ao ser confrontados com algum identificada como autoridade, o que pode ser simplesmente algum de uma classe mais privilegiada, os pobres apresentam de imediato sua carteira de trabalho para provar que existem e so pessoas boas. Ou para no serem humilhados ou presos.[footnoteRef:36] [36: BRUM, Eliane. Onde est Amarildo? - poca. Disponvel em:< http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/eliane-brum/noticia/2013/08/onde-esta-bamarildob.html >. Acesso em: 30 de out. 2014.]

A jornalista relata ainda o depoimento dado pela irm de Amarildo, Maria Eunice Dias Lacerda ao jornalista Fernando Gabeira: duro dizer, mas eu acho que meu irmo est morto. Ele sempre dizia que revidaria se fosse agredido por um policial. Dizia que trabalhador no pode levar tapa na cara e ficar quieto. Eliane Brum finaliza com as seguintes indagaes: E se Amarildo fosse suspeito ou traficante ou bandido e no trabalhador como reagiramos? Teramos sido capazes de transformar seu sumio em denncia e protesto?.No se trata de um acontecimento unicamente lingustico, relacionado ao lxico trabalhador, em oposio a um eventual bandido, suspeito. Consubstancia-se tambm de etiqueta social a partir da qual possvel perceber como a caracterizao enquanto trabalhador, seja pelo reconhecimento prprio ou alheio, seja por meio de documentos, vem a sobredeterminar o prprio significado de trabalhador.Logo, quem trabalha, teoricamente, no cometeria crimes, seria uma pessoa comportada e deveria ter suas garantias legais respeitadas. Em oposio o arqutipo do bandido exclui tais possibilidades no s de reconhecimento mas enunciativas, tanto que a frase: o bandido estava trabalhando arduamente causa estranheza ou, ao menos, precisa de um referencial anterior, de explicitao dos pressupostos para que possa fazer sentido.O acontecimento discursivo marcado pela necessidade de uma rede de relaes associativas implcitas, de modo a se conceber estabilidade lgica, enquanto condio de no se interrogar os complementos elididos.Por outra via, no campo do discurso enquanto estrutura, haveria, independncia do objeto face a qualquer discurso. Esta entraria em vigor nos espaos logicamente estabilizados, nos quais se supe, todo sujeito falante sabe o que se fala, porque todo enunciado produzido nesses espaos reflete propriedades estruturais independes de sua enunciao[footnoteRef:37]. [37: PCHEUX, Michel. O Discurso: estrutura ou acontecimento. 2 ed. Traduo: Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 1997. p. 31.]

No mbito da estrutura, existiria uma restrio, ou mesmo proibio de interpretao, culminando no verdadeiro ou falso, na escolha entre a e no a. No seria admissvel, por exemplo, o uso de sentido figurado. Pcheux exemplifica o discurso enquanto estrutura atravs da recusa do uso de marcas de distncia discursiva, dentre as quais, em certo sentido, se podemos dizer.Todavia, tais espaos estabilizados no seriam impostos do exterior, por cientistas, especialistas, administradores. Eles fazem parte de uma necessidade de homogeneidade lgica por meio de pequenos sistemas lgicos portteis. Sobre a pretensa estabilidade, Pcheux, demonstra a barganha que seria:

A promessa de uma cincia rgia conceptualmente to rigorosa quanto as matemticas, concretamente to eficaz quanto as tecnologias materiais, e to onipresente quanto a filosofia e a poltica! ... como a humanidade poderia ter resistido a semelhante pechincha.[footnoteRef:38] [38: ibidem. p. 35.]

Os caminhos do pretenso uso da linguagem, seja enquanto meio etreo para transmisso mensagens, ou mesmo como acontecimentos, que determinam, limitam, ao menos em parte as possibilidades de significar e implicam a admisso de pressupostos, so objeto de estudo da Anlise do Discurso diante do funcionamento da linguagem de modo a demonstrar sua incompletude.Em uma analogia tica, a linguagem para a anlise do discurso se configura nem como transparente, simples meio e, portanto reduzido ao conceito de lngua em Saussure, tampouco enquanto opaco, de modo a se possibilitar qualquer coisa. Em nossa concepo de discurso a linguagem translcida, de modo a se constituir pela ideologia e pela histria.

1.2 O FUNCIONAMENTO DA LINGUAGEM NAS FORMAS DISCURSIVAS

A linguagem condio necessria, porm no suficiente do discurso, uma vez que faz sentido pela sua inscrio na histria, no possui sentido em si, mas sempre em relao a.Todavia, a anlise do discurso no uma forma de interpretao, que busca o sentido com base no prprio texto e contexto imediato, mas tem como objeto trabalhar os seus limites, tampouco busca por sentido verdadeiro, considera que no h verdade escondida no texto.

1.2.1 A parfrase e a polissemia no posicionamento locutor/leitor

Os discursos esto em processo contnuo de desenvolvimento atravs de processos de parfrase e polissemia. Estes, definem respectivamente, o sentido que se mantm e o que se desestabiliza.A parfrase se refere as diferentes formulaes daquilo que j est sedimentado, na produo discursiva, no mbito da criatividade, tendo ou no a mesma estrutura sinttica. Por outro lado, se os enunciados remetem a uma diversidade de significao trata-se da polissemia.A parfrase a matriz do sentido, pois no h sentido sem repetio[footnoteRef:39] e a polissemia a fonte da linguagem, condio de existncia dos discursos[footnoteRef:40]. Com isso, nas palavras de Pedro de Souza, conclumos que a parfrase da ordem da formao discursiva, enquanto a polissemia da ordem do interdiscurso[footnoteRef:41]. [39: ORLANDI, Eni de Lourdes Puccinelli. Anlise de discurso: princpios e procedimentos. op. cit. p. 38.] [40: Idem.] [41: SOUZA, Pedro de. op. cit. p. 61.]

Diante do processo de contnuo desenvolvimento dos discursos e do questionamento a respeito da existncia ou no de uma verdade no texto, Eni Orlandi distingue os tipos de discurso conforme estes se apresentam pelos/aos seus interlocutores, de modo a exacerbar, explicitar ou restringir a produo de sentidos.Tal classificao comporta a existncia de trs tipos de discurso, o ldico, o autoritrio e o polmico, esta classificao comporta a existncia de figuras ideais tpicas enquanto categorias simplificadas para fins didticos, todavia, diante da concretude discursiva elas se interpenetram e influenciam.O discurso ldico se refere aquele em que a polissemia aberta, neste, o texto se mantm, ao mesmo tempo que ocorre a abertura total de sentido. Em sua dimenso exacerbada se alcana o non sense e todo sentido considerado vlido.No discurso autoritrio os participantes no se expem ao objeto, uma vez que os sentidos so limitados por aquele(s) que pode(m) atribuir sentido, pode vir a culminar num sentido nico, ou em uma ordem. Prevalece a parfrase de tal modo que tal tipo de discurso pode ser atribudo a posies da autoridade, como o discurso cientfico ou pedaggico, na voz do cientista, do professor.A discusso a respeito do discurso autoritrio problematiza, inclusive a existncia de um sentido literal no discurso. Este normalmente concebido como aquele com filiao mais prxima ao texto enquanto produto emprico. Contudo, a literalidade tambm produto da histria, do que bvio, aquilo que est arraigado em perspectivas histricas e ideolgicas.O sentido literal se impe enquanto aquele que fora institucionalizado, pois um sentido depende sempre do contexto, diante das relaes de incompletude ao significar, portanto, no passa de uma iluso.O discurso autoritrio pode vir a culminar em um nico sentido vlido, de forma a apagar as possibilidades da materialidade, de ponto a inexistirem interlocutores, to s um agente que confere o sentido de modo a unific-lo.No discurso polmico, os interlocutores buscam referentes na materialidade, porm contam com agenciamento, um certo controle da polissemia. Esse controle da materialidade pode ser exemplificado pela tese de Joseph Jacotot, explicitada no livro O Mestre Ignorante de Jaques Rancire.Jacotot acreditava na possibilidade de aprender com um mestre que ignora o objeto do aprendizado. O mestre ignorante, sem conhecimento do contedo atuaria como juiz da explicao, cobrando durante do aprendizado a demonstrao de onde se inferiu o conhecimento a partir do referente:

De tudo que ele aprende a forma das letras, o lugar ou as terminaes das palavras, as imagens, os raciocnios, os sentimentos dos personagens, as lies de moral lhe ser pedido que fale, que diga o que ele v, o que pensa disso, o que faz com isso. Somente uma condio ser imperativa: de tudo o que disser dever demonstrar a materialidade no livro. Ser-lhe- solicitado que faa composies e improvisaes nas mesmas condies: ele dever empregar as palavras e as maneiras do livro para construir suas frases; dever mostrar, no livro, os fatos relacionados com seus raciocnios. Em suma, de tudo o que dir, o mestre dever poder verificar a materialidade no livro.[footnoteRef:42] [42: RANCIRE, Jacques. O mestre ignorante - cinco lies sobre a emancipao Intelectual. Traduo de Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autntica, 2002. p. 32.]

Utilizando-se ainda do exemplo supracitado, da tcnica de emancipao intelectual de Jacotot, onde o estudante demonstra aquilo que aprendeu por questionamento e apontamentos na materialidade, possvel demonstrar a dinmica entre os trs tipos de discurso classificados por Orlandi e a posio do leitor, atravs do ensinamento da pesquisadora paulista:

Uma maneira de se colocar de forma polmica construir seu texto, seu discurso, de maneira a expor-se a efeitos de sentidos possveis, deixar um espao para a existncia do ouvinte como sujeito. Isto , deixar vago um espao para o outro (o ouvinte) dentro do discurso e construir a prpria possibilidade de ele mesmo (locutor) se colocar como ouvinte. saber ser ouvinte do prprio texto e do outro.[footnoteRef:43] [43: ORLANDI, Eni de Lourdes Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas de discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996. p. 32]

Ou seja, ao aluno, a quem cabe, de forma costumas a posio de ouvinte, se torna possvel ocupar a posio de locutor e ao mestre se possibilitaria a posio de ouvinte.Ou seja, no discurso polmico existe a possibilidade de reversibilidade, ou seja, a troca de papis entre o locutor e o ouvinte. Essa dinmica demonstra a prpria dimenso polemica de tal forma de discurso. A possibilidade de troca de papis no ocorre, contudo em ultima ratio, no discurso autoritria, que fixa as posies de ouvinte e locutor. Por outro lado a troca exacerbada no discurso ldico.

1.2.2 A leitura e a formao do sujeito do discurso

A condio incompleta da linguagem para significar e a demonstrao de diferentes graus de possibilidade na troca de papis entre locutor e ouvinte, ilustrado por meio dos tipos ideais de discurso (autoritrio, ldico e polmico) deixam claro que a leitura para a Anlise do Discurso no uma atividade passiva, de mera assimilao, em consonncia ao ensinamento de Eni Orlandi:

a relao bsica que instaura o processo de leitura o jogo existente entre o leitor virtual e o leitor real. uma relao de confronto. O que, j em si, uma crtica aos que falam em interao do leitor com o texto. O leitor no interage com o texto (relao sujeito/objeto), mas com outro(s) sujeito(s) (leitor virtual, autor, etc). A relao sempre se d entre homens, so relaes sociais; eu acrescentaria, histricas, ainda que (ou porque) mediadas por objetos (como o texto). Ficar na objetalidade do texto, no entanto, fixar-se na mediao, absolutizando-a, perdendo a historicidade dele, digo sua significncia.[footnoteRef:44] [44: ORLANDI, Eni. Discurso e leitura. 2 ed. So Paulo: Cortez, 1993. p 9.]

Diante do embate entre os sujeitos, o texto s pode ser considerado acabado, um produto, se for tomado enquanto objeto emprico uma vez que, perante a na perspectiva da anlise o texto incompleto, trata-se do espao onde se instala a intersubjetividade.Na produo da leitura, a compreenso no se refere a concordncia ou discordncia com texto, mas a prpria possibilidade de acesso ao sentido, uma vez que existem leituras previstas pelo locutor ao projetar o leitor, um leitor virtual e outras leituras possveis, pela pluralidade dos leitores reais. Deste modo, aqueles que se distanciam do leitor virtual podem acabar por no alcanar sentido algum.A profuso de leitores frente ao leitor virtual demonstra que no h distino clara entre o momento de leitura e da escrita, pois j ocorre a antecipao de um (ou alguns) modos de leitura esperado(s). Inclusive, a concomitncia da escrita e da leitura em sua interao constitutiva do discurso. Da, no possvel traar uma linha divisria entre as condies de recepo e de produo do discurso.As condies de produo, na perspectiva de Eni Orlandi, se referem tanto a situao imediata ou situao de enunciao (contexto da situao, no sentido estrito) como os fatores do contexto scio histrico, ideolgico (que o contexto de situao, no sentido lato)[footnoteRef:45]. [45: ORLANDI, Eni de Lourdes Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas de discurso. op. cit. p. 218]

Das relaes entre o locutor, leitor e as condies de produo e de recepo se traz a lume a condio de sujeito para a anlise do discurso. O sujeito se encontra imerso nas contradies do espao social:

Sujeito e sentido se constituem, ao mesmo tempo, na articulao da lngua com a histria, em que entram o imaginrio e a ideologia. Se, na psicanlise, temos a afirmao de que o inconsciente estruturado como linguagem, na Anlise do Discurso considera-se que o discurso materializa a ideologia, constituindo-se no lugar terico em que se pode observar a relao da lngua com a ideologia.[footnoteRef:46] [46: ORLANDI, Eni P. Lngua e Conhecimento Lingustico: para uma histria das ideias no Brasil. So Paulo: Cortez, 2002. p 66.]

O sujeito do discurso se materializa por meio da sua posio. Nesse sentido os sujeitos so intercambiveis, ou seja, pode o sujeito estar posicionado empiricamente em um lugar e discursivamente posicionado em outro. A distncia entre a posio emprica e discursiva, no processo de anlise, pode ser apurada a partir de um sujeito que se declara e at mesmo busca defender um posicionamento conservador por exemplo, contudo acaba por proferir discursos liberais.A posio discursiva do sujeito possui relaes de dependncia, uma vez que sempre se referem a uma fala que veio antes, de outro lugar, atravs do interdiscurso, que disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situao discursiva dada[footnoteRef:47], o interdiscurso carrega em si os dizeres j proferidos em outros lugares. [47: ORLANDI, Eni. Anlise de discurso: princpios e procedimentos. op. cit. p 31.]

Ao mesmo tempo, o sujeito discursivo possui relao com o intradiscurso, este se refere seara da coerncia interna daquilo que se profere. Portanto, tanto interdiscurso quanto o intradiscurso, precisam ser esquecidos para que o sujeito possa reconstituir o processo do discursar.A memria discursiva atua por meio do esquecimento de forma a possibilitar um novo processo de enunciao, Michel Pcheux define que:

A memria discursiva seria aquilo que, em face de um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os implcitos (quer dizer, mais tecnicamente, os pr-construdos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condio do legvel em relao ao prprio legvel.[footnoteRef:48] [48: PCHEUX, Michel. Papel da Memria. In: NUNES, Jos Horta (org). O Papel da Memria. Traduo: Jos Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p. 52.]

Do conceito de memria discursiva apresentado por Pcheux fica demonstrado que o dizer no propriedade particular, mas que significa atravs da lngua e da histria. Desta relao com o que foi dito anteriormente, em outro lugar, se carrega ao menos em parte, o seus significados anteriores, o que ocorre, por meio da relao entre a memria e o esquecimento.No mecanismo de funcionamento da memria discursiva, preciso esquecer que j h sentidos imbricados para poder proferir novamente um discurso. Assim, nos dizeres de Pcheux, o sujeito se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina[footnoteRef:49]. [49: PCHEUX, Michel. Semntica e discurso: Uma crtica afirmao do bvio. Traduo: Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Unicamp. 1998. p. 163.]

Desta forma, o dizer sem medo, que pode ser proferido livremente, a partir do qual se elucida a razo de ter-se dito algo de uma maneira e no de outra, onde momentaneamente se abstrai que tal discurso j fora enunciado antes, por outras vozes, se configura, para Pcheux, o esquecimento ideolgico, o esquecimento nmero 1. Este produz a impresso de pessoalidade do pensamento, de liberdade e conexo direta entre o pensamento e a linguagem, de ser a origem do prprio dizer.O esquecimento nmero 2 trata da enunciao. Atravs deste, tem-se a iluso de ser a origem do que se enuncia, que o sentido atribudo pela prpria conscincia ao que proferido o nico possvel. As palavras significam, na iluso do seu locutor, apenas aquilo que este projetou.

1.2.3 O Silncio constituinte de sentidos

O silncio costuma ser concebido como uma ausncia, algo a ser preenchido. Contudo, outras acepes de silncio se tornam possveis quando se retoma o discurso enquanto processo de significao pois, da mesma forma que h mltiplas palavras, e efeitos de sentido, existem silncios. Por meio dessa perspectiva o silncio produz sentido, portanto significa.Na classificao apresentada por Orlandi, a poltica do silncio formada pelo i) silncio constitutivo, atravs do qual as palavras apagam outras no ditas e, ii) o silncio local, proveniente daquilo que se proibido de dizer, a censura.Seja qual for a forma que o silncio se apresenta, as pessoas esto condenadas a significar, com ou sem palavras, diante do mundo, h uma injuno interpretao: tudo tem de fazer sentido (qualquer que seja). O homem est irremediavelmente constitudo pela sua relao com o simblico.[footnoteRef:50] [50: ORLANDI, Eni de Lourdes Puccinelli. As formas do silencio: no movimento dos sentidos. 4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. p. 32]

Diante da convocao a produzir sentido, no possvel ao sujeito interromper a interpretao, uma vez que o silncio a base da polissemia, pois, quanto maior a falta, mais amplas so as possibilidades de significar, at pela necessidade do silncio ao processo de produo de sentido(s).Ao dizer algo, por mais que se trate de um processo polissmico, passvel de interpretaes diversas, sempre se apaga a possibilidade de outros sentidos, se deixa de falar outras coisas na construo do discurso. As possibilidades do intradiscurso e do interdiscurso vo se limitando. Tal acontecimento pode ser visualizado, por exemplo, no acontecimento discursivo, conforme item 1.1.3, onde o enunciado on a gan, como foi analisado, impossibilita uma srie de sentidos e questionamentos.Uma poltica de silenciamento, ao se apagar a possibilidade de dizer outra coisa, ou de outra forma, se vislumbra nos sistemas de justia pela situao do acusado no sistema penal, como discorre Hulsman, no que chamou de filtros, ao afirmar que as pessoas envolvidas no so realmente ouvidas, mas documentadas, por frases, palavras, enunciados preconcebidos nos inquritos policiais, na verdade, so formulrios que a polcia preenche. Tais formulrios, num tom invarivel, montono, impessoal, refletem os critrios, a ideologia, os valores sociolgicos deste corpo que constitui uma das subculturas do sistema penal.[footnoteRef:51] [51: HULSMAN, Louk. Celis, Jaqueline Bernart de. Penas Perdidas: O sistema penal em questo. Traduo: Maria Lcia Karam. Niteri: Luam, 1997.p. 81.]

Por sua vez o silncio da censura se inscreve na manuteno do sujeito em um mbito de formao discursiva determinado. Deste modo, o silncio imposto busca impedir um discurso no autorizado. No necessariamente pela ausncia, pode ocorrer atravs da substituio. Orlandi, no livro As Formas do Silncio, indica que o silenciamento por meio de interdio pode ser exemplificado por meio da censura feita aos jornais durante a ditadura militar de 1964.Na ditadura, quando havia alguma informao a ser censurada, os jornais deixavam o espao da matria vetada em branco. Contudo isso passou a deixar claro aos leitores que ali havia algo que fora apagado, de modo que o vazio produzia significado. Proibidos de deixarem os espaos das matrias vetadas em branco, os jornais censurados passaram ento a substituir esses vazios por receitas culinrias, poemas de Cames. No obstante a substituio de uma matria poltica por algo que costumeiramente no fazia parte do jornal, ou que a cada edio saia em um espao destinado a fins diversos, deixava claro ao pblico que ali estava algo que desagradou os censores. Por meio deste exemplo se procura demonstrar que a censura nunca eficaz, uma vez que o contexto histrico e social, no caso censura, a ditadura, completa o discurso que no ocorreu ou que ao qual se buscou determinar outro sentido.Portanto, seja o silncio fundador, onde ocorre amplitude de sentidos, pois, diante da falta de locuo, de um discurso as pessoas so instadas a interpretar, pelo apagamento ou deslocamento de sentidos por meio da censura, por meio do silenciamento na imposio de outras falas, ou mesmo parmetros burocrticos ou mesmo outras formas no elencadas, como o silncio religioso, fica claro que a produo de sentido entre interlocutores ocorre mesmo diante da tentativa de apagamento, deslocamento ou passividade destes.A incompletude da linguagem explicitada pela contnua construo do texto enquanto objeto terico e do prprio sujeito, do discurso e o leitor. As possibilidades de criatividade, pela polissemia e o trabalho de parfrase, os esquecimentos que carregam sentidos pela histria e pelo contexto social, o prprio deixar de dizer ou a substituio do falar do outro.A construo terica da anlise do discurso permite elucidar a linguagem enquanto limitada e limitante no significar, deste modo, no se constitui um mero meio de produo de sentido. Desta forma, os conceitos elencados demonstram a possibilidade de atuao da linguagem no controle social. A nossa concluso fica mais clara a partir da discusso a respeito da seguinte questo utilizada como exemplo: em um galinheiro havia 30 galinhas, um homem negro levou 10 galinhas, quantas galinhas esto no galinheiro? Haveria somente uma resposta correta? (discurso autoritrio), qualquer nmero seria vlido (ldico), ou possvel encontrar duas respostas a partir da anlise, a saber 40 ou 20 galinhas (discurso polmico). O silencio a respeito da direo do deslocamento da pessoa que carregava as galinhas amplia as possibilidades de interpretao. A prpria insero das caractersticas deste, homem e negro, ajuda a elucidar a leitura que esperada, busca trazer tona o preconceito que cerca o homem negro enquanto ladro, imagem esta proveniente de outros discursos, explicitada pelo racismo inerente a uma sociedade que fora escravagista e, at o momento, no efetuou uma reviso histrica a respeito numa confortvel iluso (para quem?) de democracia racial. As estatsticas relacionadas a resposta seriam as mesmas se ao invs de um homem negro estivesse no enunciado o bom fazendeiro?Assim, consoante os conceitos trabalhados, a anlise do discurso permite, trazer tona o senso comum a respeito do crime, do criminoso e do cidado no imaginrio punitivo. Para isso a anlise da construo do distanciamento entre cidado e criminoso se faz necessria.

2. O LUGAR DO CIDADO E DO CRIMINOSO

No primeiro captulo se buscou demonstrar a incompletude da linguagem, que para significar depende das relaes de produo, da histria e da ideologia, estes, constituem os substratos que possibilitam os efeitos de sentido que caracterizam os discursos.A partir desse ponto de vista, o presente captulo busca elucidar como a criminologia desvela o senso comum que encara a sociedade organizada enquanto representante do bem, os cidados de modo a se excluir os criminalizados, o mal, o que configura o princpio do bem e do mal constituinte da ideologia da defesa social.Ademais, se busca demonstrar que a cidadania no se constitui enquanto conceito a-histrico, mas que pode ser encarada como sinnimo de direitos polticos, direitos humanos ou mesmo que completa a sua realizao atravs do consumo. Assim, se busca caracterizar como a disciplina e o valor do trabalho atuam de modo a gerir o distanciamento entre cidado e o criminalizado de lhes dar lugar no sistema de produo capitalista.Embora seja um estudo conceitual, so apontados elementos histricos afim de fundamentar a argumentao. O contexto histrico, na Europa e nos Estados Unidos no visa a afirmar que tais fatos histricos ocorreram da mesma forma no Brasil, num transplante territorial, mas demonstrar seu objeto, ou seja, a formao de uma identidade ao criminoso divorciada a do cidado, enquanto fontes imaginrias da sociedade poltica transplantadas pelo imaginrio, conforme foi concebido por Cornlius Castoriadis:

Aqueles que falam de imaginrio compreendendo por isso o espetacular, o reflexo ou o fictcio, apenas repetem, e muito frequentemente sem o saberem, a afirmao que os prendeu para sempre a um subsolo de alguma famosa caverna: necessrio que (este mundo) seja imagem de alguma coisa. O imaginrio que falo no imagem de. criao incessante e essencialmente indeterminada (social/histrica e psquica) de figuras/formas/imagens, a partir das quais somente possvel falar-se de alguma coisa.[footnoteRef:52] [52: CASTORIADIS, Cornelius. A instituio imaginria da sociedade. Traduo: Guy Reynaud. 5.ed. Rio de Janeiro: Terra e Paz. 1982. p. 13.]

Assim, a partir dessa formao, o terceiro captulo buscar mostrar como essas relaes fazem parte do imaginrio social no Brasil por meio da anlise de discursos jornalsticos selecionados em pesquisa qualitativa que tratam dos processos de criminalizao. Assim, o presente captulo explicita a temtica (o recorte) da anlise que ser efetivada.

2.1 A PUNIO NA CONSTITUIO DO PAPEL DO CRIMINOSO NA SOCIEDADE A PARTIR DO PARADIGMA DA REAO SOCIAL

O labelling approach, e as teorias do conflito[footnoteRef:53] aduzem que no existem condutas intrinsecamente criminosas, afirmam ainda que nem todas as pessoas que praticam tais condutas so incriminadas. Logo, do processo de criminalizao que surge a identificao de um criminoso e, a partir da o jus a uma pena, conforme a dogmtica jurdico penal. [53: Apresentar rapidamente o conceito e fazer referncia ao baratta]

Os manuais jurdicos dividem as teorias da pena em absolutas e relativas. As teorias absolutas, se configura enquanto retribuio, de onde se pode afirmar que possuem uma percepo do criminoso enquanto portador de livre arbtrio, aquele que no possui diferenas psquicas, fisiolgicas, ou que se encontra imbricado numa relao de causalidade com o ambiente. Portanto, diante da negativa do direito por parte do criminoso, o direito lhe seria negado atravs da pena o que resultaria na reafirmao do direito.J as teorias relativas, consubstanciam a pena enquanto preveno e, portanto, meio de realizar fins socialmente teis. Estas possuem dois modelos, a preveno geral e a especial que so subdivididos em suas positiva e negativa. Os modelos de preveno geral se destinam a populao em geral, e no diretamente aos criminalizados.A preveno geral negativa tem como fim intimidar os outros partcipes da sociedade a no cometerem delitos. A positiva finda reafirmar o direito por meio da pena. Por meio dessas teorias, a punio do criminoso no teria um fim neste, mas enquanto um meio simblico ao restante da populao.As teorias da preveno especial so designadas populao criminalizada de modo que, na preveno especial negativa estariam localizadas as funes de neutralizao, de aniquilamento do delinquente, de onde se extrai um pressuposto do criminoso enquanto defeituoso, sem conserto e, portanto passvel de ser descartado, por exemplo, pela morte ou pela priso perptua.A preveno especial positiva busca o tratamento do condenado, a sua reforma moral de modo a ressocializ-lo, ou seja, o criminoso seria passvel de reforma de modo a possibilitar o seu retorno ao seio da sociedade.Assim, a anlise das teorias da pena, por meio das suas justificativas e dos seus fins so um caminho possvel para a compreenso da concepo que os discursos jurdicos fazem daqueles que classifica delinquente de modo a se espraiar por todo imaginrio social.Ao observar a reao social e as limitaes que a atribuio da etiqueta de criminoso proporcionam as possibilidades de compreenso e de resposta a determinada conduta, Hulsmann redige uma parbola:

Cinco estudantes moram juntos num determinado momento, um deles se arremessa contra a televiso e a danifica, quebrando tambm alguns pratos. Como reagem seus companheiros? evidente que nenhum deles vai ficar contente. Mas cada um, analisando o acontecido sua maneira, poder adotar uma atitude diferente. O estudante nmero 2, furioso, diz que no quer mais morar com o primeiro e fala de expulsa-lo de casa; o estudante nmero 3 declara: o que se tem que fazer comprar uma nova televiso e outros pratos e ele que pague. O estudante nmero 4, traumatizado com o que acabou de presenciar gruta: ele est evidentemente doente; preciso procurar um mdico, lev-lo a um psiquiatra, etc... o ltimo enfim sussurra: a gente achava que se entendia bem, mas alguma coisa deve estar errada em nossa comunidade, para permitir um gesto como esse... vamos juntos fazer um exame de conscincia[footnoteRef:54]. [54: HULSMANN, Louk. op cit. p. 99-100.]

A parbola, juntamente com os fins (declarados) postos pelas teorias da pena demonstram o lugar do desviante (A cela, a oficina, o hospital) e a concepo que se faz destes (doente psicolgico, diferente das pessoas normais). Assim, a reao social, seja ela punitiva ou no, deixa claro a diferena no imaginrio, daquele instado enquanto desviante em relao aos que no foram assim interpelados. Se dentre as funes declaradas do sistema penal as relaes entre punio e a ressocializao so imediatas e evidenciam o seu fracasso, uma vez que suas metas no so cumpridas, quando se trata as funes latentes ou reais tais relaes alcanam a prpria estrutura social e, por outro lado, deixam claro que a persistncia de tais medidas de controle social e mesmo seu agigantamento se deve ao sucesso em alcanar tais fins.

2.1.1 O Forjar da disciplina na fabricao de proletrios

Hodiernamente naturalizada, a pena de priso foi interpelada quanto a sua origem pela linha de pesquisa aberta por Georg Rusche[footnoteRef:55] e desenvolvida no livro Punio e Estrutura Social, publicado em coautoria com Otto Kirchheimer pelo Instituto de Pesquisa Social. [55: Antes da publicao de Punio e estrutura social, Georg Rusche havia publicado o artigo Arbeitsmarkt und Strafvllzug (Mercado de trabalho e execuo penal) em 1933 na revista do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt. A respeito, recomenda-se a consulta aos artigos MACHADO e RODRIGUEZ (2008) publicados no Curso Livre de Teoria Crtica.]

O questionamento sobre a origem da pena de priso j enunciava o caminho da pesquisa em desnaturalizar tal forma de controle social e permitiu o questionamento sobre a possibilidade de uma sociedade sem penas, que indica um potencial crtico do livro para a atualidade.A principal tese da obra de Punio e Estrutura Social a influncia que as formas de estrutura social e suas oscilaes e mudanas possuem nos modos de punio adotados em uma dada sociedade. Neste sentido, a penalidade de escravido impossvel sem uma economia escravista, o trabalho forado necessita de manufatura ou da indstria e no existe possibilidade da aplicao de pena de fiana sem a existncia de moeda. Consta-se portanto que a pena como tal no existe; existem somente sistemas de punio concretos e prticas penais especficas[footnoteRef:56]. [56: RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punio e estrutura social. 2 ed. Traduo: Gizlene Neder. Rio de Janeiro: ICC/Revan,2004. p. 19.]

Rusche e Kirchheimer negam ainda concretizao de um princpio de humanidade das penas e, notadamente a tese de que as penas teriam evoludo numa trajetria linear rumo a uma forma civilizada, pois, em sua assertiva:

A punio brutal no pode ser simplesmente atribuda a crueldade primitiva de uma poca, agora abolida. A crueldade mesma um fenmeno social que apenas pode ser entendido nos termos das relaes sociais dominantes num dado perodo[footnoteRef:57]. [57: ibidem. p.42. ]

Negada a regncia dos tipos de pena por um princpio humanitrio, se faz necessria uma abordagem despida das suas justificativas jurdicas, afim de evidenciar o princpio do less elegibility, enquanto condutor das formas de pena com vista a condicionar a sua clientela nas novas estruturas sociais, mercantilismo e industrializao e emergncia convivente de um controle atuarial no ps-fordismo.O princpio da eficcia do sistema penal, less elegibility, apregoa que a eficcia das penas pressupe que as condies do apenado devem ser inferiores s da classe trabalhadora ocupada, todavia podem significar uma melhoria em relao ao subproletariado, em conscincia ou em condies de vida materiais.A teoria do less elegibility, juntamente a relao entre punio e estrutura social se erige de modo que: i) se a oferta de mo de obra for excedente s necessidades do mercado ocorrer a sua destruio ou separao, como na pena de trabalho nas gals[footnoteRef:58] e nas de deportao[footnoteRef:59]. Por outro lado; ii) caso a oferta de mo de obra seja insuficiente, a punio assumir uma maneira de inclui-la na produo, podendo culminar em trabalho forado. [58: Embora se trata-se de uma pena temporria, dificilmente os condenados sobreviviam em razo da natureza do trabalho. Ademais, Na Frana houve decreto designando pena mnima de 10 anos, j em Veneza era de 12 anos. Por fim, embora houvesse tempo de condenao explicito estes eram frequentemente violados.] [59: Se faz necessria a ressalva que aos ricos ocorria a oportunidade de comprar a liberdade ou converter a deportao em simples banimento que, por vezes, se tornava uma oportunidade de criar um brao comercial no exterior. Ademais, diferente dos escravos, os deportados eram detidos por tempo limitado, eram arrendados, tempo depois do qual eram livres.]

A divergncia de formas de tratar a punio em funo da oferta de mo de obra explicitada pelo tratamento dispendido aos pobres. A igreja tinha como tarefa cuidar dos pobres, dos doentes e dos velhos. Essa tarefa que justificava, ao menos em parte, as suas posses. Para tanto, contribua o fato que aos ricos era oferecida a oportunidade de obterem favores divinos por meio de caridade aos pobres.Porm, com a reforma protestante, em especial com o calvinismo, a prosperidade deixou de ser considerada pecaminosa e a ideia de generosidade voluntria perdeu fora. Juntamente com a falta de mo de obra na Europa do sculo XVI, constituram-se fatores que contriburam para a classificao dos mendigos entre aqueles inaptos para o trabalho, a quem era concedida licena para mendigar, e os aptos labuta, para quem a prtica da mendicncia tornara-se crime. Especificamente no que tange a ociosidade e a aptido para o trabalho, segundo Drio Melossi,

convm (...) esclarecer o real significado da recusa ao trabalho no sculo XVI. Uma srie de estatutos promulgados entre os sculos XIV e XVI estabelecia uma taxa mxima de salrio acima da qual no era lcito ir (o que implicava sano penal); no era possvel nenhuma contratao de trabalho, muito menos coletiva; e at se chegou a determinar que o trabalhador aceitasse a primeira oferta de trabalho que lhe fizesse.[footnoteRef:60] [60: MELOSSI, Drio. A gnese da instituio carcerria moderna na Europa In: Crcere e Fbrica: As origens do sistema penitencirio (sculos XVI XIX). 2. ed. Traduo Srgio Lamaro. Rio de Janeiro: Revan: 2006. P xx.]

preciso ainda considerar o estranhamento daqueles, agora proletrios, que estavam acostumados a um trabalho mais livre e independente, pautado pelo tempo solar e das estaes do ano e no pelo rgido controle disciplinar e temporal das fbricas. Ademais, ocorria frequentemente trabalhadores tornavam-se mendigos quando queriam frias por um perodo longo ou curto de tempo, ou quando recuperavam o folego enquanto procuravam um emprego melhor ou mais agradvel[footnoteRef:61]. [61: RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. op. cit. p. 19.]

Diante da escassez de mo de obra e da negativa ao trabalho, nos termos especificados, buscava-se convencer essas pessoas que o trabalho a essncia da vida. Para aqueles que no foram convencidos deveriam ser impostas medidas radicais pois, independentemente de quais forem as causas, a falta de mo de obra precisava ser suprida e, portanto era inadmissvel burguesia que a mo de obra deixasse de produzir pois, alm de prejudicar os lucros, a baixa oferta de mo de obra aumentava capacidade de oposio dos trabalhadores.Nesse contexto de proletrios revoltosos, e de necessidade de trabalhadores, o rei da Inglaterra permitiu o uso do castelo de Bridewell para o funcionamento de uma casa de correo onde fossem acolhidos vagabundos, ociosos[footnoteRef:62], ladres e autores de delitos menores. O sucesso transpareceu no s pelo fato das diversas casas que surgiram pelo pas, mas pelo fato de serem indistintamente chamadas de bridewell. [62: Atualmente no Brasil, a vadiagem prevista como contraveno, nos ditames do artigo 59 do Decreto-Lei n 3.688/1941.]

A despeito de pontuais dissonncias[footnoteRef:63], as casas de correo, tais como as bridewells, as rasp-huis, as workhouses, almshouses e as houses of corrections eram uma combinao de assistncia aos pobres, oficinas de trabalho e instituies penais. Tinham como fim transformar os indesejveis (criminosos, mendigos, fellons, parentes trabalhosos, etc) em fora de trabalho til atravs do trabalho forado, no livre, onde o trabalhador era primeiramente adestrado na ideologia burguesa calvinista e s num segundo plano interessava a extrao da mais valia. Trata-se de uma forma de controle do trabalho, de educao e de domesticao dos internos, e ainda, segundo Foucault, instituies tais como [63: O Hpitaux gnraux de Paris, por exemplo, tinha uma finalidade maior de assistncia a pobreza do que a questo. As houses of corrections americanas, por certo tempo tiveram influncia do farmer autossuficiente e se organizaram muito mais como uma family que uma comunidade de inmates, ou seja, uma comunidade de internos.]

a penitenciria, a casa de correo, o estabelecimento de educao vigiada, e por um lado os hospitais, de um modo geral todas as instncias de controle individual funcional num duplo modo: o da diviso binria e da marcao (louco no louco; perigoso-inofensivo; normal-anormal); e o da determinao coercitiva, da repartio diferencial.[footnoteRef:64] [64: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da priso. 20. ed. Traduo: Raquel Ramalhete. Petrpolis: Vozes, 1999. p 165.]

Por meio da Rasp-huis de Amsterd possvel elucidar a ideologia que permeava as casas de correo. Essa instituio surgiu em 1596 e se destinava em princpio a mendigos ou a jovens malfeitores e que posteriormente passou a admitir marginalizados e sentenciados a penas longas. Ela recebeu este nome em virtude do fato que trabalho ali desenvolvido que consistia fundamentalmente em raspar com uma serra de vrias lminas madeira do pau brasil at transform-la em p para o uso em tintura de fios. interessante o fato que no mbito do trabalho livre a tarefa era desenvolvida por moinhos, a partir dos quais se obtinha p de melhor qualidade. No obstante, na Rasp-huis o trabalho era desenvolvido de forma manual, mais cansativa, com fim a adequar ociosos e preguiosos ao trabalho, mesmo que isso implicasse na pior qualidade do p fabricado, tanto esse era o fim que o nmero de lminas da serra para pulverizar a madeira progressivamente se reduz de 12 para 8, 6 e 5. Reduz-se, concomitantemente, a quantidade de p que deve ser produzida semanalmente por cada interno[footnoteRef:65]. [65: MELOSSI, Dario. A gnese da instituio carcerria moderna na Europa. In: Crcere e Fbrica: As origens do sistema penitencirio (sculos XVI XIX). 2. ed. Traduo Srgio Lamaro. Rio de Janeiro: Revan: 2006. p 48]

O aspecto de casa para forjar o carter fica evidente ainda com o fato que a durao da pena poderia ser determinada pela prpria administrao, conforme o comportamento do prisioneiro. Ademais, ilustrativa a transcrio de um panfleto a respeito da instituio de Amsterd sobre os milagres provenientes da Rasp-huis que indica a relao da instituio como a ideologia do trabalho e da tica calvinista. No panfleto:

o autor, um militante protestante, deu ao seu relato um carter polmico em relao ao catolicismo, e ridiculariza os milagres da igreja comparando-os aos milagres ocorridos nas casas de correo. A serra de doze dentes para raspar a madeira aparece como So Raspado, e outras formas de trabalho duro aparecem como Santa Pena e So Trabalho. Juntos esses trs santos realizam milagres em seus pacientes, que os pagam com grande devoo[footnoteRef:66] [66: RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. op. cit. p. 81.]

Embora o disciplinamento das massas se mostrasse ainda como meta, o suprimento de oferta de mo de obra vai aumentando, h produo de excedente, situao a partir da qual no h mais necessidade de medidas coercitivas para o emprego da mo de obra, mas atesta o crescimento de uma classe trabalhadora vida por trabalho. As casas de correo aos poucos foram se tornando um pesado nus para a administrao, pelo contexto econmica, a baixa produtividade, os custos de vigilncia.Essas instituies foram cada vez mais foi utilizadas enquanto instituies carcerrias, ou seja, a segregao como punio em si, e no como meio ao trabalho forado ou enquanto meio de conteno at que a pena fosse executada. A priso no visa ao lucro, assim nela possvel o trabalho de maneira somente teraputica ou educacional. Nas palavras de Massimo Pavalini:

Foi na tentativa de resolver este problema que a fantasia reformadora do jovem Estado americano encontrou, na poltica do controle social, sua inveno mais original: a penitenciaria (penitenciary system). Na ltima dcada do sculo XVIII, a escassez endmica de fora de trabalho desfrutava, singularmente, de uma situao favorvel. A violenta redistribuio da propriedade fundiria havia determinado um vasto processo de mobilidade social interna, que, acompanhado por taxas cada vez maiores de imigrao da Europa, permitira, em virtude dos baixos custos no aprovisionamento das matrias-primas, um vantajoso emprego de capitais na manufatura nascente.[footnoteRef:67] [67: PAVALINI, Massimo. A inveno penitenciria: A experincia dos Estados Unidos na primeira metade do sculo XIX In: Crcere e Fbrica: As origens do sistema penitencirio (sculos XVI XIX). 2. ed. Traduo Srgio Lamaro. Rio de Janeiro: Revan: 2006. p 186.]

Diante das opes, entre aumentar a produtividade do trabalho e encontrar um sistema mais econmico, prevaleceu o segundo. Neste, as seitas quakers buscaram criar uma instituio cujo isolamento, orao e abstinncia de bebidas alcolicas pudesse afastar os seus internos da criminalidade. A partir de tais premissas, surgiu em Wallnut Street a pena de priso com isolamento celular dos internos, silencio, meditao e orao, conhecido.O afinco dos reformadores estava na relao que faziam entre o confinamento solitrio, enquanto capaz de resolver qualquer problema penitencirio, como o contato perigoso entre os detentos, a promiscuidade, e a introspeco como fomento busca do arrependimento. No que se refere a disciplina, o sistema de Wallnut Street, se estruturou pelo princpio do panptico, que, segundo a descrio de Foucault:

na periferia uma construo em anel; no centro, uma torre; esta vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construo perifrica dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construo; elas tm duas janelas, uma para o interior, correspondendo s janelas da torre; outra, que d para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta ento colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operrio ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator est sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visvel. O dispositivo panptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princpio da masmorra invertido; ou antes, de suas trs funes trancar, privar de luz e esconder s se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade uma armadilha.[footnoteRef:68] [68: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da priso. op. cit. p 165-166.]

No incio do sculo XIX ocorreu um grande incremento na demanda por trabalho nos Estados Unidos, situao que fora agravada pela conquista de novos territrios, pela industrializao e a dificuldade na importao de escravos. Contexto no qual se buscou reintroduzir o trabalho produtivo no crcere. No obstante, o isolamento celular do modelo de Wallnut Street no permitia o uso de mquinas e da produo manufatureira. Ao mesmo tempo que era improdutiva, no educava os detentos para o trabalho moderno.Da surgiu um novo sistema na penitenciaria de Auburn que se calcava no confinamento solitrio durante a noite e o trabalho em comum durante o dia. Dessa forma o confinamento noturno mantinha os requisitos da recluso defendidos pelo sistema de Wallnut Street, ao mesmo tempo que possibilitava a aplicao de uma forma contempornea de produo, a fbrica. Imperava ainda, seja em no trabalho coletivo ou na recluso o imperativo do silncio com fim na introspeco e na restrio dos contatos verticais, ou seja entre os detentos e os funcionrios e supervisores, sob estrita indagao desses ltimos.Mesmo que se tenha almejado dar utilidade econmica a casas de correo ou presdios tal objetivo quase nunca foi efetivamente alcanado, neste mbito nunca foram teis. Contudo, o que fica evidente a sua forma de fbrica no de algum objeto ou matria prima, mas dos prprios detidos, impulsivos, agitados mltiplos em sujeito unidimensionado na disciplina, a figura do detido.O sujeito isolado, no modelo de Wallnut Street, pode ser visualizado como o trabalhador desorganizado. J o silncio, em ambos os modelos de deteno, o isolamento na forma de linguagem, principalmente frene a possibilidade de comunicao entre os guardas, a lhes atribuir um sentido de coletividade diante dos presos, indivduos dissociados.As inferncias expostas permitem afirmar que o crcere possui como objetivo reafirmar, e junto a outras instituies totais, distinguir entre proprietrios e proletrios, estes ltimos a quem se deve educar enquanto seres no perigosos e disciplinados.

A disciplina fabrica indivduos; ela a tcnica especfica de um poder que toma os indivduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exerccio. No um poder triunfante que, a partir de seu prprio excesso, pode-se fiar em seu superpoderio; um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente.[footnoteRef:69] [69: ibidem. p 143.]

A disciplina busca o exerccio do poder de maneira mais econmica, de forma discreta, pouca visibilidade e exteriorizao, procura pelo mximo rendimento econmico no meio por onde se exerce (casas de correo, prises, hospitais, escolas). Tem como fim a docilidade dos sujeitos para extrair o mximo de utilidade dos corpos.As justificativas pelo anseio do disciplinamento da mo de so amplificadas pela expanso do capitalismo industrial. Se no modo de produo feudal e nas guildas as oficinas no se diferenciavam muito de aglomeraes de trabalhadores, com o advento da industrializao, a complexidade dos bens a serem produzidos, maior nmero de processos a serem executados, a diversidade de matria prima, os estoques, denotam a necessidade de uma nova forma de gerenciamento.A gerncia, proprietria do capital, passa a assumir maior controle sobre a produo pautada na experimentao e controle, de modo a estudar o trabalho dos outros. Da diviso de tarefas que ocorria antes da industrializao, em ofcio, substituda pela subdiviso em operaes limitadas na qual o trabalhador inapto a acompanhar qualquer processo completo de produo. A diviso do trabalho em subdivises especializa o funcionrio por meio do exerccio repetitivo uma tarefa especfica, tal como esticar arame para produo de alfinetes, e assim barateia os custos, uma vez que seleciona o trabalhador mais hbil, por meio de experimentos e contagem de tempo, e o condiciona atravs da repetio, diversamente dos ofcios, onde cada trabalhador seria responsvel por todas as etapas da construo dos alfinetes. A especializao exige a submisso do trabalhador ao exato meio designado pela gerencia para execuo do trabalho, diante da necessidade de manter o ritmo da cadeia de trabalho e a compatibilidade das etapas de produo entre si. Da se percebe o aumento no rendimento do trabalho subdividido, uma vez que, no existem mais decises a serem tomadas, o trabalho se torna mecnico. Ao contrrio do mtodo fabril das oficinas, onde:

A quantidade variada de decises a serem tomadas no curso do processo diferentemente do caso de uma funo simples como a de carregador por sua prpria natureza enorme. Mesmo para o caso do torneiro apenas, sem contar todas as tarefas colaterais como a escolha do material, manejo centragem e fixao da pea, desenho e mensurao, ordem de cortes, e considerando apenas as operaes de tornear, a gama de alternativas enorme.[footnoteRef:70] [70: BRAVERMAN, Harry. Trabalho e Capital monopolista: a degradao do trabalho no sculo XX. 3. ed. Traduo: Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: LTC, 1987. p XX.]

Das subdivises do trabalho possvel enunciar o primeiro princpio do projeto de trabalho industrial de Taylor: a dissociao do processo de trabalho das especialidades dos trabalhadores, no qual o administrador rene o conhecimento do trabalho, classifica e o reduz a leis, regras e frmulas, a estabelecer uma relao de dependncia das polticas gerenciais.Deve ocorrer ainda a separao entre a concepo e a execuo, segundo princpio, no qual o trabalhador somente realiza as tarefas, isento de propsito em prol do rendimento da produo, o planejamento fica por conta do gerenciamento cientfico. E o terceiro princpio, o controle de cada fase do processo de trabalho e seu modo de execuo, que alm de aumentar o rendimento, pela linha de produo subdividida, dificulta o retardamento do trabalho por parte dos funcionrios, ou o rendimento abaixo daquilo que se concluiu pela experimentao e contagem de tempo. Tal forma de produo diminui a capacidade de resistncia do trabalhador, uma vez que as atribuies so simplificadas de modo a que estes possam ser facilmente substitudos e, por conseguinte, diminui-se o tempo de formao e ocorre o aumento de oferta.

2.1.2 Separar o joio do trigo: a emergncia de um modelo atuarial de controle social

Com a emergncia de trabalho de alta tecnologia, a automao e notadamente a informtica, ocorreu a reduo da demanda por trabalho humano, situao que marca a transio do fordismo, pautado pela disciplina e que possui o taylorismo como sua dimenso organizativa, um regime definido pelo excesso, da onde emergem novas estratgias de controle social orientadas para o controle deste excesso, o ps-fordismo.A denominao ps-fordismo, do modo como empregada por Alessandro de George, deixa clara a persistncia dos modelos disciplinares do fordismo, uma vez que a partcula ps denota um perodo de transio entre o modelo anterior, que no mais vigora, ao menos no sozinho, em uma forma tpica e um novo modelo em construo. O ps-fordismo se erige pelo esgotamento do modelo industrial da grande fbrica e marcado pelo excesso, em sua dimenso negativa e positiva.O excesso negativo demonstra a dependncia cada vez menor de fora de trabalho no processo produtivo. O desemprego deixa de ser proveniente da conjuntura e se torna estrutural. Nesse foco, o desemprego denota a falta de um conjunto de seguranas, garantias e direitos, o que no equivale ao desaparecimento do trabalho, mas a excluso da cidadania pelo conjunto dos direitos do trabalho, da identidade com o emprego e do envolvimento trabalhador com sua atividade empregatcia, ou seja, da incluso social por meio do trabalho.O excesso ps fordista assume ainda uma dimenso positiva onde o ciclo de produo se torna horizontal, de forma a no mais contemplar uma separao rgida entre criao, direo e execuo do trabalho. A comunicao e o intelecto se tornam utenslios de produo, no trabalho imaterial, cognitivo e ligado a tecnologia. No lugar da sincronia da fbrica em linha valorizada a cooperao produtiva por meio de rede. Tais relaes evidenciam que no h mais controle interno da produo, mas um excesso de potencialidades. mbito no qual a disciplina perde centralidade, frente a um domnio da multido.A multido define um processo de subjetivao e multiplicidade, da onde se perdem as caracterizaes e separaes da classe operria. Alm disso a multido no forma uma classe, um sujeito revolucionrio ou identidade de trabalho contemporneo.A partir desses conceitos, Alessandro de Giorgi apresenta alguns elementos do controle social ps-fordista: o crcere atuarial, a metrpole punitiva e a rede. No que tange a questo atuarial:

As novas estratgias penais se caracterizam cada vez mais como dispositivos de gesto do risco e de represso preventiva das populaes consideradas portadoras desse risco. No se trata de aprisionar criminosos perigosos individuais, isto , de neutralizar fatores de risco individual, mas sim de gerir, ao nvel de populaes inteiras, uma carga de risco que no se pode (e, de resto, no se est interessado em) reduzir. A racionalidade que estamos descrevendo no disciplinar, e sim atuarial[footnoteRef:71] [71: GIORGI, Alessandro de. A misria governada atravs do sistema penal. Traduo: Srgio Lamaro. Rio de Janeiro: Revan, 2006. p 97.]

Por este meio de controle, os atos dos sujeitos e suas relaes so preteridas em prol de probabilidades, estatsticas de forma que todo um rol de cidados se tornam passveis de controle baseado em suas posies nas relaes estatsticas. A metrpole punitiva se caracteriza pela regulao da entrada e sada de pessoas em de modo a diferenciar a possibilidade de transito de pessoas. Se divide em guetos onde a restrio voluntria, como os shoppings, aeroportos e os guetos involuntrios, por exemplo as favelas. Esse tipo de controle cria obstculos, simblicos e materiais seja para incluso ou excluso, como dificuldade de acesso pelo transporte pblico, exigncia de determinados tipos de vestimentas, difuso da caracterizao redutora de determinados lugares enquanto reduto de violncia.Por fim, a rede compreende o controle dos requisitos e limites de acesso ao conhecimento e s informaes. Trata-se de um controle preventivo e referenciado a bens imateriais, uma vez que essa no pode ser recuperada, como a cpia de imagens pessoais que vazaram na internet.Contudo, destaca-se, que o crcere permanece tambm com em suas antigas funes, uma vez que, no exemplo de Drio Melossi:

aqueles que inventam novos algoritmos para o software continuam a ter necessidade de quem cozinhe seus hambrgueres, lave suas camisas e lhes garanta um certo relaxamento noite, diante de um aparelho de televiso ou