oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado...

26
Ci? I -~Ij I 1. I"~ r '. V~~ <! _' - D-'-' CELSO FURTADO \oC'~ o LONGO AMANHECER Reflexões sobre aformação do Brasil EB PAZ E TERRA

Transcript of oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado...

Page 1: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

Ci? I-~Ij I

1. I"~r

'. V~~ <!_' - D-'-'

CELSO FURTADO\oC'~

o LONGO AMANHECERReflexões sobre aformação do Brasil

EBPAZ E TERRA

Page 2: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

(\U (J~Lfla~o -LL iiiiiiiiiiUI ~o

© by Celso Furtado

DiagramaçãoMIL Editoração-N-.... _

::>~~I;=~:;:;l5J ii=~~ --....UI _,..

~=.., raS.A.~

.. - .. Editora Paz e Ter 7UI =m d Triunfo, 17o -m Rua o SPg =m fi A • a São Paulo,....-m ianta I geru ,~=~ CEP 01212-010~ ==(9 Te!: (11) 223-6522z::>

CapaIsabel Carballo

-CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

F9871Furtado, Celso, 1920-

O longo amanhecer : reflexões sobre a formação doBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999

Inclui bibliografiaISBN 85 2190338-3

l.Brasil - Civilização. 2. Globalização (Economia).3. Brasil- Política o governo. 4. Brasil- Política econômica.LTítulo.

99-1190. CDD 981CDU 981

1999Impresso no Brasil Printed in Brazil

I

SUMÁRIO

Prefacio, 9

A busca de novo horizonte utópico, 13

Os caminhos da reconstrução, 27

O problema, 27

Que fazer?, 32

Nova concepção do federalismo, 45

A formação da nacionalidade, 45

O surto da economia cafeeira, 48

Internação do centro dinâmico, 51

Capacidade criativa da sociedade, 53

O espaço do poder regional, 55

Formação cultural do Brasil, 57

Mensagem aosjovens economistas, 69

Machado de Assis:contexto histórico, 103

Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governorepublicano, 111

,

Page 3: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

· . . . . . . . . . . . . . 56 .

A descentralização regional do poder central deve-ria ser acompanhada de um planejamento plurianual,que permitisse compatibilizar as aspirações das distin-tas regiões. Só o planejamento permite corrigir a ten-dência das empresas privadas e públicas a ignorar oscustos ecológicos e sociais da aglomeração espacialdas atividades produtivas. Com efeito, somente o pla-nejamento permite introduzir a dimensão "espaço"no cálculo econômico. Este é um ponto importante,pois a distribuição espacial da atividade econômicaleva, com freqüência, a conflitos entre regiões ou en-tre determinada região e um órgão do poder central.Por último, convém não perder de vista que o

revigoramento do federalismo na forma aqui referidarequer, ao lado da plena restauração da autonomia es-tadual e do contrapeso de um poder regional, o forta-lecimento da instituição parlamentar. Isso porque so-mente o poder que reúne os representantes do povode todas as regiões pode dar origem a um consensocapaz de traduzir as aspirações dessas mesmas regiõesem uma vontade nacional.

FORMAÇÃO CULTURAL DO BRASIL

Uma reflexão sobre as raízes de nossa cultura temcomo referência inicial a vaga de expansionismo eu-ropeu do século XVI, interregno entre dois mundosordenados: o da fé e o do conhecimento científico.Nenhum conceito é mais representativo do imaginá-rio da época do que o de Fortuna, a incerteza queespreita o homem por todos os lados e estimula suaaudácia.

Somos a criação de uma época em que o conhe-cimento fundava-se mais na compreensão' do que naexplicação das coisas, em que se confiava mais na ana-logia do que na lógica, em que se substitui a consciên-cia de pecado pela idéia de dignidade humana.N essa época a criatividade cultural orienta-se para

dois processos de particular relevo. O primeiro temcomo ponto de partida nova leitura da cultura clássicae conduz à secularização da vida civil, ao neoplato-nis-mo galileano que identifica o mundo exterior comestruturas racionais traduzíveis em linguagem matemá-tica, à legitimação do poder pela eficiência. Essa autên-tica revolução cultural abarca todas asmanifestações dacriatividade, estendendo-se dos estudos de anatomia,comVesálio,aos de arquitetura, com Bramante.

Lenon
Highlight
Lenon
Underline
Lenon
Underline
Lenon
Highlight
Page 4: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

. . . . . . . . . . . . . . 58 . . . . . . . . . . .. .. 59 .

A penetração do discurso racional se explica tendoem conta o avanço realizado nos dois séculos anterio-res pela economia de mercado em detrimento dasformas feudais de organização econômica e social.O cálculo econômico, que transforma a natureza emrecurso produtivo e o homem em força de trabalho,reforça a visão racional do mundo exterior.A segunda mutação cultural de grande poder ger-

minativo se manifesta como deslocamento da frontei-ra mediante a abertura de linhas de navegação trans-oceânicas. Amplia-se, assim, a base do processo deacumulação na Europa, pondo em contato regular asgrandes civilizações do Ocidente com as do Oriente.Um dos focos de onde parte esse segundo vetor con-ducente a intercâmbios planetários é Portugal. A cul-tura brasileira é um dos múltiplos frutos desse proces-so de expansão geográfica da civilização européia nosalbores da era moderna.O rápido avanço das fronteiras geográfica e econô-

mica dos países atlânticos europeus foi a primeiragrande vitória política em que pesou o avanço dastécnicas. Durante três quartos de século os portugue-ses investiram em conhecimentos teóricos e práticospara se capacitarem a explorar terraslongínquas combase em meios econômicos escassos.Tudo obedeceu aum projeto e nisso reside a extraordinária antecipaçãode modernidade. O esforço coordenado desdobrou-

se em múltiplas frentes, dos estudos cartográficos aode línguas exóticas, da construção naval de longo cur-so à da sobrevivência em climas tórridos.Um proj eto dessa grandeza somente pôde ser con-

cebido e executado porque circunstâncias históricasparticulares conduziram a uma aliança precoce entre amonarquia portuguesa, ameaçada pelo movimentounificador da Península, liderado pelos castelhanos, e aburguesia de Lisboa. Não é o caso de deter-se nessetema tão bem estudado pelo historiador portuguêsAntônio Sérgio. Limitamo-nos a assinalar que foi re-levante para a história européia o fato de o espírito decontinuidade, característica dos governos monárqui-,cos, ter sido posto a serviço de um ambicioso projetode expansão comercial, cuja execução devia ser des-centralizada, o que requeria a cooperação da classemercantil. Essa experiência de associação de um po-der político, cuja legitimidade. não tinha raízes mer-cantis, com o espírito de empresa burguês serviu demodelo para a criação das companhias de comércio enavegação que surgiriam posteriormente na Holandae na Inglaterra como instituições de direito privadomas exercendo funções públicas.Essa articulação do Estado com grupos mercantis

estará presente na ocupação, na defesa e na exploraçãodas terras americanas que constituirão o Brasil. Hou-ve, portanto, uma permanente preocupação de pre-

Page 5: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

. . . . . . . . . . . . . . 60 ...

servar e ampliar o patrimônio, a despeito dos altoscustos incorridos na defesa de vastas áreas sem pers-pectiva de valia econômica.Outra referência que ajuda a captar a gênese do ser

cultural brasileiro é que os portugueses não foram ape-nas os dominadores mas também o único segmento dapopulação que semanteve em contato com suasmatri-zes culturais, dela se realimentando. Em todo o períodocolonial os portugueses foram uma minoria em face dapresença indígena, e mais ainda da africana que logocomeçou a fluir como força de trabalho.Mas o peso daminoria portuguesa na formação do que viria a ser acultura brasileira é decisivo.Não apenas porque são s~-nhores confrontando-se com escravos ou semi-escra-vos, mas também porque os portugueses partiram deum dorrúnio de técnicas superiores e continuaram aalimentar-se de fontes culturais européias. Ora, os abo-rígines, assim como os africanos, foram isolados de suasmatrizes culturais e, ao serem progressivamente priva-dos da própria língua, perderam a identidade cultural.Nos três séculos do período colonial gestou-se no

Brasil um estilo 'cultural que, sendo português em seustemas dominantes, incorpora não apenas motivos lo-cais mas toda uma gama &~valores das culturas origi-nais dos povos dominados. Antes de tudo cabe ter emcon ta que a apropriação e a exploração das terras brasi-leiras fizeram-se no quadro de empresas agroindustriais

. . . . . . . . . . . . . . 61 . . . . . . . . . . . . ..

voltadas para a exportação. Contudo, os interesses mer-cantis que comandavam todo o processo econômicoestão controlados por agentes metropolitanos, o queimpediu a emergência no país de uma classe comerci-ante com consciência de seus interesses específicos ecom participação significativa no sistema de poder.À diferença de outros países da América Latina

onde emergiu precocemente uma burguesia mercan-til com certo grau de autonomia - o que explica oslevantes de 1810 em Buenos Aires, Caracas e Cidadedo México -, no Brasil as atividades mercantis de-algum vulto permanecerão sob estrito controle por-tuguês, mesmo no período que se segue à Indepen-dência. O desdobramento da Coroa em 1822 foi obrade homens corno José Bonifácio de Andrada e Silva,com larga experiência de funções na alta administra-ção portuguesa.A persistência dos traços dominantes da matriz

cultural original explica-se pela estabilidade do siste-ma de dominação social latifundiário-burocrático. Naausência de uma classe mercantil poderosa tudo de-pendia da Coroa e da Igreja. O processo de criaçãocultural é balizado por essasduas instituições.

O ciclo barroco brasileiro, cuja manifestação maisforte é a integração da arquitetura com a música e apintura ocorrida no século XVIII em Minas Gerais,constitui quiçá a última síntese cultural no espírito da

Lenon
Highlight
Lenon
Highlight
Lenon
Highlight
Lenon
Highlight
Lenon
Highlight
Page 6: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

.............. 62 .

Europa do pré-Renascimento. Sua temática e seu po-der morfogenético derivam da mesma visão do mun-do que nutriu os pintores flamengos do Quatrocentose da primeira metade do Quinhentos. Essa foi a épocada primazia dos valores religiosos.Com o humanismo abre-se na Europa um proces-

so criativo multifacetado que virá a produzir uma '-nova visão global do homem conhecida como o Ro-mantismo. O dinamismo do novo quadro cultural re-flete o fundo móvel de uma sociedade competitiva naqual a criatividade tecnológica emerge como recursode poder dominante.O quadro histórico em que se forma o Brasil -

articulação precoce do Estado com a classe mercantile total domínio da sociedade colonial pelo Estado epela Igreja - congela o processo cultural em estágiocorrespondente à Europa pré-humanismo. Algumarazão assistia àqueles que qualificaram o Aleijadinhode último grande gênio da Idade Média.

Cabe assinalar que, à semelhança da síntese me-dieval européia, o barroco brasileiro se integrava aoconjunto da sociedade. Sua mensagem atingia senho-res e escravos. Mas não se pode desconhecer que acontrapartida desse desempenho foi o crescente dis-tanciamento de uma Europa em rápida transformaçãotecnológica. A cultura brasileira, não obstante suacriatividade, entrara em uma pista falsa.

. . 63 .

O atraso cultural acumulado pelo Brasil no perío-do pós-barroco não se explica sem se ter em conta asmudanças ocorridas no contexto maior em que estavainserido o país.A Revolução Industrial que irrompena Europa no último quartel do século XVIII constituiautêntica mutação no processo acumulativo subja-cente à atividade social.Até essa época a acumulaçãonão absorvia mais do que pequena fração do produtosocial e tinha lugar, via de regra, fora das atividadesprodutivas.A mecanização e o uso de novas fontes de energia

abriram a porta a aumentos consideráveis na produti-vidade do trabalho e ao crescimento do excedente,fatores que levaram a intensificar o investimento e adiversificar os padrões de consumo.Os dois fatores que viabilizaram o desenvolvimen-

to das forças produtivas foram o incremento da pro-dutividade do trabalho social e a diversificação doconsumo, vale dizer, o avanço tecnológico nos proce-dimentos produtivos e na concepção dos bens e servi-ços de consumo final.A divisão internacional do tra-balho evoluiu no sentido de isolar essesdois processos.Um país que se especializasse na produção agrícolapara a exportação teria, ainda que de forma limitada,acesso aos frutos do avanço tecnológico sob a formade novos bens de consumo, sem ter que investir paraelevar a produtividade física do trabalho.As vantagens

Lenon
Highlight
Page 7: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

· . . . . . . . . . . . . . 64 .

comparativas estáticas criadas pela especialização -únicas reconhecidas pelos teóricos clássicos do co-mércio internacional- e o acesso a um mercado ex-terno em expansão davam origem a um excedenteque permitia pagar os bens de consumo sofisticadosque estavam penetrando no mercado internacional.Foi o que se chamou de modernização dependente: utili-zação do excedente gerado pela exportação de pro-"dutos primários e retidos localmente. Foi esse incre-mento de renda que permitiu ao Brasil reproduzir osnovos padrões de comportamento.A modernização dependente engendrou tipos de

comportamento imitativo, forma de bovarismo, à dife-rença do ocorrido na Europa, onde novo processo cria-tivo de visão do mundo emergiria com o Romantismo.O distanciamento entre elite e povo será o traço

marcante do quadro cultural que emergirá como for-ma de progresso entre nós.As elites, como que hipnoti-zadas, voltam-se para os centros da cultura européia.O povo era reduzido a uma referência negativa, sím-bolo do atraso, atribuindo-se significado nulo à suaherança cultural não-européia e negando-se valia àsua criatividade artística. O indianismo de um CarlosGomes ou de um José de Alencar, ao revestirem oshomens da terra de valores que lhes são culturalmenteestranhos, traduz em realidade a rejeição dos valoresdo povo verdadeiro.

65 ...

Desprezados pelas elites, os valores da cultura popu-lar procedem seu caldeamento com considerável auto-nomia em face da cultura das classesdominantes. A di-ferenciação regional do Brasil deve-se essencialmente àautonomia criativa da cultura de raízes populares.A descoberta, buscada ou casual, do país real pelas

elites, no século xx, é fato cuja importância dificil-mente se poderia exagerar. Muitos foram os fatoresintervenientes de origem interna ou externa. O semi-isolamento provocado pelos conflitos mundiais e acrise da economia primário-exportadora, que condu-,zem a uma industrialização tardia apoiada exclusiva-mente no mercado interno, constituem a tela de fun-do do processo histórico. A crescente influência daeconomia norte-americana, impulsionando uma cul-tura de massas dotada de meios extraordinários de di-fusão, opera como fator de desestabilização do quadrocultural fundado na dicotomia elite-povo.Com o avanço da urbanização a presença do povo

torna-se mais visível, fazendo-se mais difícil escamo-tear sua criatividade cultural. A emergência de umaclasse média de crescente peso econômico introduzelementos novos na equação cultural brasileira.A classemédia forma-se no quadro da moderniza-

ção dependente e da industrialização que segue a li-nha da substituição de importações. Contudo, amaio-ria de seus membros está demasiado próxima do povo

d

Lenon
Highlight
Lenon
Highlight
Lenon
Highlight
Lenon
Highlight
Lenon
Underline
Page 8: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

. . . . . . . . . . . . 66 .

para ignorar o significado cultural deste.Demais, o ca-ráter de massa da cultura de classemédia faz que suasrelações com o povo sejam, não de exclusão, como erao caso das elites bovaristas, e sim de envolvimento epenetração. A ascensão da cultura de classe médiamarca o fim do isolamento cultural do povo mas tam-bém assinala o começo da descaracterização de suaforça criativa. '\Uma visão panorâmica do processo cultural brasi-

leiro neste final de século revela, num primeiro plano,o crescente papel da indústria transnacional da cultura,instrumento da modernização dependente. Num se-gundo plano, assinala-se a incipiente .autonomia cria-tiva de uma classe média assediada pelos valores queveicula essa indústria, mas conservando uma face vol-tada para a massa popular. Em terceiro plano, perfila-seo povo sob ameaça crescente de descaracterização.A emergência de uma consciência crítica em segmen-tos das elites cria áreas de resistência ao processo dedescaracterização. Uma nova síntese depende da con-solidação dessa consciência crítica.O processo de globalização da cultura tende a ace-

lerar-se. Ao mesmo tempo, todos ,os povos aspiram ater acesso ao patrimônio comum da humanidade, oqual se enriquece permanentemente. Resta saber quaissão os povos que continuarão a contribuir para esseenriquecimento e quais aqueles que serão relegados ao

. . . . . . . . . . . 67· .

papel passivo de simples consumidores de bens cultu-rais adquiridos nos mercados. Ter ou não ter acesso àcriatividade, eis a questão.

I

Lenon
Highlight
Page 9: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

~

MENSAGEM AOS JOVENS ECONOMISTAS

As ORIGENS DO DESAFIO - Pensar o Brasil foi o desafioque sempre guiou' minha reflexão. Muito cedo, aindana adolescência, vieram-me ao espírito questões co-mo: por que certas regiões brasileiras parecem conde-nadas à miséria em um país com tanta riqueza poten-cial? Cabia aceitar as doutrinas fatalistas do século XIX

que atribuem ao clima e à raça nosso atraso? Pelasmi-nhas origens, eu partia de uma visão do Brasil diferen-te da que se tem aqui em São Paulo. Quando nasci, osertão da Paraíba ainda era assolado pelos cangaceiros,pelo banditismo. Os grandes fazendeiros eram as úni-cas autoridades. Para mim a idéia de poder estava liga-da à de arbítrio e abuso. Fui criado vendo a violênciadesenfreada com que se tratavam as pessoas, e a misé-ria reinante.

A região passara recentemente pela Guerra deCanudos, uma guerra de fanáticos cujas causas nos es-capavam. Foi na verdade uma explosão de inconfor-mismo, massacrada da forma trágica que todos conhe-cem. Em minha infância ainda se falava disso.Parentesmeus participaram dessa guerra e me contavam ashis-tórias mais horripilantes. Nessa mesma região haviatambém o padre Cícero, que era um fanático de outro

Page 10: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

. . . . . . . . . . . . . . 70 .....

tipo e tinha apoio da classe média. Ele induzia as pes-soas a atos que hoje nos parecem fantasistas.Marcou-me também a Revolução de 30, que se

manifestou de forma muito especial na Paraíba, umdos poucos estados do Brasil e o único do Nordeste aficar ao lado da Revolução. O líder que lá estava des-pertava outro tipo de fanatismo: João Pessoa - quedeu nome à capital- era um iluminado e conseguiú----"""""uma mobilização popular enorme. Eu era criança evia pelas ruas aquela massa de população dedicada aoculto de João Pessoa. Esse homem foi assassinado bru-talmente, por coincidência no dia em que eu comple-tava dez anos. Isso marcou minha vida no sentido deque o meu compronnsso com o povo ou com os quesofrem tem raízes muito profundas.

UMA PERSPECTIVA MAIS AMPLA - O primeiro tema quedesejo abordar é a necessidade de uma visão maisampla dos problemas sociais. Prevaleceu nas ciênciassociais a tendência à especialização e ao tecnicismo,amarrando-as a esquemas formais. Isso limita o uso daimaginação em ciências que, ao contrário das exatas,nem sempre estão submetidas a métodos rigorosos,susceptíveis de comprovação. As ciências sociais de-vem ser um processo aberto de criação porque a so-ciedade é algo que os homens não param de refazer.O mundo que o homem cria é sempre novo, pois não

. . . . . . . . . . .. . 71 . . . . . . . . . . . . . .

há ciência que abarque o que está em gestação. O de-safio que enfrentamos nas ciências sociais é o de abor-dar problemas que ainda estão se formulando e elabo-rar métodos para abordá-los. Tive muito cedo aintuição de que não é possível ser cientista social semuma visão de conjunto dos processos, que é dada pelaHistória. Apaixonei-me por esse tema, foi meu pri-meiro campo de estudo. Pensava em ser historiador. AFormação econômica do Brasil revela essa vocação inicial.

TATEANDO NA BUSCA DO SUBDESENVOLVIMENTO - Aexperiência que vivi na CEPAL, integrando-me ao seunúcleo fundador em 1949, foi muito enriquecedoraporque me permitiu ampliar IT\eu horizonte de ob-servação. Coube-me reunir a informação quantitativarelativa à situação das principais economias latino-americanas. As dificuldades foram consideráveis, dadaa precariedade das estatísticas. Inventamos conceitosnovos a fim de medir aproximadamente o produtonacional. Isso significava reunir índices de produçãofísica de bens, nos setores industrial e agropecuário.Havia indicadores dos preços relativos referentes àsimportações. Com esses ingredientes criamos o con-ceito que se chamou de "capacidade para importar",ligando os termos de intercâmbio ao quantum das ex-portações. J á o conceito de" disponibilidade de bens"nos levou a medir o produto nacional de uma forma

Lenon
Highlight
Page 11: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

72 .

indireta. Medi o produto nacional do Brasil pela pri-meira vez e o de outros países da América Latina deforma aproximativa. Eram poucos os países que dis-punham de dados sobre a renda nacional. Entre nós,só havia um cálculo de produção industrial. Mas, gra-ças a essas informações precárias, descobri que o Bra-sil era uma economia atrasada na América Latina. Par-ticularmente na área industrial.Eu tinha do Brasil uma idéia bem distinta. Achava-

que o nosso era um país grande, com recursos naturaisabundantes, e uma população considerável. Por que oBrasil acumulara tanto atraso? A Argentina estavalTIUitO à frente, em produção agropecuária e tambémem produção industrial e tecnologias modernas. Arenda per capita era várias vezes a do Brasil. Chile eMéxico também estavam muito à frente. Que haviade errado com o Brasil, país de tantos recursos? O fatoé que ainda prevaleciam no Brasil as teorias do séculoXlX. Havia quem acreditasse que a raça era inferior,que a mestiçagem era degradante e que o clima erainadequado para o progresso. Eram as idéias que cir-culavam para explicar o atraso do país.

UMA VOCAÇÃO INDUSTRlAL NÃO APROVEITADA - Fui meinterrogando sobre o tema. Para explicar essa realida-de cruel, havia que voltar-se para a história, para asestruturas sociais e a inércia das forças políticas e sua

. . . . . . . . . . . . . . 73 .. . .....

incapacidade de formular um projeto nacional. E foiaprofundando a perspectiva histórica que comecei aperceber aspeculiaridades da economia brasileira. Seudinamismo ocasional dependia de impulsão externagerada pelas exportações de uns poucos produtos pri-mários. Dizia-se que este era um país" essencialmenteagrícola". Seria uma economia "reflexa", conforme aspalavras do professor Eugênio Gudin, universalmentereconhecido como a maior autoridade em econonuado país.Elaborei então séries históricas que permitiriam

acompanhar o comportamento da economia brasilei-ra desde a Primeira Guerra Mundial. Ao observar osdados relativos aos anos 30, fiz fonstatações significa-tivas. Indicavam que o Brasil tivera um comporta-mento atípico na época da crise. A tal economia "re-flexa", ou seja, sem vontade própria, na verdadeandara sozinha e começara a reagir desde 1932. Nesseano, o produto interno já tinha crescido para recupe-rar quase tudo o que fora.perdido de 1929 a 1930.Vou contar a vocês uma pequena história sobre

essas observações. Alguns anos mais tarde, Raúl Pre-bisch e eu estávamos no Brasil e encontramos o dr.Oswaldo Aranha, que fora ministro da Fazenda naépoca da crise.Era um homem inteligente e brilhante.Ele me disse que havia lido um artigo meu e comen-tou: "Celso, eu tinha uma consciência de culpa muito

Page 12: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

· . . . . . 74 .

grande por ter mandado queimar café.Mas você pro-vou que a queima de café foi a coisa mais positiva quese fez no Brasil". Na verdade, o Brasil tivera uma po-lítica anticíclica, embora não deliberada, antes que sehouvesse teorizado sobre isso.O que acontecera? Com o colapso dos preços dos

produtos primários, particularmente os do café, o va-lor das exportações brasileiras fora cortado pela meta--de. E em 1932, com a Revolução Constitucionalistade São Paulo, o governo federal pareceu desarmado edecidiu ajudar os agricultores paulistas, comprandotodo o café para queimar. Foi a maior fogueira domundo: durante dez anos 80 milhões de sacas de caféforam incineradas. Isso equivalia várias vezes à rendanacional. Mas foi essa destruição que criou o fluxo derenda, que é o que se chama de demanda efetiva.E essefluxo de demanda sustentou a economia, que come-çou a andar sozinha. E se andou sozinha foi porqueutilizou a capacidade ociosa existente. E por que aeconomia tinha capacidade ociosa? Percebi que a polí-tica brasileira era de tal forma orientada para favoreceros interesses do comércio internacional que não per-mitia que o país usasse a capacidade produtiva existen-te, por temor à inflação.A situação era similar à atual:crescimento zero por temor à inflação.A preocupaçãocom a moeda era na realidade temor de não poderpagar a dívida externa. O país não utilizava a capacida-

75 .

de produtiva instalada. Isso era bem claro na indústriatêxtil, cuja produção declinou no correr do decêniodos anos 20, de grande prosperidade mundial.O fato é que não havia política de desenvolvimen-

to no Brasil, e tampouco consciência do que se passa-va. O Brasil era um país de vocação industrial repri-mida, por incapacidade de sua classe dirigente. Essavocação se manifestou quando eclodiu a SegundaGuerra e o país pôde crescer apoiando-se no mercadointerno. Nosso país revelou então uma autonomia decrescimento e durante trinta anos foi a economia maisdinâmica do Terceiro Mundo. Ultrapassou de longe,em industrialização, todos os outros países daAméricaLatina. Havia potencial, o que não havia era política, oque demonstra a importância desta em Uln país emconstrução. Quando finalmente acordou para essarealidade, no último governo Vargas, o Brasil deu umsalto à frente e durante um quarto de século foi umadas economias mais dinâmicas do mundo.Foi após todos esses anos de reflexão sobre o nosso

país que escrevi, em 1958, a Formação econômica do Bra-sil, onde sintetizei essasidéias.É dos meus livros o maistraduzido, o mais conhecido. Pode ser lido como his-tória, mas é fundamentalmente de análise econômica.Dei-me conta da veracidade das palavras do clássicoque afirmou: a anatomia da sociedade é a economia.

Page 13: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

. . . . 76 .

COMO FOI A INDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA - A indus-trialização brasileira foi uma das mais bem-sucedidasdo mundo, sendo hoje o país um dos dez maiores sis-temas industriais. Fundou-se no princípio de que oessencial é apoiar-se no mercado interno potencial.Ninguém pensava em buscar tecnologia mais sofisti-cada para criar desemprego. As indústrias automobi-lísticas se instalaram no Brasil COlU tecnologia já" desegunda mão. Lembro-me de que aWillys, que veiopara o Brasil nos anos 50, trouxe primeiramente umequipamento já usado nos Estados Unidos durante aSegunda Guerra. Tivemos uma industrialização in-tensiva em mão-de-obra, o que, obviamente, não foicritério definido por nenhuma multinacional. No ge-ral todos os investimentos feitos aqui foram rentáveise fizeram o país progredir. Hoje em dia é que surgiuesse preconceito de afirmar que a criação de empregonão tem importância. Recentemente, o governo fi-nanciou, pelo BNDES, um plano siderúrgico que foifundamentalmente um plano de supressão de empre-go, reduzindo. em 40% o emprego na siderurgia brasi-leira, não para aumentar a produção, mas só para au-mentar a produtividade. O mercado interno deixoude ser a bússola.Quem pensa em desenvolvimento de um país do

Terceiro Mundo tem que maximizar as vantagens re-lativas próprias, e entre essasvantagens está a mão-de-

. . .. . 77 .....•

obra barata. A diferença é que a mão-de-obra asiáticaé mais bem preparada do que a nossa.Vejam um paíscomo a Coréia. Começou investindo em mão-de-obra. Só depois é que investiu em capital fixo. O Bra-sil também começou sua industrialização recorrendoà mão-de-obra intensiva. O que podemos indagar é:por que mudou de estratégia? Não terá sido porque asempresas internacionais assim decidiram? Será que omundo todo faz a mesma coisa?

REFLEXÕES SOBRE O PLANEJAMENTO - Queiramos ounão, o planejamento foi a grande invenção do capitalis-mo moderno. Ao estudar administração, li diversos au-~tores americanos que explicavam que a empresa quecresce precisa de planejamento. Esta é um técnica fun-damental para a ação racional. Significa ter referênciascom respeito ao futuro, portanto, usar a imaginaçãopara abrir espaço. Quando cheguei à França para fazerdoutoramento, em 1948, conheci uma experiênciamuito bonita de planejamento: a que os franceses cha-maram de planejamento indicativo. Eles criaram umsistema de planejamento formal, bem estruturado, bemconcebido. Anos depois, eu participaria de muitas reu-niões com eles sobre o tema. Mas naquele momentoadmirou-me ver que uma economia capitalista avança-da só poderia se recuperar das chagas da guerra recor-rendo ao planejamento. O "planejamento indicativo"

11111

!I:I!

U:'j

"II!I

Page 14: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

78 .

francês consistia em mobilizar toda a sociedade paradiscutir os objetivos de interesse global;depois, o finan-ciamento era estipulado em função das possibilidadesdo país e da sua capacidade de endividamento externo.Interessei-me também pelo planejamento russo,

que era o caso clássico,ao ler Strumiline. Na CEPAL, fuiseu primeiro chefe da Divisão de Planejamento. Oprimeiro manual de técnica de planejamento das N a-ções Unidas foi feito sob minha direção. Era um terre-no completamente novo e muito importante para ospaíses do Terceiro Mundo. Os franceses diziam que oplanejamento era necessário para resolver os proble-mas causados pelas destruições da guerra. Eu acrescen-tava dizendo que o subdesenvolvimento era uma espé-cie de devastação.Portanto, para superá-lo necessita-sede planejamento. O mercado sozinho não pode resol-ver o problema. Não é capaz de mudar as estruturas, oque é fundamental. Mas qualquer planejamento deveser aplicado em função do quadro politico. Ou seja, osobjetivos são definidos pela sociedade; ali onde estaadotou o socialismo, eles fotam definidos de uma for-ma; ali onde havia o capitalismo- como na França -,eram definidos de outra maneira.Creio que, hoj e, o que se perdeu - e isso é o mais

grave - é a idéia de apelar para o planejamento. Ohomem sempre age a partir de hipóteses. Qualquerum de nós formula hipóteses com relação ao futuro

.............. 79 ..... " ...

de sua vida. Uma empresa precisa mais ainda formularessashipóteses, e quanto mais complexa é a situação,maiores são os riscos. No caso de um país, a coisa seagrava. A técnica de planejamento que criamos naCEPAL serviu ao governo de Juscelino Kubitschek parafazer o Plano de Metas, o mais importante que o Bra-sil teve, pois foi a única vez em que o país teve umapolítica industrial deliberada, racional e ampla. Fa-lhou, porém, no esquema de financiamento, insufi-cientemente estudado. Roberto Campos, quando foiministro do Planejamento, seguiu essasmesmas técni-cas que nasceram na CEPAL, só que seu plano para ogoverno militar tinha objetivoa sociais distintos.Algo é fundamental: o planejamento não deve des-

truir as raízes da criatividade. Existe esse risco, poisplanejar é impor uma racionalidade que será assumidapor todos. Tal perigo se materializou na União Sovié-tica, onde o sistema cristalizou, endureceu, perdendotoda a capacidade de renovação. Seja qual for seu nível .de desenvolvimento, uma sociedade só se transformase tiver capacidade para improvisar, inovar, enfrentarseus problemas da maneira mais prática possível, masnuma perspectiva racionai.Se o Brasil moderno se criou, se teve uma indus-

trialização tão avançada e complexa, foi porque ado-tou a técnica de planejamento. O BNDES nasceu nesseprisma. Fui um dos diretores desse banco que estabe-

Lenon
Highlight
Page 15: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

....... , , . , . . . 80 ' . .. ., ..

leceu as bases do planejamento da ação pública. Umbanco de desenvolvimento coleta recursos da socie-dade. Portanto, só se justifica se aplicar esses recursoscom mais racionalidade que o mercado. Assim, o pla-nejamento aumenta a eficácia do Estado. Minha con-vicção é que uma economia subdesenvolvida comoa do Brasil necessita de um planejamento. Uma eco-nomia rica, como a da Suíça, talvez não precise deplanejamento global, pois as situações se acomodam eo mercado resolve o essencial. Mas numa economiacomo a brasileira, que tem imenso atraso acumulado,desequilíbrios regionais e setoriais, e um potencialenorme de recursos não utilizados, abandonar a idéiade planejamento é renunciar à idéia de ter governoefetivo.Pensar que o mercado vai substituir o Estado é

uma ilusão. São as grandes empresas que têm planeja-mento próprio que vão comandar o processo social,em função de objetivos que nos escapam.As empresastêm uma lógica própria, que eu respeito: é a lógica docomplexo multinacional, que age no quadro de siste-mas jurídicos diversos, trata de maximizar vantagensatravessando fronteiras e ignora a racionalidade pró-pria de cada país. Como bem notou o Jorge Caldeira,o quadro em que se estabelece a racionalidade é polí-tico. Por isso a economia deve ser vista como umramo da ciência política.

. 81 . . , , , . , . , , . . , ,

o ATRASO SOCIAL E A AÇÃO DA SUDENE - A partir dosanos 60, como responsável pela política de desenvol-vimento do Nordeste, percebi que os problemas maisgraves não são os de natureza econômica, e sim social,ligados às estruturas de poder. Por alguma razão, overdadeiro desenvolvimento esteve sempre marcadoem sua fase inicial por reformas agrárias e patrimo-niais. O Brasil conheceu um período de excepcionalcrescimento econômico, mas a progressiva concentra-ção da renda e da riqueza tem feito que a proporçãodos excluídos desse crescimento também seja pro-gressiva, o que fragiliza sua estrutura social.O Brasil tem muitas possibilidades, mas certas faci-

lidades acabam se transformando em problemas. Porexemplo, a população crescia em uma região e podiaimigrar para outra, o que aliviava a pressão social.Aspessoas ficavam satisfeitasem melhorar de vida mudan-do de região.Assim aconteceu com os nordestinos quevieram para São Paulo. Mas essacapacidade de acomo-dação criava dificuldades. O problema agrário da re-gião só não se agravavana época da seca porque, quan-do esta surgia, apelava-se para medidas de emergência.Vendo o Nordeste de perto como superintendente

da SUDENE, desde que a criei em 1959 até o golpemilitar de 1964, percebi que ou se mudava a estruturade forma radical ou o crescimento agravaria as defor-mações sociais. Impressionou-me ver que a estrutura

Page 16: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

. . . . . . . . . . . 82 .

agrária ali era a mais anacrônica que eu conheceramundo afora. Era o problema mais grave da região.A solução mais simples e imediata era transportar par-te da população do semi-árido para as fronteiras úmi-das, fossem no sul da Bahia, fossem no Maranhão,onde havia terra disponível. Começamos a abrir fren-tes de colonização no Maranhão. Transportamos cercade 100 mil pessoas para a fronteira amazônica do Ma-ranhão.A idéia era transformar o semi-árido do Nor-deste em uma região em que a população tivesse deapelar para técnicas mais sofisticadas do dry farming, aexemplo do que ocorrera nos Estados Unidos.A seca é um fenômeno que semanifesta em muitas

partes do mundo. Nessas áreas, a criação de emprego élimitada, e os investimentos requeridos são elevados.A água disponível tem que ser muito bem aproveita-da. Há que maximizar as possibilidades de irrigação, oque tentei fazer no Nordeste. Mas fracassei ao tentarobter do Congresso uma lei de irrigação. Fizéramosum projeto de lei para que todo o investimento públi-co em irrigação fosse precedido de desapropriação deterras para colonização, promovendo a emergência deagricultores mais aptos a assimilar novas técnicas. Di-ziam que os militares estavam contra nós, na verdadenos ajudaram nesse ponto, mas os governadores de al-guns estados importantes como o Ceará fizeram opo-sição e bloquearam o projeto no Congresso Nacional.

. . . . . . . . 83 .

,.

Assim, não se permitiu que o dinheiro público fosseutilizado para transformar a estrutura agrária. E perce-bi que o problema social iria se manter de pé. E semanteve até hoj e.Outra frente em que trabalhamos foi a do São

Francisco. A usina de Paulo Monso já estava em fun-cionamento; por que não utilizar as águas abundantesdo rio para irrigação? Contratei um grupo de especia-listas das Nações Unidas, com franceses que conhe-ciam problema similar na África, e israelenses.Todoseram otimistas, mas foi preciso fazerfalar os solos, comodizem os especialistas.Durante dois anos fizeram estu-dos minuciosos de pedologia e descobriram que eramnecessárias correções químicas, embora os solos fos-sem muito fecundos. Desapropriamos dois mil hecta-res para um trabalho experimental. Cotneçamos aplantar e os resultados foram magníficos. Hoje em diasão 80 mil hectares irrigados, o que mudou completa-mente a fisionomia da região. Portanto, o problema dairrigação estava ao alcance da mão, era só ter disposi-ção para enfrentá-lo. Mas era necessário uma lei deirrigação prévia que possibilitasse desmantelar os lati-fúndios. Issoporque irrigando os latifúndios - com aságuas barradas em. açudes -, o benefício é muito pe-queno. As terras não são usadas para a agricultura, masconservadas para uma pecuária extensiva.N a luta pelo Nordeste, fracassei com respeito ao

Page 17: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

. . . . . . . . . . . . . . 84 .

social, problema que o Brasil não estava preparadopara enfrentar. Como não está ainda hoje. Tive umavitória significativa com a industrialização. Graças aosincentivos fiscais,o Nordeste cresceu mais que o restodo Brasil, reduzindo-se a distância com respeito àsoutras regiões. Quando comecei a trabalhar no Nor-deste, a renda per capita do nordestino correspondia a40% daquela do brasileiro médio. As estatísticas maisrecentes apontam que a renda per capita do nordestinojá representa 60% da renda média per capita do brasi-leiro. Pode-se dizer que houve uma mudança qualita-tiva e que foi uma vitória. Mas uma vitória capenga.

Os ADVERSÁRIOS PRIVILEGIADOS - Muitos nordestinosaqui presentes sabem, como o professor Cleber deAquino - que é muito jovem, mas viu isso de perto-, o' que se passou na época em que estive à frente daSUDENE. Parafraseando Chateaubriand, que detectavatrês espécies de inimigos do cristianismo, posso dizerque também enfrentei três forças adversárias que seorganizaram e foram atuantes. A primeira foi a quechamamos de "indústria da seca". Era corrente o argu-mento do "ajuda o teu irmão", uma forma de pediresmola ao Brasil para a população nordestina, canali-zando assim dinheiro para a região. E a indústria daseca daí resultante dificultou muito o nosso trabalho,combatendo-nos diretamente. O senador que mais

. . . . . . . . . . . . . . 85

nos criticou -Argerniro de Figueiredo, do meu esta-do da Paraíba - dizia no Senado: "Precisamos nos de-fender contra esse astuto bolchevista". Outro grupoforam os beneficiários dos latifúndios, que barraram oprojeto de lei de irrigação, por exemplo. Finalmente,havia a classepolítica, que tende a ser atrasada e sempredemora muito a perceber as mudanças importantesque ocorrem no país. Os políticos nordestinos noscombateram duramente, e enfrentei-os apoiando-menas forças políticas do Sul.Umjornal como o Estado deSão Paulo me apoiou decididamente na questão daSUDENE. Percebiam que a tragédia nordestina era umacalamidade para o Brasil, e compraram uma boa cons-ciência apoiando a causa da SUDENE.A grande batalha foi no fim do governo Juscelino

Kubitschek. O presidente me apoiara sempre e, quan-.do surgiu uma campanha acirrada contra mim noCongresso Nacional, liderada por políticos nordesti-nos, ele me deu acesso aos arquivos e fichários da Po-lícia Federal. Pude então conhecer as sandices que osserviços secretos arquivavam sobre alguém. Minha as-túcia esteve em manobrar entre essas forças e maxi-mizar alianças nesse labirinto que é a politica brasilei-ra. Mas fiquei curado, e já não me meti em COIsaparecida.

Page 18: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

. . . . . . . . . . . . . . 86 .

A GLOBALIZAÇÃO - A formação de um sistema econô-mico mundial é processo antigo, anterior à Revolu-ção Industrial de fins do século XVIII e começo do XIX.Que não se pense que a globalização nasceu ontem.Mas o processo sofreu importante mutação na segun-da metade do século xx com a emergência das em-presas transnacionais como principais agentes organi-zadores das atividades produtivas. A racionalidadeeconômica, que antes se definia no espaço nacional,passou a refletir parâmetros que independem de umquadro político definido. É importante ter isso emconta. O Estado-nação foi instrumento fundamentalda criação do mundo moderno e é esse Estado-naçãoque está em crise. A racionalidade econômica era de-finida pela macroeconomia dentro do espaço nacio-nal. Hoje em dia o espaço é indefinido porque as eco-nomias se globalizaram e os sistemas produtivos seinterligaram, estão imbricados uns nos outros. Isso éum problema novo e complexo.

O conceito de produtividade social perdeu niti-dez, assim como a idéia de sistema econômico nacio-nal.A visão macroeconômica é substituída pelo enfo-que dos mercados. E o alcance das políticas públicas sereduz a muito pouco. A idéia de solidariedade socialperde seu fundamento econômico.

É contra esse pano de fundo que se deve aferir asignificação da globalização dos sistemas produtivos e

. . . . . . . . . . . . . . 87 .

das atividades financeiras. Trata-se de dois processosdistintos que se alimentam da mesma fonte de inova-ções tecnológicas. Isso se explica em parte pelo enfra-quecimento das forças sociais decorrente do desem-prego estrutural generalizado. O ponto fundamentalpara entender o que se passa no mundo de hoj e é que.o desenvolvimento da sociedade moderna, ou, se pre-ferirmos, da sociedade capitalista moderna, foi basea-do em uma espécie de dialética de conflito, o queMarx chamou de luta de classes como motor da his-tória. A história do capitalismo é uma história de lutade classes. É aí que se geram as forças renovadoras. Àprimeira vista, uma greve parece algo negativo, masforam as greves que permitiram às sociedades euro-péias se transformarem e se modernizarem. Além dis-so, todas as grandes economias modernas se formaramsob o sistema de proteção, sendo os Estados Unidos oexemplo clássico. Era o protecionismo que definia asolidariedade social. Todos os que estavam dentro dosistema protegido eram beneficiados.Ora, essa engrenagem se quebrou. Hoje em dia o

protecionismo perdeu eficácia. Portanto, tem mais for-ça quem tem mais tecnologia. As empresas estão pas-sando na frente, nelas está concentrado o poder. Já nãose ouve falar de sindicatos, nem mesmo na Europa.Não há mais movimento social. Os operários, os traba-lhadores têm pânico de perder o emprego porque a

Page 19: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

. . . . . . . . . . . . . . 88 .

resposta da tecnologia é poupar empregos, é anularpostos de trabalho. Surgiu uma temática nova, que é ada globalização. É preciso vê-la como um desafio.A abundância de mão-de-obra barata e subem-

pregada que' existe no Terceiro Mundo permite àsempresas transnacionalizadas aumentar sua competi-tividade nos seus mercados de origem. Portanto, oque está acontecendo é um processo de relocalizaçãode atividades produtivas, com concentração de rendaem escala planetária. São os interesses das grandesempresas que estabelecem os parâmetros de racio-nalidade, atropelando em muitos casos o interessenacional.O segundo vetor do processo de globalização - o

sistema financeiro - restringe ainda mais a gover-nabilidade dos sistemas políticos. A massa de liquidezque flutua sobre a economia internacional constituiuma ameaça permanente à estabilidade das economi-as nacionais, mesmo das nações mais poderosas. OsEstados Unidos são os principais beneficiários dessastensões, pois o essencial da liquidez internacional sãodepósitos em dólares. Esse é um problema muito maissério, porque escapa a qualquer controle do Estadonacional e mesmo das agências internacionais. O sis-tema produtivo ainda pode ser mantido sob certoscontroles, mas não o sistema financeiro e monetáriointernacional.

.;

. . . . . . . . . . . . . . 89 .

Países como o Brasil, que tinham um governo bas-tante eficaz e eram conhecidos por seu Estado quetradicionalmente definia os interesses próprios, hojeem dia não podem ter política. O que fazer? Prote-ger-se contra a transnacionalização? Ser contra os no-vos investimentos? O desafio que a geração de vocêsterá de enfrentar é muito grande, porque as soluçõessó surgem numa sociedade quando existem forçasempenhadas nisso. Daí a importância de ter-se umaclasse industrial como a que tivemos no passado, quese interesse pela inovação e que leve o Estado a teruma política industrial. Os setores petroquímico, side-rúrgico e outros básicos foram instalados no Brasilcom apoio do Estado. Este esteve por trás da constru-ção do Brasil. Hoje passou a dominar a idéia de que oEstado é UlTItrambolho. Mas, SelTIo Estado, o que'fica? O mercado. E qual é a lei do mercado? É a lei domais forte, a dos mais poderosos, a do grande capital.Esta é a realidade que vocês estão vivendo. Este é odesafio a que vocês devem responder.

A INSTABILIDADE MACROECONÔMICA NO MUNDO GLO-

BAL - O aspecto da globalização que se caracterizapelo entrosamento dos sistemas produtivos leva auma organização em escala mundial. Por exemplo,hoje várias empresas européias vêm se instalando forade seus respectivos países. A outra globalização, a fi-

Page 20: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

. . . . . . . . . 90 .

nanceira e monetária, é dominada pelo capital espe-culativo, que está localizado em qualquer lugar, masde preferência em paraísos fiscais.É um capital quenão tem cara, só pensa a curto prazo e pesa enorme-mente na utilização dos fundos de pensão, que sãohoje uma das principais fontes de liquidez interna-cional. Esses fundos são administrados por funcio-nários, e não pelos grandes capitalistas do passado.E esses funcionários querem maximizar vantagens acurto prazo, porque podem perder o emprego ama-nhã e querem ganhar dinheiro logo. Trata-se detrilhões de dólares que são manipulados a curtíssimoprazo. Para essa gente, o Brasil tornou-se um negóciopouco seguro, daí que eles tratem de deixar o país.Do dia para a noite podem escapar 10 bilhões dedólares. Quando o país acordar, a situação já é outra.É um mundo novo que está se criando.Quanto ao sistema de produção, é muito dificil

barrar o entrosamento, pois ele é ditado por uma tec-nologia que favorece as grandes empresas. Nos Esta-dos Unidos há empresários entusiasmados com aintegração com o México, porque neste país de 90milhões de habitantes a mão-de-obra custa menos deum décimo da norte-americana. Já os sindicatos estãorevoltados, mas não conseguem salvar muitos empre-gos. Curiosamente, os Estados Unidos têm um capita-lismo aberto mas sem mobilidade de mão-de-obra,

.;

I1

. . . . . . . . . . . . . . 91 . . . . . . . . . . . . . .

pois não permitem imigração. No Brasil ocorre omesmo. Grande parte dos automóveis fabricados noBrasil destinam-se ao mercado externo.Não é mais possível desfazer esse processo, mas é

possível começar a disciplinar o capital financeiro e ocapital monetário. Na Europa há dirigentes que pre-gam uma articulação dos bancos centrais. Mas os ban-cos centrais já não têm peso suficiente, a massa de re-cursos financeiros que se deslocam é imensa, tem quehaver outra forma de abordar o problema. É precisovoltar a algum mecanismo que corresponda ao quefoi no passado o controle de câmbio, para identificaresses capitais, reduzindo sua mobilidade. No Brasiltem-se pouca consciência disso. É um problema desolução dificil.

LmERALISMO E PRIVATIZAÇÕES - Os resultados da polí-tica de privatizações implantada nos últimos anos noBrasil variam muito de setor para setor. No das tele-.comunicações, é importante dizer que nunca nin-guém tocou no essencial: a empresa era eficiente oudeficiente? Havia empresas daTelebrás muito eficien-tes, o que as internacionais sabiam, e outras inefi-cientes. Portanto, havia espaço para crescimento. Émuito possível que grupos privados nacionais pudes-sem realizar parte dessas melhorias, liberando-as dapressão política. Mas o governo não levou em conta

Page 21: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

. . . . . . . . . . . 92 . . .. . .

todos os aspectos do problema. Mais grave: as pri-vatizações feitas pelo governo nos últimos quatro anoscriaram compromissos permanentes com o estrangei-ro, de remessa de lucros. Ninguém discutiu essaopção.E pergunto: o Brasil, endividado do jeito que está,pode se dar ao luxo de assumir compromissos exter-nos crescentes sem prazo fixo, como os criados pelasprivatizações?Há ainda um outro aspecto: para a empresa que

maximiza lucros, privatizar significa cortar de imedia-to todos os gastos supérfluos, e subcontratar ali ondefor mais conveniente - portanto, criar desemprego.A indústria de autopeças no Brasil, que foi tão impor-tante para a criação de empregos, praticamente se dis-solveu, pois não era competitiva do ponto de vista dasgrandes empresas. Montadoras como a Ford, GeneralMotors e Renault são sócias de fábricas de autopeçasno mundo todo; depois, é só escolher onde é maisconveniente maximizar as vantagens. Não se podecondenar a racionalidade das empresas; pedir que secomportem de outra forma é querer' que sejam poucoeficientes. Mas pode-se, e deve-se, definir certos pa-râmetros para a racionalidade macro, definir se o cri-tério que prevalece é o social ou o puramente micro-econômico. E isso quem faz é o governo. Deixar atarefa na mão do mercado significa que o interessesocial será marginalizado.

. 93 .

Mesmo o governo atual, que parece seduzidopelo liberalismo, está querendo reformular a políticado açúcar, pois a agricultura ainda cria muitos em-pregos. A sociedade também deve se mobilizar paradefender seus interesses. Importa saber se prevalecealgum projeto social. Perceber que o mais importanteé o social foi a descoberta mais relevante de minhavida. Descobri que os economistas podem ser tecni-camente sofisticados e, mesmo assim,não captar a di-mensão social dos problemas. Há pouco li o artigo deum conhecido economista brasileiro que deixou ogoverno e abriu um escritório para vender assessoria.Ele mostrava que tudo o que estava acontecendo noBrasil era certo, que criar desemprego era muito im-portante, pois novos empregos seriam gerados maisadiante em outros setores. E o custo social até lá? Nomeio do caminho morre muita gente. Mas esse seriao custo do progresso ...O homem se convence de muita coisa quando há

interesses pessoais envolvidos.Aquilo que Max Weberdefiniu como racionalidade formal pode ser levadoaté a construção dos fornos crematórios.Já a raciona-lidade substantiva, que diz respeito aos valores, engen-dra outro processo social. É isso que o cientista socialdeve prezar mais: o interesse social.

,(

(

(

I"I.

Page 22: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

.............. 94 .

DESEMPREGO ESTRUTURAL, CÍCLICO, E EXCLUSÃO SOCIAL

- Quando comecei a trabalhar com esse tema, a dou-trina dominante no Brasil, a do professor Gudin daFaculdade de Economia, era de que havia pleno em-prego no país. Hoje alguém pode em sã consciênciafalar em pleno emprego? Basta olhar nas ruas a quan-tidade de gente vendendo miudezas, sem opção detrabalho. Naquela época, avançava-se a idéia de de-semprego estrutural. O desemprego cíclico era trata-do com as técnicas keynesianas, para ele já havia umdiagnóstico. Quanto ao desemprego estrutural, foi umconceito inventado pelos anos 50. E hoje os conserva-dores, ou seja, os ortodoxos em economia, falam emdesemprego estrutural.Mas hoje o que importa mesmo é estudar a exclu-

são social. O que importa é essa massa de jovens, quevejo na Europa e aqui no Brasil, que não consegue pe-netrar no mercado de trabalho. São excluídos de ante-mão. Os franceses estão atacando muito esse assuntopelo lado do investimento humano. É uma forma deabordar o problema, sem dúvida, pois a sociedade temde investir mais na população, tem de elevar o nível decompetência e profissionalização para facilitar a inser-ção. Mas o problema é mais complexo. Diz respeito àcapacidade do sistema para criar emprego. Se o sistemamaximiza vantagens tecnológicas não terá muitas pos-sibilidades de criar empregos. Alegam que o emprego

. . . .. 95· .

,(virá depois, quando a população for enriquecendo ecriar um terciário mais importante. É verdade, mas háum fundo do problema que se chama exclusão social.Necessita-se de um novo projeto de sociedade.

Perguntam-me às vezes o que deve ser um novo pro-jeto de sociedade. Uma resposta pode ser que os ho-mens vivam mais em função de objetivos pessoais, eque a população, com nível cultural mais alto, tenhaum consumo de bens culturais maior que o de hoje.Esse caminho deve ser buscado. Daqui a cinqüentaanos, quando alguns de vocês estiverem na posiçãoem que hoje estou, tenho certeza de que verão ummundo completamente diferente, pois a revoluçãoque está acontecendo neste fim de século é maior quequalquer outra que houve em duzentos anos. Precisa-se voltar à Revolução Industrial para se ter um talchambardemeni, como dizem os franceses, uma sacudi-dela tão brutal como a que está acontecendo hoje.Quando comecei a estudar economia, a solidarie-

dade social tinha reconhecida importância, porquetodos estavam de acordo para desenvolver o Brasil. Edesenvolver o Brasil era desenvolver o mercado inter-no. Hoje em dia, o que é desenvolver o Brasil? É de-senvolver as empresas transnacionais que estão instala- ,das aqui? Elas estão crescendo, mas que parâmetros,que enquadramento são utilizados? Como é possíveldefinir racionalidade se a economia se internacionali-

(

~

(

(

.-1

Page 23: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

.............. 96 .

zou, se não há mais o marco nacional? São assuntosem que os economistas devem pensar.É notório o desmantelamento do marco político

nacional em que se traduz a racionalidade social. Omarco político nacional, é verdade,já havia se degrada-do com o sistema fascista, com o sistema estalinista.Émuito fácil atacá-lo. Mas o que se coloca em seu lugar?Como definir a racionalidade, se não se tem em contao interesse social?E se não houver marco nacional, nãoexiste propriamente possibilidade de definir interessescoletivos. As empresas que vêm para o Brasil só paraexplorar mão-de-obra barata teriam que pagar muitomais impostos, por exemplo. Há muitas formas deabordar esseproblema, que é o grande desafio de hoje.

MERCOSUL E ALCA - O Mercosul está dando certo e éo que de mais importante se fez em política externabrasileira há muito tempo. Foram os europeus quelançaram essa prática de solidariedade regional, em-bora o Mercosul esteja longe de se igualar à UniãoEuropéia.A ampliação de interesses regionais cria no-vos mercados e novas forças. Por alguma razão os Es-tados Unidos parecem estar contra o Mercosul, crian-do dificuldades para o ingresso de outros países daAmérica Latina. Eles têm seus interesses e pretendemdar a essa unificação outro sentido, a exemplo do queestão fazendo com o México. Como ir mais longe?

. . . 97

«

I(

Será que se pode pensar em uma moeda comum?Presenciei na Europa como só se chegou a isso depoisde anos de disciplina. De início havia grande hete-ro-geneidade entre os países do Sul, como Portugal,Espanha e Grécia, e os outros do continente. Fez-seentão um sistema de compensações. Hoje, um investi-mento em Portugal é em parte financiado com recur-sos da União Européia. O projeto europeu, assim,aju-dou Portugal a elevar seu nível de vida, da mesma .forma que o Brasil fez com o Nordeste, graças aos in-centivos fiscais. Os países podem se ajudar uns aosoutros, e o Brasil terá de fazer uma política de conces-sões para a integração regional.A ALCA (Área de Livre Comércio das Américas),

que é um projeto dos Estados Unidos, visa a respon-der a uma situação histórica particular. A situação dosEstados Unidos é complexa, com um déficit em contacorrente imenso e sendo financiado pelos excedentesde outros. O Japão exporta cerca de 60 bilhões dedólares por ano e grande parte desse dinheiro é absor-vido pelos americanos. Hoje, essas fontes ameaçamsecar.A sociedade norte-americana perdeu a capaci-dade de poupar, e seu hiperconsumo chegou a talponto que ela está muito endividada. Essa é uma si-tuação nova, um tipo de capitalismo de consumo.A economia norte-americana é hoje muito depen-dente do exterior. Ela, que antes era fechada, inde-

.~

(

.'

;(

Page 24: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

. . . . . . . . . . . . . . 98 .

pendente, autônoma e com um coeficiente de co-mércio exterior muito pequeno, hoje é dependentedas relações internacionais. É natural que o governoamericano não queira aumentar os salários, que já sãomuito altos em relação à produtividade. Por isso o paísse encaminhou na direção da integração com o Mé-xico, que aumentou muito suas exportações. Contu-do, é um país de tradição de confronto com os Esta-dos Unidos e sabe que uma associação tão desigualrepresenta riscos muito grandes, até políticos. Talveztenha aceitado essa integração por causa do trauma daúltima crise. Para evitar a moratória mexicana, osamericanos puseram à sua disposição cerca de 60 bi-lhões de dólares. Nem o Plano Marshall fora tão lon-ge. Os mexicanos não usaram todo o capital, mas ofato é que essa solução de emergência deixou o paísnas mãos das autoridades financeiras americanas, pelomenos durante algum tempo.

o MITODODESENVOLVIMENTOECONÔMICO- Quandoescrevi O mito do desenvolvimento económico, foi umpouco como provocação. Eu vivia no estrangeiro, es-tudava o Brasil de longe, e quis mostrar aos brasileirosque, se não encontrassem caminhos próprios, se con-fiassem completamente nas forças do mercado, nasforças internacionais que atuavam aqui, não teriamsaída.Abordei o tema de tal modo que muita gente

. . . . . . . . .. .. 99 .

(

me disse que eu andava pessimista com respeito aoBrasil. Eu, que sempre fui de um otimismo funda-mental! De toda forma, aceitei a crítica. O que eu in-sinuava é que a classe dirigente brasileira não tem ca-pacidade para enfrentar seus grandes problemas, assimcomo não teve capacidade para formular uma políticade industrialização nos anos 30; esta veio na contra-mão, mas veio. Só tardiamente o país descobriu suavocação para industrializar-se.

Hoje em dia, são outros problemas. Há evidentetensão social. Quando digo que o mercado internofoi a força dinâmica que permitiu ao Brasil crescer, háquem retruque que isso é "coisa de dinossauro": paraquê mercado interno quando as empresas transnacio-nais aqui instaladas se encarregariam de nos levar atodos os mercados?

(

I(

AGRICULTURAE REFORMAAGRÁRIA- A agricultura éum setor produtivo em transição no mundo inteiro.Nos últimos trinta anos as técnicas agrícolas avança-ram enormemente, mas nem por isso os subsídios, naEuropa, fizeram-se menos necessários. Agora, com aintegração do Leste Europeu, vão precisar de maissubsídios. O Japão, que é o país mais rico do mundo,tem uma agricultura socialmente muito cara. O arrozque cultiva sai caro se comparado com o de outrospaíses. Mas os japoneses sabem que, se a agricultura

Page 25: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

.............. 100 .

ficar ao sabor do mercado, serão invadidos pelas ex-portações de arroz de outros países da Ásia, o que tira-ria o emprego de milhões de pessoas. Acabaria o últi-mo setor importante da agricultura que eles têm.Trata-se, portanto, de uma decisão política.O problema da agricultura brasileira também é

político. Haveria outras opções de emprego tão fácilcomo as da agricultura para milhões de brasileiros?N osso país tem terras abundantes não utilizadas, temgente querendo retornar ao campo. Por que não fazeruma reforma que resolvesse o problema dessa gente,que atualmente chega a acampar na beira da estradacomo candidato a agricultor? Sei que não se mobilizauma população por decreto. A mobilização surge emuma sociedade quando se apresentam os desafios.O importante é o Brasil continuar sendo uma socie-dade aberta politicamente,já que durante anos os bra-sileiros lutaram pelo mínimo que era o direito de lerjornal. Daqui para frente, os desafios só farão crescer.E o desafio de dar uma solução ao problema da terrano Brasil é um dos mais empolgantes para vocês danova geraçao.

OS PROBLEMAS DO FIM DO SÉCULO - O Estado naopode continuar quebrado como está. Por outro lado,não é possível ter uma política monetária indepen-dente Sel11equilíbrio fiscal. Tudo está na dependência

. . . . . . . . . . . .. 101··· · · · · · · · · · · ·

l

(

de se restabelecer o equilíbrio das contas públicas. Ofato é que o atual governo se endividou permanente-mente. Vejam, por exemplo, essa questão da inflação.Escrevi um artigo dizendo que o Brasil tem uma in-flação de outro tipo, mas nunca deixou de ter inflação.A diferença é que a inflação que era aberta foi substi-tuída por uma inflação embutida, que é o déficit emconta corrente da balança de pagamentos. Esse é umdesequilíbrio do tipo inflacionário. Eu disse isso a umjornal e muitos economistas ficaram perplexos. Essedesequilíbrio é tão grave quanto a inflação. Não bastasubstituir uma inflação por outra. Com a inflação, fi-nancia-se o déficit fiscal rapidamente, basta emitir pa-pel-moeda. Foi o que fizeram os governos anteriores:urna emissão de papel-moeda correspondente a 5%,6%, 8%' do produto nacional. Isso já não é possívelporque a sociedade não aceita o processo injusto dedesordem dos preços. Mas ainda é necessário eliminara inflação embutida, o que só será possível com a cor-reção do déficit fiscal.N o Brasil há mais intranqüilidade e incerteza por-

que não sabemos como financiar o déficit externo enão queremos voltar à inflação. Tudo passa a dependerda boa vontade dos credores para renovar os créditosnecessários para compensar o desequilíbrio. O que ogoverno vai fazer ou pode fazer, se amanhã saírem dopaís, de uma pancada, 30 ou mais bilhões de dólares?

(

I(

Page 26: oC'~ - com · PDF fileBrasil / Celso Furtado. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 ... Machado de Assis:contexto histórico, 103 Rui Barbosa e a política financeira do primeiro governo

· 102 .

o certo é que perderemos toda a credibilidade inter-nacional.O cerne da questão é definir que modelo de de-

senvolvimento vai se propor ao Brasil para os próxi-mos anos. É fundamental solucionar o problema dacriação de empregos. Há possibilidades na agricultura,o que quase não existe em outros países. Mas é precisoter um sistema de preços adequado. Não é problema aser resolvido pelo mercado, que só se interessa peloque seja rentável. Criou-se a ilusão de que o Brasildeve alcançar a vanguarda em todos os setores. Mas émelhor fabricar automóveis acessíveis aos brasileirosdo que lançar produtos de vanguarda que impõemtécnicas poupadoras de mão-de-obra. As grandes em-presas estão interessadas no mercado interno brasilei-ro. Se houver uma política séria com disciplina dosinvestimentos, elas não farão resistência, pois em qual-quer hipótese levam vantagem se o mercado estivercrescendo. Cabe aos políticos, e mais ainda a toda asociedade, avançar soluções para esses problemas.

v

~

f..

{I

MACHADO DE ASSIS:CONTEXTO HISTÓRICO

As singularidades do imaginário de Machado de Assissão reflexos fragmentados do horizonte histórico desua época. Machado' nasceu em 1839, portanto meioséculo antes da abolição da escravatura. Se se têm emconta sua mestiçagem, a situação de dependência emque viveu a infância como agregado de urna famíliaabastada, e seu esforço para ocultar os ataques epilép-ticos que se manifestam em içlade incerta, temos al-guns elementos para explicar a singularidade dessapersonalidade. Sua vida foi uma longa caminhada paraascender numa sociedade rigidamente estratificada,sem fazer concessões no que se refere aos valores fun-damentais do homem. Lendo sua obra, particular-mente os romances da maturidade, tem-se a impres-são de estar diante de alguém que construiu suaspróprias referências para proteger-se do contexto so-cial.A mistura de ceticismo e humorismo que consti-tui o cimento dessa obra revela um pensador subter-râneo que enviasse mensagens aos leitores do futuro.Meu propósito se limita a perscrutar a fase históri-

ca em que Machado formou a sua visão do mundo.Tem sido pouco assinalado por nossos historiadores ofato de que o século XIX foi em grande parte respon-