O verdadeiro ator

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Romance de Jacinto Lucas Pires

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O VERDADEIRO ATOR

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Título: O verdadeiro ator

© Jacinto Lucas Pires e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2011

Todos os direitos reservados

ISBN 978-972-795-321-9

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Jacinto Lucas Pires

O verdadeiro atorromance

Cotovia

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QUERES SER PAUL GIAMATTI

“Atende o telefone”, diz a voz ao telefone. “Mas eu estou ao telefone”, diz ele.“Daqui a cinco minutos. Atende o telefone daqui a

cinco minutos.”“Já não vou estar ao telefone daqui a cinco minutos?”“Vais estar ao pé do telefone, sem te mexeres, à es-

pera.”“Ah, como é que sabes?”“Estou-te a dizer. É uma chamada muito importante,

não te distraias. Aconteça o que acontecer, atende a porrado telefone.”

“Está bem, calma.”“Calma, nada”, diz a voz. “Atende o telefone.”“Já percebi”, diz ele. “Mas agora não posso.”“Vou desligar, então.” E, passados cinco minutos, toca o telefone. Américo

deixa tocar três vezes e atende. É uma chamada impor-tante, Murilo tinha razão. Quem liga é um produtor in-glês, Qualquer-Coisa Summers, a convidá-lo para umfilme, um filme de grande orçamento, um filme muitís-simo internacional, e logo para o papel de protagonista.Primeiro, Américo pensa que talvez seja um gozo qual-quer, sempre que há uma pausa do outro lado respondeapenas “hã-hã”, a medo, para não se comprometer. Masdepois percebe que não, o palavreado e o sotaque, tudo

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aquilo é demasiado espantoso para ser piada. Não apa-nha metade, que o senhor Summers fala muito rápidoe muito cerrado e em inglês, mas percebe que o produ-tor acha superengraçado isto de ele conseguir trabalharsem ter um agente; que o realizador do filme em ques-tão, o conhecido Louie B. Kamp, apreciou brutalmentea sua prestação como barão da droga num filme espa-nhol um bocado para o manhoso que foi rodado em me-nos de um mês com duas câmaras digitais; e que a pro-dução precisava muito que ele lhes desse um endereçode correio eletrónico. “Sabe o que quer dizer... Tem in-ternet, não?” pergunta o senhor Summers, separandocada sílaba, como se ele fosse o coitado de um trogloditadas cavernas. Américo engole em seco, amocha, fingeuma risadinha divertida, diz que sim, “of course”, e unssegundos depois recebe o argumento no computador.A coisa chama-se Queres Ser Paul Giamatti.

Como o título indica, trata-se da história do atorPaul Giamatti, que é aquele tipo cómico que fez aquelefilme cómico sobre o vinho na América. “Inspirados pelosucesso”, escrevem eles, na nota de apresentação do pro-jeto, “diferentes tipos de sucesso, dos filmes QueresSer John Malkovich? (realização de Spike Jonze, 1999),Sinédoque, Nova Iorque (realização de Charlie Kauf-man, 2008) e Almas Frias (realização de Sophie Bar-thes, 2009), lançámo-nos na aventura deste Queres SerPaul Giamatti (título provisório). Uma não-sequela emque invocamos tudo, todas as referências possíveis eimaginárias, históricas e das histórias, tudo o que existee também tudo o que não existe, para criar a primeirapessoa, o primeiro ser humano feito apenas de imagensem movimento e som dolby-surround.” É, claro, uma

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falsa história dele. A história de Giamatti enquanto per-sonagem de um estranho jogo de vídeo chamado EstarVivo. A história de Giamatti enquanto estrangeiro nomundo, poeta involuntário e adorável antissocial. A his-tória de Giamatti enquanto feliz palhaço triste. Mais oumenos.

O filme começa num bar decadente, daqueles ondeas cortinas de veludo têm manchas suspeitas e os ama-dores de todas as áreas do conhecimento são autorizados,encorajados até, a subir ao palco para (a troco de nada, di-nheiro nenhum) dizer piadas, cantar, dançar, fazer dis-cursos políticos, declarar paixões do momento, confes-sar pecados, esse género de espelunca. Paul Giamatti, istoé, Américo, a personagem dele, está sentado a uma mesacom uma loira platinada, mais velha que ele e muito,estrondosamente, gorda. Assistem a um número bas-tante ritmado que inclui uma rapariga vestida, digamosassim, de Cleópatra, um violino, duas caixas de fósfo-ros, uma galinha comandada à distância e um livro depoemas, e a certa altura a loira pergunta-lhe “E não sebebe nada, querido?”

Giamatti sorri, faz que sim com a cabeça e chama oempregado. Pede “Champagne!” e espreita-a a ver a rea-ção. Mas o raio da gorda não liga a mínima. Só tem olhospara a galinha que foge, histérica, dos poemas em cha-mas, folhas e folhas que a Cleópatra seminua vai ras-gando e ateando com o violino numa ginástica absurda.

Quando a garrafa de champanhe chega ao fim, estáum tipo de camisa branca e laço preto atrás do micro-fone. Lembra um árbitro de boxe mas fala de coisascomo “a discriminação que os políticos sofrem todos osdias”, “o melhor desporto depois desse”, “uma viagem

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a Itália seguida de uma viagem a Oklahoma”. É o tí-pico número de comédia falhado, o típico fracasso. Outalvez não o típico-típico. Não se sente aquele peso,aquele silêncio confrangedor a seguir às piadas, aquelevazio que ecoa de maneiras esquisitas, realçando os pe-quenos barulhos desagradáveis de que não damos contaem alturas normais, não. A única coisa é que se vai dei-xando de ouvir o homem. Aos poucos as pessoas vão-sedistraindo, põem-se a falar para o lado, viram-se para obalcão, para as bebidas que têm à frente, para dentrodelas próprias, e a vozinha do árbitro de boxe vai des-cendo, deslizando, afogada. “Um rabo daqui até aosHimalaias”, são as últimas palavras que Giamatti ouvedo palco antes da amiga loira lhe sussurrar “Tenho de irali à casinha” e desaparecer por entre as mesas gingandoordinarissimamente o seu rabo majestático. É uma ex-pressão que ele odeia, “ir à casinha”, uma daquelas queo perturba a sério, de maneira que fica logo mal dispostocomo o diabo. Sozinho a olhar para o palco, tão triste.Triste não, triste é pouco. Patético, pesadão, pusilânime.

De repente demasiado consciente de cada gesto, decada banal acontecimento no seu corpo, barulhos noestômago, comichão no ouvido interno. Sem saber ondearrumar as mãos. As mãos como a porra de um problemaprático. Tenta diversas posições: a direita por cima da es-querda, em “concha”; as duas de dedos abertos e juntos,em “crista”; e só uma para cada lado, sobre a mesa,“mortas”. Mas nada ajuda. Nenhuma posição funciona,claro, é só uma maneira de ir matando tempo.

No palco o árbitro de boxe, derrotado pela ferozindiferença do público, interrompe o número, brancode nervoso, e diz “Bem, eu...” Faz um esgar engraçado

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como se tivesse provado um fruto não comestível e saia correr, quase a correr, um andar desequilibrado de ca-beça atirada para a frente. Não vendo onde põe os pés,enreda-se nas cortinas à saída, tropeça para o lado de lá.Mas nem disso as pessoas dão conta. Durante uns espan-tosos dois, três minutos, fica-se a ver o pé do tipo, dolado de cá do palco. No limite da cortina, sim, o pé visí-vel do lado de cá. Um sapato de pele, de um castanhodemasiado claro, tão feio, fica-se a ver aquilo durantedois, três minutos, até que o tipo lá dá de si. Recolhe opé com muito cuidado, com uma espécie de nojo, comose apanhasse uma casca de banana do chão para a deitarao lixo mais próximo. No palco o pé, zup, desaparece.

Aí sim, as pessoas calam-se. Olham umas para ou-tras, indecisas sobre o que significa aquilo, e depoisdesatam a rir e a aplaudir, “Bravo! Bis, bis!” A loira é quenão volta nunca mais.

Esta é a primeira cena, depois a coisa desenvolve maisum bocado, outras peripécias, outros problemas, novascamadas. É um filme de autor, tem certa complexidade.

Com o argumento na mão, as folhas que acabou deimprimir e ler, Américo está um pouco em choque, masmuito contente. Veio mesmo a calhar este convite paraentrar num filme a sério. Há já seis meses, nove a contarcom as férias, que está sem trabalho, sem nenhuma ofertade nada, nenhuma peça, nenhuma novela, nenhumadobragem, nenhuma merda de nenhum anúncio. E co-mo é que se conta férias se não se tem trabalho, fériasde quê, pois? Dias e dias em casa, a tomar conta do Joa-quim, que tem um ano e sete meses e não para de cho-rar, gritar, escorregar, desarrumar, partir coisas, metercoisas na boca, engasgar-se, ficar com febre, tomar re-

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médios, tomar vacinas, dormir pouco e chorar e gritare sujar fraldas e fraldas que Américo, mais tarde oumais cedo, tem de mudar, já que é o único adulto emcasa durante o dia. Nos tempos livres, trabalha nasideias dele, não quer resignar-se, não quer, como diziaa personagem de uma telenovela que fez há uns anos,deixar-se “triturar pelas fatais engrenagens deste mundo”.

Nos últimos dias, tem andado a pensar num pro-jeto para vender aos teatros do país. Ainda não temtexto, nem título, mas já tem assim umas luzes sobre oformato, o estilo e o tom geral. Um espetáculo itine-rante para um só ator num registo sério mas popular,inteligente mas comercial, divertido mas profundo.Isto é, profundo quanto baste. A ideia é pegar nas falasdo Falstaff de Shakespeare e montar aquilo tudo muitobem, corta e cola e tal, atualizar-lhe os segundos senti-dos, dar uma roupagem mais leve e jocosa ao paleio dohomem e depois arranjar um fim que não deixe dúvi-das sobre se é altura de aplaudir ou não, um fim que,enfim, seja mesmo final. Mas ainda lhe falta, portanto,uma metáfora. É assim que funciona o teatro. É precisoarranjar uma metáfora que ligue tudo e justifique tudo.Talvez vestir o Falstaff de secretário de Estado, porexemplo. Foi uma ideia que lhe ocorreu no outro diaquando estava num dos seus raros momentos de sos-sego, na casa de banho. Mas não tem a certeza. Falta--lhe pensar um bocado melhor nisto tudo, ainda temmuito trabalho pela frente.

Joana diz-lhe que ele não está a ser realista, que elenunca é realista, que uma ideia dessas não tem hipótesenenhuma. “Fal-staff?” diz ela, como se fosse uma chi-nesice, uma brincadeira, uma doença sem importância.

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“Meu querido Américo, nenhum programador de ne-nhum teatro do país vai comprar um espetáculo emque apareça um, como é que é, ‘Falstaff’?… Ha, ha.”

“Mas é uma personagem célebre.”“Oh, não brinques.”“E é... Shakespeare.”“‘Shakespeare?’ ‘Shake-speare?’ Meu querido, isso

ainda é pior!”“Não digas ‘meu querido’ assim, por favor.”“São dois nomes esquisitos em vez de um.”“A sério... achas?”“Pois acho. Pois acho, Américo.”“Talvez”, diz ele, só para acabar com a conversa.

“Se calhar, tenho de vender a ideia sem referir isso de sera partir do Falstaff... de Shakespeare.”

“Olha que é capaz de não ser pior. Meu querido.” E a maneira como ela profere aquelas duas pala-

vras, sem olhar para ele, como se ele fosse um lacaio-zito que andasse para ali, a cuidar da casa dela, do filhodela, como se ele fosse só uma piada de mau gosto quea grande mulher de sucesso pudesse pisar com o tacãofino, de bom gosto, do seu sapato italiano-brilhante, amaneira como ela diz aquilo naquele momento fá-loodiá-la com uma violência tal, uma tal desmedida, queAmérico diz para com os seus botões que só há umaforma de resolver esta história. “Ai, Joaninha, quandome chamas assim, até... ui, ui. E se — agora que o miúdoestá a dormir e tudo — e se — e se fôssemos... hã? Sópara desbobinar um bocado... Sim?”

“À noite”, diz ela. Um tom profissional, neutro, jásem maldade nem nada. “Agora tenho de trabalhar.”

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É uma verdadeira mulher moderna, trabalhadora ede sucesso. Aos trinta anos, chegou ao topo ou muitoperto do topo do edifício do Estado e é nem mais nemmenos do que Adjunta do Subdiretor Regional-Geraldo Departamento Nacional de Controlo de Qualidadedos Azeites e Lagares, a primeira mulher a conseguirtal feito em tão tenra idade, e ainda com excelentesperspetivas de progressão na carreira, pois não só temdado muito boas indicações nas avaliações externas einternas feitas ao Serviço como, sempre que há um es-tudo importante a fazer, um parecer qualquer mais pe-sado ou delicado a cargo do Serviço, é nela em quem aschefias depositam maior confiança para, por assimdizer, descalçar a bota. Como é natural, isso implica umgrande esforço da parte da jovem alta-funcionária, muitotrabalho de casa, serões e serões a ler dossiês e dossiês,papéis e mais papéis, relatórios e análises e circulares ejustificativos e recomendações e articulados e o diabo asete. À noite, Américo vai à casa de banho e, quandovolta, a mulher está a dormir, a ressonar de boca aberta.O habitual. Tão querida, com aquele não-sei-quê decriança que algumas pessoas têm quando dormem. O ca-belo loiro, muito bem dobradinho sobre a almofada;pálpebras finíssimas, lisas como plástico.

Na cama Américo abre o livro que anda a ler há maisde um mês. O Palavrão, de Eduardo Fontes. Um ro-mance deveras curioso, extremamente interessante. A his-tória de uma mulher que vive “fora da linguagem” e sóconsegue entrar nas palavras, injetar-lhes sentidos, atra-vés de atos de violência contra o mundo e contra si mes-ma. Depois de um dia muito cansativo, e tratando-sede um livro tão exigente, cumprir a regra das dez pági-

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nas não é nada fácil. Uma regra que Américo se impôs,ler um mínimo de dez páginas por dia. A ver se não sedeprime na pasmaceira do desempregado que só mudafraldas e trata da lida da casa e não sabe de mais nada enão tem mais nenhum interesse e parece um totó sem ne-nhuma ideia, nenhum desejo, nenhuma alegria original.

A verdade é que, desta vez, nem a meio fica. Ador-mece na segunda frase do primeiro parágrafo da terceirapágina: “Carmen emocionava-se com a cadência dasorações mais complexas e, no entanto, se alguém dizia‘cão’ ou ‘prédio’, ela não tinha logo uma imagem paraa palavra.”

À conta disso, sonha com um lugar branco onde ascoisas só ganham existência à medida que alguém vaipensando nelas por extenso, dando-lhes nomes. Umlugar com um ar de manicómio pós-moderno, ondeAmérico passa o tempo sentado no chão a olhar para onada em redor, a tentar bloquear o pensamento, cheiode medo, fazendo um esforço danado para que não lheaconteça nenhuma palavra má que crie alguma coisamá e real. E o pior é que não chega a ser bem um pesa-delo, Américo não tem suores frios nem acorda aosberros a chamar “Mãe!”

Mas de manhã está contaminado por um mal-estardifuso que, é certo e sabido, há de acompanhá-lo o diainteiro. Preferia uma febre qualquer a esta moleza es-tranha que o faz ver tudo dentro de um estado de já--aconteceu, tudo envenenado por uma qualidade de in-diferença e vazio. Liga a televisão, senta-se com Joaquima ver as notícias. A mulher já saiu para os Azeites, a ca-sa só para os homens. Américo está-se nas tintas paraa atualidade, como é óbvio, quer só ter alguma coisa

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para fazer, algum lugar para onde olhar, imagens que mu-dem rápido.

Há “sublevações” em dois ou três “bairros proble-máticos”, mas o porta-voz do governo diz que isso nãoé causa para alarme. Do outro lado, os representantesda oposição mostram-se indignados e fazem frases lon-gas demais onde se repete a palavra “segurança” e a pa-lavra “social”. Joaquim acha graça àquilo, estica os bra-ços na direção da televisão.

“Não, não”, diz Américo. O miúdo começa a chorar.“Está bem, hoje pode ser”, emenda o pai, e Joa-

quim cala-se. Deixa-o bater no ecrã da televisão. Talvezlhe faça mal aos olhos, mas é um impulso compreensí-vel e Américo não quer que ele faça uma gritaria da-quelas doidas. E também é bom que o miúdo aprendaa aprender sozinho, com os próprios erros, que choquecontra o ecrã duro algumas vezes para perceber que asimagens são só imagens e não têm nada a ver com a rea-lidade. A silhueta do filho contra uma paisagem do Afe-ganistão e, de repente, o telemóvel a tremer.

“XXX?”É ela. A mensagem dela. Escreve-lhe sempre neste

código primário, vá-se lá perceber porquê. Se alguémlhe espiasse o telemóvel, esta seria a mais suspeita dasmensagens. Talvez seja só uma espécie de piada. Comose o acordo entre os dois fosse meio a brincar. Um jogo,uma fantasia de espiões, ladrões, agentes secretos. Outalvez ela nem saiba escrever ou tenha medo de cometererros ortográficos — não que seja parva, pelo contrário.É das pessoas mais inteligentes que Américo já conhe-ceu. Uma inteligência nada culta mas refinada como

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poucas; com uma malícia, um instinto para o termocerto, uma capacidade espantosa de argumentar em si-lêncio, de ganhar discussões só com os olhos e a maneirade fechar a boca. O picante que põe em cada pausa, emcada silêncio, porra, só de pensar nisso Américo ficaperdido de todo. “Daqui a 30 min”, responde. Depoisliga para a Mãe e inventa uma história sobre ter de ir àsfinanças e à segurança social, e que tem de ser já porcausa de uns prazos que estão a cair, senão ainda pagauma multa do caneco, e que era um grande favor e tal,e que o miúdo vai dormir sossegado o tempo todo, sódeve acordar daqui a duas ou três horas, e a Mãe lá dizque sim, que mal acabe de almoçar vai lá para casatomar conta do “Joaquinzinho”.

“Mãe, por favor.”“Do ‘Joaquim’, estava a brincar.”Passada meia hora, Américo atravessa o jardim da

Praça da Alegria, um jardim decrépito que parece saídode um sonho, grandes árvores torcidas, empedernidasraízes negras, e é como se o sangue lhe corresse todo dopeito para os braços e dos braços para as mãos, tal a von-tade de agarrar a mulher.

A pensão não tem nome, nenhum letreiro cá fora.À senhora careca atrás do balcão, Américo diz que vaiao quarto 6, que “a pessoa” está à espera, e a senhora in-clina a cabeça na direção das escadas.

“Américo”, diz ela ao abrir a porta.“Carla…” diz ele, em choque só de a ver, “Bruna”.

Uma mulher difícil de lembrar completamente, uma mu-lher-surpresa que lhe faz sempre subir a adrenalina a ní-veis perigosos. De frente para ela, tão perto, Américotem medo de desmaiar como um apaixonadito do século

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dezanove. Uma Carla Bruna que, comece-se por ondese quiser, pelos olhos maus, pelos lábios bons, pelo pes-coço nu ou por aquele sinal branco na recurva interiorda nádega, é sempre interminável. Um cheiro morenoque entra pela boca, pela pele; fica-se dentro de umoutro ar, o cérebro cheio de um oxigénio melhor e maislimpo. A vida tão mais fácil de perceber assim: umacoisa que se pode tocar, agarrar, virar ao contrário, oh.Américo não é nada de mariquices, mas uma vez queveio do quarto dela até lhe deu para a poesia. Começavacom: “Carla Carla Carla Carla/ Sabes que és a minhaBruna/ Essa coisa que me mata/ Como a tens tão boa epura?” Já não se lembra do resto, mas não era nada máe rimava até ao fim. Nunca lhe mostrou, claro, não háesse tipo de complicações entre eles, compromissos epalavrinhas. Ela não lhe pede nada e ele dá-lhe só o quedá e só quando lhe apetece. Ela manda-lhe a mensagemde vez em quando, “XXX?”, sempre a mesma, “XXX?”,e é tudo.

À saída dos encontros no quarto 6 da Praça da Ale-gria, ele deixa-lhe umas notas dobradas debaixo docandeeiro, e é tudo.

Não que ela alguma vez tenha pedido dinheiro.Nem é porque tem de ser, porque é assim que as coisasfuncionam, porque ela é a Carla Bruna, a grande es-trela da noite do submundo lisboeta e ele é só ele, não.Não, ele não se sente um cliente com ela, de maneira ne-nhuma. Deixa-lhe o dinheiro dobrado com todo o res-peito, meio escondido, preso debaixo da base do can-deeiro de latão, só porque sim. Porque gosta dela asério e porque sabe que ela precisa, que lhe dá jeito.Um dinheirinho pequenino só. Uma ajuda simbólica.

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Que o trabalho dela lá no Club Erox é, segundo julgasaber, bastante mal pago e bastante irregular e, enfim,não lhe dá garantias de qualquer espécie.

Quando chega a casa, a Mãe, que se reformou oano passado de um cargo intermédio numa companhiade seguros, está com o neto ao colo a ver um filme-ca-tástrofe dos anos setenta. Um vírus transmissível peloolhar, corpos que explodem sem razão.

“Isto não é um bocado violento para ele?” “Ainda não percebe. E, então, conseguiste resolver

tudo?” “Oh”, diz Américo, “nunca se resolve tudo-tudo...”E, ao ouvir isto, a Mãe deixa aparecer um sorriso le-

ve, muito leve, giocôndico. Desconfiará de alguma coisa?

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NOME COMPLETO

No dia seguinte Américo vai mesmo às finanças e àsegurança social. Tem de voltar a “abrir atividade” sequer receber o belo cachê do filme Queres Ser PaulGiamatti. Os tipos não lhe pagam sem recibo, é umaprodução a sério, mesmo profissional, e para ter reci-bos, pois, é preciso “abrir atividade”, de maneira que láse enche de coragem e vai à vida.

Leva o Joaquim no carrinho-de-bebé para ter “aten-dimento prioritário” e passar à frente nos serviços pú-blicos. É um alto truque mas não chega a ser falcatrua.O miúdo é filho dele e ele é pai do miúdo e é assim queo mundo funciona. Além do mais, Joaquim não se im-porta nada, até gosta. Vai de chupeta na boca, num sonode olhos abertos, a apanhar a cidade na cara, cada por-menor, tantas cores, tantas casas, tantos brinquedosgigantes.

“Nome completo.” “Américo Santos Sousa Silva Abril.”Uma mulher de cabelo curto e olhos de cinzeiro por

despejar dá-lhe uma folha para a mão. Um papel A4cheio de quadrados e riscas como um desenho daque-les mais contemporâneos. Para “reabrir atividade”, ex-plica, ele tem primeiro de completar o formulário a dizerquem é, quais os seus números de identificação nos di-ferentes planos da relação cidadão-Estado, qual a sua

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morada, profissão, estado civil, agregado familiar, nívelde formação, rendimento anual, estimativa de mais--valias para o ano em curso, se possui outras fontes derendimento e quais, se está inscrito em algum tipo deassociação profissional e qual, se tem alguma dívida aalgum organismo da órbita pública e se é pequena oumédia ou escandalosa, se passa muito tempo fora dopaís e onde e porquê, se alguma vez exerceu algumafunção pública, se gosta mais de praia ou campo, ho-mens ou mulheres, prosa ou poesia, ópera ou futebol,Pessoa ou Camões, Eusébio ou Amália, e em que diade que ano é que “fechou atividade” (preencher em por-tuguês com letras maiúsculas e bem legíveis por favor).

Ao meio-dia, como combinado, encontra-se comMurilo e Andrade-Pinto na esplanada do Pinóquio.Quando chega, a empurrar o carrinho do miúdo, já elesvão para a segunda imperial. “É a última”, diz Andrade--Pinto, “que ainda tenho de ir trabalhar”.

“A sério?” espanta-se Américo. “Onde?” O outro solta uma gargalhada, “Um brinde aos

totós deste mundo!”“Chh, não o acordes.”“Doutor Andrade-Pinto, então?” diz Murilo. “Não

acorde o menino Joaquim...” É um amigo de infância, o Murilo, o único dessa

época de quem Américo não perdeu o rasto. Um rostocomprido, de um moreno amarelado, olheiras eternas.É advogado. “Sim, nas horas vagas”, diz com estudadoembaraço sempre que a conversa chega aí.

“Chama-se Joaquim o puto?” pergunta Andrade--Pinto.

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Andrade-Pinto é outro que tal. Vive às custas damulher, que é dermatologista num dos melhores con-sultórios do país, e tem a mania que é artista. Tira umasfotografias de vez em quando, sempre sobre “temasabstratos” e procurando “trabalhar muito a luz”. Agoravira-se para Américo, espreitando por cima dos óculosescuros, “Chama-se Joaquim, é?”

“Sim, porquê?” “Ah, nada.”No carrinho o miúdo ressona. Tão minorca e com

tanto estilo. Uma pose entre o gangster e o fadista, chu-peta no canto da boca, nariz levantado, uma expressãogeral de excesso de confiança. Mesmo a dormir, conse-gue deixar todos de sobreaviso, cabrão do puto.

“Quem é que se lembrou do nome?” pergunta An-drade-Pinto.

“Joaquim?” pergunta Américo.“Quem é que achas?” pergunta Murilo.“Isso é para mim?” pergunta Américo.“Isso é para mim?” pergunta Andrade-Pinto.Murilo cala-se, bebe mais um gole de cerveja. Sorri

para dentro, dir-se-ia. “Foi ela”, responde Américo. “Foi a Joana, ela é que

escolheu o nome.”E, mal diz isso — a palavra “Joana”, a palavra “ela”

—, desaba uma tonelada de silêncio na mesa. Não olhammais uns para os outros, não arriscam dizer mais nada,valha-lhes Deus. Viram-se para a praça; quietinhos, a as-sistir à procissão de automóveis nos Restauradores.

Até nem se está mal assim, dentro de um pequenosilêncio, a beber uma imperial.

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No regresso, Américo compra o jornal com a foto-grafia do borracho internacional que vem ao nosso paísdar um “concerto imperdível”. Dobra-o com cuidado,guarda-o debaixo do braço. Está de manga curta e a carada cantante toca-lhe, ao de leve, na parte interior do co-tovelo. Uma cara tão macia. Mas, calma, não se dei-xa levar pelo entusiasmo. Faz cara séria e segue ca-minho. Não se vai pôr a admirar a fotografia da miúda napraça pública, à frente de toda a gente, ai isso é que não.

Chega a casa a suar, rebentado de empurrar o carri-nho do filho rua acima, rua abaixo, rua acima. Que dia,um sol de poema surrealista. Fecha a porta e tem de seapoiar à parede a recuperar. Expiração, inspiração. Jánão tem vinte anos, caraças. No carrinho, o filho olha-omuito espantado, como se respirar fosse uma obra dearte. “Está tudo bem”, diz-lhe Américo. Quer-lhe pare-cer que o miúdo está a engordar, a crescer rápido de-mais. Pesa que é uma coisa parva. Desaperta-lhe os cin-tos que o prendem ao carrinho, larga-o no chão. “Vai.”

Joaquim olha-o com aqueles olhos grandes, muitovivos, de desenho animado japonês.

“Vai, vai”, repete Américo. Ajuda com as mãos, ogesto de enxotar bichos, “À vontade, liberdade, vai àstuas coisas, vá.”

Mas o miúdo não se mexe. “Olha, faz como quiseres”, diz por fim, fingindo

indiferença, e senta-se no sofá a ler o jornal. É uma desilusão tremenda. Nas páginas interiores

só vem uma noticiazita ridícula sobre a turnê da estrelamundial e uma fotografia da mulher a sair do aero-porto da Portela, vestida até às orelhas, cheia de frio,que maldade. À volta, é tudo um paleio deprimente

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sobre o estado do país, as tensões que se agravam nosdiferentes setores, economia, educação, saúde, justiça,segurança, cultura. Grupos de desempregados que co-meçam a organizar-se em autodenominadas “associa-ções de pressão”, que ameaçam com “novos tipos demanifestações” e um espírito de luta “mais literal”. Pro-fessores descontentes que fazem greve de fome à portade escolas da província acompanhados de faixas comgrandes slôganes revolucionários e cartazes didáticossobre o sistema digestivo. Juízes fora dos tribunais, detoga, cantando palavras de ordem em latim, exigindomelhores condições de trabalho, melhores leis, maisrespeito. Américo não percebe o que se passa mas, derepente, é como se estivesse num outro país, num lugarque não reconhece, numa rua a preto e branco, e pas-sasse por ele uma multidão muito zangada com tudo,queixando-se de tudo. Uma multidão imensa numa por-tuguesíssima fúria ordeira chamando nomes a tudo, eele para ali sem saber se deve pôr as mãos nos bolsosou cruzar os braços ou fazer o quê, sem saber que tipode cara deve tentar pôr, um sorriso simpático e condes-cendente ou a máscara rígida de quem pensa e tem dú-vidas, ele parado no meio daquela multidão em movi-mento sentindo-se cada vez mais só e estrangeiro. Olhapara cima, para as flores das árvores, as maravilhosas flo-res de jacarandá, e quer mostrá-las às pessoas que pas-sam, “Olhem, que bonito…”, mas ninguém para, nin-guém o ouve. Uma multidão toda unida pela força deum Não. Uma multidão concreta e negativa feita degrandes manchetes e breves notícias, pessoas acabadasde sair de histórias reais, gente ainda marcada, aindasuja do pó negro das letras de imprensa, como que

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saindo de uma zona de guerra, de uma catástrofe, dosescombros de uma cidade destruída. Com um misto demedo e fascínio, Américo encosta-se ao tronco da ár-vore enquanto as pessoas passam. Seguem a um ritmobastante rápido e marcado, uma cadência forte. Eleouve os pés simultâneos no alcatrão, centenas, milha-res. Gente que assalta estações de serviço, caixas demultibanco e joalharias para ter o que comer, gente quequer uma casa ou algum tempo para poder estar emcasa, gente escura-assustadora ou branca-doentia oumulata-duvidosa, que ele não faz ideia de onde é queapareceu, tomando conta da rua, das avenidas, com osseus batalhões familiares, com os seus cheiros diferen-tes (cheiros em que a cidade e o campo se confundem,uma mistura estranha de sabonetes de marca branca eervas da berma da estrada), gente que assalta farmáciaspara dar remédios aos filhos e gente que assalta farmá-cias para se injetar com pó de aspirina, gente que veiode continentes espaçosos para os bairros de lata de cá,gente jovem e bonita e perfeitamente perdida, sem fu-turo à vista, sem nada que desejar, gente vestida comcombinações de cores inesperadas, gente que, pela ma-neira de andar e abrir a cara, se topa logo ter vindo deoutras culturas e tradições, da luz de outros dias, e eleencostado ao tronco a vê-los passar. Caras e corpos detanta diferença. Quer falar-lhes da Beleza, mostrar-lheso belo daquelas flores de jacarandá, como é belo de lá-grimas o lilás daquela flor contra o azul do céu de Lis-boa, quer apontar-lhes isso, dar-lhes a ver essa alegria,algo que lhes cole à boca um sorriso momentâneo, pelomenos, mas não dá, não consegue, ninguém lhe liga.Todos tão esperançados no tal Não da manifestação

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que não veem mais nada, não vale a pena. Como se umNão alguma vez tivesse dado alguma coisa a alguém.Na rua a preto e branco, na grande avenida abstrataque sobe para o parlamento do país, Américo Abrilagarra-se ao jacarandá a admirar as caras estrangeirasou suburbanas, pobres ou de classe média, que vãopassando a repetir Não, Não, Não, enquanto lhe cho-vem flores lilases na cabeça e nos olhos e ele começa aouvir o grito muito agudo do filho, “O que é que foi?”,e fecha o jornal.

Joaquim não responde, claro. Ainda não sabe falar.Só sabe gritar e chorar, e também sabe fazer as duas coi-sas ao mesmo tempo.

“Não chores”, diz-lhe o pai. “Vá lá, mais não…” Mas o miúdo não para de berrar. Olhos fechados,

boca aberta. Uma expressão igualzinha à velha mon-tanha-russa de Entrecampos. Estará com fome?

Américo tira o prato de comida bege-esverdeada queJoana deixou pronto no frigorífico, mete-o no micro--ondas a aquecer, aí vem o grande momento. Tem deconvencer a criança a provar daquilo. Senta-a na cadeira--de-bebé, luta para conseguir apertar-lhe o babete deplástico à volta do pescoço. E agora o grande momento,o momento da comida propriamente dita.

Joaquim recomeça a guinchar mal vê o prato com apapa feia.

“Percebo-te muito bem, puto. Eu também guin-chava se me dessem isto...” Américo fala em voz baixae com uma entoação alegre e infantil para que o filhonão perceba o exato sentido das palavras. Não que eleperceba já muitas palavras, mas nunca fiando. Encheuma colher daquilo, daquela pasta verde-esbranqui-

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çada, sopra para a arrefecer um bocado, não vá o miúdoqueimar-se, e, muito devagar, teatralmente, tentandoque o filho lhe dê atenção e se cale com a gritaria, levaa colher na direção da boca. “Aí vai o aviãozinho...”

A colher da comida aproximando-se da boca imensae Joaquim, o orgulho do seu pai, o filho tão querido —olhos cómicos numa expressão de dúvida que durauma eternidade, grande expetativa —, zás, cospe tudo.Desastre, merda. Américo fica todo sujo, porra, a ca-misa Marca Registada cheia de bocados de papa esver-deada, e o chão também, ai, o tapete afegão que Joanacomprou pela net.

E o miúdo a gritar cada vez mais. “Come!” ordena-lhe Américo. “Tens de comer,

estás a ouvir?”Mas o filho não se comove. Chora ainda mais alto e

bate com as mãos no tabuleiro da cadeira e esforça-sepor puxar o sangue para a cabeça e lança um guinchonovo, ainda mais agudo, lancinante, um grito que re-benta uma corda qualquer nos lobos temporais do pai,uma dor inimaginável. “Desisto!…” suspira Américo.

Mas o miúdo não se cala, nem assim. Grita com umdesprendimento desumano, animal. Um filho aindacom a falta de cerimónia das criaturas das grutas, dasflorestas, das noites originais.

Américo levanta-se, de punho fechado. Só querbater-lhe. Dar-lhe um toquezito, a ver se ele fecha a ma-traca, se aprende a etiqueta mínima. Mas claro que não,não lhe vai bater, o raio do puto ainda nem tem dois anos.Baixa a mão e mete tudo para dentro.

A criança a gritar sem parar, uma tortura.

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Américo vira-lhe costas, vai à janela. Imagina que ador que sente é o ouvido interno a sangrar. Deve estarmuito perto do limite inferior de loucura. Aquele pontoabaixo do qual não há volta a dar-lhe. Vê o filho a ema-grecer de dia para dia, de hora a hora, de boca fechada,fechada. O filho mau como as cobras e amado mais quetudo. As pernas e os braços, uns palitos; as costelas cadavez mais salientes; os ossos da cara e do crânio à vista,quase; os olhos fora das órbitas. Vê a doença, o desâni-mo, a morte, o vazio, meu Deus, “Abre a boca, Joaquim!”

E o miúdo, nada.“Joaquim, estás a ouvir o teu pai? É uma ordem!” Não, tem de tentar qualquer coisa diferente. Coça

a cabeça, olha a criança tresloucada. Mas o quê? A viada suavidade, do amor, da ternura e da compreensão?

Um pouco a medo, aproxima-se do filho, baixa-seao nível dos olhos dele e, de joelhos no chão frio, conta--lhe a história do Menino Morto: um esqueleto fran-zino de olheiras até ao chão que falava numa língua sóde consoantes, “wrtpsfghjklçzxcvbnm”, babava-se de es-puma amarela pelos cantos da boca e assustava todosos meninos vivos. Fala-lhe de uma Lisboa apocalípticade céus roxos, casas esburacadas e famílias que têmmedo de cruzar olhares com outras famílias na rua.Gente que não olha à volta para não ser apanhada pornenhum monstro. “E um belo dia o Menino Morto vaidar um passeio ao centro da cidade e o que é que acon-tece?” Agora sim, ele presta atenção. Ah, pois. Ouve a his-tória de terror que o ator vai inventando e, embasbacado,feliz da vida, come a papa verde que a mamã preparoupara o papá lhe dar. Tudo até ao último pingo nojento.

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ISTO ESTÁ ÓTIMO

A Joaninha é uma joia quando quer e uma belezaquando pode e tem uma postura muito direita e ele-gante sentada a qualquer mesa de jantar. Aqui está elaem casa dos Rodrigues, conversando animadamente coma anfitriã, Mariana Rodrigues, sobre fraldas, boiões defruta e cremes especiais para bebés e crianças. E roupase roupinhas e vacinas e borbulhas e biberons e máqui-nas de bombear leite dos peitos maternos. É demaispara ele. Américo bem olha para Mário Rodrigues embusca de alguma espécie de compreensão, cumplicidade,consolo, mas o amigo não parece nada incomodado coma conversa. Um sorriso bondoso, apalermado.

Sem assunto, Américo vira-se para o que tem noprato. As batatas a murro estão ótimas. “Isto está… mag-nífico”, diz.

Mas é como se estivesse no fundo de um poço numdeserto imaginário.

Um mistério dos mais curiosos, este. Parece ab-surda a ideia de um murro poder alterar o sabor de umalimento — e, no entanto, cá está, é mesmo isso. De-pois de esmurrada, a batata descobre a sua personali-dade secreta, o seu ponto de equilíbrio, digamos, a suavocação. De um momento para o outro, revela-se a suanatureza complexa, uma sofisticada arquitetura de sa-bores, cheiros, cores, texturas, consistências e formas,

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uma complexidade da qual nunca suspeitaríamos aocontemplar o banal tubérculo no saco de rede verme-lha que trazemos do supermercado. Só se percebe ex-perimentando: pega-se numa batata, assa-se a batatacom casca e tudo os N minutos que a tradição prescrevee, no fim, espeta-se-lhe um murro como deve ser. Umapancada intensa mas contida, corajosa mas serena. O mi-lagre é garantido. Sob os nossos olhos, de repente, umabatata nova, ao mesmo tempo dura e mole, afirmativa esubmissa, compacta e oferecida. Uma batata comoestas tão saborosas nos pratos de porcelana nórdicados Rodrigues. Um amor de batata: o estaladiço-surpresada casca contrastando tão maravilhosamente com o ho-mogéneo-previsível do interior, a superfície lisa do ladocortado à faca convivendo tão felizmente com o coraçãoporoso que desaba de mansinho para receber o azeitecom alho, oh, ah. Ao lado, o bacalhau cortado numaposta retangular, não demasiado alta, com a quanti-dade certa de sal, no meio-termo ideal e dificílimo entreestar só “salgado” e ter “sal a mais”. E, sobre isso tudo,ui, o azeite com alho, a grande estrela. Um gosto quefaz pensar em dias antigos, a luz do fim do dia, cidadesem chamas, gente morena, boas rugas e outras imagensdo género. Mas Américo não vai por aí. Seria precisoum poeta a sério, um verdadeiro talento lírico, paraevocar tal mistério com todas as letras. E, de qualquermodo, não se fala de boca cheia.

“Há lá umas meiinhas e uns sapatinhos de um ta-manhinho, tão miniminhos, nem imaginas”, diz Joana.

“Oh, onde?” pergunta Mariana. “Não queres ir co-migo lá ver, amanhã ou assim?”

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E o marido Rodrigues ouve aquilo e não diz nada.Não faz nada. Sentado na mesma posição, a sorrir um sor-riso benevolente e desfocado. Andará a comprimidos?

Conhecem-se há quinze anos, os quatro. Eram ogrupo Coisa Nenhuma, uma organização informal queinventaram para coisa nenhuma, só para dar nome aosseus encontros de tempo livre e conversa fiada. Diziamuns aos outros “hoje há reunião da Coisa Nenhuma,não te esqueças”, ou “a Coisa Nenhuma junta-se amanhãà noite no Cinema King, para ver o novo Jarmusch”.Acreditavam que iam fazer revoluções estrondosas,obras-primas de um novo viver, imaginavam-se eterna-mente livres das convenções dos pais e avós, acredita-vam que continuariam sempre muito juntos, construindouma “utopia real e diária de amor livre”, muito mais“verdadeira”, muito mais parecida com o “pensamento--desejo” de cada um deles, etc. E agora aqui estão, a brin-car aos casalinhos e à gente crescida e às roupas debebé em promoção. Américo sente as lágrimas a subi-rem-lhe aos olhos.

Seja como for, o tinto é glorioso. Veja-se como rodano copo, com tanto corpo e tanta cor. Américo prova-oprimeiro, um gole, dois, e depois bebe-o todo de umavez. Mário encara-o com um sorriso de peixe congelado.

“Com licença…” diz Américo. E foge para a casade banho.

Lava a cara com água fria a ver se se anima. Ouveas vozes das mulheres ao longe, na sala, “pacotes gran-des”, “vales de desconto”, “naquele hipermercado”, esó lhe apetece gritar e bater nas paredes de pastilha azul--piscina até as mãos sangrarem. Fecha os olhos, tenta

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acalmar-se. Vai passar, está tudo bem, já vai passar. Res-pirar fundo, calma.

O som da cidade muito distante, por baixo do sus-surro do respirador no teto da casa de banho. Automó-veis suaves, bandeiras de roupa nas cordas. Deve estarum dia bonito lá fora.

Em frente ao espelho, de olhos fechados, Américopõe a mão dentro das calças e pensa na Carla Bruna.Vê-a sentada na cama, sem roupa da cintura para cima,a fumar como se estivesse sozinha. Olhos quase tristes.Virada para o quadrado de luz da janela, concentradanalguma ideia terrivelmente prática. Américo pensanela, na cabeça dela, nos mamilos escuros dela, no des-prezo que ela sabe mostrar por ele e pela vida em geral,e aos poucos — de repente — aos poucos — de re-pente — um sol dos diabos ali também. Sim, de re-pente o sol toma a casa de banho dos Rodrigues, um soltão silencioso e tão bom. Tão repentino e tão pacífico etão bom. Até que alguém bate à porta.

“Tudo bem?” É a Joana. “Está tudo bem, Américo?” “Sim, obrigado. É só uma... uma complicação in-

testinal, querida, vou já.”Ouve os passos dela a afastarem-se (sapatos pretos

de tacão fino que custaram 375 euros, viu no extratodo cartão de crédito) e, mais longe, na sala, as gargalha-das da Coisa Nenhuma. Não quer sair dali. Não e não.Não quer sair dali por nada deste mundo.

Há uma cena um bocado parecida no Queres SerPaul Giamatti. Américo, isto é, o Paul Giamatti do se-gundo nível, está na casa de banho de uma grandemansão em Los Angeles. É uma daquelas festas queconhecemos dos filmes, com música aos altos berros,

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cocaína, gente nua na piscina, esse tipo de convívio, eele fica fechado na casa de banho. A porta tem umamaçaneta em forma de mão. Giamatti olha para aquiloum bocado à rasca. Enche-se de coragem e tenta rodá--la. Mas a coisa não mexe. É uma mão, não é uma ma-çaneta. Que coisa. A descoberta macabra apanha-o aoretardador. Uma mão? A mão de quem? O ator-perso-nagem começa a ficar agoniado, a suar como um porco(grande plano de grossas gotas de suor escorrendo-lheda careca para a testa), está a hiperventilar, não há arsuficiente naquele espaço tão fechado, tão apertado,tão mau.

Na festa as pessoas riem, de copos na mão, denta-duras perfeitas.

Giamatti tira um papel do bolso, desdobra-o. TrêsPassos Para Controlar Os Seus Ataques De Pânico. Lêo primeiro passo, “Tente controlar a respiração”, e agoraé que começa mesmo a entrar em pânico. Doem-lhe osolhos por dentro, atrás dos globos oculares (grandeplano dos olhos muito abertos em expressão de terrorseguido de grande plano da parte de trás dos globosoculares com veias a arder, tudo numa estética de es-curo-trevas e verdes-luz a lembrar as imagens de bom-bardeamentos no Iraque), e decide que só tem uma hi-pótese. Gritar. Mandar a vergonha às urtigas e gritar omais alto que consegue, a pedir ajuda, socorro, a ver sealguém o salva, por favor.

Mas a música está a bombar, ninguém ouve nada.Meu Deus, vai morrer ali, uma morte tão estúpida. Não,não pode ser. Grita mais alto. Chora e grita ao mesmotempo. Bate com os punhos fechados na porta, desespe-rado, bate com a cabeça.

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Do outro lado, nada. Só o pum-pum feliz da mú-sica de dança.

Está no chão a babar-se quando Penélope Cruzabre a porta. “Posso, está livre?” pergunta a estrela es-panhola, que, ao vê-lo naquele estado, troca o sorrisopor uma expressão de asco e, logo a seguir, pena. Comose ele fosse um pobre marcado para morrer.

Giamatti sai de gatas, um cão triste, e ela, “Com li-cença…”, fecha a porta.

Cá fora, levanta-se, sacode as mãos, pensa “suicídio”(grande plano da cara de otário do ator-personagemcom a palavra “suicídio” a piscar-lhe na testa), procuraa grande cozinha na grande mansão do grande produ-tor, abre o grande frigorífico, saca o grande bolo dechantilí e atira-se a ele como um bicho raivoso.

À noite, em casa, Joana pergunta-lhe se não achoua Mariana mais gorda.

“Mas ela está grávida, não é?”“Mesmo assim...”“Sim”, diz ele. “Sim, talvez.”Quando a mulher fecha a luz, ele não fecha os

olhos. Não se rende tão facilmente. Vira-se para cima,espera um momento para se habituar à escuridão, e põe--se a admirar as as suas “coisas de luz” no teto. Todas asnoites mudam, é um mistério. Hoje têm a forma depontos que aparecem e desaparecem, muito rápidos.Pequenos círculos bruscos e cómicos, lembram aquelaspessoas que não fazem nenhuma ideia de como devemmexer o corpo para dançar, para reproduzir um movi-mento que possa ser percebido como algo parecidocom dança, mas que, ainda assim, que se lixe, tentam.

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