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O Cortiço Adaptação de Chico Tomaz Personagens A peça pode ser encenada com no mínimo 6 Atores João Romão – Português Avarento Polícial – Cena Única Bertoleza Escrava Bruxa Macumbeira Miranda – Português Barão Jerônimo Português infiel Rita – Baiana exibida Mulher – Dona de Bertoleza Piedade – Portuguesa esposa de Jerônimo Estela Esposa de Miranda Firmo Namorado de Rita Albino Homossexual alfaiate CENA I Em cena estão todos os Atores em vestes pretas de exercícios. Um deles é o diretor, também de preto, porém de boina. Diretor – Então cambada. Chamei todos aqui, porque saiu uma nota no jornal da cidade (ironizando) a Cia. de “Conteúdo”, não produz nada além de Comédia Chanchada! Todos – Chanchada? (se perguntando) Diretor – (frisando) Sem conteúdo! Mas chega dessas críticas, estou cansado de não ser reconhecido. Por isso hoje vamos começar montar o Cortiço! (ligam-se as luzes “contras” e mostra as faixadas desenhadas). Há uma faixada de um grande sobrado, com uma tenda de pedreira do lado. Todos – O que? Ator 1 – De Aluísio Azevedo? Diretor – Sim! Ator 1 – Que foi escrito em 1890? Diretor – Sim Atriz 2 – Num é a que conta sobre varias pessoas, que moram num Sobradão? Diretor – Cortiço!

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O CortiçoAdaptação de Chico Tomaz

Personagens

A peça pode ser encenada com no mínimo 6 Atores

João Romão – Português Avarento Polícial – Cena Única

Bertoleza – Escrava Bruxa – Macumbeira

Miranda – Português Barão Jerônimo – Português infiel

Rita – Baiana exibidaMulher – Dona de Bertoleza

Piedade – Portuguesa esposa de Jerônimo Estela – Esposa de MirandaFirmo – Namorado de Rita

Albino – Homossexual alfaiate

CENA I

Em cena estão todos os Atores em vestes pretas de exercícios. Um deles é o diretor, também de preto, porém de boina.

Diretor – Então cambada. Chamei todos aqui, porque saiu uma nota no jornal da cidade (ironizando) a Cia. de “Conteúdo”, não produz nada além de Comédia Chanchada!Todos – Chanchada? (se perguntando)Diretor – (frisando) Sem conteúdo! Mas chega dessas críticas, estou cansado de não ser reconhecido. Por isso hoje vamos começar montar o Cortiço! (ligam-se as luzes “contras” e mostra as faixadas desenhadas).Há uma faixada de um grande sobrado, com uma tenda de pedreira do lado.

Todos – O que? Ator 1 – De Aluísio Azevedo? Diretor – Sim! Ator 1 – Que foi escrito em 1890?Diretor – Sim Atriz 2 – Num é a que conta sobre varias pessoas, que moram num Sobradão?Diretor – Cortiço!Ator 3 – Mas como colocaremos as atrizes seminuas? Diretor – Eu disse com conteúdo! Ator 3 – Mas diretor, e a história da mocinha que tem que ficar com um mocinho, e o vilão interrompe, não tem nessa história!Diretor – Não tem porque não existe, o personagem principal é o próprio Cortiço.Atriz 1 – Que fala sobre a escravidão, burguesia e classe mais baixa!Diretor – Exatamente! Ator 1 – Mas quem quer saber disso?Diretor – Cai no vestibular sabia?

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Ator 3 – Mas e a graça, a comedia? Diretor – Improvisem!Ator 3 – Palavrão também? Diretor – Não exagera! Vejamos, começaremos por Bertoleza!Atriz 2 – A escrava que pensa que foi libertada? Que foi enganada por João Romão que escreveu a carta de sua auforria com o próprio punho?Diretor – Sim! Sim! Sim!Ator 2 – Mas diretor quem vai fazer essa personagem?Diretor – (todos os outros atores se afastam) Acho que já temos um voluntário! Ator 2 – Eu? Mas... (todos riem)Diretor – Nada de mas. (todos trazem um longo vestido, avental, peruca e o vestem, ele faz cara de mal-humorado) E espero que seja feminino. (ele posa)Diretor – Você será João Romão! (apontando pro ator 1) Silêncio! (olha pra ator 2) Sorrindo! (ele sorri) Ação! (todos saem rindo e fica apenas Bertoleza)

CENA II

Bertoleza ajoelha-se num foco no centro como se fosse orar. Pega uma carta do bolso do avental e grita. (a príncípio narrativa).(ator 2 vai narrando enquanto se caracteriza como Bertoleza)

Bertoleza – (Pega uma vassoura e passa varrer cantando).E agora ficou bom, e agora tá bonito. Chegou o Chico Pôla, no samba do zé Chiquito.

Entra João Romão.

João – Mas que diabos de música é essa Bertoleza! (ela assustasse). Bertoleza – O sinhor me desculpe seu Juão, é uma musga que o Albino não para cantar, e que agora num sai da minha cabeça.João – Eu sabia, que esse tipo de música só poderia ser coisa daquele marica! Não quero você de fricote com ele.Bertoleza – Pode deixar! Mar eu tenho uma outra musga que o sinhor pode gostar.Vai até uma radiola, coloca um sambinha. Abre um foco no meio, ao som de um samba estão Bertoleza e João Romão dançando.João – Sabes que eu não levo o menor jeito para o samba.Bertoleza – Mar é pur isso que o senhor se amancebou cum essa nega aqui.João – Mas que palavriado Bertoleza. Bertoleza – Desculpe, seu Juão, é se amigar. Por isso o senhor se amigou cumigo.(João agarra Bertoleza com um puxão! Grudando os corpos)Bertoleza – Como é que é? (voz grossa)Diretor – (do fundo-off) Feminina! (Bertoleza sorri falsamentee deita no ombro de João)João – Muitas coisas aconteceram nesses anos todos hem Bertoleza?Bertoleza – E eu agradeço pur tudo, inda bem que eu dei todas as minha ecunomias pro sinhor Juão Romão, se não fosse o sinhor, acho que eu ainda estaria com aquele cego que num achava nada.João – Que?Bertoleza – Como escrava! João – Pois é, e graças as minhas influências consegui sua liberdade. Bertoleza – Inda lembro do sinhor dizendo: (voz grossa) -Tu agora não tens mais senhor, estás livre. Acabou o cativeiro. Foi muito rumântico.João – Fiz o que deveria ser feito. Escrevi sua alforria (desconserta. tosse) quer dizer paguei.Bertoleza – Daí construímos tudo junto, esse curtiço, pedra pur pedra, casa pur casa.João – Meu cortiço, minha pedreira, uma companheira, ou melhor uma amante. (apalpa ela, ela dá um tapa na mão dele)Bertoleza – Sabe sinhor Juão, tenho tido um sonho, mar o mermo sonho por varias noites, mar é

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um sonho real também. João – Ah é? E do que seria?Bertoleza – O Altar! João – Como assim?Bertoleza – O senhor! Eu! Um casamento!Música para ele a solta abruptamente, ele tosse.João – Vá pegar meu casaco, preciso dar uma saída.Bertoleza – Avimaria! João – E vá fazer café, quando retornar quero servido a mesa.Bertoleza – Sim sinhor. Ela pega entrega o casaco e ele sai. Ela fica um tempo capisbaixa, logo sai.

CENA III

Entra João Romão, e encontra Albino acertando pontos de costura na roupa que Miranda está vestido que se encontra paralisado.

Albino – Oi seu Romão, tudo bem? Veio me procurar?João – Ma che cazzo? Albino – Isso num é Italiano? João – (tosse) Perdão! De novo! Mas pra que eu te procuraria Albino? Seu gajo panasca.Diretor – (off) O que disse?João – È afeminado em Português.Miranda – Veio acá minha casa para somente insultar meu alfaiate João?João – Vim porque mandaste um puto a minha casa me procurar. Não tens coragem de ir pessoalmente? E porque um alfaiate, costumas costurar até as cerolas rasgadas pra não comprar novas?Miranda – É pra uma ocasião especial, mas deixe de firulas e vamos tratar de assunto. Mandei chamá-lo porque quero comprar parte do seu terreno para aumentar o meu quintal. João – Você está louco? Nunca disse que estava a venda! Eu vou usar meu terreno pra ampliar minha pedreira, meus negócios. Miranda – Negócios que construiu na base do roupo de material do vizinho Romão?Albino – Meninos não se exaltem (suspirando).João – Cala-te seu larilas. Negócios que construí com meu suor e de Bertoleza.Miranda – A sua escravinha gajo? (para Albino) Ai não me fure, seu alfaite de merda!Albino – Escrava? To passada! (assustando-se)João – Aquieta-te seu panina.Miranda – Todo mundo sabe que você falsificou a alforria da negrinha, a burra nem desconfia, ainda deixou que você seu avarento lhe tomasse todo o dinheiro para construir aquele bando de cochos amontoados como favela.João – Não entendo por que essa vizinhança vive a invejar-me. Não sou rico. Apenas tenho de que viver. Cá umas casinhas de onde recebo aluguerérs. Acolá uma modesta pedreira de onde arranco uns cacos de pedra. Ora, merda! Quanta confusão me rende um trabalho, só pelo fato de nele ser próspero.Miranda – Quisesse eu ser próspero também, me bastaria ter coragem de roubar todos aqueles que me servem. Avareza faz mal à saúde.João – Julga-me, mas não me importo. Quem me cobre de injúrias não tem bom passado.Miranda – Confesso que posso não ser o melhor exemplo de homem, mas mesmo assim sou digno.João – Miranda casou-se por interesse, viveu à custa do velho sogro. Mas duas coisas não lhe faltam: dinheiro e chifres.Miranda – Não ouse falar de minha santa esposa.João – Novidade Miranda, ela agora tá saindo com o Puto do seu sobrinho.Diretor – Mas que linguajar é esse?João – Puto é garotinho em Portugal. É que eu estudei um “cadinho” diretor.Albino – Mas é verdade, bem que eu vi Dona Estela saindo do matagal com Henrique, seu sobrinho.

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Miranda – Não se meta seu Paneleiro, Adé, pederasta.Diretor – Não exagera! Albino – Brigando por causa de mulher? E eu aqui sobrando!João e Miranda – Cala boca seu maricas!João – Mas que importa aqui não é o tamanho do chifre.Miranda – Falas de mim?João – Tem outro chifrudo aqui? Miranda – E ainda pensa que tomará minha rapariga nova. (para o diretor antes dele interromper) É filha diretor, filha. (volta para João) Quer tomar minha filha Zulmira como esposa comportando-se assim? Nenhum piroco seu será o suficiente.Albino – Piroco? Ai, deu até calor.Miranda – Cantada Albino, cantada, seu imoral.João – Você não impedirá meu cortejo seu Bandido.Miranda – Repita e não respondo por mim.João – Bandido.Miranda – Olha que te corto os bigodes a unhas. Albino – Não briguem rapazes, eu fico toda amendrontada, acho que eu vou desmaiar. (finge que cai, mas ninguém o segura). Miranda – Saiam da minha casa imediatamente. Albino – E o meu dinheiro seu Miranda. Miranda – Fora daqui antes que eu te desmunheque mais ainda seu froxo.Albino – Mão de vaca! (Miranda coloca Albino pra correr, em seguida sai).

CENA IV

João Romão entra em cena com um jornal nas mãos, exaltado. Solta um berro desesperado.

João – Barão?! (anda com o jornal nas mãos, em passos lentos e desordenados). Barão!... (Repete). Barão... Com esta eu não contava! O filho da mãe do Miranda, foi reconhecido como Barão pelo governo português. O que tem ele para ser Barão? Eu sempre trabalhei feito um asno, e aquele choco é que ganha títulos. Onde estão os olhos do governo português que beneficia um nojento... Invejoso! Não vou conseguir pregar os olhos sabendo de tamanha afronta. Fui uma grande besta. Por que em tempo não me habituei a outro modo de viver, como faziam meus colegas de profissão? Por que como eles eu não aprendi a dançar ou freqüentar sociedades carnavalescas? E não ia, de vez em quando à Rua do Ouvidor e ao teatro, bailes, corridas e passeios? Por que não me habituei às roupas finas, calçado justo, bengala, chapéu e com o lenço... Não bebi cerveja, não fumei charuto. Maldita economia. Teria gasto mais dinheiro, é claro... Não estaria tão bem, mas seria habilitado a receber olhares, quicá do Governo Português! Maldita economia! Ainda vou-lher arracar o fundo das calças Miranda.Entra BertolezaBertoleza – Você deu hoje para falar com as almas, seu Juão?João – Deixe-me! Não me amole você também. Não estou bom hoje.Bertoleza – Óxente! Não falei pur mal!... credo!João – Está bem... basta. (Sai a dar uma volta no cortiço) (ao cortiço) Quero isto aqui limpo! Está Imundo seus porcos. Tomara que a febre amarela os lamba todos... Maldita raça de sangue-sugas! Hão de fazer isto limpo ou os mando todos para o olho da rua! Aqui mando eu! Nas minhas casa, cochos ou que eu quiser que sejam, eu sou o monarca. Bertoleza – (com um cartão nas mãos). Seu Juão, mandaram te intregar. É um cunvite do Miranda para sua festa, hoje à noite. (João Romão hesita) Tu vais? João – Por que ele me convida, sabendo que eu não vou? Decerto é para esnobar-me. Seu Miranda que vá à tábua com sua festa e seus títulos. (Voltando a se exaltar) Não preciso dele para nada. Se gostasse de festas dava-as eu. Agora te retira daqui, vai. Vai fazer café! (os dois saem)

CENA V

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Entra Albino e Estela com bacias e põem-se a lavar.

Albino – Tudo bem dona Estela?Estela – Mais ou menos Albino, lá em casa não tá facil as coisas. Chegou um menino novo.Albino – Vish! Já vi tudo! Eu é que não vou me meter, destesto fofoca. (Logo vai estender uma roupa e passa a cantar)

Albino – Quem foi que disse que a vida é facilentra no cortiço pra experimentarAqui é cobra engolindo cobraentra no cortiço pra cortiçar

Quem disse que a nega é livreé só um boato que vem de láTem casado que se faz fielbasta um rabo-de-saia pra atrapalhar

Um português que é avarentoUsa de de artifícios pra se gabarUm outro que só tem chifrePois tem uma mulher pra lhe defamar

A vida alheia não interessaSó pras linguarudas aqui do marTem uma baiana toda arretadae uma marica fina pra enfeitar.

(No final da música entra Bertoleza também com um bacia e põe-se ao lado para lavar).

Estela – Qual felicidade hem Albino, que aconteceu?Albino – Só estou contando os dias pra encontrar meu Português!Bertoleza – Já tá de xamegu com outro sim-vergõe? Inda purtuguês! Quem é ele?Albino – Eu não o conheço, ainda, mas sei que está próximo.Bertoleza – Vira homi cabra froxo. Mar me diga, cadê as zôtras linguarudas daqui?Albino – Num sabe? Pombinha nem sai mais de casa, a bichinha já passou da hora de virar moça e ainda nada.Estela – Ainda não desceu?Albino – Qual nada! Ta uma tristeza só. Eu acho normal, tou há 24 anos esperando e ainda não me veio também.Bertoleza – Te apruma cabra! Albino – E a Leonie!Estela – A prostituta? Albino – Puta mesmo, tá de viçagem pro lado da Pombinha!Bertoleza – Num diga!Albino – Pois é essa praga não sabe se é puta ou se é sapata. E ainda com a coitada da Pombinha que ainda num é nem moça.Estela – E a Rita Baiana?Albino – Essa assanhada faz dois 8 dias que está sumida e me esquece aqui. Deve tá se esfregando com o Firmo, aquele sem ocupação.Bertoleza – Valha-me Deus! Albino – Aquela não endireita mais... Cada vez fica mais assanhada. Tem um fogo no rabo...Estela – Num é má pessoa, tirando o defeito de vadiagem.Albino – De vadiagem anda Leocádia. Dizem que o marido pegou no meio do bambuzal a rolar com um descarado.Bertoleza – Deus Santo... E quem era o safado?Albino – Dizem ter sido Henrique. O menino da casa de Miranda.

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Bertoleza - Aquele garotinho de quinze anos? Valei-me!Estela – O que? Henrique? Sobrinho do meu marido? Meu garoto? (sai apressada com raiva)Albino – Valha! Olhe quem aí vem. (Todos reagem fazendo festa)Bertoleza – É a Rita Baiana. Já te fazíamos mortinha da silva.Albino – Ja te imaginava um tocão preto, tão duro que avimaria. Mas onde estiveste tu enterrada tanto tempo, criatura.Rita – Em Jacarepaguá.Albino – Hum... com quem?Rita – Com o Firmo.Bertoleza – Ainda cum ele?Rita – Cala a boca que a coisa agora é séria.Albino - Paixões da Rita. Uma por mês!Rita – Não! Isso é que não. Quando estou com um homem não olho para outro.Albino - Por que não te casas com ele?Rita – (protesta) Casar? Nessa não cai a filha do meu pai. Casar? Livra! Para quê? Para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava! (Dá de ombros). Meus amigos... Chego de viagem hoje mas o pagode de domingo vai ser na minha casa. (O vizinho, Miranda, espia do sobrado).Albino - Rita, notas que teu vizinho espia da janela a farra que estamos fazendo?Rita – (gritando provocadora) Espia a vontade vizinho trambiqueiro, não vivo as suas custas. Pois vá para o diabo que o carregue!Miranda – Vão gritar para o inferno, lambregas. Rita – Olhe a pedrada. (ele sai da janela) Deixa lá esse xumbrengo! Aceitam café?

CENA VIRira serve café a todos co alguns biscoitos.

Rita – (Vira-se a Albino que está com uma xícara de café nas mãos). E tu, maricas... Não come nada? Só toma café? Bertoleza – Fastiu igual a esse, só pode ser gravidez! (Segue uma sessão de gargalhadas com pequenos comentários)Albino – Você já começa, hein?...Rita – Será mesmo verdade que este pamonha não conhece mulher? Esta história hoje vai ficar liquidada. Albino – (quase chorando) Se soubesse que era para isso que me chamaram não teria vindo cá. (Vai saindo. Rita impede)Rita – Vamos lá, ó Albino. Me tome, me possua. Mostre o homem que há em você! (montando nele) Ora, não sejas tolo. (Albino enxuga as lágrimas . Começa um barulho tremendo na casa de Miranda. Entreolham-se). Bertoleza – É na casa de Miranda. E eu qui acharra qui Dona Estela fosse uma boa esposa. Virgi Maria Santíssima! Albino – Qual! Isso aí é uma pouca vergonha... E não foi só com o estudante Henrique não.Entra João RomãoJoão – Mas o que que há?Albino – É na casa do Miranda. Rita – Dona Estela não perde tempo, só falar no garotinho ela correu atrás, parece que tem fogo no rabo.João – Bertoleza já pra casa, não quero você se misturando com essa zinha ai e esse marica.Bertoleza – Desculpe seu Juão, tava aqui tomando caféJoão – Tem café em casa, vá já fazer!Bertoleza – Sim, sinhor.

CENA VII

Entra Miranda, os outros só observam o monólogo.

Miranda – Ah, Malvada, estragou-me a testa com galhas! Quem dera pudesse te mandar de

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voltas pra tua mãe, desgraçada! É um garoto, só tem quinze anos, ai Jesus! Meu lar está perdido! Ai, que me dá uma raiva que tenho vontade de esganar os dois. Já sei, vou matá-la! (vai sair e se arrepende) Espere, mas é a quarta vez que acontece. Como vou matá-la quatro vezes? Não. Matar também Deus não manda. Estela, desgramada minha, quantas vezes ainda vou ter que te perdoar? Rita – (grita) Problemas em casa vizinho? Tenho chá pra dor de cabeça, caso esteja pesando muito. Miranda – Meta-se com a sua vida.Albino – Não fale assim com Nhá Rita.Miranda – Te quebro os dentes paneleirto de merda. Falo do jeito que quiser com essa baiana!Rita – Ópaí ó! Isso lá é ofensa, orgulho sim de um povo que luta, guerreiro.Miranda – Povo sem futuro.Rita – Seu Portuguê de Araque, Bahia tem muito mais cultura que...Miranda – (interrompe) Povo Macumbeiro.Rita – Vá pro raio que o parta, corno infeliz, merece cada galhada. (Rita dá de ombros e sai)Albino – Quero o meu dinheiro!Miranda – Venha com essa história de dinheiro sua mulherzinha! (Vai pra cima e Albino corre atrás de Rita) (João se volta para Miranda) João – (Irônico) O que há, meu rico vizinho? Andam a colocar coisas em tua cabeça?Miranda - Venha aqui se for homem. João – Creio que Dona Estela anda insatisfeita no casamento. Algo falta!Miranda – Ainda te arranco os córneos.João – Para quê? Precisa de mais alguns? Miranda – Dor de cotovelo é a pior coisa do mundo né vizinho?João – Não seja besta! Miranda – Pelo menos eu tenho alguém que me faça de corno, e tu?João – Além de corno é convencido. O cabra tem orgulho de ser!Miranda – Ainda te parto ao meio.(Miranda bufa de raiva, sai em seguida de João)

CENA VIII

(Piedade entra acompanhada da Bruxa).Bruxa – (com as cartas preparadas numa mesinha) Diz-me o que a atormenta tanto, Piedade.Piedade – Estou a perder meu homem. Bruxa – Por que suspeitas?Piedade – Já não me procura mais. Vive a reclamar que cheiro mal. Não é mais o mesmo homem. (Bruxa faz magias, concentra-se até achar segurança para responder).Bruxa– Ele tem a cabeça virada... por uma mulher trigueira.Piedade – Ai, Jesus. É o diacho da Rita Baiana. Bem cá me palpitava por dentro. Ai, meu rico homem... (chora) pelas alminhas do purgatório, o que podes tu fazer para me remediar tamanha desgraça?Bruxa – Eu nada. Só posso te abrir os olhos.Piedade – (soluçando) Ai, se perco aquela criatura, nem sei que virá a ser de mim neste mundo de Cristo... Me ensine alguma coisa que me puxe o Jeromo...Bruxa – (hesita) Conheço uma maneira, mas tem que ser bem feita.Piedade – Eu faço bem feito. Pode dizer.Bruxa – De manhã bem cedo ao acordar, lave a sua... é... (gesticula aos órgãos genitais)Piedade – Não estou entendendo!Bruxa – A menina!Piedade – Que?Bruxa – A Bacurinha!Piedade – Avimaria, mas eu nem crio porcos. Bruxa – Tou falando da sua boneca, do pacote, suas entradas mulher!Piedade – Valei-me minha nossa senhora!Bruxa – Pois bem. Lave-a e dê a água a seu homem para beber... algumas gotas ou uma colher

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da água da sua lavagem no café pela manhã. (Piedade ouve atenta). Se no fim de sete dias não produzir o desejado efeito, corte os pelos do... do seu corpo e torre-os até reduzi-los a pó. Misture esse pó na comida que for servi-lo, durante três dias.Piedade – (Pondo uma moeda na mão da bruxa) Muito obrigada! Se seu remédio der bom resultado, dou-te muito mais. (Retiram-se em silêncio).

CENA IX

Entra Rita com uma saia bem rodada, coloca um samba pra tocar dança sozinha, depois aparece Firmo para acompanhá-la. Bertoleza em seguida. Então aparecem Piedade e Jerônimo como se estivesse vindo da feira, Jerônimo para e fica olhando para Rita.

Piedade – O que foi, Jeromo?...Jerônimo – Espera... Deixa-me ouvir. (arrisca uns passos de samba)Piedade – Vamos embora, Jeromo...Jerônimo – Ainda não. Vamos assistir um pouco da festa.Piedade – Tens que dormir. Vais trabalhar bem cedo. (Jerônimo não dá ouvidos. Piedade sai). Ele vai até Rita, para dançarem, mas ela renega, ele continua atrás. Todos dançam gafieira)

(Encerrada a festa , todos saem, fica Jerônimo que senta num banco improvisado, pensativo, observado por Piedade que aparece em seguida). Piedade – Ficaste na festa por muito tempo, ontem à noite?Jerônimo – Vim embora logo. Piedade... vá a Seu João Romão e diga-lhe que não vou à pedreira hoje.Piedade – Que tens tu, Jeromo?Jerônimo – Morrinhento, filha. Vai anda!Piedade – Valha-me a Virgem! Não sei se haverá chá preto na venda. O que vou fazer? (Sai. Rita Baiana chega bem sensual).Rita – Então você caiu doente com minha chegada? Se soubesse não vinha.Jerônimo – Gostei de vê-la ontem dançar.Rita – Já tomou algum remédio?Jerônimo – A mulher falou aí em chá.Rita – Chá? Chá é água morna. O que tens é um resfriado. Vou fazer uma xícara de café bem forte para você tomar com parati. Vai ficar fino e pronto para outra. Espere aí. (Piedade entra com uma xícara de chá que entrega e Jerônimo não bebe).Piedade – Não queres o chá? Mas é remédio, filhinho de Deus!Jerônimo –Vou tomar outra coisa.Piedade – O que tens tu Jeromo? Dizes ao menos o que sentes. Assim me assustas...Jerônimo –Toma-lo tu! (Rita entra trazendo café e parati).Rita – Isto é que o vai por fim. Portugueses por qualquer coisinha ficam logo pra morrer. Com uma cara de última hora!... ai, ai Jesus. São uns maricas. (À Piedade). Não é mesmo assim? Olhe só para esta cara. Está ou não a pedir que o enterrem? Piedade – Já se acha até um pouco melhor. Rita – Depois tome esses dois dedos de parati. Piedade – Deus queira que isso não vá te fazer mal em vez de bem... Nunca tomaste café... Nem gostas!...Jerônimo – Isso não é por gosto, filha, é remédio! Piedade – Vou ver o que tem pra comer, pode ser fraqueza. (Entrega a parati).Rita – Toma tudo! Jerônimo – Estás louca. Isto é cachaça.Rita – Eu sei, é o remédio pra esquentar (Jerônimo bebe sem reclamar)Rita – Então, o que me diz agora? Está ou não melhorzinho?Jerônimo – Obrigado Rita. (Tentando agarra-la)Rita – (livrando-se) Faça-se de tolo que digo à sua mulher, hein! Ora, até logo. (tenta sai, mas ele a agarra)Jerônimo – Meu bem, se quiser estar comigo esta noite, dou uma perna ao demo. (Rita dá um sorriso maroto. (Firmo se aproxima sutilmente para observá-los mais de perto. Jerônimo continua ao lado de Rita) A ele uma perna; a você muito mais. (Firmo fica inconformado, mas não diz nada.

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Rita se aproxima, e sorrateiramente, segreda-lhe ao ouvido). Rita – Estás muito atrevido, português. (E roça-se nele. Firmo empurra Rita e encara Jerônimo nos olhos. Rita grita, e logo volta Piedade, em seguida Bertoleza, mas ningém se mete. Forma-se um círculo com os dois adversários no centro trocando olhares ameaçadores) Jerônimo – Deixa-me ver o que quer de mim este cabra...Firmo – Dar-te um banho de fumaça, galego ordinário! (Começam uma luta. Jerônimo de pé, enlouquecido pela raiva, assiste ao Firmo fazer seu bale de capoeira, e leva o primeiro golpe no ventre. Avança sobre o capoeira e leva o segundo e eficiente golpe. Uma cabeçada que o leva ao chão). Levanta-te, que não dou em defuntos! (Jerônimo levanta furioso, socando numa sequencia de socos, Firmo tendo ido ao chão, levanta-se com um braço erguido, segurando uma navalha. Firmo aplica uma navalhada no ventre de Jerônimo que cai no chão. Gritos.

Matou Pega Assassino Firmo desgraçado Vai em paz seu Jerônimo.

( Piedade corre em socorro do marido)Piedade – Ai, meu rico homem! Mataram meu homem!Rita – (tentando ajudar) É preciso o doutor... Seu João.

CENA X(em off a polícia fala)

Polícia – Abram os portões é a polícia.

Todos falam aleatoriamente. Não lambregos. Morcegos Fora Chumbrengos Lombriguentos bate-bate

Polícial – Melhor abrirem ou arrombaremos os portões, sabemos o que está acontecendo aí.

(Os moradores do cortiço estão armados de paus para se defenderem da provável invasão da polícia. Do lado de fora ouve-se muitas pancadas. Um policia consegue invadir. Aumenta a confusão. A Bruxa, enquanto os outros brigam, aparece ao fundo carregando palhas e sarrafos. Depois, com o braço erguido, carrega uma tocha.)

Bertoleza – Acudam aqui! Acudam aqui! Há fogo no número 12. Está saindo muita fumaça.

(Várias vozes gritam) Fogo Vamos morrer Não consigo mais respirar Acho que já tou queimando.

(todos tosse e saem) (baixa luz, foco no policial)

Polícial – E como não é de se admirar, o fogo purificou aquele lugar... Varreu aquela gente suja, sem educação. Os poucos cochos que ficaram também esvaziaram. Pouco a pouco foram se mudando todos os moradores do cortiço e deixando limpo o cortiço. Passou seis meses para o Seu João recompor o Cortiço. Na mesma rua cresce agora outro cortiço. O tal de 'Cabeça de Gato'. Dizem que é pior que o de cá, e que a gente de lá não se dá com os vizinhos daqui, ah

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esquecemos de falar o Cortiço de seu João Romão chama São Romão, vulgo os Carapicus. Logo João mudou os hábitos, trajes, passou a se comportar como um verdadeiro aristocrata.(sai de cena)

CENA XI

Entram em cena Albino e Jerônimo.

Albino – Então meu portuguesinho, queria me ver? (encostando)Jerônimo – Tome seu rumo porrete! Quero é tratar de um assunto contigo.Albino – Que assunto?Jerônimo – Sabes que me livrei por pouco da morte. Aquele desgraçado quase me leva pro além.Albino – Ainda bem que continua vivo, pode ainda aproveitar a vida! (tentando aproximar).Jerônimo – Te apruma ou não sobrará um dente nessa sua boca seu veaco.Albino – Veaco, mas veaco num é quem deve algo?Jerônimo – É que eu não posso dizer a palavra certa aqui na frente de todo mundo. Mas deixe como está. O que eu quero mesmo é me vingar daquele capoerista de merda. Tu sabes algo dele?Albino – Depende do que ganho.Jerônimo – Talvez uns catolés! Albino – Que é isso?Jerônimo – Conta. Que você vai conhecer o que é! Albino – Não sei de muita coisa meu amado, só que ele vive no bar do Garnizé, por sinal numa bebedeira só, pouco mais das 06 da tarde.Jerônimo – Em qual cocho é que eles estão se encontrando agora? No São Romão? Albino – Quem? A Rita mais ele? Ora que não! Ele agora é todo Cabeça de Gato. Ela sim é que deve ir lá. Mas a minha continua a mesma casa.Jerônimo – Duvido. Aquela ali é Carapicu até o sabugo das unhas.Albino – E pretende acertar as coisas ainda hoje?Jerônimo – Estou muito fraco, mas preciso acertar isso de uma vez por todas.Albino – E os meus catolés?Jerônimo – Feche os olhos (Albino fecha os olhos fazendo bico na boca e Jerônimo dá um supapo na cabeça dele, saindo em seguida. Albino assusta-se mas quando retorna, apenas fica capisbaixo).

CENA XII

(Albino ainda está em cena, logo aparece João Romão, em off Bertoleza ouve em silêncio).

João – Albino que bom encontrá-lo querido.Albino – Não estou bem hoje seu João. Muito carente, só estou recebendo tapas do meu amado.João – Não me interessas tua vida, mas é contigo mesmo que eu queria conversar!(Albino logo anima-se)Albino – Eu, seu João? Nunca esperei, mas saiba que rezei tanto pra um Português aparecer, só não esperava que fosse...João – Do que tu estás falando afeminado? Albino – Eu, o senhor, um fim de tarde, mão dadas, um amor.João – Estás querendo levar uns cascudos? Albino – (choroso) Esses meus amores só me maltratam, porque meu Deus?João – Deixe de conversa mole e me dê umas informações. Tens tido acesso com mais frequencia na casa do Barão?Albino – Seu Miranda, ah sim. Estou ainda a consertar as roupas daquele mão-de-vaca.João – E tens visto a pequena Zulmira? A filha dele?Albino – Ah sim, parece mais uma donzela. Tem um gênio de pomba. Uma educação de princesa: até francês sabe! Toca piano, canta o seu bocado... Aprendeu desenho, muito boa mão de agulha, e... (ao ouvido) ali tudo é certo... prédios e ações do banco.João percebe a presença de Bertoleza. João – Bertoleza. (ela entra se entreolham por um tempo). Vai fazer café já! (ela sai)

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João – Juras que a menina é isso mesmo? Preciso me tomar parte da família.Albino – O senhor tem certeza? E Bertoleza?João – Cuida-te da tua vida, que daquela cuidarei eu! O que eu quero é um contato mais próximo com Miranda, fazes isso por mim?Albino – 20 contos de réis.João – 10 ou lhe dou uns tabefes.Albino – 10 está bom demais. O Miranda é bom homem, coitado. Tem lá suas manias de grandeza, mas não o podemos julgá-lo. São pelos furdunços da mulher. No entanto, acho-o com boas disposições a seu respeito, e se você souber levá-lo apanha-lhe a filha.João – Então resolva isso. Albino – Todo mundo sabe do senhor e Bertoleza, isso não pode pegar bem nessa história.João – Pode deixar que eu resolverei isso, faça sua parte que eu faço a minha.Albino – Então amanhã trago-lhe retorno, com um convite para um jantar na casa do Barão no domingo. (sai)João – Oh, diacho! E essa crioula? O que faço com ela? Maldita preta dos diabos! E se ela morresse?... Se eu a matasse... Se eu a tivesse despachado logo quando não se falava ainda no meu casamento, ninguém desconfiaria de nada. Agora todos já sabem da vida que tenho com esta negra e do meu casamento com Zulmira. Se dou cabo da negra, não falta quem me acuse. Hei de fazer-me um titular ainda mais graduado que o Miranda, disto não tenho dúvidas. Mas preciso me livrar deste fardo.(sai)

CENA XIII

(som de chuva e forte, entra Jerônimo, olha de um lado a outro, senta-se num banco improvisado, aparece Estela no outro extremo aparece a Bruxa, Estela faz o sinal da Cruz e a Bruxa sai. )

Estela – Homem de Deus, estou a te procurar o dia todo, saiu do hospital e não foste em casa ainda.Jerônimo – Me deixa mulher, quero ficar só hoje.Estela – Vamos comigo, fiz sopa.Jerônimo – Vai para o raio que lhe carregue com essa sopa. (tomando pinga)Estela – Valei-me que esse homem tá possuído. (ela sai, em seguida entra Firmo, fica próximo a Jerônimo sem percebê-lo, ao sair Jerônimo o acompanha, entra a bruxa e observa de longe).

Firmo – Quer levar outro supapo?Bruxa – Hora da vingança. Vai pra cima.Jerônimo – Tente ao menos.Firmo – Português infeliz.Bruxa – EsfaqueiaJerônimo – É hoje que eu chamo a Caetana pra você Firmo.Firmo e Bruxa – Chama quem? (desbancando)Jerônimo – A Caetana!Firmo – Mas quem diacho é essa que não tem na históriaBruxa – Ahh deixa ele fura logo.Jerônimo – É a Morte rapaz.Firmo – Mas que falta de criatividade, poderia ser a Capetina, Morgana, Elvira! Mas Caetana? Parece que é nome da minha tia-avó.Bruxa – Vamos parar de conversar e fazer jorrar sangue?Jerônimo – Saiba que é assim que Ariano Suassuna chamava a morte.Firmo – Quem? Jerônimo – O autor do Auto da Compadecida!Bruxa – Parece mais duas maricas tricotando. Andem.Firmo – Mas o que ele tem haver? Essa peça é de 1890 e ele nasceu só em 1927.Jerônimo – Ah só queria dar uma graça.Bruxa – Esfaqueia vai!

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Firmo – Não dá pra se concentrar com alguém chamando a morte de Caetana!Jerônimo – Ah é? (num só golpe Jerônimo acerta Firmo, que cai no chão sem sentidos).Bruxa – Nossa morreu mesmo! Valei-me minha nossa senhora. (se ajoelha e começa a rezar)Jerônimo – Vamos parar com isso e me ajuda logo a jogar na ribanceira abaixo. Quando chegar lá embaixo acaba de esborrachar. Bruxa – Eu mesmo não, tenho medo. (sai correndo e ele arrasta o corpo pra fora).

CENA XIV

Depois de arrasar o corpo Jerônimo volta e grita.

Jerônimo – Rita! Rita!Rita – Que quer homem? Por onde andou?Jerônimo – Estava cuidando da nossa vida. (Atira a navalha) Aí está a navalha com que fui ferido.Rita – E ele?Jerônimo – Aniquilado.Rita – Quem matou?Jerônimo – Eu. Rita – Quando?Jerônimo – Agora... E estou disposto a tudo para ficar contigo. Sairemos os dois daqui para onde melhor for. Que dizes?Rita – E tua mulher?Jerônimo – Deixo-lhe as minhas economias e continuarei a pagar o colégio à pequena. Sei que não devia abandoná-la mas saiba que mesmo que não queiras vir comigo não ficarei com ela. Não sei... já não posso suporto mais.Rita – E para onde vamos?Jerônimo – O que não falta é para onde ir. Em qualquer lugar estaremos bem. Tenho cá uns quinhentos mil-réis para as primeiras despesas.Rita – (Reconhecendo) Sim... sim, meu cativeiro! Eu quero ir contigo; quero ser a tua mulata, e você o meu bem querer! (Beija-o e apalpa-lhe) Estás ensopado. Vamos, troque-se. O que não falta aqui é roupa de homem pra mudar. Tome uma dose de Parati. Eu vou fazer um café. (Jerônimo tira a camisa). Jerônimo – Vem pra cá... vem!Rita – O café... já vai ficar pronto. (Jerônimo puxa-a pelo braço, enlaçam-se e a luz cai de uma vez).

CENA XV

Albino – Não te disse! Já tem um convite para o domingo. Fiz valer os 20 contos de réis.João – 10! Albino – Ah sim!João – Muito bem Albino, agora o que faço?Albino – Aproveita a oportunidade e faz o pedido.João – Que?Albino – Ja pode pedir a mão de Zulmira, já deixei arranjado.João – Tem certeza?Albino – Ora, se não tivesse não diria assim. Fiz o pedido em seu nome. Disse que estava autorizado por você. Fiz mal?João – Mal? Fez muito bem, Albino.Albino – Se o Miranda não vier ao seu encontro é melhor você lhe falar...João – E a menina vai querer se casar comigo?Albino – Falei que o senhor está bem aprumado, é um novo homem, bonito, charmoso, cheiroso (cheirando-o)...João – (Interrmpendo-o) Já chega,está ótimo.Albino – Invista seu João, mande flores, escreva, que não tarda e ela fica caidinha pelo senhor. Se aproxime (se aproximando de João) seja o homem que ela espera. (em cima dele)

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João – Desenrosca pra lá peste! Aqui seu pagamento.Albino – Agora vou preparar minha mala pra ir embora com a Rita, ela se amigou com um ai, e vamos para o mundo. Quem sabe não me firmo de vez com um homem.Mas antes de ir ainda irei trazer... (Bertoleza entra, ele desconserta-se) Ainda resolvo aquele seu problema!. (sai). Bertoleza – (seca) Seu João, quer que eu lhe prepare o café agora?João – Obrigado. Mas deixo-o para mais tarde. (Abaixa a luz).

CENA XIV

Entra Piedade.

Piedade – (À parte) Se ele matou o Firmo, dormiu na estalagem e não esteve comigo, é que então deixou-me e está com ela. (Rita passa apressada no meio do cortiço. Piedade grita furiosa). Rita – Faz favor Rita. Me diga está de mudança? (Rita se cala, sem resposta) Vai se mudar não é verdade?Rita – E o que tem você com isso? Não lhe devo satisfações! Meta-se com sua vida!Piedade – E foi com a minha vida que você se meteu macumbeira ordinária!Rita – Hein? Repete lambrega!Piedade – Pensas que já não sei? Enfeitiçou meu pobre homem, mulher do Diabo! Mas há de queirmar surucutá! Rita – Vem até aqui, perua choca!Piedade – Olha que te arranco cada cabelo tuim seu.Rita – E eu o teu bigode. (Piedade investe contra Rita. As duas lutam. No meio da batalha alguém grita: “fogo no 88”. Outro incêndio tem início, gritaria, black out foco no ator que faz o Miranda).

Miranda – E mais uma vez o Cortiço São Romão incendeia, dessa vez arruinando casa por casa. (É empurrado pela atriz que faz a Rita que entra no foco).Rita – João com a ganância de sempre querer mais. (É empurrada por Miranda).Miranda – Esse texto é meu! (os dois brigam no foco)Rita – Deixa eu falar támbém.Miranda – Diretor! Diretor – Que merda é essa, desenrola logo isso ai! Batam texto!Miranda – Assim Rita – João Miranda – Decidiu Rita – Mudar a vidaMiranda – E reconstruiu tudoRita e Miranda – De novo!(apaga-se o foco, Miranda já se encontra em cena, entra João Romão)

Miranda – Mas esses pobres diabos acabaram com seus cochos.João – Nada Miranda, vou refazer, construir mais casas, alargar mais o Cortiço, aproveitando todo aquele lado do capinzal. Algo que valha mais dinheiro em vez de muitos cômodos. Não quero tantos miseraveis morando aqui..Miranda – Você é um homem dos diabos, João Romão. Passo a admirá-lo de hoje em diante. Passe lá em casa para prosearmos e falarmos do seu casório com Zulmira. Por falar nisso, meu consentimento com esse noivado, será dado quando a negrinha não estiver mais em seu acompanhamento, sabes disso?João – Tenho consciência disso, estou já a pensar no que fazer.Miranda – Passar bem! (aperta-lhe a mão e sai).João – (sozinho) Ainda terei mais do que você, Miranda! Nem que para isso tenha que ajuntar o que é meu e o que é seu. Só tenho que esperar o Albino resolver a história dessa crioula, se não vou ter que dar uma Quintanda bem longe daqui e despachá-la! Entra BertolezaBertoleza – Seu João, podemos ter um instante de prosa em casa?João – Podemos sim... mas acho que devemos deixar para outro momento. Tenho que resolver um atraso muito grande na minha vida.

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Bertoleza – Não sinhor!

Entra Albino

Albino – Com lincença Seu João, posso ter um particular bem íntimo com o senhor.Bertoleza – Se atreva seu desmunhecado! Albino – Que audacia Bertoleza. Seu João não fará nada?João – Escute aqui Bertoleza! Bertoleza – Escute aqui o senhor! Há tempos venho percebendo suas conversar com esse paneleiro. (para Albino) saia daqui antes que eu esbofete-o! (Albino sai). Agora com o senhor Seu João, sempre dediquei-lhe anos de minha vida. Todo dono quando está feliz afaga o seu cão. Se não foi meu dono, muitas vezes confundi minha condição. Mas qual! Nem cão, nem mulher... Apenas escrava. Se fiquei feia é porque esqueci-me de mim para cuidar de você. Queria vê-lo feliz e tê-lo como amigo, até que a idade chegasse e nos tomasse as forças. E agora o que queres me dar em troca? Uma quitanda bem longe daqui? Não! Não há de ser assim, Seu João!João – Mas, Filha de Deus, quem te disse que eu quero atirar-te à toa?Bertoleza – Eu escutei o que você conversava, Seu Juão. Não sou cega, nem surda. O sinhor está armando casamento com a menina de Seu Miranda!João – Sim, estou. Um dia havia de cuidar do meu casamento! Não hei de ficar solteiro toda a vida. Mas também não te sacudo na rua como disseste; vou dar-te uma quitanda sim...Bertoleza – Não! Com uma quitanda principiei; não hei de ser quitandeira até morrer. João – Mas afinal, que diabo quer tu?Bertoleza – Ora essa! Quero ficar ao seu lado! Quero desfrutar o que nós dois ganhamos juntos! Quero a minha parte no que fizemos com o nosso trabalho. Quero o meu regalo como você quer o seu.João – Mas... Não vês que isso é um disparate? Tu não te conheces?... Eu te estimo, filha; mas por ti farei o que for bem entendido, não loucuras! Descansa que nada te há de faltar!... Tinha graça, com efeito, que ficássemos vivendo juntos... Não sei como não me propõe casamento! Bertoleza – Agora eu não presto para nada! Porém quando você precisou de mim não lhe ficava mal servir-se do meu corpo e agüentar a sua casa com o meu trabalho. Então a negra servia para um tudo; agora não serve para mais nada, e atira-se com ela no monturo do cisco! Não! Pois nem aos cães velhos se enxotam, por que me hão de por fora desta casa em que deixei muito suor do meu rosto?... Quer casar? Então espere que eu feche primeiro os olhos; não seja ingrato! João – Ora, vá para o diabo, crioula demente!(Albino volta e interrompe)Albino – Seu João... uma senhora aí fora quer lhe ter uma prosa. (Bertoleza se afasta para o extremo oposto do palco. Albino segreda-lhe) É ela.João – Mande entrar. (Entra a mulher Dona de Bertoleza)Mulher – (entrega um papel a João Romão). Seu João, sou filha do Freitas de Melo. Respondo por meu pai, falecido no ano passado.João – É está ali, Pensei que fosse livre.Mulher – É Minha escrava. Queira entregar-me...João – Está lá. Podem levá-la. (se aproximam de Bertoleza observando-a)Bertoleza – Mas seu João...Mulher – É esta! É minha escrava. (Bertoleza tenta fugir e é segura pelo braço). Bertoleza – Eu vou agora porque não tenho forças pra ir contra todos, nem contra você Juão Romão, nem a Senhora Freitas, que eu não nego ser minha dona, mas vou morrer lutando por cada lágrima caída, cada sangue derramado, por cada negro sacrificado e mortos. Negros que eram gente, negros que são gente, que tinham família, que tinham uma vida. Porque eu acredito que isso um dia vai mudar e nós mostraremos nossa força, mas sei que ainda tera que morrer muitos negros pra isso acontecer. Hoje somo uma raça boicotada, mas perante a Deus haverá o juízo final. Só espero que aguentem tanto como nós estamos aguentando. (Bertoleza apanha uma faca de cozinha rasga o próprio ventre. Cai a luz.)O Canto das três raças – Clara Nunes (Todos saem, foco em Albino).Albino – Na mesma tarde da morte de sua escrava, João Romão recebeu de um Movimento Abolicionista o título de Sócio Benemérito. Pelas honra de ajudar a raça negra. O Cortiço dele,

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cresceu, virou Avenida São Romão. João se casou, e a vida? A vida continuou! (foco apaga) (acende outro em seguida onde está o ator que fez Bertoleza) Bertoleza – E agora diretor? (foco no ator que faz o diretor)Diretor – Agora só esperar o aplauso, caso o publico tenha gostado!

(aplausos)

Fim