O vazio juridico: genese e extinçao do direito no taoismo laoziano.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
ANDHRÉ-LUIZ TISSERANT CAVAZZANI
O VAZIO JURÍDICOEnsaio sobre a gênese e a extinção do direito no taoísmo laoziano
CURITIBA2009
2
ANDHRÉ-LUIZ TISSERANT CAVAZZANI
O VAZIO JURÍDICOEnsaio sobre a gênese e a extinção do direito no taoísmo laoziano
Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do bacharelado no Curso de Direito da Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig.
CURITIBA2009
3
EPÍSTOLA
Desconfie dos autores que querem dedicar-lhe um livro.
Honoré de Balzac – Code des gens honnêtes.
Seguindo-lhe a preciosa advertência, refugo meus intentos e os aniquilo
com as palavras de duas personificações da contrariedade, ambas ligadas ao
curso e à precisão: uma ao Curso contínuo, que lentamente se dilui ao alcançar a
eternidade; outra ao curso arriscado, veloz e poluente de nossa Era:Não dar preferência aos homens capazes
impede que o povo conteste.Laozi
Tomado pela resignação diante de minha incapacidade e da pouca valia
de minha obra, de nada serve tanto a admiração quanto a contestação alheias, e
encerra-se a possibilidade de qualquer um ser destinatário de algo já preterido a
priori, restando-me apenas dedicá-la nos ríspidos termos daqueles que falam a si
mesmos na incontestável coerência da sinceridade:- Pra quem eu dedico?
- Eu dedico pra mim, *or*a!Nelson Piquet, ao comentar seu
primeiro título mundial de F-1, em 1983
Tal sinceridade, contudo, exige o desbaste do orgulhoso ímpeto dos
vitoriosos, pelo que se retorna à proposição inicial até não restar, da desconfiança
de mim mesmo, outra opção que a renúncia à qualquer menção epistolar:Spinoza, recusando a pensão, observou, calmamente, que não
lhe seria possível lisonjear um homem que não admirava.
Will Durant, sobre uma generosa soma oferecida por Luis XIV
caso dedicasse seu próximo livro à “Resplandecente Alteza”.
4
GRATULAÇÃO
Agradeço ao Vazio Contemplativo.
5
LAURÉIS
Já que não posso mais do que agradecer ao Vazio, evidencie-se, num
espaço próprio, o modesto laurel ao continente Abya Yala1 e a seus povos
autóctones.
Hoje já se sabe, com os avanços no estudo antropológico, que a origem
dos ancestrais indígenas de nossa civilização pertence ao oriente, mais
propriamente à Polinésia2, e que, anteriormente à invasão européia, navegadores
chineses promoveram incursões culturais nestas porções do mundo3,
miscigenando o sangue tropical antes que fosse coagulado com a brutalidade
ocidental do estupro:[...]Contra os índios, todas as armas foram usadas com
generosidade: disparos de carabina, incêndio de suas choças,
1 Da explanação constante na página da Wikipedia em língua espanhola e inglesa: “Abya Yala es el nombre dado al continente americano por la etnia Kuna de Panamá y Colombia antes de la llegada de Cristóbal Colón y los europeos. Aparentemente, el nombre también fue adoptado por otras etnias americanas, como los antiguos mayas. Hoy, diferentes representantes de etnias indígenas insisten en su uso para referirse al continente, en vez del término "América". Quiere decir "tierra madura", o según algunos "tierra viva" o "tierra en florecimiento".
Idêntico é o sentido expresso em:
“El uso de este nombre es asumido como una posición ideológica por quienes lo usan, argumentando que el nombre "América" o la expresión "Nuevo Mundo" serían propias de los colonizadores europeos y no de los pueblos originarios del continente”.
E, na seqüência:
”The Aymara leader Takir Mamani suggested the selection of this name (which the Kuna use to denominate the American continents in their entirety), and proposed that all Indigenous peoples in the Americas utilize it in their documents and oral declarations. "Placing foreign names on our cities, towns and continents," he argued, "is equal to subjecting our identity to the will of our invaders and to that of their heirs." The proposal of Takir Mamani has found a favorable reception in various sectors.”
2 E. Dussel. Hipotesis... pg. 32.3 Em 1421, ao menos quatro grandes expedições chinesas, dispondo de frotas em número superior ao de todas as Armadas européias somadas, já haviam explorado todos os continentes e fincado bases avançadas na Austrália, África e Abya Yala. São numerosos os registros europeus de objetos e mesmo indivíduos chineses encontrados ao longo da ocupação do Novo Mundo. Além disso, os primeiros navegadores europeus obtiveram mapas completos dos oceanos através do comércio nas rotas da Seda que levavam ao Oriente.
6
e depois, de forma mais paternal, empregou-se a lei e o álcool.
O advogado se tornou especialista também na espoliação de
seus campos, o juiz os condenou quando protestaram, o
sacerdote os ameaçou com o fogo eterno. E, por fim, o
aguardente consumou o aniquilamento de uma raça soberba
cujas proezas, valentia e beleza Alonso de Ercilla, em seu
'Araucana', deixou gravadas em estrofes de ferro e jaspe.
Pablo Neruda - Confesso que vivi.
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A 14 de outubro de 1865, os chefes e líderes que restavam aos
cheyennes do sul e arapahos, assinaram o novo tratado
concordando com a ' paz perpétua'. O artigo 2 do tratado dizia:
'Fica plenamente estabelecido pelos grupos índios aqui
reunidos... que doravante cederão, sem dúvida, quaisquer
reivindicações ou direitos... a ou sobre o território demarcado
como se segue, isto é: começando na junção dos braços norte
e sul do rio Platte; daí, do braço norte ao cimo da cadeia
principal das montanhas Rochosas ou até aos montes
Vermelhos; daí, para o sul, ao longo do cimo das montanhas
Rochosas, até a parte superior do rio Arkansas; daí, para
baixo, pelo rio Arkansas, até o Cimarron cruzar o mesmo; daí,
ao lugar do começo. Esse território é o que proclamam ter
possuído originalmente e que nunca contestarão por esse
título'. Assim, os cheyennes e arapahos abandonaram todas as
reivindicações ao território do Colorado. E essa, sem dúvida,
foi a significação real do massacre de Sand Creek4.
4 Dee Brown – Enterrem meu coração na curva do rio. Pg. 91 - Incursão comandada pelo coronel J.M. Chivington em 28 de novembro de 1864 contra aldeias arapahos e cheyennes pacificamente acampadas num braço do rio Sand Creek, e compostas majoritariamente de velhos, mulheres e crianças. No alto de suas cabanas tremulavam flâmulas brancas e uma bandeira dos Estados Unidos de Abya Yala (E.U.A.Y.), hasteadas pelos indígenas como prova do tratado de paz com o homem-branco. Rompendo esse pacto com o falso pretexto de que as aldeias haviam furtado cavalos, Chivington atacou e dizimou-as, mutilando as genitálias e retirando o escalpo dos mortos. Ao massacre, presenciado por oficiais atônitos que se negaram a seguir as ordens do coronel e depois testemunharam contra ele, seguiu-se a ocupação final das terras do Colorado e o tratado do qual fala a citação. Violações a acordos anteriores, extermínios, ocupações e a imposição de novos tratados degradantes que reduziam os indígenas à condição de prisioneiros foram uma prática sistemática durante o processo de colonização das terras do norte abyayalano.
7
Portanto, é nessa improvável e genocida conjuntura que se exsurge a
reflexão sobre a obra de Laozi, sem que se esqueça seu nevrálgico intento, o de
se insinuar numa incursão cultural similar à dos antigos navegadores chineses
sobre o universo abyayalano ao qual estamos constritos.
Entende-se como aliado, e também se o homenageia, o Curso da Grande
Literatura, que jamais se inebriou5 com os desvios fáceis do destino, e
determinou, artisticamente, a inexorável asfixia da realidade pendente sob o
cadafalso da história.
Em decorrência desse movimento, saúda-se por fim a lei, essa pústula de
pavor grafada em artigos de latão e brita, e seus fiéis mucamos – sejam líderes
tribais, advogados, juízes, legisladores ou juristas - que entornam sem descanso
as teorias omeléticas da coação social vindoura, pois, sem eles como inimigos,
não se poderia proceder à elíptica-crítica do direito que fundamenta este trabalho: Não pode haver maior desgraça no mundo que converter-se, a
um doente, em veneno a teriaga que tomou para vencer a
peçonha que o vai matando […] E tal é o que acontece em
muitas Repúblicas do mundo, e até nos reinos mais bem
governados, os quais, para se livrarem de ladrões – que é a
pior peste que os abrasa -, fizeram varas que chamam de
justiça, isto é, meirinhos, almotacéis, alcaides; puseram
guardas, rendeiros e jurados; e fortaleceram a todos com
provisões, privilégios e armas. Mas eles, virando tudo de
carnaz para fora, tomam o rasto às avessas e, em vez de nos
guardarem as fazendas, são os que maior estrago nos fazem
nelas, de sorte que não se distinguem dos ladrões que lhes
mandam vigiar em mais senão que os ladrões furtam nas
5 Essa visão, embasada em uma experiência de leitura das obras clássicas, e aplicada à parcial exegese da realidade e dos instrumentos jurídicos de controle social, está em flagrante oposição com a da professora Vera Karam de Chueiri em sua dissertação “Philosophy, law and literature: crisscrossings and interweavings”. Nela, afirma, parafraseando Martha Nussbaum, que a literatura é um meio de maquiar o grotesco e o excêntrico inerente às coisas, e conclui, através do discurso de Dworking, que, utilizando desse artifício, o direito pode ser “inebriante”: “...through the chain of law it is possible to arrive to a better answer to conflicts, ambiguities, paradoxes and aporias – also – without sacrificing law, justice and democracy […] my argument ends by showing that legal discourse experiences a sensation of inebriety provoked by strong shots of literacy...”. Pg. 93.
8
charnecas e eles no povoado; aqueles com carapuças em
rebuço e eles com as caras descobertas; aqueles com seu
risco e estes com provisão e cartas de seguro […] E eis aqui
como os que têm por ofício livrar-nos de ladrões vêm a ser os
maiores ladrões que nos destroem.
Anônimo do século XVIII – Arte de furtar.
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Que seria de nós se o mundo fosse povoado exclusivamente
de pessoas honradas, ricas, de bons sentimentos, tolas,
piedosas, políticas, simples, dissimuladas? […] A gendarmeria,
a magistratura, os tribunais, a polícia, os tabeliães, os rábulas,
os chaveiros, os banqueiros, os oficiais de justiça, os
carcereiros, os advogados desapareceriam como que por
encanto. Quer faríamos então? Quantas profissões repousam
sobre a má-fé, o roubo, o crime! Como matariam o tempo
aqueles que gostam de ir aos tribunais para ouvir as defesas,
para acompanhar o cerimonial dos julgamentos? Todo o estado
social repousa sobre ladrões...
Honoré de Balzac – Code de gens honnêtes.
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Depois dos médicos, vêm imediatamente os rábulas ou
jurisconsultos. Eu não saberia dizer-vos ao certo se esses
supostos filhos de Têmis precederam os sequazes de
Esculápio: disputam a precedência entre si. O que é fora de
dúvida é que os filósofos, quase que por consenso unânime,
ridicularizam os advogados, e, com muita propriedade,
qualificam essa profissão de 'ciência de burro'.
Erasmo de Rotterdam – Elogio da loucura.
9
EPÍTOME
Ensaio que trata, inicialmente, de uma breve compreensão dos aspectos
essenciais do sistema filosófico de Laozi, pormenorizando sua dimensão mística,
religiosa e cosmológica; na seqüência, e a partir de um paralelo didático com a
dialética hegeliana e a teoria marxista, sofrendo influxos filosóficos que vão de
Voltaire a Spinoza e de escritores como Borges e Balzac a Dostoiévski,
prossegue com a aplicação peculiar do taoísmo sobre as categorias sociais de
amor, justiça e moral, evidenciando, por fim, sua apropriação para uma crítica à
permanência da ordem jurídica.
Termos para pesquisa: Laozi; Taoísmo; Jusfilosofia; Extinção do direito.
10
АБСТРАКТ
Испытание, которое первоначально кратко понимания ключевых
аспектов философской системы Лаоцзы, подробно остановившись на его
мистическое измерение, религиозных и космологических, в
последовательности, и из параллельного обучения с гегелевской диалектики
и марксистской теории, страдающим приток начиная философской от
Вольтера до Спинозы и писатели, как Борхес Бальзака и Достоевского, по-
прежнему с применением уникальной даосизма на социальные категории,
любви, справедливости и морали, показывая, наконец, ее ассигнования на
критику незыблемости права.
Слова для поиска: Лао-цзы, даосизма, философии Правовые, прекращение
законов.
11
ÍNDEX
EPÍSTOLA..................... 3 GRATULAÇÃO................... 4LAURÉIS....................... 5 EPÍTOME........................... 9АБСТРАКТ.................... 10 ÍNDEX................................ 11
I. ANTELÓQUIOS: NA NASCENTE DO CURSO, O DELTA DO CURSO.......................12
II. O LIVRO DO CURSO...................................................................................................16II.I. NU COM A MÃO NO CURSO: LAOZI............................................................. 16II.II. NO LEITO DO CURSO: CORRENTEZA MÍSTICA........................................ 19
II.II.I. O “DAO”............................................................................................. 19II.II.II. O “DAO” E DEUS..............................................................................24II.II.III. O “DAO” E O EU.............................................................................. 26II.II.IIII. O “DAO” E LAO.............................................................................. 29II.II.IIIII. O “DAO” E A ALMA....................................................................... 30
II.III. NA IMANÊNCIA DO CURSO: I CHING......................................................... 34II.III.I. A DOUTRINA YIN-YANG: “XINGA O I CHING!”.............................. 42
II.IIII. NOS MEANDROS DO CURSO: MAROLAS DIALÉTICAS......................... 45II.IIII.I. O “DAO” FILOSÓFICO................................................................... 45II.IIII.II. O “DAO” A-DIALÉTICO................................................................. 47
III.O LIVRO DO CURSO E DA VIDA............................................................................... 57III.I. ÀS MARGENS DO CURSO E DA VIDA: O TRIUNFO DA VONTADE.......... 59
III.I.I. O “DAO-DE”: CORAÇÃO SEM AMOR, IGUALDADE SEM JUSTIÇA, CONSCIÊNCIA SEM MORAL..................................................................... 59III.I.II. O “DAO-DE”: LIDERANÇA SEM AÇÃO.......................................... 68III.I.III. O “DAO-DE”: ANARQUIA SEM VIOLÊNCIA.................................. 72
III.II. NO AÇOREAMENTO DO CURSO E DA VIDA: REJEITOS JURÍDICOS.... 77
III.II.I. NO LODAÇAL DO CURSO E DA VIDA: A ANFÍBIA RESISTÊNCIA MARXISTA.................................................................................................. 85III.II.II. A CHEIA DO CURSO E DA VIDA: MONÇÕES LAOZIANAS......... 93
IIII. ILAÇÕES: NO DELTA DO CURSO, A NASCENTE DO CURSO............................ 100
ESCÓLIOS MEDITATIVOS............................................................................................ 101
12
I6. ANTELÓQUIOS: NA NASCENTE DO CURSO, O DELTA DO CURSO.
A caminhada de mil milhascomeça diante dos teus pés.
Laozi.
Chama-se “monografia” por imposições de estilo já negligenciadas, mas
se trata de uma tentativa de ensaio místico, pois tanto seu conteúdo quanto sua
composição distam de quaisquer padrões dissertativos para o conhecimento
acadêmico, preterindo as etapas da famigerada “metodologia do trabalho
científico” em favor de inevitáveis e sempre duvidosas impressões individuais
retorquidas, locupletadas e conjugadas com as teorias consideradas adequadas
para desvelar a complexidade da exegese dos aforismas taoístas diante dos
paradogmas7 ocidentais.
Muitos estudos partem das mais limitadas e deturpadas vertentes do
taoísmo (taoísmo legista, taoísmo mágico, taoísmo meditativo, etc...), divergindo
da leitura integral e da interpretação cuidadosa dos elementos da obra original. É
por esse motivo que tanto comentadores posteriores como concepções oriundas
desses comentários foram preteridos em favor de uma leitura própria do Dao De
Jing8.
Em consonância com essa lição, e adicionada a exigüidade temporal para
6“I” é o algarismo romano equivalente ao numeral arábico “1”, mas também é o símbolo que representa a “mutação” nos pictogramas do “I Ching”. Por conta dessa identidade imagética, e por ser o taoísmo um monismo filosófico, optou-se por utilizar exclusivamente o algarismo “I” na numeração dos capítulos e subcapítulos deste ensaio. 7 Paradigmas divinizados, elevados ao ar rarefeito onde agonizam asfixiados os dogmas da
ocidentalidade. 8 Essa opção pelo taoísmo posterior, dignatário de desentendimentos decadentes voltados à perpetuação de dada ordem política e à sua redução a rituais que vão da magia ao vegetarianismo, é a considerada como válida na tese “Direito e Taoísmo” do professor da UFSC Paulo Roney Ávila Fagúndez, sobre a qual comentar-se-á oportunamente.
13
a conclusão do trabalho e os deletérios efeitos das minhas limitações teóricas,
seja no domínio da história da filosofia ou do idioma mandarim, reduziram-se ao
estritamente necessário tanto os objetivos quanto as referências. Nisso, nada há
de excepcional, vez que a bibliografia confiável e traduzida do Dao De Jing é
escassa, e o melhor é contar apenas com a obra original, relembrando-se da lição
de Jorge Luis Borges: El tiempo me ha enseñado algunas astúcias: [...] ignorar las
interpretaciones dudosas y leer siempre los clásicos.9
Mais do que tudo, existe uma simpatia monolítica pela filosofia taoísta,
dotada de um sistema filosófico completo e complexo, aforístico (e por isso coeso
e elegante) e altamente crítico, representando, sem dúvida, uma síntese possível
para as lacunas confusas deixadas pelo atual pensamento filosófico, além de se
constituir, segundo o mesmo julgamento, na mais radical proposta de pedilúvio
místico10 para os frágeis pés da racionalidade febril.
Em seu romance autobiográfico “Zen e a Arte de Manutenção de
Motocicletas”, o filósofo Robert Pirsig se antecipa e já conclui esta introdução: Naquele livro [Dao-de Jing] não havia coisas vagas e nem
imprecisas. Não havia sequer uma discrepância. Mais preciso
e definido, impossível.11
Espantosamente, Laozi resolve as armadilhas e contradições oriundas da
dimensão mediúnica de sua obra empregando o antigo estilo lacônico e poético
de transmissão do conhecimento, o mesmo que era a regra entre os pensadores
sofistas gregos, sendo “indicação do elevado nível [de seu] ponto de vista o fato
[…] de se limitar, falando do indizível, a alusões cujo desenvolvimento deve ser
deixado aos cuidados de cada um.”12
9 J.L.Borges. Elogio de la Sombra. Prólogo.10 “Místico” é aquilo que prescinde da explicação, descrição ou tentativa de apreensão meramente racional-científica, porque em si mesmo contém todas as complexidades inacessíveis ao conhecimento humano. Diferentemente do “metafísico”, fenômenos que podem ser indiretamente deduzidos, calculados, etc... (R. Pirsig. Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas, pg. 240). 11 R. Pirsig. Pg. 24212 R. Wilhelm. Pg. 32.
14
Eis portanto justificada, pelo próprio Laozi, minhas opções exegéticas e
compositivas.
Frise-se que a mudança no projeto levou em conta o esgotamento das
apreensões hegelianas e marxistas, não apenas porque são ícones vastamente
estudados e até certo ponto depredados por uma dispersão teórica e prática dos
seus seguidores13 - como também pela originalidade de uma abordagem do
fenômeno do esgotamento jurisdicional – inserido no esgotamento da
racionalidade eurocêntrica – a partir de pensadores imortalizados no Oriente.
É daí que Laozi se eleva, sôfrega e imperceptivelmente, “un pie y
despues otro pie”14, à condição de protagonista no marco filosófico essencial
deste estudo. E, sendo estudo a síntese da expressão latina “retirar de dentro”,
ninguém mais adequado do que o lendário filósofo de Qu Ren, que extrai da
contemplação de si mesmo o curso de todas as energias vitais e dimensões da
existência.
Sobre sua obra, metaforize-se que em todo o curso, bóia incólume um
livro de areia. No conto homônimo de Jorge Luis Borges, o livro de areia dispunha
de todas as suas páginas vazias, mas, à medida em que eram folheadas,
preenchiam-se com qualquer assunto imaginado e se multiplicavam infinitamente.
O leitor, então, adquiria uma incessante fixação pelo volume, logo convertida em
doentia paranóia, levando-o por fim a continuar o ciclo maldito, e, expurgando-o
de seus domínios, a entregá-lo de livre arbítrio para o próximo curioso.
Essa incursão literária digna dos piores juristas15 nada tem a ver com as
inclinações deste trabalho, senão que, embora seja o curso aquático a metáfora
13 Essa crítica é referendada por muitos autores exemplificados na New Left Review (Nova Esquerda Inglesa), sobretudo pela voz de E.P. Thompson, o qual afirmou a necessidade de se voltar a um marxismo ortodoxo, ao invés de o expandir despropositadamente para conhecimentos díspares, acessórios a uma revolução econômica e política, como fizeram no conjunto de sua obra filósofos quais Althusser, Poulantzas, dentre outros. Sobre a dispersão do hegelianismo, basta indicar as próprias críticas de Marx aos “jovens hegelianos” e, funcionando como contraprova, sua ode isolada a Feuerbach: “Feuerbach é o único que tem para com a dialética hegeliana um comportamento sério, crítico, e o único que fez verdadeiras descobertas nesse domínio, ele é em geral o verdadeiro triunfador da velha filosofia” (Marx, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Pg. 117).14 J. Cortázar. Manual de Instrucciones. Como subir una escalera. 15 Marcelo Barbosa, amigo há longo tempo emigrado para a universidade parisiense, costumava dizer que os vícios retóricos dos juristas reduziram à condição de prostitutas dois gigantes da literatura universal: Neruda e Drummond.
15
mais recorrente no taoísmo, é útil visualizar nas prolíficas folhas em branco do
livro de areia a marca da inesgotabilidade característica ao Dao-de Jing.
Arte minimalista, música dodecafônica, geometria fractal, biologia
molecular, quiromancia, arquétipos psicanalíticos, cabala, teoria das supercordas,
efemérides zodiacais, medicina homeopática, etc... poderiam facilmente integrar-
se à análise taoísta da vida. Contudo, por obrigações de ofício, alguns dos temas
menos interessantes, embora igualmente válidos, como filosofia idealista,
materialismo histórico, justiça, moral e direito, serão tratados a seguir.
16
II. O LIVRO DO CURSO
Rio raso, ruidoso. Rio fundo, silencioso.
Dito caipira
II.I. NU COM A MÃO NO CURSO16: LAOZI
Tudo o que eu digo, acreditem,
teria mais solidezse em vez de carioquinha
eu fosse um velho chinês.Millôr Fernandes
Laozi (Lao Tsu, Lao Tse, Laotze), ou “ancião”, é apenas um dos apelidos
que teve o filósofo precursor de toda a filosofia taoísta. Foi também chamado de
Ehr (orelha) e Lau Dan (velha orelha comprida)17. Seu nome de família é Li, mas o
nome completo é desconhecido.
A afirmação de Si-ma Tsién (163-85 a.C.)18 sobre Laozi: “A sua ambição
era esconder-se e permanecer anônimo”, não destoa da seqüência inferida dos
escassos fatos noticiados sobre sua existência, e tampouco de sua obra,
acentuadamente pessimista com a sociedade de sua época, como se apreende
da conclusão em sua biografia de poucas linhas: Laozi seguia o curso e sua virtude; seu ensinamento visava ao
16 Referência à famosa canção da banda Ultraje a Rigor. Contextualizando, diz respeito ao desnudamento da história pouco conhecida do filósofo que tomou o Curso em suas mãos, legando-nos uma incrível compreensão da origem cosmogônica e da crítica radical à sociedade.
17 Isto é, “velho professor”.18 WILHELM, Richard. Pg. 11.
17
ocultamento de si mesmo e ao anonimato. Residiu muito tempo
em Zhou. Ao perceber a decadência de Zhou, foi embora.
Chegando à fronteira, o guarda do passo, Yin Xi, disse: 'O
senhor vai ocultar-se, eu exijo que componha um livro para
mim'.
Então Laozi compôs um livro de duas partes, falando sobre o
curso e sua virtude, com pouco mais de cinco mil ideogramas.
Partiu. Ninguém sabe seu fim.
Assim como a maioria dos autores chineses antigos, sua vida se
confunde com a sua obra e com a lenda – somando-se à religiosidade advinda do
culto aos seus ensinamentos, e não são raras passagens relatando seu encontro
com Confúcio e até mesmo com Buda19.
Em relação ao primeiro, eram contemporâneos, e existem muitas
referências ao Dao-de Jing em Os Analectos (compilação das palestras de
Confúcio por seus discípulos), mas nenhuma relatando essa entrevista hipotética,
da qual se diz consensualmente entre os comentadores o seguinte:Lao-Tzu se manifesta de maneira bastante depreciativa em
relação aos heróis antigos, que eram ídolos venerados de
Confúcio”, para então sentenciar: “O senhor afaste seu ar
arrogante, seus excessivos desejos, suas atitudes maneiristas
e suas intenções libertinas. Nada disso é de proveito à sua
pessoa. É o que lhe tenho a dizer, nada mais.20
Ao que Confúcio, impressionado, responde com uma silenciosa
despedida e, posteriormente, confessa aos seus pupilos: [...]Chegando ao dragão, eu não posso saber como, galgando
o vento e as nuvens, sobe ao céu. Hoje eu vi Laozi. Como se
parece com o dragão.21
19 “Nas discussões posteriores entre as duas religiões, ambas afirmavam que o fundador de uma religião teria aprendido com o fundador da outra. No entanto... seria impossível qualquer contato pessoal de Lao-Tzu com Buda. No quadro histórico devem ter sido inseridas situações posteriores.” WILHELM, R. Pg.
20 SPROVIERO, M.B. Pg 9.21 Idem.
18
Fosse-se estabelecer um paralelo desse embate irônico entre Titãs do
Pensamento, haveria poucas comparações possíveis, talvez reduzidas à luta
entre Tífon e Zeus22 e, falando da nossa realidade, à ultrapassagem de Nelson
Piquet sobre Ayrton Senna, durante a qual retirou suas duas mãos do volante
sinalizando com os dedos médios erguidos para o oponente23. Numa continuidade
lendária, pode-se imaginar Laozi, com a vagarosidade draconiana de seu boi
preto, antepondo-se à carruagem de Confúcio enquanto, sorridente, gesticulava
no equivalente chinês.
Historicamente inconsistentes tais relatos, pode-se, contudo, entender
que essa oposição virulenta, embora estranha diante da importância insopesável
de K'ung Chung-ni24 para o pensamento chinês, é muito condizente com o teor do
Dao-de Jing, diametralmente oposto à crença k'ungchung-niana de que a virtude
moral e o caráter justificariam e aperfeiçoariam um modelo social complexo,
fundado em leis e instituições. Tal como é compreensível a admiração de
Confúcio, que manteve intocadas muitas das proposições de Laozi, embora,
como foi dito, acreditasse na evolução harmoniosa da sociedade diante do
progresso técnico do Homem.
Sobre as interrogações que recaem sobre a autoria, pode-se concordar
que “em última análise, essa questão não tem valor algum... o Tao-te King existe;
não importa quem o tenha escrito”25, sendo inegável não só sua existência, mas
também a sua originalidade, baseada na amplitude e na profundidade sem
precedentes de suas críticas e nos inúmeros autores taoístas posteriores que com
maestria discorreram exclusivamente sobre essa obra: Chuang-Tzu, Han Fe Tzu,
Huai Nan Tzu, e os imperadores da dinastia Han - Han Wen Di e Han Ging Di,
que deram ao livro o título “Dao-de Jing” e a divisão de seus aforismas em
capítulos.
22 Nessa luta, Tífon massacrou e humilhou Zeus, forçando todos os Deuses do Olimpo a se refugiarem covardemente.
23 Ocorreu durante o GP da Hungria em 1986, e é considerada uma das maiores ultrapassagens da história da F-1 por muitos grandes pilotos e especialistas no esporte.
24 Nome chinês de Confúcio25 WILHELM, R. Pg. 13.
19
II.II. NO LEITO DO CURSO: CORRENTEZA MÍSTICA
Não há livro duradouro que não inclua o sobrenatural.
Jorge Luis Borges
II.II.I. O “DAO”
Philosophy that turns awayFrom those who aren't afraid to say
what's on their mindsThe left behinds of the great society
Frank Zappa - Hungry freaks, daddy!
Brevemente dispostas as referências do autor, devem-se verificar os
princípios elementares do taoísmo, começando por uma explanação de suas
denominações, seguida da diferenciação essencial sobre a filosofia de Laozi e o
confucionismo, as religiões taoístas e outras apropriações posteriores de acento
taoísta.
A preferência pelo “curso” para descrever as etapas de aprofundamento
taoísta se baseia numa escolha recorrente do próprio Laozi para definir sua
doutrina, a água corrente: O maior bem é como a água.A virtude da água está em beneficiar todos os seres em conflito.Ela ocupa os lugares que o homem despreza.Portanto, é quase como o Tao [...]VIII
A relação entre o Tao e o mundo poder ser comparadaCom os riachos das montanhas e com as águas do vale,que se lançam nos rios e nos mares.XXXII
Entende-se que seja o curso aquático a representação por excelência
para representar a imanência do Dao: a água flui sem cessar num ciclo fadado à
20
eternidade, persevera porque contorna os obstáculos, e na suavidade contínua,
preenche os espaços vazios, acumulando-se nos baixios ignorados pelo Homem.
Porque é suave e está abaixo de tudo, por ser, em última análise, fraco, o curso
perdura. Nesse sentido: O retorno é o movimento do Tao.
A fraqueza é o efeito do Tao.
XL
Não deixa de ser curioso que a metáfora seja reincidente na dialética de
Heráclito: “um homem não toma banho no mesmo rio duas vezes” (pois nem o
homem, nem o rio serão os mesmos). O Dao vai além dessa compreensão, dá-
lhe unidade, porquanto o homem e o rio se transformam, reagindo
reciprocamente, o curso do rio e o curso do Homem – simbolizando o curso do
universo e o de toda a vida, são estáveis em suas transformações, e suas
mudanças são absorvidas pela lei imutável que as provoca, em conformidade
com o I Ching.
Laozi deixa claro que o uso do ideograma DAO (ou Tao) serve ao limitado
esforço humano de tudo nomear, inclusive o inominável: Procuramos por algo que não vemos [...]
Procuramos por algo que não ouvimos [...]
Procuramos por algo que não sentimos [...]
Essas três coisas são inseparáveis.
Por isso, entrelaçadas, formam o Um […]
Nascendo continuamente,
não se pode nomeá-lo.
XIV
----------
Há uma coisa que é invariavelmente perfeita.
Antes que houvesse Céu e Terra, já estava ali,
tão silenciosa e solitária.
Ela continua sozinha, imutável.
Corre em círculo e não se põe em risco.
Pode ser chamada de 'Mãe do Mundo'.
21
Não conheço seu nome.
Qualifico-a de Tao.
XXV
Damos por compreendidas todas as coisas de nosso mundo, sejam ou
não passíveis de serem conhecidas, nos limitados termos da linguagem. E nada
mais natural do que, no intento de denominar o absoluto, passando pelo tudo,
pelo nada e por todas as suas variantes, utilizar um termo de amplo significado
(caminho, curso, rota, via, passo, estrada, trajeto), extensamente recorrente na
língua chinesa e ligado à várias tradições.
Para K'ung Ch'iu26, por exemplo, dá-se-lhe o nome “Caminho” e significa
“[...] a soma total de verdades sobre o universo e o homem; e não apenas do
indivíduo mas também do Estado diz-se que possui ou não o Caminho. Como se
trata de algo que pode ser transmitido de professor para discípulo, é
necessariamente algo que pode ser colocado em palavras.”27
Mesmo assim, seu sentido é também apreendido em seus Analectos, pois
afirma: O mestre disse:
- As Odes são trezentas, em número. Podem ser resumidas a
uma frase:
“Não se desvie do caminho.”
Analectos, II, 2 e 297.
Na analogia laoziana, tais significados se ampliam, pois o ideograma
diretamente relacionado a “caminho” é LU (combinação dos ideogramas “pé” e
“cada” - “caminho percorrido”), enquanto DAO combina os ideogramas para
“cabeça” e “andar”, somando-lhe significações quais as de razão, espírito,
sentido, logos, dizer, falar, guiar, discorrer, curso, discursar, e assim por diante.
Esse termo, cuja utilização remonta à descrição de trajetórias celestes na
astronomia chinesa (para indicar seus movimentos ordenados, perfeitos), leva a
uma concepção “de liberdade absoluta, que se orienta somente por si mesma, ao
26 Outro nome chinês de Confúcio.27 D.C. Lau. Pg. 13.
22
passo que todas as outras coisas recebem o seu sentido de algo externo”28: [...]O Homem orienta-se pela Terra,
a Terra pelo Céu.
O Céu orienta-se pelo Tao.
O Tao orienta-se por si mesmo.
XXV
Embora a incessante busca por um uso de palavras que
correspondessem ao mais aproximado sentido possível da realidade fosse uma
preocupação constante tanto para Confúcio, na “retificação dos conceitos”, quanto
para Laozi, no “correcionismo”, ambos em oposição à crescente escolha pelo
“nominalismo”, que “considerava o nome algo puramente arbitrário que nunca
atingia a realidade”, Laozi apresenta uma “doutrina das noções […] que podem
ser, de algum modo, designadas por 'nomes', mas estes são, por assim dizer,
nomes ocultos impronunciáveis […]. Ainda assim, [através dos] nomes
pronunciáveis, quando bem escolhidos […] pode-se depois... transmitir, de certa
forma, a tradição e... preservar a continuidade do evento humano”:29
Quando a criação começou,
só então apareceram os nomes.
Os nomes também atingem a existência
e não sabemos mais onde é preciso parar.
Se soubermos onde parar,
não correremos perigo.
XXXII
Discute-se, pois, a correta denominação de tudo o que vem após a
criação humana, o talhar o bruto: o nome deve ser preciso, a linguagem deve ser
sucinta e, no plano político, o nome deve designar exatamente as funções. Como
o uso desordenado das palavras vai para além (ou aquém) da natureza humana,
é também um desvio do Dao.
Tais cuidados no trato lingüístico aproximam Laozi do rei Tâmus , cujo
28 WILHELM, pg. 12929 WILHELM. Pgs. 134-135.
23
célebre diálogo com Teuto foi descrito, a partir do relato platônico, por Erasmo de
Roterdã em “Elogio da Loucura”:Tendo o rei Tâmus perguntado a Teuto qual era a vantagem de
suas letras alfabéticas, este último respondeu:
- Servem para despertar a memória.
Ao que replicou o rei:
- Pois a mim parece justamente o contrário, porque os homens,
servindo-se desses caracteres, porão tudo no papel e não
conservarão nada na memória.30
Sua inclinação em refutar qualquer expressão excessiva dos sentidos -
vez que a intuição, como parcela individual do Dao, jamais é totalmente inteligível,
exclui não só a escrita como qualquer intervenção excessiva da criação humana.
Essa posição está evidente no aforisma V: . “{...} Porém palavras em demasia se esgotam ao serem
proferidas.
O melhor é guardar o que está no coração.”
Sendo o coração aos chineses apenas um dos órgãos responsáveis pela
apreensão através dos sentidos (tal como visão, paladar, audição, olfato e tato), e
algo tanto diverso de sua concepção “emocional” no Ocidente, traduz-se
imediatamente seu uso por Laozi, numa posição que é também referendada por
Erasmo: Como se houvesse sombra de verdade em que a natureza, tão
previdente e vigilante quanto ao pernilongo e até quanto às
ervas ou às florzinhas do campo, fosse esquecer-se
unicamente do homem, deixando de lhe fornecer tudo aquilo
de que precisa […] Eis porque, muito longe de contribuírem
para essa felicidade que se pretende apresentar como razão
de sua descoberta, as ciências são, ao contrário,
extremamente nocivas.31
30 Erasmo. Pg. 46.31 Erasmo. Pg. 47.
24
O escopo deste ensaio passará ao largo da crítica ao conhecimento e à
teoria da ciência, pois, permeando todo o Dao-de Jing, infere-se-a nos outros
aspectos que serão abordados. Resta, contudo, a menção de que não só a
repulsa é extensiva, como encontra ecos no bom, embora reduzido, pensamento
crítico ocidental, de Popper a Feyerabend, além dos filósofos abyayalanos da
libertação.
II.II.II. O “DAO” E DEUS
O Dao-de Jing, enquanto síntese-crítica da sociedade chinesa até o ano
520 a.C., acumula um vasto repositório de tradições antiqüíssimas, e sua forma
final foi, em grande parte, derivada das correções de Laozi às crenças espirituais
chinesas, e da grande influência das tradições místicas anteriores, quais o Livro
das Mutações32, o mais remoto escrito chinês.
Com base na sua hermenêutica peculiar dessa obra, como ver-se-á a
seguir, fundou a gênese da filosofia taoísta, recebendo também influxos das mais
antigas religiões hindus, como o jainismo e o budismo, compartilhando com elas a
desnecessidade criadora de Deus.
A manifestação evidente da reinterpretação religiosa de Laozi está no V°
aforisma: “Céu e Terra não são bondosos.
Para eles, os homens são como cães de palha, destinados ao
sacrifício.
O Sábio não é bondoso.
Para ele, os homens são como cães de palha, destinados ao
sacrifício [...].”
Neste aforisma, está explícita a menção à antiga religião animista33
chinesa, ou seja, o taoísmo primitivo, marcado pelo antropomorfismo, com
sacerdotes humanos (usualmente reis) elevados à condição de santos e espíritos
32 I Ching. Na tradução literal: “Obra Clássica das Mutações”. “Ching” é o mesmo que “King” ou “Jing”.
33 Sistema dos que consideram a alma como causa de todos os fenómenos vitais.
25
da natureza e dos ancestrais, que castigavam e perdoavam os homens
sucessivamente.
É relevante mencionar, na Ética de Spinoza, Parte V, “Da potência do
entendimento ou da alma humana”, a constatação alcançada, estupenda em
comparação com seus equivalentes ocidentais e em muito similar à de Laozi:Deus não tem paixões nem é afetado por nenhuma paixão de
alegria ou de tristeza.
Proposição XVII
Esse modelo religioso, com personagens de uma realeza heróica,
subordinados terrenos e rituais de purificação através de sacrifícios, no qual a
Entidade Divina possui consciência humana, não dista absolutamente de muitas
religiões mitológicas como a grega, por exemplo, e, apesar de “na China ... [ainda
ter] uma existência relativamente intacta”34, esgarçadamente ruiu com Laozi, que
promoveu sua substituição pela idéia mais elevada de que o Céu e a Terra não
são dotados dos erráticos sentimentos humanos, e estão para além das
condições estáticas e das meras oposições, para além de todo acidente e
desordem.
Por essa razão, “a imagem dos cães de palha do sacrifício caracteriza o
fato de que todos os seres são ricamente dotados para cumprir a missão da sua
espécie, o que, no entanto, nada tem a ver com algum 'valor pessoal' “35, vez que
tais bonecos luxosamente ornados e utilizados durante festivais e rituais
religiosos, eram abandonados e destruídos ao final dos eventos. Ademais, eram
reconstruídos nas comemorações seguintes, dando continuidade ao ciclo.
O animismo, ainda, conformou as religiões monoteístas, bastando para o
demonstrar as inúmeras menções feitas em todas elas à Ira Divina, mera ira
humana divinizada, exemplificadas em diversos trechos do Antigo Testamento: na
expulsão de Adão e Eva do Paraíso, na curiosa seleção natural divina dos
homens durante o Dilúvio, na transformação dos sodomitas em estátuas de sal,
34 WILHELM, R. Pg. 22. O animismo original permanece e dura no tempo das culturas orientais, sendo bastante considerado como elemento de coesão social, diferentemente do Ocidente, onde foi inferiorizado à categoria de “superstição”, sobretudo pelo cristianismo e judaísmo.
35 WILHELM. Pg. 180.
26
na condenação dos homens à incompreensão mútua a partir da destruição da
Torre de Babel, na punição de Davi por haver desposado a mulher de Urias, nas
últimas palavras de Jesus: “Meu Pai, meu Pai, por que me abandonastes?”, etc,...
É, portanto, a religião irascível, porém redentora, que inescrupulosamente se
assemelha e serve aos desígnios políticos dos reis.
Isso não indica, contudo, que menções a Deus não sejam feitas. A palavra
é prenhe de significâncias, e, em Laozi, adquire em alguns aforismas o poder de
sintetizar a relação natural (e posterior) que advém do curso do Céu e da Terra
em confluência com a Vida. Limitando-se a isso, “por enquanto, pode-se refletir
sobre o fato de que as velhas raízes inglesas good (bem) e God (Deus), que
designam respectivamente a Qualidade e o Buda, parecem ser idênticas.”36
II.II.III. O “DAO” E O EU
Essa alusão aos “cães de palha” leva à discussão de qual é o caráter da
filosofia de Laozi, seja aplicada à religião ou não, e as opiniões oscilam do
individualismo exclusivo à totalidade impessoal.
Embora nenhuma leitura do Dao-de Jing permita essas conclusões,
admite-se que seu estilo possa causar debate entre leitores alheios aos mistérios
de sua redação, vez que Laozi foi o primeiro autor chinês, e provavelmente um
dos primeiros no mundo, a se referir filosoficamente ao “eu”.
Para entendê-lo, é necessário explicar que as línguas antigas possuíam
uma terceira forma de expressar o sujeito: através da “voz média”. Laozi critica
tanto o “eu” ativo, que intervém no mundo, quanto o “eu” passivo, que é pelo
mundo regido. Wolfgang von Schöfer, aludido por Sproviero, apresenta um
panorama desse aspecto:Na língua chinesa, quanto mais se retroagir no tempo, mais
domina a voz média […] Num estágio anterior tínhamos a voz
ativa, a média e a passiva. Num estágio ainda mais remoto
tínhamos apenas a voz ativa e a média […] A forma inicial de
expressão seria a voz média. Esta corresponderia ao estágio
36 PIRSIG. Pg. 246.
27
em que o homem não se distingue do mundo; a ausência da
voz média, em nossa época, corresponde ao estágio em que a
separação é total. Não temos mais a possibilidade de exprimir
a relação homem-mundo. E o desaparecimento da voz média
dá-se, hipoteticamente, entre 500 e 400 a.C, durante a época
axial. Muitas noções (percepções) que eram concebidas
globalmente como atividade e repouso, hoje soam paradoxais.
Noé é, como Buda, aquele que é tão ativo que sua atividade é
repouso.37
Curioso notar que, com a progressiva sofisticação das sociedades e a
prevalência do Homem sobre o ambiente, a partir da referida época axial (cujos
pormenores serão descritos na parte “II” deste ensaio), a linguagem foi,
concomitantemente, perdendo sua complexidade e reduzindo cada vez mais seu
alcance descritivo.
O “eu” laoziano, portanto, não pode ser individual, pois expressa uma
relação homem-mundo que é inerente a todos os homens, ou, do contrário, “o
Dao, harmonizador universal, não harmonizaria os indivíduos.”38 Essa idéia está
em consonância com o budismo, que nega à personalidade o “atma” (eu
individual), e referencia-se no decorrer de todo o Dao-de Jing, especialmente no
trecho que cita o próprio Buda:[…]É por isso que o nobre tem como raiz o inferior
e o alto tem o baixo como fundamento.
Assim também os príncipes e reis:
Eles se dizem “solitários”, “órfãos”, “destituídos de mérito”.
Com isso eles indicam que sua raiz está entre os humildes.
XXXIX
Não indica também, como visto, uma negação abstrata do mundo, vez
que é através do “eu” que se promove não só a identidade com o mundo
sensorialmente apreendido, como sua superação, através da negação, no “eu”,
37 Sproviero. Pgs. 214-215.38 SPROVIERO. Pg. 219.
28
de todos os elementos artificiais criados pela cultura humana. Sendo esse “eu” no
mundo ou para além do mundo, será sempre idêntico aos demais “eus”, pelo que,
a partir da pessoa, conhece-se o seu mundo:[...]Quem for lembrado por filhos e netos
não desaparecerá.
A vida de quem cultiva a própria pessoa será verdadeira.
A vida de quem cultiva a própria família será plena.
A vida de quem cultiva a própria comunidade crescerá.
A vida de quem cultiva o seu país será rica.
A vida de quem cultiva o mundo será imensa [...]
LIV
Laozi compreende o mundo tal qual o corpo humano: é fonte de
calamidades, e por isso deve ser cuidado. Ao não desprezar o corpo, cultivando-o
mediante exercícios e supressão das vontades, não se perde nos labirintos da
abstração de Hegel, que, ironicamente, elaborou suas teorias encarcerado em
uma biblioteca, alheio ao mundo e à sua própria saúde.
Tal raciocínio irrompe no aforisma XIII, no qual a personalidade é
necessariamente corpórea, e, na sequência, também no III, onde existe a
prescrição sobre a atenção com a mente e o corpo:É porque tenho uma personalidade
que sofro de grandes males.
Se eu não tivesse nenhuma personalidade,
de que mal poderia sofrer?
Portanto: a quem honra o mundo em sua pessoa,
a esse bem se poderia confiar o mundo.
A quem ama o mundo em sua pessoa,
a esse poder-se-ia entregar o mundo.
- - -
[O Sábio] Enfraquece as vontades e revigora os ossos.
29
II.II.IIII. O “DAO” E LAO
Após Laozi, a religião taoísta, absorvendo parte de sua filosofia , elevou-o
à condição de figura mitológica do panteão chinês, num curioso ato de
contradição ao Dao-de Jing, cujos aforismas IV e XXV atentam para a
anterioridade do Dao em relação a Deus e, conseqüentemente, para a
impossibilidade de sua divinização ou personificação na forma de culto dos
antepassados.
“Ao afirmar que o Dao é anterior ao ancestral, Laozi procura evitar a
divinização do próprio homem.”, numa clara crítica ao título Di (ancestral
primordial) utilizado por todos os imperadores chineses.39
Tal divinização, contudo, deu-se de forma assemelhada ao budismo, na
figura de guia espiritual (Tai Shang Xuan Yuan Huang Di40 ou Tai Shang Lao
Jun41), aspecto bem diverso da que ocorreu com outras figuras búdicas, como
Jesus Nazareno42, por exemplo, pois “essa espécie de taoísmo, cuja principal
força reside no exorcismo e na magia (é) até hoje transmitido por herança, pela
metempsicose, na família Dchang, de forma semelhante ao dalai-lamismo.”
Ironicamente, nesses títulos canonizantes se infere o caráter místico da
reinterpretação religiosa de Laozi, e não mágica, de onde se conclui que “nada
disso tem a ver com Lao-Tzu, da mesma forma como a bondade do destino
impediu que ele fosse eleito papa do taoísmo.”43E, em outras palavras, mais
sintéticas a respeito das origens da religião taoísta:O taoísmo nada mais é do que a religião popular animista da
antiga China, que, mesclada com doutrinas hindus, foi levada a
um determinado sistema [...] que, ainda por cima, era diferente
39 O culto aos antepassados era admirado por Confúcio. A oposição laoziana está no aforisma IV: “Eu não sei de quem ele [o Dao] possa ser filho. / Parece ser anterior a Deus.” Deus (cujo sentido em Laozi é diverso, a depender do aforisma) recebe também a acepção de “ancestral” em várias traduções, indicando a crítica de Laozi à messianidade e à personificação de Deus.
40 “Sublime Imperador de Mística Ordem”.41 “Sublime Senhor Lao”42 Considerado uma reencarnação de Buda para os hindus. Há, na tradição hermética
trismegista, relatos sobre sua viagem para a Índia em busca do aperfeiçoamento espiritual, de onde, inclusive, o nome “Cristo”, “Krishna” em sânscrito.
43 WILHELM, R. Pg. 22.
30
em cada lugar e só em conseqüência da união política das
respectivas tribos constituiu um aglomerado.
E, sobre o papel da reinterpretação religiosa da obra laoziana:[...]não é o fundador da atual religião taoísta. O fato de ele ser
venerado [...] não nos deve confundir. É natural que, desde
tempos antigos, não faltassem pessoas na China que
soubessem inserir os seus próprios pontos de vista no Tao-te
King, quer tentassem unir os seus ensinamentos com os de
Confúcio, ou encontrassem nele uma tendência ao cultivo da
contemplação; quer buscassem ajuda para produzir o elixir da
vida ou a pedra filosofal [...], quer o utilizassem para as teorias
militares ou para o código penal, quer o relacionassem como o
politeísmo animista ou com determinados ritos vegetarianos ou
antialcoólicos ou compilassem do texto as fórmulas mágicas
para abençoar ou amaldiçoar, e até nos círculos das
fraternidades políticas secretas, que planejavam a queda do
poder constituído com o uso da magia dos espíritos, em
diversas épocas. Mas, como afirma com muito acerto um
erudito chinês, todas essas tendências não passam de
incursões na obra de Lao-Tzu.44
II.II.IIIII. O DAO E A ALMA
Embora já se tenha visto que é inegável sua originalidade, parte do Dao-
de Jing foi alterado, e mesmo alguns epigramas foram inseridos. Isso não
compromete de maneira alguma o texto, pois, embora longe de sua glória
primeva, essas modificações são bem conhecidas no conjunto da obra, e citam-se
não exaustivamente: a seção IV e a VI, atribuídas a Huang Di (2697-2597 a.C.), O
Imperador Amarelo, primeiro e lendário imperador chinês e ancestral da tradição
taoísta, cuja correspondência laoziana está na seção XXV, inegavelmente mais
densa e complexa; a seção XIII; a seção XXXI; e a seção LXXIV, sobre a qual
44 Idem. Pg. 21.
31
restam algumas suspeitas. Geralmente, essas seções são pormenorizações da
seção anterior, que buscam justificar determinada posição política como, por
exemplo, a pena capital (LXXIV completando a seção LXXIII).
Citaram-se tais modificações para exemplificar que o Dao-de Jing
também acumula conhecimentos espirituais transmitidos em outros tempos e
lugares. Esse fato não danifica a intervenção radical de Laozi contra a
religiosidade de sua época, mas, como já dito, dá-lhe uma dimensão ainda maior,
vez que o sábio de Gu Ren reinterpreta as tradições a partir de fontes ainda mais
antigas, preservando seus conteúdos.
O método precavido de somar entendimentos dá ao aspecto religioso de
Laozi uma enorme complexidade, que é também a complexidade de sua filosofia,
e que se pode demonstrar a partir do X° aforisma: Serás capaz de educar a tua alma para que ela abarque a
Unidade sem se dispersar?
Serás capaz de unificar a tua força e conseguir a delicadeza de
uma criança?
Serás capaz de purificar a tua visão íntima até torná-la
imaculada?
Serás capaz de amar os homens e governar o Estado de modo
que fiques sem conhecimento?
Serás capaz de, quando se abrem e se fecham
as Portas do Céu,
ser como a fêmea de um pássaro?
Serás capaz de, com a tua clareza e pureza interior,
Penetrar em tudo sem precisar de ação?
Produzir e alimentar,
produzir e não possuir,
agir sem guardar para si,
aumentar sem dominar:
eis a Vida secreta.
“Ficar sem conhecimento” refere-se ao conhecimento inato dos seres, o
mais elevado na doutrina taoísta – e igualmente considerado por Confúcio, de
32
onde se extrai a crítica ao conhecimento, especialmente o científico, e o governo
baseado na intuitividade e espontaneidade (“produzir e não possuir”, “agir sem
guardar para si”, “aumentar sem dominar”), implicando, sempre, “penetrar em
tudo sem precisar de ação”. Essa idéia, a não-ação (Wu Wei), é a mais importante
em todo o taoísmo, e será oportunamente considerada.
“Ser como a fêmea de um pássaro” é alcançar a espiritualidade. A
metafórica imagem alada é a mesma da pomba-branca no Ocidente,
representação do espírito-santo.
Embora soe aos aurículos academicistas mera curiosidade incidental a
classificação espiritual nas religiões chinesas, comprova-se essencial conhecê-la
na medida em que é requisito para compreender a natureza da unidade do Dao
De Jing, da “energia ativa que atua no tempo […] de maneira completamente
independente, numa liberdade que corresponde à própria lei da enteléquia”45,
devendo o leitor estar à par de todas as peculiaridades que lhe conformam o leito
qual limo neolítico para uma perfeita interpretação de suas inclinações filosóficas,
religiosas, sociais, políticas, econômicas, etc... Há duas almas atribuídas ao Homem: o Shen (animus) ou alma
imaterial que emana da parte celeste e etérea do cosmos e
consiste na substância Yang [masculino]. Quando opera
ativamente no corpo humano é chamado Qi ou “sopro vital” e
Hun, quando dele se separa após a morte; e o Gui (anima), a
alma imaterial que emana da parte terrestre do universo, Yin
[feminino]. No homem vivo opera sob o nome de Po e na morte
retorna à Terra.46
A compreensão dos Espíritos no taoísmo consiste em suprimir a
materialidade do Gui e estimular a imaterialidade do Shen. Em uma vida que flua
continuamente imersa no Dao, os espíritos não tomam a forma de espectros
(fantasmas ou demônios, diversos das almas dos mortos). É o se mostra em LX: Quando o mundo é governado de acordo com o Tao,
os mortos não andam por aí como espíritos.
45 WILHELM, R. Pg. 127. “Enteléquia” é a essência aristotélica da alma.46 J.J.M. de Groot, The Religions System of China, vol. 4, pg. 5. In SPROVIERO, M.B.
33
Isso não quer dizer que os mortos não sejam espíritos,
mas que seus espíritos não são nocivos aos homens.
E não só os mortos não são nocivos aos homens,
também o Sábio não lhes faz mal.
Quando, então, essas duas potências não se danificam
mutuamente,
suas Forças da Vida conjugam seus efeitos.
Logo, na harmonia, todos eles confluem suas energias beneficamente.
São nos períodos de convulsão social, descritos no aforisma LVII: “Quanto mais
proibições47 houver no mundo, / mais o povo empobrecerá”, que surgem os
fantasmas personificando essas desordens diante de tempos agitados, assim
como o messianismo corrupto dos “sinais e dos milagres”48, manifestações, em
todo o caso, abundantes na superficialidade do taoísmo animista.
47 A acepção é sem dúvida de tabus e superstições, vez que as proibições relativas às leis são citadas logo abaixo.
48 M.B. Sproviero. Pg. 251.
34
Falhando na interpretação do Dao-de Jing e sem conhecer a fundo outros
autores orientais críticos, Hegel ressaltou “a falta de liberdade interior” na religião
chinesa, veementemente combatida por Laozi em LVII e que desde então
encontrou outras vozes concordantes, como Cheng Yi Chuan, no século II d.C.49
II.III. NA IMANÊNCIA DO CURSO: I CHING
No, his mind is not for rentTo any god or government.
Always hopeful, yet discontent,He knows changes aren't permanent,
But change is.Rush - Tom Sawyer
O cerne da cisão filosófica e religiosa alavancada por Laozi, com a qual
se começou o capítulo anterior, está baseada no I Ching50, o Livro das Mutações.
Escrito em uma era imemorial, anterior à invenção da escrita literária, através de
um conjunto de oito signos primordiais conhecidos como “trigramas” (três traços
sobrepostos, indicando, primariamente, elementos e fenômenos da natureza),
que, combinados entre si, formam sessenta e quatro hexagramas (dois trigramas
sobrepostos, indicando o estado ou processo relacionado com a síntese dos
trigramas elementares).
Os traços combinados são indivisos ou contínuos, representando o
elemento criativo (celeste – masculino – pensar) e divisos ou interrompidos,
representando por sua vez o elemento receptivo (terreno – feminino - ser), e
49 M.B. SPROVIERO. Pg. 250. “Hoje acredita-se loucamente em maus espíritos, fantasmas e histórias fantásticas; isso só por não se iluminar previamente a razão”.
50 Tradução literal: “Livro Clássico das Mutações”. “Ching” é a mesma palavra que “Jing” ou “King”, e adjetiva na China todas as obras consideradas fundamentais. Existem suposições de que Confúcio assim chamava sua coleção de tais obras.
35
constroem “todo o mundo das constelações cronológicas”51, associando-se com
os elementos naturais (Céu, lago, fogo, relâmpago, vento, água, montanha,
Terra), com as direções (noroeste, oeste, sul, leste, sudeste, norte, nordeste,
noroeste), além de partes do corpo, relações de parentesco, estados mentais, e
assim sucessivamente.
A composição a partir de Kua (traços) integrados determina que o
“princípio mais importante do Livro das Mutações é o de que há uma relação
universal e harmônica entre o macrocosmo e o microcosmo”. Como se verá a
seguir, a reinterpretação oficial do I Ching desconsiderou, para fins políticos, esta
que é sua revolucionária, subversiva, e portanto natural conclusão.
Laozi, em sua análise original do I Ching, viu na natureza uma constante
não acidental, desordenada, estática ou mecânica, mas alternante e
transformativa, na qual está “o âmago e a Grande Polaridade (T'ai Gi), a unidade
que transcende toda dualidade, todos os fatos e mesmo toda a existência”52, a
partir das três mudanças comuns a todos os fenômenos: transformações cíclicas (um estado que passa ao seguinte mas volta a si como conseqüência da
mudança, qual o nascer e o pôr-do-Sol, as estações climáticas,...);
desenvolvimento progressivo (a despeito da passagem de um estado ao outro,
“a linha de desenvolvimento não retorna a si mesma […] cada dia de um homem
contém a soma das vivências antecedentes acrescidas da vivência de cada novo
dia”53); e a lei imutável a essas mudanças (os movimentos anteriores são
definidos, simples e graduais, e, por isso, a criação se dá “de maneira muito
suave e imperceptível, de modo que não se perde a visão geral”54. É essa
cadência no curso da criação que permite tanto a variedade dos fenômenos
quanto sua apreensão imediata pelos seres).
Nos termos do I Ching, os ciclos equilibram dinamicamente os opostos, o
desenvolvimento dos eventos é um processo e a lei imutável é justamente a
inevitabilidade da mudança, como precisamente definido por Neil Peart e Pye
51 R. Wilhelm. Pg. 126.52 R. Wilhelm. Pg. 126-127.53 R. Wilhelm. Pg. 127.54 Idem.
36
DuBois55, na composição que é a quintessência do Rock progressivo: “changes
aren't permanent, but Change is”. Os ciclos e os processos de desenvolvimento
estão permeados pela energia criadora que os faz renascer continuamente, e
essa força criativa é anterior a tudo, incluindo a Criação.
A contribuição marcante de Laozi foi definir essa energia, Wu Gi
(literalmente “infinito”, “sem fronteiras”, “definitivo”, “sem vigas”, ou, no
entendimento laoziano, não-princípio), por ele chamada de Dao, como o
fundamento de sua compreensão filosófica do mundo, pelo que o símbolo por
excelência do taoísmo é justamente o círculo vazio, indicador dessa negação, e
não o muitíssimo mais popular Taijitu, o diagrama bicolor mais usado para
representar o estado posterior Tai Gi (“grande viga”)56, desdobramento do
imanifesto para as oposições que permitirão a identificação da variedade infinita
do mundo manifesto
Assim, tem-se a explanação didática das três fases nas quais a Unidade
do Dao se desenvolve de imanifesto a manifesto, de não-ser a ser, de nada e
vazio ao mundo fenomenológico que, por sua vez, está inexoravelmente
vinculado ao Dao, pois é apenas o desdobramento das variedades imanentes da
Unidade:O Tao gera o Um.
O Um gera o Dois.
O Dois gera o Três.
O Três gera todas as coisas.
Atrás de todas as coisas há escuridão
e elas tendem para a luz,
e o fluxo da força dá-lhes a harmonia.”
XLII
55 Neil Peart, da banda Rush, é um dos grandes bateristas e letristas da história do rock, autor, em conjunto com o compositor Pye DuBois, da referida canção “Tom Sawyer”
56 São muitas as representações para o Tai Gi. Outra bastante popular é a versão chamada de Taegeukgi, vermelha e azul, presente na bandeira da Coréia do Sul.
37
Observe-se que a negação que marca o Antecedente de tudo não indica
negatividade, pois, como já foi visto, seu uso data de uma época em que ainda
existia a voz média como meio termo entre a afirmação e a negação absolutas, e,
com a degradação da linguagem, é a mera negação o meio que resta para
descrever aquele sentido que é em Laozi muito mais complexo e descritivo. Pela
mesma razão, não é também cético ou pessimista.
“O Dao anterior ao Um é, em sua ontologia, absolutamente
transcendente”, e, como decorrência, “o Um é o Dao em sua afirmação”. Ao
utilizar o termo “gerar”, Laozi dá à emanação criadora um sentido panteísta,
similar ao que se verá abaixo em Spinoza, embora indeterminado, pois a palavra
não implica o panteísmo por geração57, tal qual “criar” não implica o
criacionismo58. A questão primordial, portanto, permanece sabiamente em aberto,
e, mesmo permeando toda a filosofia do Dao-de Jing sem contradições, são o
principal alvo das críticas hegelianas que serão oportunamente colocadas.
Curiosamente, o trecho seguinte, conforme referido anteriormente, foi
“implantado” no Dao-de Jing por Laozi, e sua autoria é creditada ao Imperador
Amarelo, muito referido por seu domínio dos princípios do I Ching. Serve para 57 SPROVIERO, pg. 243: “O princípio criando o mundo de sua própria substância, como um
pai gera o filho de seu próprio sangue”.58 Idem: “Deus gerando tudo sem nada, nem de outro nem de sua substância”.
38
ilustrar como a interpretação do Livro das Mutações no taoísmo tem raízes tão
antigas quanto a própria China:O Tao flui sem cessar.
No entanto, na sua atuação, ele jamais transborda.
Ele é um abismo; parece o ancestral de todas as coisas.
Abranda a sua dureza.
Desata os seus nós
Modera o seu brilho.
Une-se com a sua poeira.
É profundo, mas como é real!
Não sei de quem possa ele ser filho.
Parece ser anterior a Deus.
IV
O pensamento ocidental mais próximo a Laozi parece ser o de Baruch de
Spinoza, o filósofo monista luso-judaico-holandês: “O mundo, perpetuamente, existe, é […] O mundo nunca foi
criado, nunca será destruído. Ele apenas, simples, profunda e
eternamente, é. Isso, pois, quanto à estrutura do mundo […] E
quem é Deus? […] Deus é o mundo. Ele tudo penetra, é
perpétuo e completo. Ele é.”59
Em sua colossal “Ética demonstrada à maneira dos geômetras”, Spinoza
identifica, tratando de Deus, sua substancialidade. “Deus é substância; ora, é da
essência da substância que ela existe; portanto é inconcebível supor que Deus
não existe”:“Deus, isto é, uma substância constituída por uma infinidade de
atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e
infinita, existe necessariamente.”
Proposição XI.60
59 Will Durant. Comentários à Ética... Pg. 412. O que interessa aqui é exclusivamente asseverar, em que pesem suas diferenças, a presença do monismo filosófico, como um elemento destoante e radical, também no pensamento europeu.
60 Spinoza Pg. 74.
39
Em Laozi, o Dao é em si tudo, mas também anterior à tudo e, portanto, a
Deus, uma construção religiosa que deturpa a busca pela essência, isso se não
tomado como um mero nome para descrever essa essência, o que são coisas
diferentes. Demonstrar esse aspecto, como faz exaustiva e heroicamente Spinoza
ao longo de seus escólios, tampouco é seu objetivo, pois a “demonstração” cabe
à cada um que reflita sobre si mesmo. É inegável, entretanto, que as conclusões
de Spinoza sobre a “substância” sejam muito próximas da unidade do Dao: A substância absolutamente infinita é indivisível; Fora de Deus
nenhuma substância pode ser dada e conhecida; Tudo o que
existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser
concebido.
Proposições XIII, XIV e XV.
Ao classificar a substância de Deus como eterna, infinita e indivisível,
Spinoza declara-se monista e contradiz a irredutibilidade dualista do pensamento
e da existência típica do cartesianismo, além de comprovar, por seus meios, que
Deus não é em si determinado, ao contrário do que diz Hegel apenas
reproduzindo os seus próprios valores religiosos.
Spinoza não diferencia os termos, talvez os tendo por complementares,
mas, no pensamento oriental, originalmente a partir da matemática hindu, “infinito”
identifica algebricamente aquilo que pode ser contabilizado, mas cuja
continuidade gera a necessidade de uma estimativa. Já o eterno é a substância
mesma da religião, inescrutável e além de todos os sentidos e de toda a
capacidade humana. Em uma palavra, é o Dao. Ao diferenciar os dois termos,
evitam as confusões comuns na razão ocidental, que muitas vezes toma infinito
por eterno e vice-versa, e classificações matemático-filosóficas quais “infinito
potencial” e “infinito real”.
Laozi vai, como é praxe, para além mesmo do valente Spinoza. Ser e
não-ser, manifesto e imanifesto, “do ponto de vista do Dao, são idênticos, já que
tudo nele é manifesto […]”, pois tudo pode ser contemplado. A cisão entre
pensamento e existência, portanto, inexiste em Laozi. Se Platão busca na
abstração do mundo das idéias, sob as sombras de vagas brumas, a
40
compreensão da realidade, em Laozi o interior de cada ser contém tal
compreensão, como sementes inconcebíveis e invisíveis na forma real, mas
inteiramente inequívocas, pois se transformarão inevitavelmente em árvores: [...] Dirigir-se para o “Não-ser” leva
à contemplação da maravilhosa essência;
dirigir-se para o Ser leva
à contemplação das limitações espaciais.
Pela origem, ambos são uma coisa só,
diferindo apenas no nome.
I
Mas a relação não é absoluta, em si determinada, dispondo de
complexidades desveladas de acordo com o prisma com o qual se a observa, pois
também, “do ponto de vista do sujeito finito, são correlativos [...]”:Se todos na Terra reconhecerem a beleza como bela,
desta forma já se pressupõe a feiúra
Se todos na Terra reconhecem o bem como o bem,
deste modo já se pressupõe o mal.
Porque Ser e Não-ser geram-se mutuamente [...]
II
E, “a fim de exprimir algo além do sujeito, o manifesto é subordinado ao
imanifesto”61:[…] Todas as coisas sob o Céu nascem no Ser.
O Ser nasce no Não-ser.
XL
É notável perceber que os princípios do Livro das Mutações e sua
interpretação no Dao-de Jing assemelham-se, dentre outras descobertas
científicas62, à lei da conservação das massas por Mikhail Lomonosov, plagiada e
reproduzida por Antoine Lavoisier na sentença: "Numa reação química que ocorre
61 B. Sproviero. Pg.62 Há uma impressionante relação entre os 64 hexagramas e os 64 pares
cromossômicos na espécie humana, dentre outras “coincidências”.
41
em sistema fechado, a massa total antes da reação é igual à massa total após a
reação", e em sua famosa variante filosófica: “Na natureza, nada se cria, nada se
perde, tudo se transforma.”63
Coube à Albert Einstein, com a sua teoria da relatividade, ampliar essa lei,
comprovando que em toda reação existem diferenças de massa compensadas
com a consequente liberação de energia. E o I Ching, antecedendo-os em pelo
menos três mil anos, estendeu o alcance dessa lei ao inimaginável, inclusive
indicando os contornos da “Criação”.
É precisamente “energia”, embora sua etimologia (do grego “trabalho”,
“realizar ação”) não traduza exatamente a misticidade energética que se busca
compreender, o que melhor qualifica as mutações do I Ching e o movimento
contínuo e imperceptível do Dao proposto por Laozi. Portanto, válido o
pensamento do cineasta, psicólogo, tarólogo e escritor Alejandro Jodorowsky:Hay un inconsciente individual, familiar, colectivo, social,
histórico, cósmico, y debajo de todo eso está ese ser, esa cosa
impensable que llamamos dios. Es energia, que no sabemos
que es, esta es nuestra base... e hasta aí podemos llegar.64
Eis uma das mais ilustrativas passagens indicativas dessa afluência,
precisamente comentada na seqüência pelo sinólogo germânico Richard Wilhelm:O espaço entre o Céu e a Terra
é como uma flauta;
vazia, ainda assim, inexaurível;
soprada, mais e mais sons produz.
V
Essas duas forças primordias das quais nasce, como terceiro
termo, o mundo visível, são o Céu e a Terra […], comparados a
um instrumento musical de sopro, do tipo da flauta.65 O
63 Anotações escolares de Andhré-Luiz Tisserant. Junho de 1998.64 Entrevista sobre seu livro “Psicomagia” com Fernando Sanchéz Dragó, da rede espanhola
TVE.65 Em algumas traduções, a alegoria utilizada é “fole”, que expande e contrai
ininterruptamente apenas com a passagem aérea do Dao.
42
instrumento mesmo é vazio, mas o sopro faz brotar dele sons,
e quanto mais é soprado, maior a variedade de sons
produzidos por ele. Todas as melodias infinitas surgem em
seqüência interminável, mas são captadas pelo instrumento,
que por si só não é som. A flauta é a Terra; o sopro, o Céu.
Quem, no entanto, produz o som? […] Em última análise, é o
Tao.66
Outro trecho de mesma inclinação é o do sexto epigrama, excerto
atribuído ao lendário Huang Di, o Imperador Amarelo (2697-2597 a.C.), um dentre
outros 8 governantes iniciais dotados de conhecimento sobre-humano e
considerado o ancestral de toda a etnia Han e da tradição taoísta:O espírito do vale não morre nunca;
ele é a mulher misteriosa.
A porta da mulher misteriosa
é a raiz do Céu e da Terra.
Ininterrupta, assim como perpétua,
ela age sem esforço.
O vale é a profundidade e o vazio, que, ao se preencher com o espírito,
adquire vida (matéria). A matéria por si só é a mera possibilidade de existência.
Pertence, pois, ao não-ser, ao Dao.
II.III.I. A DOUTRINA YIN-YANG: “XINGA O I CHING!”
A doutrina yin-yang é apenas um dos componentes da impressionante
cosmologia dos tempos do taoísmo pré-literário do Imperador Amarelo, e seu par
representa a materialidade terrena dos espíritos Shen e Gui.
Sua exclusividade doutrinária para fins de interpretação filosófica é muito
posterior, e derivada dos interesses escusos da política imperial tirânica em
reduzir o sentido original do taoísmo - não outro que vincular o homem à sua
natureza e, conseqüentemente, à liberdade e autonomia, aspectos sempre
66 R. Wilhelm. Pg. 133.
43
contrários ao controle e à dominação.
Assim nascia, com o karma dos natimortos, uma doutrina – jamais uma
filosofia – concretamente pegajosa e aparentemente conciliadora, com o intuito de
justificar na sabedoria ancestral chinesa os ególatras autocratas do futuro, em
nada semelhantes aos reis que inspiraram a figura do “Sábio” laoziano:“[...] poderíamos considerar esses pares [ser e não ser;
manifesto e imanifesto] como complementares, mas não dizer
que a realidade é uma união de partes em equilíbrio. Não se
deve confundir o pensamento de Laozi com a doutrina Yin-
yang da dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.”67
O lapso temporal da dinastia Han é imediatamente posterior ao
surgimento das motivações covardemente ideológicas que criaram o “yin-
yanguismo”, durante a dinastia Qin, iniciada por Qin Shihuang, o unificador da
China e, por tal razão, chamado de Primeiro Imperador. Foi mais conhecido no
ocidente por ter sido enterrado com seu megalômano exército de terracota,
devidamente acompanhado de um número desconhecido de serviçais e
concubinas mantidos vivos sob a terra para bem serví-lo na passagem para o
além.
Reinou no intervalo de 260 a 210 a.C, quinqüênio de tragédias
largamente superiores, para a historiografia chinesa, às provocadas pela
medonha Revolução Cultural de Mao Zedong: milhares de livros considerados
insurgentes foram queimados, juntamente com seus autores; milhares de
intelectuais e filósofos foram assassinados; obras gigantescas, incluindo a
precursora da Grande Muralha, foram construídas utilizando como mão de obra a
população local reduzida à escravidão; os livros clássicos que sobreviveram à
loucura piroclástica foram reinterpretados de maneira a justificar a centralização
política e a submissão forçosa dos demais reinos; discípulos renomados de
Confúcio e de Laozi foram exterminados como “cães de palha”, não sem antes
verem as obras de seus mestres serem deformadas para justificar a nova era de
tirania.
67 Sproviero. Pg. 213.
44
A respeito do imperador, proferiu, sem se exceder na angústia, o filósofo
confucionista Xun Zi: Qin possui o coração de um tigre ou um lobo; [e é] avarento,
perverso, ávido para o lucro, e sem sinceridade.
Apenas para instigar a curiosidade a respeito da crueldade desse líder,
diga-se que, mesmo depois de escavado todo o seu exército de terracota, a
tumba permanece (e provavelmente permanecerá) inviolável. No meio rural
chinês ainda são fortes as superstições que conectam a abertura do mausoléu à
liberação do espírito altamente vingativo do Imperador.
Por fim, o mítico Livro das Mutações foi também mutilado pelos coups de
pourquoi da dinastia Chin:O I Ching escapou da grande queima de livros feita pelo tirano
Ch'in Shih Huang Ti, no tempo em era considerado um livro de
magia e adivinhação, o que levou a escola de magos das
dinastias Ch'in e Han a interpretá-lo segundo outras visões. A
doutrina do yin-yang foi sobreposta ao texto.68
Eis resumidamente, os antecedentes de Mao, do Mal e da popular
doutrina reduzida à esfera bicolor do yin-yang que a ignomínia ocidental toma
como a grande contribuição filosófica do extremo oriente...
68 Acessado em 10 de maio de 2009 - http://pt.wikipedia.org/wiki/I_ching
45
II.IIII. NOS MEANDROS DO CURSO:
MAROLAS DIALÉTICAS.
II.IIII.I. O “DAO” FILOSÓFICO
Antes de se ater propriamente na superação da dialeticidade
característica do pensamento ocidental, volta-se brevemente à questão da
relevância de Laozi para o pensamento ocidental, e, logo após, do preconceito
relacionado à filosofia oriental.
Sobre o primeiro aspecto, diga-se apenas que Laozi, “em todo o seu
opúsculo, ele não cita algum nome histórico, tampouco se preocupa com o seu
momento histórico. Por isso ele desaparece, para a China, em nebulosas
distâncias, uma vez que ninguém lhe pode seguir o rastro. É justamente esse o
motivo pelo qual exerceu tão grande influência na Europa”, ao contrário de
Confúcio, centrado em sua realidade histórica, fartamente documentada nos
Analectos, tornando-se, dessa maneira, incompreensível fora dela. “Por essa
razão, ele é até hoje estranho à vida intelectual européia.”69
Há, evidentemente, muitos olhares vesgos do academicismo que, de
soslaio e sob as lentes espessas de óculos seculares, são lançados pelos
“Abades do Conhecimento”70 sobre uma apreensão multidisciplinar e a partir de
diversas tradições de conhecimento.
Hegel já demonstra a importância de seu aparecimento neste trabalho por
sua reação pueril (idêntica em Heidegger) a esse pormenor:“Em primeiro lugar, há a assim chamada filosofia oriental. Mas
ela não entra no corpo e no âmbito de nossa apresentação, ela
é apenas algo provisório de que temos de falar.”71
69 R. Wilhelm. Pg. 1570 Os intelectuais do claustro acadêmico. A expressão parece sensata, pois a origem de educandários para os conhecimentos específicos é religiosa, e a palavra “universidade”, do latim, representa o mesmo que “católico”, do grego, todas conduzindo às pretensões universalistas romanas e, depois, européias, e ao maior vício do pensamento ocidental: o de enxergar em si mesmo a origem e o destino de tudo, mesmo diante das evidências históricas que tornam a Europa, até a Era Moderna, a periferia do mundo conhecido.71 HEGEL, F. Preleções sobre a história da filosofia.
46
A réplica a essa venenosa destilação eurocêntrica - que, em nossa época,
chega a levar autores da afamada Escola de Frankfurt a afirmações
extremamente bizarras, como a que denega a importância do jazz em favor de
uma única música instrumental “verdadeira”, no caso a mumificada música
clássica européia - deve começar com a mais óbvia das constatações: “O que garante a objetividade do mundo em que vivemos é o
fato de que este mundo é comum a nós e aos outros seres
pensantes. Ao nos comunicarmos com os outros homens,
recebemos deles raciocínios harmoniosos já consagrados.
Sabemos que tais raciocínios não partem de nós, e, ao mesmo
tempo, reconhecemos neles, por causa da harmonia, o
trabalho de seres racionais como nós. E na medida em que tais
raciocínios pareçam adequar-se ao mundo conforme o
percebemos, podemos inferir que tais seres racionais viram o
mesmo que nós; eis porque sabemos que não estivemos
sonhando. É exclusivamente essa harmonia, essa Qualidade,
se preferirem, que constitui a base da única realidade que
poderemos conhecer.”(Pirsig, Robert. Obcit. pg. 255). 72
Imediatamente, verifica-se que a curiosidade humana, em diversos
tempos e por diversos gênios, direcionou-se exatamente sobre as mesmas
questões, impingindo-as com as mais variadas compreensões. E pouco há de
mais harmonioso nos fragmentos de sabedoria que acumulamos do que a “assim
chamada filosofia oriental”.
Toda vez que existe uma crise no conhecimento de uma época, isso
representa um esgotamento qual o que presenciamos agora e que já foi descrito
por milhares de autores passados e recentes. Do satírico Petrônio ao épico
Граф Лев Николaевич Толсто́й73, do escarnicador Voltaire à saga abyayalana
em Manuel Scorza, da dissonância de Tom Zé à vigorosa pintura de Klimt, todos
eles denunciaram, compartilhando um destino de isolado desgosto, os rumos
72 PIRSIG, Robert. Ob. Citada. Pg. 255.73 Na condição indiscutível de maior criador da literatura universal, Tolstói criou métodos pedagógicos originais e aderiu a uma filosofia de acento anarquista, baseada no pacifismo e no “não-fazer”, o que o torna legatário, como ele próprio confirmara, da tradição taoísta.
47
decadentes da humanidade.
Perceptível, pois, que a carência de novos paradigmas deve encontrar o
sendeiro dos caminhos que se polifurcam em muitos e outros pensadores de
muitos e outros períodos, pois, como referiu Pirsig, são homens como nós,
dotados de nossas habilidades, e são eles que materializam o único mundo (seja
ocidental, oriental, atlante ou ciclope) que nos é dado e que é por nós erigido.
A oposição comum, de feições torpemente hegelianas, de que
determinada compreensão filosófica sobre um tema, por pertencer a outros
modelos de espaço-tempo-civilização, deve ser desconsiderada filosoficamente,
não encontra, como visto, nenhuma justificativa racional, sendo incoerente em si
mesma e inútil para uma argumentação crítica.
Por mais que supostamente não exista uma chamada “filosofia oriental”,
devemos atentar, seguindo a trilha dos bodes de Enrique Dussel74, que a filosofia
da qual geralmente os europeus se consideram herdeiros legítimos, tampouco
gotejou do Mamilo da Ásia75, mas da Ásia Menor, nas colônias persas da Grécia,
já imiscuída de tradições milenares como o pensamento egípcio, o mais influente
na história de boa parte do mundo conhecido76.
II.IIII.II. O “DAO” A-DIALÉTICO
Para compreender o porquê de se situar a obra de Laozi numa análise
conjunta também de Marx e de Hegel, será necessário apontar as críticas que
fazem entre si, num lento desvelar de interessantes semelhanças e abissais
diferenças, evidentemente cabendo a mim o papel de interpor a suave e
devastadora torrente do córrego laoziano, vez que limitações físicas impediram
sua argüição nos tempos modernos.
Sobre tais e quais hegelianismos abstratamente enraizados na
consciência ocidental falar-se-á exaustivamente na seqüência, antecipando-se,
contudo, a bovina e cáustica baba elástica pendente na crítica de Marx, referente
74 1492: El encobrimiento del otro.75 Referência anatômica à condição peninsular da Europa em relação à Ásia. 76 Não é à toa que as Escolas Ocultistas e Maçônicas veem nas tradições egípcias a chave
para a compreensão da cultura ocidental.
48
à “racionalização” de elementos que não poderiam ser supra-sumidos e/ou
considerados a partir da razão:“Por um lado, a existência que Hegel supra-sume na filosofia
não é, portanto, a religião, o Estado, a natureza efetivas, mas a
própria religião já como um objeto do saber, a dogmática,
assim como a jurisprudência, a ciência política, a ciência
natural. Por um lado, portanto, está em oposição tanto à
essência efetiva quanto à ciência imediata não filosófica ou aos
conceitos não filosóficos desta essência. Hegel contradiz,
portanto, seus conceitos correntes.”77
É com base nessa perspectiva que Marx gradualmente desenvolve a
transposição da dialética idealista-histórica para a sua dialética materialista-
histórica, cujo cerne se encontra no prólogo da “Contribuição à crítica da
economia-política”, que trata da revisão crítica da filosofia do direito de Hegel: “Mi investigación desembocaba em el resultado de que ni las
relaciones jurídicas ni las formas de Estado pueden explicarse
por si mismas ni por la llamada evolución general del espíritu
humano, sino que radican em las relaciones materiales de
vida, cuyo conjunto resume Hegel, siguiendo el precedente de
ingleses e franceses del siglo XVIII bajo el nombre de
'sociedad civil'.”78
Necessário, também, antever as linhas a serem percorridas nessa
tentativa de imersão taoísta para uma crítica generalizada à totalidade ocidental -
tanto por não ser a totalidade que se nomeia79 quanto nem propriamente ocidental
- e, em conseqüência, à teoria e prática jurídicas.
É notável que os estudiosos orientais vejam em Hegel, e não em outros
77 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Pg. 131.78 K. Marx. Obras Fundamentales, I. Prólogo. Pg. XII. 79“O Tao que pode ser pronunciado
Não é o Tao eterno. O nome que pode ser proferidonão é o Nome eterno.[…]Pela origem, ambos [ser e não-ser] são uma coisa só,diferindo apenas no nome.”
49
autores, como Heidegger80, uma espécie de concepção intermediária entre as
vertentes filosóficas imensamente distintas da Europa e da Ásia Média (península
índica) e Extrema (China, Indochina e Japão).
Isso porque Hegel resolve o problema filosófico sob a perspectiva do
“Espírito Absoluto”, da mesma maneira que “o Vedanta dos hindus, o Caminho
dos Taoístas, e até o Buda […] considerados monismos absolutos, semelhantes
ao que Hegel idealizara”81.
Apesar disso, difere do monismo oriental ao aniquilar seu alcance
imaginadamente “universal” com o determinismo característico da racionalidade-
positivista-científica do século XVIII. Mas é esse ímpeto de retorno ao metafísico
(embora imperfeito em Hegel, vez que não compreende sua indeterminação
essencial, ou seja, não abrange sua misticidade) que o torna mais próximo do
pensamento oriental clássico do que nenhum outro.
Pode-se claramente apreender na dialética hegeliana não apenas um
retorno às concepções esquecidas de Heráclito, buscando a plenitude na relação
das contradições que “ao mesmo tempo que se antagonizam, também se
identificam”82, mas a similaridade de suas fases (tese, antítese, síntese) com a
tríade das transformações do Dao (O Dao gera o Um. O Um gera o Dois. O Dois
gera o Três)83.
Contudo, o que mais o assemelha a Laozi é a construção idealista de seu
sistema totalizante, que “subordina a dialética ao espírito”84. E já se procede à
errata, vez que não há propriamente subordinação, como indica a pedagogia
superficial de obras acadêmicas meramente descritivas, mas a insuficiência do
idealismo para explicar a dimensão espiritual. Esse dilema foi percebido por Hegel
tanto quanto por Laozi, e, embora de forma mais simplória, também Marx se
80 Uma abordagem sobre a técnica em Heidegger basta para compreender tais motivos, pois sua crítica a uma ilusão de ciência natural aplicada enquanto técnica condiz com a concepção taoísta de que a técnica é “irromper o ser, cultivar o ser”, ao invés de “montagem e fabricação de idéias” (Sproviero, B.M. pg. 32-33).
81 R. Pirsig. Pg. 240.82 Ávila Fagúndez, Paulo Roney. Direito e Taoísmo. Pg. 297. Nota 577.83 R. Wilhelm. Pg. 133. “O movimento dialético de Hegel, que abrange a tese, a antítese e a
síntese, no qual a síntese se converte em tese e ponto de partida da continuidade, baseia-se rigorosamente na mesma concepção enunciada por Laozi.”
84 Ávila Fagúndez, P.R. Idem.
50
referiu exatamente à ele ao falar da “natureza humana”, como veremos abaixo.
Na sua chautauqua85 reconstitutiva da vida de Fedro, Robert Pirsig
acompanha a evolução e a resposta dada por Hegel ao dilema: “Creiam-me, quando se encara o mundo não como uma
dualidade de matéria e espírito, mas como uma trindade
composta de mente, matéria e qualidade, a arte da
manutenção de motocicletas e outras artes assumem uma
dimensão que jamais possuíram […]. Especulando sobre a
relação entre Qualidade86, mente e matéria, ele deduziu que a
Qualidade é que dava origem à mente e à matéria […] Queria
apenas dizer que na fronteira do tempo, antes do processo de
discriminação de um objeto, deve existir uma consciência de
natureza irracional que ele denominava consciência de
Qualidade. Só se pode estar consciente de ter visto uma árvore
depois que a árvore foi vista. E entre o instante da visão e o da
consciência deve existir um lapso de tempo. Podemos ter a
impressão de que esse lapso não merece a mínima
importância. Mas não há absolutamente nada que justifique a
idéia de que esse intervalo é irrelevante.
O passado existe apenas em nossa memória, o futuro, apenas
em nossos planos. O presente é a única realidade que temos.
A árvore que captamos racionalmente, por causa daquele
pequeno lapso de tempo, está sempre no passado, e, portanto,
é sempre irreal. Qualquer objeto concebido em termos
intelectuais está sempre no passado, sendo, portanto, irreal. A
realidade situa-se no momento da visão, antes que se inicie o
processo de intelectualização. Não existe nenhuma outra
realidade […] a Qualidade é a mãe, origem de todos os sujeitos
e objetos […] o estímulo constante para que criemos todo o
mundo em que vivemos.” E como “tomar esse evento que nos
fez criar o mundo e incluí-lo no mundo que criamos é
85 História narrativa indígena.86 “Qualidade” é o próprio “Dao” numa visão ocidental que busca opor-se à cisão entre
conhecimento clássico (ciência) e conhecimento romântico (intuição). Vide aforisma... “Não sabendo seu nome/ Qualifico-o Tao”.
51
nitidamente impossível […] não se pode definir a Qualidade.
Qualquer tentativa de definição só conseguirá abranger uma
pequena parte da Qualidade como um todo.
Hegel havia se referido a isso com seu conceito de Espírito
Absoluto. O Espírito Absoluto era independente também, tanto
da objetividade quanto da subjetividade.
Contudo, Hegel dizia que o Espírito Absoluto era a origem de
tudo, mas excluiu a experiência romântica desse 'tudo'. O
Absoluto de Hegel era completamente clássico, completamente
racional e completamente ordenado.”87
Esclarecedora, portanto, a crítica que o próprio Hegel opera ao comentar
o Dao De Jing em seu “Lições sobre a Filosofia da Religião”, e que se converte na
referida crítica ao próprio Hegel: “Na seita do Dao, o princípio tem que passar para o
pensamento, o elemento puro. É notável, a esse respeito, que
no Dao, a totalidade, surja da determinação da tríade. O um dá
origem ao dois, o dois ao três, o três ao Universo. Assim que o
homem procede como pensante, resulta a determinação da
tríade. O um carece de determinação, é a abstração vazia.
Para ter o princípio da vitalidade e da espiritualidade, necessita
progredir para a determinação. A unidade só é efetiva na
medida em que contiver o dois em si, e assim está dada a
Tríade. Com esse avanço para o pensamento, não se fundou,
no entanto, nenhuma religião espiritual superior às
determinações do Dao, que permanecem abstrações totais; e a
vitalidade, a consciência, o espiritual decaem, por assim dizer,
não só no próprio Dao, mas também no próprio homem
imediato. Para nós, Deus é o Universal, mas em Si
determinado; Deus é Espírito, sua existência é a
espiritualidade. Aqui [em Laozi], a realidade, vitalidade do Dao,
é ainda a consciência efetiva, imediata, de modo que ele é, na
verdade, algo morto como Laozi, mas adquirindo outras
87 R. Pirsig. Pg. 235-240.
52
formas, subsiste vivo e efetivo em seus sacerdotes.”88
Esse trecho comenta o anagrama XLII89, um dos mais importantes da
obra, e, com a pretensão hipertrófica que o notabilizou, Hegel quis ir além das
críticas que “nem o adversário mais tenaz de Lao-Tzu, o profeta cultural Han Yü,
consegue fazer-lhe [outra censura] a não ser esta: que ele estava sentado num
poço e não enxergava o mundo; mas homem algum podia refutar a parte que ele
via”.90
Para Hegel, o absoluto é a unidade de conceito e realidade que se
autodetermina e emana (“Deus é em si determinado”). A emanação é a perda que
chega ao ser, sempre a se obscurecer. Em Laozi, o absoluto (Dao) ilumina
totalmente, pois cria e o que cria a ele retorna. Não é uma idéia estanque
(“abstração vazia”), uma origem a perecer, pois “manifesto e imanifesto, ser e
não-ser, geram-se mutuamente”91. Assim, contemplar é a visão total da luz, não a
recepção de sua emanação. A dualidade hegeliana, conceito-realidade, é
imaginária e se esvai num vago delineamento místico. E sua lógica, por fim, dá
apenas contornos pedagógicos ao inexprimível.
Marx, criticando essa concepção do idealismo determinista na análise do
capítulo final da Fenomenologia do Espírito, “O Saber Absoluto”, demonstra, ao
contrário de Hegel, estar plenamente consciente das severas limitações da
abstração que pensa a “consciência como evanescente”92:
“Como o homem efetivo enquanto tal não é construído como
sujeito, e por isto a natureza também não – o homem é a
natureza humana […] vemos aqui como o naturalismo
realizado, ou humanismo, se diferencia tanto do idealismo
88 Sproviero. Pg. 243.89 “O Tao gera o Um.
O Um gera o Dois.O Dois gera o Três. O Três gera todas as coisas.Atrás de todas as coisas há escuridãoe elas tendem para a luz,e o fluxo da força dá-lhes a harmonia.”Laozi, XLII
90 Wilhelm. Pg. 25. 91 Laozi, II.92 MARX, Karl. Ob Cit. Pg. 126.
53
quanto do materialismo e é, a um só tempo, a verdade
unificadora de um e de outro. Vemos igualmente como só o
naturalismo é capaz de compreender o ato da história
universal.
O homem é imediatamente ser natural. Como ser natural, e
como ser natural vivo, está, por um lado, munido de forças
naturais, de forças vitais, é um ser natural ativo; estas forças
existem nele como possibilidades e capacidades, como
pulsões; por outro, enquanto ser natural, corpóreo, sensível,
objetivo, ele é um ser que sofre, dependente e limitado, assim
como o animal e a planta, isto é, os objetos de suas pulsões
existem fora dele, como objetos independentes dele. Mas
esses objetos são objetos de seu carecimento, objetos
essenciais, indispensáveis para a atuação e confirmação de
suas forças essenciais. ”93
Marx exemplifica essa relação numa composição metafórica digna do
próprio Laozi, e que destaca explicitamente sua importância para este trabalho:“O sol é o objeto da planta, um objeto para ela imprescindível,
confirmador de sua vida, assim como a planta é objeto do sol,
enquanto externação da força evocadora de vida do sol, da
força essencial objetiva do sol.”94
Na seqüência, procede a demonstrar que a existência é efetiva e sensível
a partir de sua objetividade, de onde, embora delimite-se o reduzido alcance do
pensamento ocidental (o não-ser taoísta, por não poder ser apreendido pela
racionalidade, existe enquanto não-ser, não como fruto da imaginação como
dispõe Marx), coloca-se a questão do ser e do não-ser, pancreática95 no “Livro do
Caminho e da Vida”:“Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é nenhum
93 MARX, Karl. Ob. Cit. Pg. 127. 94 Idem.95 O pâncreas, esse pequeno órgão desprezado do corpo humano, é essencial e
insubstituível, sendo que seu comprometimento, seja pelo diabetes, câncer ou qualquer outra afecção, antecipa vertiginosamente a vida em 100% dos casos.
54
ser natural, não toma parte na essência da natureza. Um ser
que não tenha nenhum objeto fora de si não é nenhum ser
objetivo. Um ser que não seja ele mesmo objeto para um
terceiro ser não tem nenhum ser para seu objeto, isto é, não se
comporta objetivamente, seu ser não é nenhum ser objetivo.
Um ser não-objetivo é um não-ser […] não efetivo, não
sensível, apenas pensado, isto é, apenas imaginado, um ser
da abstração”.96
Referenciando-se diretamente à Hegel, cujo idealismo conduz à imersão
nas filosofias orientais, Marx aponta justamente aquilo que destoa da referida
aproximação com o taoísmo, ou seja, a sua artificialidade, sua abstração elevada
no momento de transcendência da dialética idealista, quando da passagem da
síntese à tese originária com o retorno da filosofia à religião através do
pensamento racional.
Marx se refere à dialética hegeliana como “falso positivismo”, “criticismo
apenas aparente”97, uma vez que “O homem que reconheceu levar no direito, na política, etc.,
uma vida exteriorizada, leva nessa vida exteriorizada,
enquanto tal, sua verdadeira vida humana […]. Por isso, em
Hegel, a negação da negação não é a confirmação da
verdadeira essência, precisamente mediante a negação da
essência aparente, mas a confirmação da essência aparente
ou da essência estranhada de si em sua negação ou a
negação dessa essência aparente enquanto uma essência
objetiva, habitando fora do homem e independentemente dele,
e sua transformação no sujeito.”98
Hegel, portanto, aparece como justificador da aparência, e não cultor da
essência. Em Laozi, como vimos, a essência, o não-ser/ser, assume outra
dimensão, mística, para além do conhecimento humano, de todo e qualquer
96 MARX, Karl. Idem.97 Manuscritos econômico-filosóficos. Pg. 130.98 Idem.
55
pensamento, sendo por isso o “nada” (tanto em Marx quanto em Laozi) para o
qual a mente deve se voltar – não no intuito de apreendê-lo, mas de incorporá-lo.
“Incorporar”, esse termo vital para o entendimento do taoísmo, leva a um
pequeno colchete sobre a elaboração de Alejandro Jodorowsky ao criticar a
limitação da psicanálise freudiana, e que pode ser absorvida neste ensaio sem
problemas: No hay que matar al padre, hay que absorverlo, porque matar
al padre es un delírio de Freud, como la castración femenina es
un delírio de Freud. Diz él que la mujer tiene un 'complexo de
castración', que le falta un pénis. Pero no, la mujer no necesita,
tiene una vagina. Ella puede tener un complexo de que la
encierre' […] Al padre, hay que entrar en el padre y
compreenderlo y absorverlo.99
A consideração ocidental parte do problema que enxerga a totalidade
enquanto totalidade e não na eternidade do Curso. Ou, em outras palavras, que
enquanto na dialética o todo encerra conflitos em uma espiral ascendente de
eliminação-superação, na filosofia taoísta a dimensão não é “total”, mas eterna:
jamais se limita e implica continuidade, sendo todo conflito um equívoco a ser
desfeito, naturalmente, no seguimento do Dao.
Ressalte-se o abismo entre essa percepção e a da “filosofia ying-yang”,
que, como já foi visto, não passa de uma deturpação reducionista e deliberada de
correntes filosóficas chinesas e hindus clássicas(“i”, jainísmo, hinduísmo,
budismo, taoísmo, confucionismo) de maneira a imiscuir a idéia de “equilíbrio”
onde há um desequilíbrio que deve ser erradicado, e que é freqüentemente
confundida com as contribuições de Laozi.
Nele, não há equilíbrio entre opostos; o equilíbrio não depende de
sopesos numa balança (a própria balança e os contrapesos indicam
desequilíbrio), é condição inerente ao Curso, no qual, como já se frisou, não
cabem conflitos e nem oposições.
O “Dao”, embora não constitua equivalência à dialética, facilmente
99 Entrevista sobre seu livro “Psicomagia” com Fernando Sanchéz Dragó, da rede espanhola TVE.
56
superando-a, é paralelo útil para viver um mundo sem o protagonismo da vontade
civilizatória de conduzir o Curso da existência, pois, no Dao-de Jing, tal vontade
não existiu desde sempre e nem representa a natureza humana.
57
III. O LIVRO DO CURSO E DA VIDA
A borboleta, é ela própria que voa para a chama.
Sinto o pulsar do coração; sinal de que não faço bem.Фёдор Михайлович Достоевский100
O espírito da obra de Laozi diante de sua época, sobre a qual sente
“[...]fadiga em relação à história e […] não cita um único exemplo histórico em seu
pequeno livro.”101, deve iniciar a segunda parte deste ensaio qual uma adjacência
prostática da primeira parte.
Nesse propósito complementar, suplementar e integralizador, é didática a
exposição de Dazai Shuntai102: Ao contrário disso [de Confúcio], Lao-Tzu teria reconhecido
não ser a doença de que o reino sofria do tipo que se pudesse
tratar com alguns remédios, ainda que fossem os melhores,
porque o corpo do povo estava numa condição que não dava
nem para viver nem para morrer. Ele teria reconhecido que, na
verdade, em períodos anteriores, também haviam predominado
condições péssimas; mas, naqueles tempos, o mal teria sido
quase que incorporado em algum tirano e a grande reação da
fúria do povo teria se concentrado num nobre inovador,
impondo, com um ato enérgico, uma ordem nova, e melhor, no
lugar da anterior. Na época do fim da dinastia Tchou, as coisas
foram diferentes. Não existiram grandes vícios nem virtudes
fortes. É verdade que o povo sofria a pressão de seus
superiores, mas não tinha força para um ato enérgico de
vontade. As suas falhas não eram falhas e os seus méritos não
100 Dostoievski.101R. Wilhelm. Pg. 17.102R. Wilhelm. Pg. 15-16.
58
eram méritos, e uma profunda falsidade interior corroera todos
os relacionamentos, de modo que aparentemente ainda se
falava do amor humano, da justiça e da moral como de ideais
elevados, enquanto internamente a ganância e a sede de
poder envenenavam tudo. Nessas circunstâncias, todo
movimento como vistas a querer ordenar as coisas só poderia
aumentar a desordem. Esse tipo de doença não pode ser
tratado por meios exteriores. O melhor seria, antes de tudo,
deixar que o corpo enfermo pudesse relaxar, a fim de se
refazer primeiramente pelas energias restaurados da natureza.
Teria sido esse o sentido do legado que ele deixara, ao sair do
mundo, nas cinco mil palavras do Tao-te King.
O “período anterior” ao qual se refere Laozi é o da passagem de
pequenos agrupamentos comunitários auto-sustentáveis, com lideranças naturais
e a libertação de tudo o que é supérfluo, e portanto valorizado, desejado e obtido
por meio da competição, para a chamada sociedade complexa (“dinastia Tchou”),
estágio civilizatório marcado pela construção de grandes cidades com governos e
leis institucionalizadas e amplo desenvolvimento tecnológico (domesticação de
animais, escrita, agricultura em larga escala, grandes obras de engenharia,
lideranças hierárquicas, etc...), alheio à técnica natural alcançada quando o
Homem deixa que suas necessidades sejam satisfeitas com o que está
disponível, e ao qual se seguiu a perda do vínculo com a natureza e a fragilidade
espiritual do ser humano.
De lá para cá, as dimensões dessa complexidade se ampliaram
exponencialmente, e com ela todas as conseqüências antevistas e solucionadas
no Dao-de Jing, pelo que a crítica laoziana de 2.500 anos atrás seguirá
perseguindo e atemorizando o mundo com a influência de sua apocalíptica
atualidade.
59
III.I. ÀS MARGENS DO CURSO E DA VIDA: O TRIUNFO DA VONTADE103
III.I.I. O “DAO-DE”: CORAÇÃO SEM AMOR, IGUALDADE SEM JUSTIÇA, CONSCIÊNCIA SEM MORAL
[...]Só eu não sou piedosoSe eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite [...]Iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
pederastas ou barbudosEu me universalizaria no senso comum e eles diriam
que tenho todas as virtudesEu não sou piedoso
Eu nunca poderei ser piedoso.Roberto Piva - A Piedade.
O Dao-de, o Curso da Vida, está expresso detalhadamente na primeira
parte do aforisma XXXVIII, tão essencial à filosofia taoísta quanto revolucionário
na concepção do que é a natureza humana:Quem estima grandemente a Vida
nada sabe da Vida;
Quem menospreza a Vida
procura não perder a Vida;
por isso não tem Vida.
Quem estima a Vida
não age nem faz planos.
Quem menospreza a Vida
age e faz planos.
.
103Alusão ao filme de apologia ao nazismo “Triumph des Willens”, de Leni Riefenstahl, para simbolizar os efeitos deletérios da civilização, de suas vontades irrefreáveis, de suas virtudes desequilibradas, de seu amor-de-mula, de sua moral acachapante, de sua justiça irreal, de seu direito sintético, de suas cidades cinzentas, de sua tecnologia devastadora, de seu saber claustrofóbico, etc, etc...
60
É na sua aplicação sobre as mazelas do desvirtuamento do curso que
tem significado o segundo termo metafísico essencial da obra laoziana: DE ou TE:
natureza, ser, espírito, energias, virtude, mas, principalmente, Vida, pois sua
definição chinesa é: “o que os seres recebem para nascer denomina-se 'te'.“104
Por razões facilmente apreensíveis em todo o texto de Laozi, “DE” não
possui a acepção de “virtude” presente em muitas traduções, e que “própria de
tratados moralistas posteriores, adapta-se ainda menos a Lao-Tzu do que a
Confúcio.”105 Apesar disso, é freqüentemente traduzida assim em Os Analectos,
expressando “uma palavra carregada de significado moral […] uma benção que o
Homem recebe do Céu”106. Visualizando em Confúcio um pensador da essência
moral, entende-se a restrição de seus vocábulos em comparação com Laozi.
Em Laozi, “a vida, em seu fenômeno mais elevado, não age, não tem
finalidades e intenções, […] não tem necessidade de desejar aprovação, pois é
inteiramente aceita por si mesma, porque gera, nutre, acrescenta, cultiva,
aperfeiçoa, mantém e abriga todos os seres. Ela produz sem possuir, atua sem
manter, promove sem dominar; nisso consiste o mistério da vida.”
A vida, nesses termos, prossegue num fluxo ininterrupto, sem início ou
fim, “ao sabor da imortalidade”107, porque para ela não existem os antagonismos
com as quais o organismo se debilita dia-a-dia e que o levam para um
fortalecimento aparente, pois que conduz “...a partir daí, para a rigidez e a
morte.”108: Eu, também, ensino o que os outros ensinam:
“Os fortes não morrem de morte natural.”
XLII
----------
Quando ingressa na vida,
o homem é tenro e fraco;
quando morre,
é duro e forte […]
104R. Wilhelm. Pg. 23.105R. Wilhelm. Pg. 23.106D.C.Lau. Pg. 14.107B. Sproviero. Pg. 247.108Wilhelm. Pg. 146.
61
Por isso os duros e fortes
são companheiros na morte,
e os tenros e frágeis
são companheiros na vida […]
LXXVI
A força é sempre prevalência, violência, hiperdesenvolvimento,
desequilíbrio, cujos efeitos deletérios consomem e levam à destruição através de
uma vivência que busca os extremos e ignora que “o indivíduo não vive a si
mesmo, deixa-se viver, está sendo vivido”109:Os adeptos da vida – três em dez.
Os adeptos da morte – três em dez.
Os que levam a vida
ao campo da morte – também três em dez.
E a razão?
Vivem intensamente a vida [...]
L110
A primeira sentença do aforisma se refere à postura hedonista diante da
vida. A segunda, à niilista. A terceira, aos que buscam uma vida plena, porém o
mero ato de buscar essa permanência terrena e individual (“vivem intensamente a
vida”) torna a vida suscetível aos perigos e conduz à morte. Não é isso que faz o
bom cultor da vida”111, o Sábio, que, afastando de si a individualidade, torna-se
invulnerável: […] Quando nos servimos da nossa luz
para retonar a essa claridade,
não nos expomos mais ao perigo.
A isso se dá o nome de manto da eternidade [...]
109Wilhelm. Pg. 26. Vislumbra-se que o posicionamento filosófico da obra de Paulo Freire é, pois, dotado da mesma mutabilidade contrária à resignação fatalista presente em Laozi, o que permite uma apropriação também pedagógica do taoísmo, comprovando sua imensa validade para a ampliação do pensamento crítico.
110Este aforisma foi extraído da tradução mais literal, porém menos compreensível, de Sproviero. Exceto se indicado, os aforismas são por padrão os da tradução de Richard Wilhelm.
111Sproviero. Pg. 141.
62
LII
----------
[…] Ouve-se do bom cultor da vida:
Em terra – não topa com rinocerontes ou tigres.
Na liça – não sofre com armas e escudos.
O rinoceronte não tem onde fincar o chifre.
O tigre não tem onde fincar as garras.
As armas não têm onde enfiar a lâmina […]
L
No liame diverso, a qualidade total da vida é a fraqueza e a suavidade,
esboçadas com a metáfora do recém-nascido: Quem mantém em si a plenitude da Vida
é como um recém-nascido:
[...]Seus ossos são frágeis, seus tendões tenros,
e mesmo assim seu aperto de mão é firme.
Nada sabe ainda sobre a união do homem e da mulher,
e mesmo assim seu sangue se agita,
porque ele tem a plenitude da semente;
ele pode gritar o dia inteiro
e mesmo assim sua voz não fica rouca,
porque ele tem a plenitude da paz.
Conhecer a paz é ser eterno.
Conhecer a eternidade é ser harmônico.
Propagar a vida chama-se felicidade.
Colocar a própria força a serviço da cobiça chama-se ser forte.
Quando as coisas se tornam fortes, envelhecem.
Tais coisas são contrárias ao Tao,
e o que é contrário ao Tao logo chega ao fim.”
LV
Essa natureza harmônica se interioriza no homem por meio da discrição,
sobriedade, humildade, simplicidade, modéstia, bondade, lealdade e moderação,
seja na sua conduta ou na conduta com os demais - estejam ou não imbuídos
63
dessas virtudes, pois a vida é “aparentemente individual, porém não
individualmente limitada”112:O Sábio não tem coração próprio;
ele faz seu o coração das pessoas.
“Para os bons, sou bom;
para os que não são bons, também sou bom;
pois a Vida é bondade.
Para os leais, sou leal.
E leal também para os que não o são;
pois a Vida é lealdade [...]”
XLIX
Na sua segunda parte, o aforisma XXXVIII que iniciou o capítulo detalha
os antagonismos que são a mera aparência da vida:Quem estima o amor age, mas nada tem em vista.
Quem estima a justiça age e tem planos.
Quem estima a moralidade age
e, quando não lhe fazem oposição,
a provoca com grandes gestos.
Por isso, se o Tao está perdido, a Vida também está perdida.
Se a Vida está perdida, o amor está perdido.
Se o amor está perdido, a justiça está perdida.
Se a justiça está perdida, a moralidade está perdida.
A moralidade é a insuficiência da fidelidade, é indigência de fé
e o começo da confusão […].
Ao conceber o caminho para a eternidade, o Dao-de traça a linha de um
processo involutivo da vida que constitui uma reta-contínua de descenso
composta, respectivamente, pelo amor, pela justiça, pela moral e que, por
consequência, culmina no direito; ao mesmo tempo, condena-as
sistematicamente no decorrer do aforisma XXXVIII e seguintes, pois, para Laozi,
“a vida que queremos impor mediante medidas preventivas como algo positivo é
112 Wilhelm. Pg. 145
64
uma vida inferior, mesmo quando se manifesta como altruísmo, justiça ou
moral.”113
Sendo essa “vida” um componente espontâneo, inconsciente, sua
obliteração começa com a imposição de comportamentos culturais que nascem
na perturbação do princípio essencial, o Wu Wei, não-agir: o amor não possui
desígnios, mas seu mal é propriamente a interferência, livre de objetivos, sobre si
e sobre os outros (“quem estima o amor age, mas nada tem em vista”); continuam
com o agir direcionado a um propósito: a justiça (“quem estima a justiça age e
tem planos”), onde a ação é voltada para a obtenção de um equilíbrio às custas
do equilíbrio de outrem, gerando, em si mesma, desordem; e, finalmente, decaem
na ação cuja intenção é a autoafirmação de si sobre os outros: a moral (“quem
estima a moralidade age e, quando não lhe fazem oposição, a provoca com
grandes gestos”), “que, não sendo correspondida, ameaça e obriga os demais”114,
e, conforme se aduz do aforisma, representa da mesma maneira uma
manifestação opressiva do ego quando não é contestada.
Laozi, contudo, não nega essas interferências de forma absoluta.
Exemplificativo da sensibilidade de seu pensamento é que, quando propõe a
erradicação do amor do espírito humano, o faz enquanto sentimento de ação
altruísta, carregada, portanto, de uma satisfação para si que preenche a alma. O
amor enquanto não-ação, o bem que se faz agindo em conformidade com o Dao
após esvaziar a alma da interferência dos sentidos, é exaltado.
Da mesma maneira com a lealdade. A lealdade que significa
“sinceridade”, “dedicação”, é tratada diversamente daquela significando
“fidelidade”, ou seja, um apego a outrem que não encontra eco no equilíbrio de si
mesmo, e usada para denunciar o amor filial e os “funcionários leais”, que o
demonstram aos seus superiores de acordo com a conveniência.
Assim, é apenas aparente contradição entre “Quem estima o amor age,
mas nada tem em vista” (XXXVIII) – no sentido altruísta, que tem no ódio seu
inverso possível, e “Tenho três tesouros que aprecio e preservo. O primeiro
chama-se amor [pois] pelo amor podemos ser corajosos” (LXVII) – o amor
113 R. Wilhelm. Pg. 27. 114Idem.
65
enquanto identificação com o outro e busca pelo bem, que é apenas amor,
alcançando sua forma de unidade não-sentimental.
Em alusão aos ideogramas de V, e à metáfora do “cão de palha”, vistos
no capítulo O “Dao” e Deus, temos, relativamente ao amor e à moral, a distinção
essencial das doutrinas taoístas e confucionistas:“REN, 'amor humano', 'benevolência', 'humanismo' […] é a
virtude fundamental do confucionismo. Alguns acham que
Laozi critica-o por considerá-lo um amor parcial, de predileção.
É importante salientar que Laozi não critica o Ren, sua crítica é
ao considerá-lo o fundamento das virtudes. O Ren vem depois
do curso e da virtude [...]
Victor Von Strauss comenta este texto:
'Laozi sabia quão pouco existe no amor humano que como
bondade do coração, não raramente só é fraqueza quando não
enraizado no supremo fundamento moral, no eterno. Daí, sua
renitente polêmica contra o Ren que Confúcio qualificava de
suprema virtude'.”115
“Bondade ou moralidade, conceitos mais elevados do confucionismo, são
rejeitados [pelo taoísmo] como imperfeitos, por não irem além do interesse
pessoal”116, e, dessa maneira, Confúcio ignora o que é pressuposto em Laozi, pois
“ao pretender fundamentar a ordem jurídica da sociedade complexa na ordem
moral comunitária, torna a ordem moral dependente da jurídica, destruindo-a”.117
Confúcio estagnou em um meio termo, justificando as instituições, porém
resgatando os antigos valores, sem obter com isso nem uma justificativa e nem
um resgate: “Quando se perde o grande Tao,
aparecem a moralidade e o dever.
Quando a inteligência e o saber prosperam,
aparecem as grandes mentiras.
Quando os parentes próximos discordam,
115 SPROVIERO. Pg. 219.116 WILHELM. Pg. 180.117 Idem.
66
aparecem o dever filial e o amor.
Quando os Estados estão em desordem,
aparecem os funcionários leais.”
XVIII
Calcado no confucionismo, temos o estágio seguinte da degeneração
moral: O legismo vai arrancar do texto o direito do Estado de sacrificar
indivíduos. Mêncio (372-289 a.C.), seguidor de Confúcio,
propõe o sacrifício pela virtude. Num célebre trecho, diz que
sacrificaria a vida que tanto ama por um valor superior, a
virtude.118
O movimento legista exterioriza da essência humana o controle social, e
“vai tornar a ordem jurídica independente das virtudes morais dos indivíduos,
contra o confucionismo. Quando as virtudes são formalizadas em regras de
conduta, então estas substituem as virtudes e a prescrição moralista faz com que
todos lutem pelo reconhecimento público de serem cumpridores dos deveres,
acusando outros de não-cumprimento”.119 Como decorrência, têm-se as outras
deturpações morais condenadas em Laozi no aforisma XVIII, como o mérito e a
lealdade que, comparados com o XXXVIII, indicam a “insuficiência de fidelidade...
o começo da confusão”.
Com efeito, esse elevado senso de si a partir de preceitos moralistas
constitui-se no orgulho descrito por Spinoza:O orgulhoso ama a presença dos parasitas ou dos aduladores,
e detesta a dos generosos.
Proposição LVII
A solução para os dilemas resultantes desses vícios comportamentais é
recorrente no Dao-de Jing, sob diversas formulações que nominam um sem
número de princípios, os quais, contudo, são essencialmente os mesmos. Abaixo,
118 R. Wilhelm. Pg. 27119SPROVIERO. Pg. 231.
67
no aforisma LVI, a variante “cala tua boca”: O que sabe, não fala.
O que fala, não sabe.
É preciso manter a boca fechada
e cerrar suas portas,
embotar sua perspicácia,
desfazer os pensamentos confusos,
moderar o seu brilho,
e pôr em comum o que se tem de terreno.
A isso se dá o nome de união misteriosa com o Tao.
Quem a tem não é influenciado pelo amor
e fica insensível ao frio.
Fica insensível ao lucro,
fica insensível à perda.
Fica insensível à glória,
fica insensível à condição de inferioridade.
É por isso que ele é o mais glorioso sobre a Terra.
“Fechar a boca” e “cerrar as portas”, imagens também utilizadas em LII,
dizem-no para as percepções enganosas do mundo exterior, alheio ao homem,
dominado pelo amor, pela moral e pela justiça. As últimas frases, versando sobre
a insensibilidade, outra característica fundamental do taoísmo, trazem sobretudo
no que se refere “à condição de inferioridade” (resumindo as anteriores: “lucro”,
“perda”, “glória”) um importante elemento para a análise da justiça, vez que o
embate superior x inferior, certo x errado, vencedor x perdedor, é o fundamento do
direito (já enquanto justiça institucionalizada, para além da enfermidade mental
aludida por Laozi).
Mais uma vez em Spinoza, uma síntese ocidental possível para o
aforisma: O contentamento íntimo é, na realidade, o objeto supremo de
nossa esperança […]
Escólio da proposição LII
68
No fragor de tão promíscua refrega, o direito dá um passo mais na areia
movediça da civilização e sentimentaliza irrevogavelmente a justiça,
fragmentando-a como um prêmio salomônico na dualidade das partes em
confronto, e gerando uma necessidade artificial na condição de superioridade de
um sobre o outro. Ao exaltar todas as condenações presentes no Dao-de Jing,
contrariando meticulosamente a unidade do Dao, resta apenas, como uma
definição possível do direito em Laozi, parafrasear a última frase do aforisma: É
por isso que ele é o mais nefasto sobre a Terra.
III.I.II. O “DAO-DE”: LIDERANÇA SEM AÇÃO
Dessa maneira, a justiça que se estabelece nas sociedades complexas é
a justiça jurídica, institucional, que já se impõe como um papel da liderança de
uns sobre os demais, através da fragmentação da liderança natural, oriunda dos
laços familiares e da aceitação de alguém por sua capacidade espontânea. Sua
crítica em Laozi, é, portanto, a crítica da autoridade, assim como a crítica desta é
a crítica daquela, e vice-versa.
Vista como uma regra lógica de toda e qualquer civilização, a liderança,
entretanto, deve ser analisada com mais atenção. Não se pode considerá-la nem
comum a todos os povos e nem contínua se tomada na perspectiva histórica da
humanidade, pois mesmo depois da formação das grandes civilizações urbanas,
a figura do protagonismo social não foi uma constante.
A confirmação parcial desse entendimento encontra-se na análise das
descrições dos primeiros textos da pena portuguesa referentes às nações
indígenas da Abya Yala litorânea. Nas cartas de Pero Vaz de Caminha, ele e os
muitos escrivães subsequentes imiscuem conceitos político-nacionais do ideal de
dominação colonialista e ignoram a civilização indígena, pois “respondem às
próprias perguntas que colocam, umas atrás das outras, em termos de violentas
afirmações eurocêntricas. A curiosidade dos primeiros colonizadores é menos
uma instigação ao saber do que a repetição das regras de um jogo cujo resultado
é previsível.”120
120 “Intérpretes do Brasil”. Introdução, Silviano Santiago, pg. XVII.
69
Procedendo à retificação crítica de tais relatos, “Pierre Claustres reabre a
possibilidade de uma antropologia política, aventando a hipótese de haver
existido organizações sociais que se estruturaram sem a violência inerente ao
'poder coercitivo', isto é, sociedades humanas que não conheceram processos de
hierarquização impostos pelo alto [...] Na antropologia tradicional, em virtude da
cegueira etnocêntrica, era impossível vislumbrar uma sociedade onde a
organização social não dependia do uso da força e da violência como causa de
aglutinação.”121
Lógico, portanto, que ao denominar de “mansa” a pacífica cultura
indígena, e de “obediência” à ausência de hostilidade contra os europeus antes
de demonstrarem seus intentos barbáricos, fez-se total a incompreensão ibérica
dos povos autóctones. Não se percebeu em nenhum momento da criminosa
historiografia portuguesa que a figura da liderança nas tribos era reservada aos
períodos de guerra; no resto do tempo, eram os índios homens livres. Assim, o
“líder” não surgia de uma estrutura hierárquica, mas do valor e da admiração do
indivíduo pelos demais.
É precisamente a “liderança natural” da qual fala Laozi, comum tanto aos
primórdios dos povos que se desenvolveram em núcleos urbanos quanto àqueles
que permaneceram tribalizados, e que encontra na conclusão de Pierre de
Claustres sua síntese mais acurada: As organizações sociais em que o poder é obtido pelo
mecanismo e exercício da coação por parte de poucos e
obediência por parte de muitos são apenas um caso particular
na história das sociedades, e não o geral.122
Em Laozi, a única autoridade possível, independente de justificações, é a
natural, o “Sábio” (Chong Jen), figura também elaborada por Confúcio, e sua
conduta é relatada em inúmeros aforismas:Assim também é o Sábio:
permanece na ação sem agir,
ensina sem nada dizer.
121 Idem. Pg. XIX.122 Idem.
70
A todos os seres que o procuram
ele não se nega.
Ele cria, e ainda assim nada tem.
Age e não guarda coisa alguma.
Realizada a obra,
não se apega a ela.
E, justamente por não se apegar,
não é abandonado.
II
----------
Por isso é que o Sábio governa da seguinte maneira:
esvazia os corações e enche os estômagos.
Enfraquece as vontades e revigora os ossos,
e faz com que o povo fique sem conhecimento
e sem desejos,
e providencia
para que os doutos não ousem agir.
Ele pratica a não-ação
e tudo reina em ordem.
III
----------
[…] por menosprezar o seu eu,
este aparece em primeiro plano.
Ele renuncia ao seu eu
e a sua essência é preservada.
VII
---------
[…] Por isso o Sábio se veste com trajes grosseiros,
mas no seio ele esconde uma jóia.
LXX
---------
[…] reconhece a si mesmo, mas não quer se exibir.
Ama a si mesmo, mas não busca a fama para si.
LXXII
----------
71
O Sábio não é erudito,
o erudito não é sábio
LXXXI
O sábio é, portanto, “o homem repleto das energias transcendentais da
vida secreta […] cujo sentido está aberto para o evento cósmico e sua leis” 123
Wu Wei (“fazer sem agir”), a concepção vista no estudo sobre o “I Ching”
que é gênese do taoísmo, ao perpassar tudo com o espírito de conformidade com
o Dao, aparece pela primeira vez no aforisma II, e já em relação com a prática
humana do Sábio, da liderança natural, pois “trata-se de deixar que as forças
criadoras atuem no interior e a partir do próprio eu, sem que se queira acrescentar
um favor a partir do exterior. Na verdade, já existia na China essa tendência como
ideal e Confúcio também o menciona como o mais elevado”:124
O mestre disse:
- O governo pela virtude pode ser comparado à estrela Polar,
que comanda a homenagem da multidão de estrelas sem sair
do lugar.
Analectos, II, 1.
O mestre disse:
- Se houve um governante que conseguia impor a ordem sem
ter de tomar nenhuma ação, foi, talvez, Shun. Tudo o que ele
precisava fazer era mostrar-se em postura respeitosa e olhar
na direção do sul.125
Analectos, XV, 6.
123 R. Wilhelm. Pg. 147124Idem. Pg. 179.125 Os mapas chineses indicam os pontos cardeais invertidos em relação aos seus
equivalentes ocidentais. O sul, portanto, representa o norte, direção da origem da civilização chinesa, ao norte do Rio Amarelo. E é para onde se voltava o trono dos imperadores.
72
III.I.III. O “DAO-DE”: ANARQUIA SEM VIOLÊNCIA
O sábio, entretanto, não é necessariamente um governante. Ele é a
escolha natural, tal qual o cacique indígena, caso exista a necessidade de um
guia para os problemas da vida em comunidade. Em Laozi, os modelos de
governo ideais se resumem ao retorno ao Curso, dotado não só das virtudes
místicas para além do mundo sensorial, como de um sentido sempre positivo
ordenado por si. Um grande país deve ser governado
como quem frita pequenos peixes
LX
Ao fritar alevinos, não se pode remexê-los e nem virá-los subitamente, ou
se dissolvem na banha do frigir. Assim, deve-se prezar pela suavidade, pela não
interferência, pelo aspecto feminino que conforma a Terra, de acordo com o que
foi visto na análise espiritual do Dao: Quando um grande reino está situado à jusante,
ele é o lugar onde se juntam todas as correntes do Universo.
Ele é o Feminino do mundo.
O Feminino, pela sua passividade,
sempre vence o Masculino.
Com sua tranqüilidade, ele e mantém embaixo.
Assim, se um grande reino se submete a um pequeno,
conquista com isso o reino pequeno.
Se o reino pequeno se submete ao grande,
com isso será conquistado pelo grande.
Assim, um conquista porque se submete
e o outro é conquistado porque se submete.
O grande reino não quer outra coisa,
senão unir os homens e alimentá-los.
O pequeno reino não quer outra coisa,
senão participar do serviço dos homens.
Cada um consegue o que assim deseja,
73
mas o grande é que deve se submeter.
LXI
Não é o embate, a anexação agressiva, que permeia a harmonia entre os
homens. Ela só é alcançada através de uma mútua relação de abstenção, que,
discretamente, leva à adesão política e à proteção de todos os envolvidos, ou
seja, ao γεμονίαἡ (hegemonia). A raiz grega desse termo não se liga ao domínio,
mas à unidade política através do consenso. Laozi lhe empresta uma dimensão
ampliada ao frisar que a submissão, nesse movimento que busca o equilíbrio, é
sempre do maior reino, seguindo-se-lhe a do menor.
As interpretações que derivam de Laozi sistemas de estratégias bélicas126,
destoam totalmente do texto original, pois no taoísmo a guerra é a última opção,
e, mesmo assim, seu caráter é exclusivamente defensivo, como meio de garantir
o equilíbrio pacificamente alcançado. A despeito das deturpações, “a China
comprovou repetidamente algo dessa verdade [taoísta]... assimilou, devido ao seu
tamanho e à sua tranqüilidade, cada uma das tribos agressivas e conquistadoras
que penetraram em sua periferia.”127
Em inúmeros trechos, há a referência ao conhecimento, criticado como
vício do espírito. Embora, como já expresso, não seja o alvo deste ensaio sua
pormenorização, deve-se atentar para sua negação enquanto conduta do
governante: Os que outrora eram competentes
ao governar segundo o Tao
não o faziam pelo esclarecimento do povo,
mas mantendo-o na ignorância.
A dificuldade em governar um povo
está no fato de ele saber demais.
Por isso, quem governa o Estado pelo saber
é o ladrão do Estado.
Quem não dirige o Estado pelo saber
é a felicidade do Estado.
126 Posteriormente, tais sistemas se tornariam muito famosos, como o de Sun-Tzu, por exemplo, evidentemente influenciado pela filosofia taoísta.
127 R. Wilhelm. Pg. 154.
74
Quem conhece esses dois pontos tem um ideal.
Conhecer sempre esse ideal é a Vida oculta.
LXV
A negação do “saber demais” não é uma proposição ao estilo “pão e
circo”, como tantas interpretações políticas o fizeram para se justificarem nos
textos laozianos, mas a crítica ao saber desnecessário, que, por ser excessivo,
não promove o retorno ao Curso e afasta o homem de seu caminho natural,
levando-o à uma dependência vertiginosa da tecnologia. Aqui, tem-se uma
curiosa e essencial diferença com o pensamento ocidental, legatário de Sócrates,
para o qual o bem supremo é “sei o que sei e sei o que não sei”. Em Laozi: Conhecer o não conhecimento
é o bem supremo […].
LXXI
Erasmo de Rotterdam é da mesma opinião sobre a verdadeira essência
do “ignorante”, do “tolo”, epítetos que podem adjetivar o mendicante e maltrapilho
“sábio” laoziano: Não será verdade que, entre tantas espécies de animais, os
que vivem mais felizes são os que não têm nenhuma disciplina
e que só a natureza reconhecem como mestra? […] Já o
cavalo, por estar mais próximo dos sentimentos do homem, e
sendo por este dominado, participa consideravelmente das
calamidades humanas. Acontece, muitas vezes, que esse
animal doméstico, em lugar de fugir da batalha, se atira ao
perigo, e, na ambição da vitória, um golpe mortal estende-o por
terra. Já não falo das cruéis mordeduras, das esporadas
agudas, da prisão que é a estrebaria, das rédeas, do pesado
cavaleiro, em suma, de toda a trágica escravidão a que ele, a
exemplo do homem, se sujeitou espontaneamente, na ânsia
excessiva de se vingar do veado, seu inimigo […] Por tudo
isso, nunca terei louvado bastante a Pitágoras por se ter
transformado em galo. Esse filósofo, em virtude da
75
metempsicose, passou por todos os estados: filósofo, homem,
mulher, rei, confidente, peixe, cavalo, rã e creio até que
esponja. E, depois de todas essas transmigrações, declarou
que o homem era o mais infeliz de todos os animais, pois todos
os outros estão satisfeitos de ficar nos limites prefixados pela
natureza, enquanto só o homem se esforça por ultrapassá-los.
Além disso, Pitágoras costumava antepor os tolos aos sábios e
aos grandes.128
É interessante perceber que, da organização social que decorre da
aceitação de um poder natural e naturalmente aceito, centralizado em um homem
excepcional que rejeita todos os vícios, o povo não mais teme o poder porque
dele nem se dá conta. Eis o sinal de que um poder maior, o fluxo do Dao, chegou.
Misticamente considerada a afirmação política, tem-se que é da autoridade
humana ignorada que surge o Curso em sua plenitude.
Delineia-se, enfim, qual é o governo em consonância com a filosofia
taoísta, no aforisma XVII:Quando um Grande Soberano governa,
o povo mal sabe que ele existe.
Os menores são amados e louvados,
os ainda menores são temidos,
os mais inferiores ainda são desprezados.
Quão ponderados devemos ser com as palavras!
Terminada a obra, os negócios seguem seu curso
e as pessoas pensam:
“Somos livres.”
As etapas da decadência social que levam ao fortalecimento da
autoridade, ao invés de seu enfraquecimento, essencial para a aceitação do
governante pelo povo segundo Laozi, corrompem suas origens naturais e migram
para autoridades primeiramente carismáticas e, finalmente, para o modelo
autoritário baseado na força.
128 Elogio da Loucura. Pg. 49.
76
Ao estabelecimento dos governos embasados na força, advém
inevitavelmente a contestação. E é precisamente no contestar que as
comparações da filosofia politica taoísta com o anarquismo acabam. Porque,
embora o anarquismo europeu compartilhe dessa contestação aos regimes
autoritários, institucionalmente estabelecidos, sua tendência a dessacralizar toda
a autoridade leva, necessariamente, à violência, mimetizando o mesmo
comportamento refutado e, portanto, conduzindo ao desgoverno, vez que a
autoridade natural também é refutada.
Em Laozi, considera-se o movimento de contestação irrefragável e
constante como um caminho que conduz naturalmente ao estágio anterior de
autogoverno, respeitada a autoridade natural. Em verdade, tal autoridade natural,
personificada por aqueles que são “Sábios”, é o próprio autogoverno, pois sua
autoridade é fruto espontâneo da admiração dos demais. Esse movimento,
portanto, é permeado pelo divino, e visto como inerente à essência do homem e
de seu mundo.
Aqui, também, recorrente seu posicionamento sensível: embora seja
cultor da simplicidade original, em Laozi isso não se opõe, necessariamente, às
formas de organização social mais complexas, desde que, ao se consolidarem, o
espírito humano seja preservado através da liberdade (não-agir estatal) e da
autonomia (ausência de leis). Por isso a recorrência em fazer do Sábio, aquele
dotado da habilidade em governar, um exemplo constante aos demais.
Através dele o Dao pode fluir e se disseminar por todo o reino. É nesse
propósito que Laozi elabora um esquema progressivo da organização humana
que começa no indivíduo, passa à família, comunidade, reino e, finalmente,
Estado, o qual, como se viu, não é simplesmente rejeitado. Esquematização
idêntica se encontra em Confúcio, o qual, contudo, omitiu o comunitarismo, o
núcleo organizacional mais relevante no taoísmo.
77
III.II. NO AÇOREAMENTO DO CURSO E DA VIDA: REJEITOS JURÍDICOS
O Código ensina ao leitor que ele será vítima de um roubo doméstico, de uma trapaça, de uma afanação, acompanhados de
um número maior ou menor de circunstâncias agravantes; e suas páginas inquietantes farão com que o cidadão tranque seu
dinheiro a sete chaves, tomado pelo mesmo terror daquele que, ao ler um livro de medicina, já sente os sintomas das perigosas
doenças ali descritas.Honoré de Balzac – Code des gens honnêtes.
Atente-se que o direito - do qual tanto se fala nas teorias críticas como o
instrumento que marginaliza grande parcela dos homens, mas que tem sua
importância defendida arduamente pelos mesmos que deveriam destruí-la129 – é
relegado a um papel pernicioso, pois que receptor de toda a escatologia amorosa,
justicialista e moralista, oriunda de toda a liderança estabelecida ou por se formar,
e, na concomitância contemplativa do Dao-de, é necessariamente considerado
repulsivo à Vida e irrelevante para o seu seguimento.
Nessa lógica, seria o Direito, numa decadência em espiral, que começa
no desvirtuamento do Dao-de com a interiorização da exaustivamente repetida
tríade degenerativa (amor, justiça, moral), e de todos os seus correlatos
(infidelidade, descrença, confusão, etc...) uma latrina vazia, que sintetiza todos
esses preceitos regulatórios, impositivos e alheios à natureza humana, e onde
fermenta o espiralado caldo decaído .
Contudo, nos termos do Dao-de, a latrina vazia permanece vazia para
levar à contemplação necessária, catalisada pela contenção dos sentidos
129 Basta citar para isso as milhares de “teorias jurídicas críticas”, de Michel Miaille a Roberto Lyra Filho, do promíscuo marxismo estrutural de Althusser ao onanismo copista de Norberto Bobbio, sem que nenhum deles, em nenhum momento, sequer cogite que o não-Direito, e não outro-Direito (poético, alternativo, pluralista, literário, transcendente, etc, etc...), possa ocupar a relação de substituição lógica ao Direito que os beneficia. Aqui, como sempre, está o punctum dolens de Laozi.
78
(impulsos intestinais, no caso) e pela meditação sobre o espaço suspenso abaixo
e acima das nádegas contraídas. Mas, no caso do direito, no afã de tudo
conquistar, de todos os homens regrar e de toda a sociedade regular, provoca-se
a distensão retal involuntária, convertendo a mística latrina imaculada num
banheiro de rodoviária que se entope insanavelmente com toda a organicidade
hedionda do pensamento humano.
A tarefa desse trabalho, agora já desvelada, não é desentupí-la, o que
seria condenar-se ao suicídio no melhor dos intentos, mas, qual um estudante do
ginásio desocupado e livre das confusões do eruditismo, taoisticamente destruí-la.
Para proceder à crítica taoísta do direito, cume desta apicultura
ensaística, veste-se a roupa protetora e se espezinha no agreste vespeiro do
catatau de 407 folhas de Paulo Roney Ávila Fagúndez, pois que, ao tropeçar nos
ferrões de contradições insanáveis ao longo de suas temerosas afirmações,
demolindo a golpes de kung-fu panda130 toda a sutil harmonia do taoísmo
laoziano, surge como facilitante para esta metodologia ingrata.
Como seu texto carece de uma linha lógica ao longo dos capítulos,
sofrendo de graves falhas argumentativas e se servindo de citações aleatórias
dos mais variados pensadores, estejam ou não inseridos num mínimo, e diga-se,
mesmo exíguo múltiplo comum da filosofia laoziana, tomemos em oposição duas
das inúmeras frases curtas emaranhadas ao longo do texto, já naquilo que
constitui sua incursão taoísta crítica:O Direito não consegue enfrentar os problemas humanos que
residem dentro de cada um. Há a preocupação de se
estabelecerem limites externos que são os geradores dos
problemas psicossociais e da própria violência131
E, como espécie de diagnóstico dessa falha do direito, conclui que:As leis querem adaptar o povo aos anseios de classes
dominantes e aos projetos dos governantes. Pelo contrário, o
Direito teria que ser instrumento de estímulo à prática de
130 Referência aos momentos iniciais do longa de animação homônimo, no qual o protagonista, um urso panda, é um desengonçado fã de artes marciais.
131Ávila Fagúndez. Pg. 198.
79
condutas positivas, de integração dos seres humanos. Como
admitir um Direito divorciado da moralidade e alheio ao senso
de Justiça?132
O direito, por decorrência lógica de sua conformação que estabelece
“limites externos” - os quais são “externos” não por serem limites, mas porque
decorrem da exterioridade cultural do direito em relação à natureza do homem - é
receptor de toda a moralidade e senso de Justiça de uma sociedade, os quais já
sendo uma corrupção da humanidade, foram ainda juridicizados, limitados,
conforme se viu na deturpação legista dos valores confucianos.
Assim, justiça e moral nunca estiveram e nem estão dissociados das
instituições jurídicas. O que ocorre é que elas próprias são a corruptibilidade da
sapiência, afirmação já catapultada de alturas estratosféricas por Laozi, mas que
se faz por bem repetir: “A moralidade é a insuficiência da fidelidade, é indigência
de fé e o começo da confusão.”
Nesse caminho, qualquer solução jurídica que recorra a uma destilação
moral que relembra os tempos inglórios do republicanismo sepultado do século
XVIII, apenas reinicia o círculo vicioso que começa, justamente, no amor filial, na
moral e, por fim, na justiça institucionalizada.
Com efeito, o que está expresso no Dao-de Jing é que não há solução
para os problemas jurídicos. E uma vez que tanto o amor filial quanto a moral
subsistem institucionalmente sob o artifício da juridicização, mesmo a solução
moral, sob os preceitos principiológicos, será apenas e tão somente jurídica!
Conclui-se, portanto, que não há nem solução e muito menos solução
jurídica aos problemas jurídicos, restando inadvertidas, simplórias, errôneas, em
uma palavra, inúteis, as citações acima criticadas.
Em outro parágrafo, Fagúndez cita um dos mais perturbados pensadores
dentre aqueles que, em nossa época, denominaram-se “marxistas”, para, então,
justificar, contrariamente à pseudocrítica formulada, o direito ideologicamente
institucionalizado:
132Ávila Fagúndez. Pg. 190.
80
Para Althusser, “o Direito é um aparelho ideológico do Estado
[…]. Está a serviço da classe dominante que detém o poder
político, exercendo-o em defesa de seus próprios interesses”.
Os princípios estão em permanente elaboração. Poder-se-ão
formular os necessários para a defesa de determinados
interesses, (sic) porém deverão estar em sintonia como regime
político vigente. 133
Não é preciso se referir à falta de sentido das afirmações. O que importa
expressar é, por um lado, as “descobertas” óbvias de Althusser (as de que o
direito institucionalizado serve aos desígnios de quem o institucionalizou!), tidas
como constatações implícitas na crítica laoziana de dois milênios atrás e nas mais
recentes referências de Marx; e, na seqüência, a defesa do sistema jurídico
vigente mesmo diante da conclusão de que serve, unicamente, a propósitos da
perpetuação do poder político pela classe burguesa.
Comentando o aforisma XLII134, Ávila interpõe uma superficial análise de
Fritjof Capra (como o são quase todas as suas popularizações do pensamento
oriental) sobre “o yin e o yang” que pouco tem a ver com a gênese taoísta, e
proclama na seqüência: O Princípio Único Universal contido no Tao Te King, a Bíblia
dos orientais, preconiza uma dialética que concilia interesses
em conflito. Tem aplicação no Direito e pode contribuir para a
construção de uma teoria da Justiça mais em consonância com
as leis da natureza.135
Comece-se por dizer que não há nada mais errôneo do que qualificar o
Dao-de Jing como uma Bíblia. A idéia de cultuar um livro em seus estritos termos
seria considerada ridícula por mentor da criatividade como Laozi, e não se
esqueça de que “penosamente transformou em palavras aquilo que via”136 à força
133 Ávila Fagúndez. Pg. 196.134 Como foi visto, esse aforisma é vital na compreensão taoísta por partir de uma
interpretação original e impressionante de Laozi sobre o Livro das Mutações, o que aturde ainda mais os intentos “equilibrantes” de Ávila Fagúndez.
135 Ávila Fagúndez. Pg. 205.136 R. Wilhelm. Pg.
81
dos caprichos do guarda do passo que impedia seu exílio voluntário.
Depois, o Dao, vetustamente denominado por Ávila de “Princípio Único
Universal”137, não preconiza, como já se viu, qualquer dialética – antes
demonstrando sua total inadequação à compreensão do monismo criador, e muito
menos uma que “concilie interesses em conflito”, pela simples razão de que o
conflito em si é negado na filosofia taoísta. Se há conflito, não pode haver
harmonia “em consonância com as leis da natureza”.
O aforisma LXVI, ao descrever a postura do Sábio, dá um exemplo claro
de como a natureza é a medida de todas as ações humanas, ao invés de se
perder em frases murchas, e, mais ainda, torna ululante a prescrição prática de
sua maior construção filosófica, o não-agir, cujas variantes vão do não-intervir ao
não-conflitar:Se os rios e os mares reinam sobre todos os riachos
é porque ambos sabem manter-se em níveis inferiores.
Por isso reinam sobre todos os riachos.
Assim também o Sábio:
se quer elevar-se acima do seu povo,
coloca-se abaixo dele quando lhe fala.
Se quer estar à frente de sua gente,
coloca-se atrás.
Portanto:
permanece no alto
e o povo não sente o seu peso.
Mantém-se na liderança
e o povo não é ferido por ele.
Assim, também,
todo mundo é solícito em exaltá-lo,
sem ficar de mau-humor.
Como ele não briga,
ninguém no mundo pode brigar com ele.
137 Não se trata de mero princípio, o que já é reduzí-lo ao patamar das categorizações hierárquicas do pensamento humano. Não se descreve o Dao sob esses termos, como adverte Laozi nos infindáveis trechos sobre sua “inominabilidade”.
82
Em seu diminuto e excelente ensaio “Crítica da razão tupiniquim”, Roberto
Gomes também é veemente contra as pulsões dos acadêmicos que professam a
conciliação como forma de mascarar, numa forma de crítica, o próprio
conservadorismo:Se nos limitarmos à superfície, o jeito é promotor de uma
atitude de tolerância e de abertura intelectual. Como expressão
da Razão Conciliadora, um dos produtos mais lamentáveis, de
potencial despótico e conservador.
Há um retrato possível, cruel mas verdadeiro, do praticante de
Filosofia no Brasil – a imensa maioria composta de
professores, tipos entre os quais predomina, a despeito das
alegóricas pretensões reformistas (idealizadas, de resto), o
espírito mais retrógrado e legitimador do vigente. Neste retrato
vemos alguém sempre disposto a encontrar analogias – as
quais pretende brilhantes – entre as teorias mais opostas e
irreconciliáveis, fazendo sua tradicional salada filosofante,
onde, em proporções idênticas ou não, entra algo de tomismo
e de Comte, de Comte e de Marx, de Marx e de estruturalismo
e Marcuse […] A atitude conciliadora é ausente de critérios, de
intuições geradoras de pensamento”138
Ávila Fagúndez, ao derramar sua “geléia geral brasileira”139 sobre a
esperança de uma conciliação jurídica, ignora que a relação de força entre as
partes envolvidas é, quase sempre, desproporcional como o foi o embate entre
Tífon e Zeus, e faz transparecer, na sua proposta jurídica, que sua filosofia é não
outra que a condenada por Roberto Gomes. E, ainda mais uma vez, esquece-se
da demolidora crítica de Enrique Dussel à “razão comunicativa” de Jürgen
Habermas140.
Pode-se ainda questionar, e com atraso, vez que o capítulo das marolas
dialéticas já se findou, qual é a dialética referida pelo jurista Ávila. Não sendo,
138 R. Gomes. Pg. 49-50.139 Gilberto Gil – Geléia geral.140 Dussel critica a possibilidade de se alcançar soluções através do pacifismo do diálogo em
condições de extrema disparidade entre os interlocutores.
83
logicamente, taoísta, que modelo conciliador-dialético é esse? Os argumentos
marxianos, parafraseando Feuerbach, sobre a última etapa da dialética hegeliana
determinam a negativa também sobre esta: [...]na medida em que Hegel apreendeu a negação da negação
– conforme relação positiva que nela reside, como a única e
verdadeiramente positiva, e conforme a relação negativa que
nela reside, como o auto unicamente verdadeiro e como o auto
de auto-acionamento de todo o ser -, ele somente encontrou a
expressão abstrata, lógica, especulativa para o movimento da
história, a história ainda não efetiva do homem enquanto um
sujeito pressuposto, mas em primeiro lugar ato de produção,
história da geração do homem. Esclareceremos que tanto a
forma abstrata quanto a diferença que este movimento tem em
Hegel, em oposição à moderna crítica […]; ou antes, a figura
crítica deste movimento ainda acrítico em Hegel.141
Hegel supra-sume em sua dialética relações abstratas, alheias à
realidade preconizada por Marx. Estando além (ou aquém) dessa realidade, são-
lhe inacessíveis os pequenos dramas do teatro humano carentes de conciliação.
Impossível, portanto, a função que lha atribui Ávila Fagúndez.
Assumindo que a materialidade dialética surge em Feuerbach e se
aperfeiçoa em Marx, vê-se, contudo, que seu modelo não é conciliador, mas
gritantemente revolucionário, centrado em uma materialidade que já se deve
superar142, por ser insuficiente às relações de existência. Frise-se: superação, não
conciliação.
Por ora, e para não ir adiante na prospecção de todos os métodos
dialéticos outrora concebidos, de Heráclito a Plotino, conclui-se ser a dialética de
Ávila de um tipo imaginário, digno das mais ecléticas teorias holísticas, o que é
confirmado pelo próprio autor nos textos veiculados em sua página pessoal na
internet:
141K.Marx. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Pg. 118-119.142Mesmo em crises sistêmicas pode-se discernir o movimento dialético, mas perpetuando a
essência da ordem anterior no novo estado de coisas. O que não há, em qualquer dialética, é conciliação.
84
“O princípio único universal, a regra de ouro do taoísmo, é a
base da medicina tradicional chinesa, da política e todo o saber
do Extremo Oriente. Para os orientais, o par yin-yang está
presente em todosos fenômenos da vida. Nada é
absolutamente ying (sic) ou yang. É um saber extremamente
importante para a gestão dos conflitos na complexa sociedade
pós-moderna. Ademais, é um saber mais em sintonia com a
ecologia profunda, com a compreensão de que todos os seres
vivos integram a mesma teia. O taoísmo contribui, na
sociedade ocidental, para que a cultura da mediação
prevaleça. O que se percebe na China, especialmente, é a
preocupação com a formação de novos profissionais de direito,
habilitados para a compreensão dos litígios e de sua gestão
cotidiana. O conflito não é algo patológico. O conflito é parte
integrante da vida.”143
Aqui, verifica-se toda a confusão de Ávila e sua impropriedade ao se
utilizar da filosofia de Laozi, atirando-a no mesmo balaio de suas infinitas
correntes posteriores (da medicina tradicional à ecologia, passando, claro, pela
filosofia yin-yang, espécie de reducionismo gelatinoso e expansível a toda e
qualquer apropriação, seja taoísta ou não), que, como se viu no capítulo “O Dao
e a religião”, serviram-se das mais delirantes interpretações do Dao-de Jing.
Limitando-se apenas ao jurídico, já se percebe o azedume yin-yanguístico
a golfar sobre a noção de “conflito” quando se relembra de que há, na explicação
de Laozi da gênese do universo, o momento em que, a partir da unidade,
desdobra-se a dualidade dos elementos opostos (e não conflitantes, vez que se
originam da unidade), os quais, pela oposição mesma (claro – escuro, quente –
frio, alto - baixo) possibilitarão a apreensão humana e sensível da variedade (por
sua vez decorrente dos pares opostos originários) constante do mundo visível.
E, em todas as longas digressões sobre as deturpações do curso da Vida,
Laozi é explícito ao se referir terminantemente contra a idéia de conflito como
143 Texto “A recuperação da filosofia”, acessado em 24 de abril de 2008 no endereço: http://pr.fagundez.zip.net/arch2008-04-20_2008-04-26.html
85
“parte integrante da vida”. Nada há de menos natural à Ela do que o conflito, seja
qual for.
Outra inviabilidade que se abate sobre o ponto de vista de Roney é a
consideração de que leis humanas derivam de leis naturais. Ora, Laozi não
contraria a existência de leis, mas se refere expressamente à elas como
imaterializáveis, sendo impossível verbalizá-las. Logo, a lei humana é sempre
diversa da regência natural dos comportamentos, vez que, ao se materializar,
dissolveu a unidade necessária entre homem-mundo. É, como bem se refere
Marx, “de uma natureza humana”, a qual, por sua vez, segundo Laozi, não está
em consonância com o que é a única natureza humana.
Logo, a existência de leis laozianas estão emplastradas no imanente e no
inescrutável. Não se copiam ou se depreendem leis humanas da natureza. Do
contrário, todo o longo processo taoísta de retorno à natureza e à sua dimensão
inacessível ao intelecto, através da contemplação de si, seria inviabilizado. Assim,
totalmente contrária à uma exegese séria do Dao-de Jing reduzí-lo à condição de
guia legislativo, como faz Ávila.
III.II.I. NO LODAÇAL DO CURSO E DA VIDA: A ANFÍBIA RESISTÊNCIA MARXISTA
El intelecto... consiste... en hacer unilateral el mundo... al plasmar cada contenido del mundo em uma fija determinabilidad
y petrificar... la fluidez que hace brotar la diversidad del mundo, el cual no sería multilateral, a no ser por las muchas
unilateralidades.Karl Marx
No capítulo sobre “O Direito e os princípios”, existe na tese de Ávila
Fagúndez não só a afirmação da plena discordância com o Dao-de, como o
desconhecimento absoluto da crítica fundamental proposta pelo marxismo
jurídico.
Embora seja o marxismo insuficiente para uma compreensão ampla do
fenômeno humano, naquilo que é o escopo deste ensaio, e apesar de que “me
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gusta muchíssimo, pero no me convence”144, inegável é sua contribuição para
separar a confusão justificadora de todos os autores da falsa crítica e, aqui, da
falsa crítica jurídica. Se Laozi é o mestre que nos guia pelo Curso, Marx é o
explorador que nos desvia das perigosas contradições do discurso estabelecido.
Fagúndez interpõe: “Com efeito, salienta-se que do sistema jurídico derivam
determinados princípios. Há uma conexão desses princípios
jurídicos com o regime político e com os valores defendidos
pela sociedade. O sistema jurídico é um reflexo das relações
de poder que são mantidas na sociedade. Não se confunde a
visão de integridade com a proposta de interpretação
sistêmica, tendo em vista que a operação se dá dentro do
sistema artificial da ciência jurídica, dentro dos seus limites.
Vale destacar que o sistema jurídico é naturalmente aberto,
que trata em essência da multimensionalidade da vida. Tratá-lo
como um sistema fechado significa torná-lo impotente para
resolver os complexo problemas humanos.”145
Considerar o direito reflexo de relações de poder, demarcando claramente
sua ideologia, e limitar sua operacionalidade a si mesmo, é consagrá-lo como um
sistema fechado, inacessível ao fenômeno social, aos clamores dos povos, à
transformação inevitável e urgente. É, inclusive, a visão jurídica predominante, e
aquela que Ávila deseja preservar às custas da coerência da filosofia taoísta.
Não à toa, Marx revolucionou a matéria econômica – o cerne de sua
concepção histórica – ao tê-la considerado uma ciência necessariamente social.
As afirmações desconexas de Ávila propõem sua 'sociabilização' ao mesmo
tempo em que afirmam o isolacionismo tradicional do direito burguês.
Ávila, superestruturalmente encarcerado, debate-se a justificar o direito
através de uma abstração, de uma ilusão, de uma demência, ou até mesmo de
144 Célebre frase do economista e introdutor do marxismo no âmbito da filosofia da libertação Franz Hinkellamert ao opinar sobre Nietszche durante um jantar com acadêmicos da UFPR.
145Ávila Fagúndez, pg. 214, em concordância com José da Silva Pacheco (Curso de Teoria Geral do Processo).
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um “espírito... naturalmente aberto”, visão que o aproxima e o metamorfoseia em
um grotesco “hegeliano de esquerda”, que busca transformar o mundo pela
'autoconsciência', pela miraculosa virtude das idéias.
Marx o esmaga com uma única análise: a do direito consuetudinário,
levada a cabo no célebres “Debates sobre a lei castigando os roubos de lenda”
em “Elementos fundamentais para a crítica da economia política”146. Na primeira
vez em que Marx se ocupa dos problemas econômicos e opina sobre os
interesses materiais do povo, prossegue de tal forma na destruição dessa falsa
“mutidimensionalidade” que já não restam mais vestígios do que um dia foram as
palavras do professor Ávila:
“Reclamamos para la masa pobre, política y socialmente desamparada, el
derecho consuetudinário”, mas não, evidente, o dos privilegiados, que constituem,
desde os primórdios da humanidade [zoomorfa] e, em especial, no feudalismo
[cuja religião era a adoração da Besta], a forma animal do direito, costumes contra
o direito, privados de realidades, “pues la única igualdad que en la vida de los
animales se manifiesta es la igualdad entre un animal y los de su misma especie.”
E continua, ao reafirmar a validade do costume, explicando que o direito
consuetudinário não é expresso em leis pois é a sua negação, embora o direito
possa racionalizar os costumes, de maneira que não sejam apenas costumes,
mas “la propia costumbre de lo jurídico”.
Contudo, sua existência à parte é ressalvada se for anterior à lei, e, como
as classes privilegiadas plasmaram no direito legal suas vantagens, “no
solamente el reconocimiento de su derecho racional, sino, muchas veces, de suas
arrogancias irracionales, […] no tienen derecho a anteciparse a la ley, pues la ley
se ha antecipado a todas las posibles consecuencias de su derecho.”
Mas a lei não se opõe ao direito consuetudinário dos pobres,
simplesmente porque não o reveste. E, da mesma forma, tal direito “no se rebela
contra la forma legal, sino, por el contrario, contra la carencia de forma de éste”.
Daí que questões como a “lei da favela”, a “lei dos índios” a “lei dos negros”, as
“leis alternativas”, em verdade, não caracterizem a ilegalidade propalada pelos
146 “Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie”. Manuscritos, publicados postumamente, que serviram de moldes para O Capital. Os trechos aqui referidos foram extraídos do volume “Obras Fundamentales”, vol. I, pgs. 250 e sgs.
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organismos oficiais e pelo senso comum, pois sequer foram incluídos no projeto
jurídico da burguesia, que pretendeu, com isso, neutralizar a existência e o
reconhecimento do “outro enquanto outro” apeliano147: “Las legislaciones más liberales, en lo tocante al derecho
privado, se limitan a formular, elevándolos al plano de lo
general, los derechos com que se encuentran. Y donde no los
encuentran, no los conceden. Han abolido las costumbres
particulares, pero olvidando, al hacerlo, que mientras que el
desafuero de los poseedores se manifestaba bajo la forma de
arrogâncias arbitrarias, el de los desposeídos cobraba la forma
de concesiones fortuitas. Su modo de proceder era acertado al
ir en contra de quines alegaban costumbres contra el derecho,
pero falso em lo referente a los que se amparaban em
costumbres fuera del derecho”.148
A existência de ordem social comunitária referida por Marx, esteja ou não
emplastrada no ordenamento jurídico, é satisfatória porque aniquila, a um só
tempo, tanto o caráter “erga omnes” da justiça institucionalizada, quanto a idéia,
absolutamente ultrapassada, de prevalência do Estado como entidade divina a
reger toda e qualquer organização sócio-político-econômica, e que é
intransponível para uma boa parte das teorias vulgares da esquerda ortodoxa.
Marx conclui dizendo que os costumes das classes pobres as
impulsionam para a satisfação de suas necessidades precisamente naquilo que
“la propriedad tiene de indeciso”, pois exsurgem como um “sentido jurídico
instintivo... que aún no ha encontrado adecuado lugar dentro del círculo de la
organización consciente del Estado”.
Assim enredadas nas teias do aracnídeo burguês, as classes pobres são
encasuladas à condição de “mera costumbre de la sociedad civil”, dissonância
inexplicável na ordem social, pois “un legislador sabio... no se limitará a arrebatar
a los copartícipes de uma clase la imposibilidad de pertenecer a uma esfera de
derechos más altos, sino que elevará su propia clase a la posibilidad real de tener
147 Karl-Otto Apel.148 Marx. Idem.
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derechos.”
Refere-se, portanto, à consciência de classe em si e para si, à
identificação dos clamores do povo com os clamores de toda a humanidade e à
luta para expandir essa identidade na forma de igualdades unilaterais
equivalentes entre si, e não de uma única igualdade multilateral que diverge em
alcance e intensidade e fragmenta a sociedade em estratos diferenciados.
Essas considerações comprovam que a “mutidimensionalidade” defendida
por Ávila Fagúndez não pode se dar, logicamente, nos institutos jurídicos
estabelecidos. É necessário, em Marx, reformulá-los e, em Laozi, erradicá-los,
embora os dois estejam de acordo com a manutenção da ordem comunitária. Se
na visão marxista a proposta avilana é impensável, impensável continua também
no taoísmo, com bem se indica na citação que abre esta seção do ensaio.
Евгений Брониславович Пашуканис149, o mais célebre jurista marxista, é
impactante em demonstrar que o direito europeu moderno, copiado integralmente
pelos governos excludentes de Abya Yala, nasce de apropriações do direito
privado sobre a gestão pública para inserir, apenas enquanto mercadorias, tanto
homens quanto objetos numa ordem de protagonistas pré-determinados.
Na verdade, apenas esclarece Marx, cujos trabalhos juvenis indicaram o
hiperdesenvolvimento do direito privado burguês e suas carências insanáveis na
gestão pública. A razão? Copiaram na integralidade eles também o bem
elaborado direito privado romano, que versava pormenorizadamente sobre a
propriedade privada, elevando-o ao status de único direito.
É morbidamente curioso, nessa perspectiva, que o “direito penal mínimo”
seja uma construção da própria burguesia, vez que a ineficiência da prisão foi
muito cedo percebida, chegando-se “à convicção de que a luta contra a
criminalidade pode ser considerada em si mesma como uma tarefa médica e
pedagógica e que os juristas com os seus 'corpos de delito', os seus códigos, os
seus conceitos de 'culpabilidade', de 'responsabilidade penal, plena ou atenuada',
as suas sutis distinções entre cumplicidade, participação, instigação, etc.,
absolutamente não têm condições de prestar qualquer auxílio à solução da
questão.”
149 Pachukanis.
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Пашуканис vê nessa continuidade que vai contra o conhecimento
(inclusive científico), o apego da classe burguesa à sua recente condição de
domínio, e conclui, indicando a natureza napálmica150 do direito: E se, até o momento, estas convicções teóricas ainda não
determinaram a supressão dos códigos penais e dos tribunais,
foi evidentemente porque a supressão da forma jurídica está
ligada não apenas à infração do quadro da sociedade
burguesa, mas também a uma emancipação radical em
relação a todas as suas sobrevivências.151
Assim, dada a natureza individual-egoística da sociedade burguesa,
responsável pela manutenção do inútil flagelo penitenciário, o direito público foi
reduzido às categorias do direito civil, e tornado efêmero, incerto e grotesco, sob
o manto de direitos subjetivos públicos que encerram num só momento funções
sociais e os direitos dos agentes de tais funções:O problema do direito subjetivo e do direito objetivo, colocado
de maneira filosófica, é o problema do homem como indivíduo
burguês privado e do homem como cidadão do Estado […] O
método formal-lógico não tem condições de resolver nem o
primeiro nem o segundo problema, muito menos de explicar o
vínculo existente entre ambos.152
“Teoria Geral do Direito e Marxismo” promove o desmantelamento gradual
das construções jurídicas consolidadas, e calcina os velhos anacronismos das
“teorias críticas”, inclusive as que se dizem marxistas, sendo talvez por isso tão
ignorado e/ou esquecido.
Sua análise começa por discorrer sobre a forma lingüística rebuscada e o
uso complexo de seus institutos, pois, quando comparada à relação econômica, a
jurídica se dá longe do homem comum, num segundo plano cujos protagonistas
150 Napalm: agente espessante (da borracha natural ao moderno benzeno-poliestireno) de substâncias inflamáveis líqüidas, como a gasolina. Nesse estado gelatinoso, tais substâncias têm sua eficiência multiplicada nas armas lança-chamas, pois permanecem grudadas no alvo até que todo o combustível seja consumido.
151Pachukanis. Pg. 29.152 Pachukanis. Pg. 61.
91
são “uma casta particular” que compreendeu a necessidade de unificar os
diferentes rendimentos do trabalho segundo o princípio da troca de equivalentes.
É precisamente essa a função do direito:“Marx mostra simultaneamente a condição fundamental,
enraizada na estrutura econômica da própria sociedade, da
existência da forma jurídica. Ele descobre assim o profundo
vínculo interno que existe entre a forma jurídica e a forma
mercantil.”153
Por conta dessa característica fundamentalmente óbvia, a “Crítica do
Programa de Gotha”, de Marx, esclarece que o direito dá à igualdade uma forma
geral e abstrata, a qual denuncia uma mentira, vez que o conteúdo de seus
dispositivos insuficientes, confusos e omissos jamais permite a prática de sua
forma enganosa, consolidando a força hipócrita do direito: “[...] como não leva em consideração a desigualdade natural
das aptidões individuais, o direito é, pois, no seu conteúdo, um
direito baseado na desigualdade, como todo direito.”154
Esse modelo arcaico de direito meramente conformado ao novo mundo
burguês, marcadamente mercantil, com todas as suas limitações e falhas, só
poderia se dar enquanto “ordem social estabelecida arbitrariamente”155, e reduziu
o próprio homem, seguindo o mecanismo da liberdade enquanto liberdade de
força de trabalho, à condição de coisa ou, o que é o mesmo, “sujeito jurídico”: “[...] A propriedade não se torna o fundamento da forma jurídica
a não ser enquanto livre disponibilidade de bens no mercado.
É, então, aí que a categoria de sujeito cumpre seu papel de
expressão geral desta liberdade”, fundamentando que seja o
sujeito “o átomo da teoria jurídica, o seu elemento mais
simples, que não se pode decompor”.156
153 Pachukanis. Pg. 25.154 Idem. Pg. 27.155Idem. Pg. 69.156Idem. pg. 69.
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A “livre disponibilidade”, portanto, é a possibilidade de negociar a
propriedade, constituindo, segundo Hilferding, “uma segunda propriedade, que
depende somente da vontade dos seus proprietários”, pelo que “ao mesmo tempo
em que o produto do trabalho reveste as propriedades da mercadoria e se torna
portador de valor, o homem se torna sujeito jurídico e portador de direitos.”
Como, “para a ordem jurídica, 'o fim em si' é apenas a circulação de
mercadorias”157, a conceituação do sujeito evolui tão somente enquanto idealismo
especulativo, qual em Hegel, adquirindo mero caráter formal para o direito, que,
por ignorá-lo enquanto parte mercantilizada, vê “a relação jurídica como forma
acabada, determinada a priori.”158
Se, ao partir da categoria jurídica fundamental, o “sujeito”, Пашуканис
pôde comprovar a falência do sistema jurídico ocidental, foi porque a
racionalidade que nos é típica, também ao partir do homem, reduziu seus
horizontes, coisificando-o. Tão difícil é admitir os séculos de equívocos
provocados pelo antropocentrismo, que, como bem referiu o jurista russo, pouco
se analisa na “ciência jurídica” da essência empobrecida do sujeito, preterindo-a
em face da falsa harmonia da “relação jurídica”.
Certamente, ao cindir um monismo intransponível, criaram-se
pressupostos ofensivos ao progresso humano incapaz de produzir danos, com
conseqüências inimagináveis à própria razão. Apropriada, portanto, a análise de
Huberto Rohden dessa estreita filosofia de vida:“Tem-se dito que a filosofia não oferece base sólida para uma
vida profundamente espiritual e dignamente humana por ser
simples teoria e especulação – e isso é verdade em se
tratando de qualquer sistema filosófico que não ultrapasse o
estreito âmbito das especulações meramente intelectuais, e
analíticas […] O homem inexperiente, que conhece as coisas
apenas por ouvir dizer ou por um processo meramente
analítico-intelectual, considera a racionalidade como contrária à
mística, e a filosofia, como inimiga da religião; mas todo
homem de experiência profunda é um racionalista místico ou
157Idem. Pg. 61.158 Idem. Pg. 70.
93
um místico racional; é um filósofo religioso ou um homem
religioso-filosófico.”159
Concluída, portanto, a tarefa de, ao sacar os mil véus que recobrem as
capas adiposas de sua monstruosidade digna de um Rei Jabba160, comprovar a
total ausência da natureza verdadeiramente humana no direito, e as previsões
corretas de Laozi ao indicar, em tempos tão longínqüos que permanecem
inacessíveis à imaginação, a total impossibilidade de evoluir a partir de uma
ordem externa, que caminhou desde sua insólita criação contra o Curso da Vida:
não apenas deixou de desnaturar a natureza e de humanizar o homem, como o
coisificou.
III.II.II. A CHEIA DO CURSO E DA VIDA: MONÇÕES LAOZIANAS
[...]Quem não tem vidaagarra-se ao seu direito.
Laozi, LXXIX
Em Laozi, o impulso que leva de novo ao ambiente comunitário, precursor
das civilizações urbanas, é muito mais evidente e radical do que a pálida defesa
marxiana de regulações autônomas, como é o caso do respeito às normas
consuetudinárias anteriores ao projeto jurídico do Estado burguês, ou mesmo de
sua inclusão no direito institucionalizado (após a transformação revolucionária das
relações de produção).
Seja pelo período histórico do Grande Sábio, contemporâneo às grandes
involuções que castigaram para sempre o gênero humano, seja por sua amarga
contemplação do que tais mudanças nos destinariam, o aforisma LXXX indica
seu grande desgosto com a urbanização anômala e prega, pela derradeira vez, o
retorno à Idade do Ouro:Um país pode ser pequeno
e poucos os seus habitantes.
159 B. Spinoza. Introdução, pg. 14-15.160 Horrenda criatura imperial do filme “Guerra nas Estrelas”.
94
Instrumentos que multiplicam a força do homem
não devem ser usados.
O povo deve pensar seriamente na morte
e não deve viajar para longe.
Mesmo que haja navios e carros,
ninguém deve servir-se deles.
Mesmo que haja couraças e armas,
ninguém deve ostentá-las:
que o povo volte a fazer nós em cordas
para usá-las à guisa de escrita.
Que faça doce o seu alimento
e belas as suas roupas,
pacífica a sua moradia
e alegres os seus costumes.
Que os países vizinhos estejam ao alcance da vista,
de modo que se possa ouvir de cada lado o canto dos galos e
o latido dos cães;
e assim as pessoas morrerão em idade avançada,
sem ter viajado de um lado para outro.
Os ecos deste aforisma foram determinantes para todo o conhecimento
posterior, incluindo a literatura chinesa, sobretudo nos territórios ao sul do Rio
Amarelo, levada a compor obras de rara beleza como “A fonte do bosque dos
pessegueiros floridos”, de Tau Yuan Ming. E as suas reverberações, como já
vimos, representam um pessimismo que é um momento necessário da energia
crítica e criativa, pois diante das dimensões de tais transformações, Laozi indica,
quando não o Dao em sua plenitude, ao menos uma tendência pela opção ao
“mal menor”.
No ressonante aforisma LXII, propõe, diante do avanço implacável da
sociedade complexa, que, uma vez perdido o Dao, o poder não seja finalmente
institucionalizado: O Tao é a morada de todas as coisas,
o tesouro dos homens de bem,
a proteção dos homens que não são bons.
95
Com belas palavras pode-se ir ao mercado.
Com uma conduta honesta
podemos nos salientar diante dos outros.
Mas os que não são bons entre os homens,
por que se deveria rejeitá-los?
Para isso é investido um soberano,
e os príncipes têm a sua função [...]
O governo, pois, cinde o bom do mau, e rejeita o não-bom enquanto uma
oposição, diverso da reciprocidade, ignorando a essência humana e a
contaminando com o desequilíbrio das vãs diferenciações. Contudo, como a ação
humana se vincula àquilo que se é, ser bom é a única conduta possível, e o mal é
aceito não enquanto mal, mas enquanto a possibilidade de se tornar bom161,
conforme o aforisma XLIX, que se deve repetir: Para os bons, sou bom;
para os que não são bons, também sou bom;
pois a Vida é bondade.
Esse entendimento que refuta dualidades desnecessárias é comum ao
longo de todo o Dao-de Jing e também encerra a crítica ao conhecimento
racional-científico. Pelo que vimos, Ávila Fagúndez o ignora como os seguidores
de Moisés ignoraram Javé diante da atrativa adoração dos ídolos pagãos de ouro.
Voltando-se, pois, ao tema das leis, verifica-se que não apenas
estigmatizam os comportamentos como atuam negativamente sobre eles, sejam
ou não admissíveis na ordenação institucional, vez que ao classificar o bom como
bom e o mau como mau, corrompem, em verdade, qualquer comportamento,
adotando, congenitamente, dois pesos e duas medidas, seja qual for a decisão
que advenha de seu uso. As leis são, assim, por si só, a garantia da plena
injustiça e a negação do homem, e suas pusilânimes mentiras foram bem
descritas por Laozi:[…] Quem, no entanto, reconhece que o bem supremo
161 Pensamento análogo ao que se encontra em Paulo Freire e em muitos filósofos da libertação.
96
consiste na inexistência de ordens?
A ordem transforma-se em caprichos
e o bem se converte em superstição
e os dias de cegueira do povo
duram realmente muito tempo.
Assim também o Sábio:
serve de modelo sem castrar os outros,
é escrupuloso sem ferir,
é natural sem ser arbitrário
e brilha sem ofuscar.
LVII
As fôrmas desengonçadas e desequilibrantes do direito, próprias dos
mecanismos que garantem seu funcionamento sempre parcial e insuficiente nas
sociedades complexas, são evidenciadas no aforisma LXXIX: Quando se aplaca um grande rancor,
ainda resta algum ressentimento.
Como considerar isso um bem?
Por isso o Sábio cumpre o seu dever
e nada exige dos outros.
Por isso quem tem Vida
cumpre o seu dever;
quem não tem Vida
agarra-se ao seu direito.
Ao retribuir tanto à Vida quanto ao rancor com a Vida (“por isso quem tem
Vida cumpre o seu dever”), Laozi mostra que a culpabilização é artífice do
desequilíbrio social, sendo assim, uma aparência que explica a ilusória justiça
entre os homens. Essa é a conclusão fundamental do aforisma: “quem não tem
Vida agarra-se ao seu direito”:Quando se compensa um grande rancor, resta ainda um pouco
de ressentimento. Nesse momento, o peso da culpa se
transfere do ombro do que ofende para o do ofendido, porque
97
este tem a sua vingança. Por isso, o sábio que conhece a vida
tomará sobre si total responsabilidade, não exercendo pressão
sobre o outro.162
Ao reconhecer suas obrigações sem reivindicar os direitos, que em
verdade não correspondem à unidade do “eu”, o Dao neutraliza as contendas e
alcança seu diametral afastamento em relação ao direito; esvazia-o de seus
preceitos morais e sua justiça legalizada, arranca-lhe o domínio institucional e
alheio ao homem naturalmente estabelecido, em seis palavras: promove-o a um
Vazio Jurídico.
Esse “vazio”, que é a revelação do Dao, repousa na moderação,
discrição, tranquilidade, honestidade, modéstia, não-ação, entre tantas outras
atribuições com as quais Laozi designa genericamente o “Sábio”, ninguém mais
do que qualquer outra pessoa pode ser ao voltar, pacientemente, sua
contemplação a si mesma, e, através dela, discernir entre a essência natural que
carrega e que deve preservar e a exterioridade das normas humanas: Quem conhece os outros é inteligente.
Quem conhece a si mesmo é sábio.
Quem vence os outros é forte.
Quem vence a si mesmo é poderoso.
Quem se faz valer tem força de vontade.
Quem é auto-suficiente é rico.
Quem não perde seu lugar é estável.
Quem mesmo na morte não perece, esse vive.
XXXIII
Neste aforisma, a expressão “quem é auto-suficiente é rico” adquire
primeiramente o sentido de contentar-se consigo mesmo, como o refrear dos
162 R. Wilhelm. Pg. 146. Essa imagem do Sábio assemelha-se muito à redenção dos pecados por Jesus Cristo, tomando sobre si, sob os auspícios da morte, a culpa de todos os homens. Não à toa, como já visto, Jesus está ligado às tradições búdicas. A Igreja, contudo, divinizando o homem e institucionalizando os ritos, inverteu a lógica: o pecador, ao se confessar, deve ele próprio se redimir diante do sacerdote, o qual, impassível e comodamente, na situação oposta à do Sábio, prescreve punições como um boticário receita remédios. Aí bem se vê que nem à função primordial de promover o equilíbrio espiritual dos fiéis corresponde a Igreja.
98
impulsos necessário à harmonia com o Dao e à continuação do movimento,
dizendo respeito, portanto, à autonomia, ou seja, a ter em si as próprias leis.
Como, na estrutura dos versos, o segundo par de cada frase se sobressai
em relação ao anterior, é associando-os que se verifica a perfeita completude: ser
auto-suficiente, possuindo as próprias leis, pressupõe mais que inteligência,
sabedoria; mais que força, poder; mais que estabilidade, vida (em seu sentido
místico, de continuidade, de imortalidade, oposto ao da vida egoísta).
E, tomando-se qualquer par, associa-se-o respectivamente com os
demais. Portanto, auto-gerir-se, ser autônomo, está nos pressupostos da vida
completa, natural, e compõe o vasto leque de indícios – agora já incontestáveis -
de que o direito, enquanto regulação externa, diversa do que se é em si mesmo, é
artificial e daninho.
Muito se pode perquerir sobre qual seria a solução para esse mundo de
fatores externos à essência humana e, agora que tomaram dimensões
globalmente titânicas, alheias às vontades do homem comum. Alguns poderão
perscrutar todo o lacônico alfarrábio do Dao-de Jing sem encontrar uma resposta.
Mas essa é uma dificuldade em perceber que a resposta se dá de sua primeira
frase até a última.
No último aforisma da primeira parte, Laozi sintetiza o espírito cósmico e
humano de seu pensamento místico:O Tao é um eterno não-fazer,
e mesmo assim nada fica sem ser feito.
Se os príncipes e os reis souberem como preservá-lo,
todas as coisas se farão por si mesmas.
Se elas se fizerem por si mesmas, provocando a cobiça,
eu as desterro pela simplicidade que não tem nome.
A simplicidade que não tem nome gera a ausência de desejos.
A ausência de desejos cria a serenidade
e o mundo se endireita por si mesmo.
XXXVII
Como tudo na natureza, o Dao é marcado por um desenvolvimento
orgânico que, deixado ao relento, corrige-se e permanece intacto
99
independentemente das intervenções humanas (“o mundo se endireita por si
mesmo”).
Muito catastroficamente lembre-se do que ocorreria à Terra se a
humanidade desaparecesse repentinamente (como geralmente ocorre com as
espécies hiperdesenvolvidas, conforme as melhores teorias arqueológicas das
grandes extinções): em pouco mais de um século não restariam mais vestígios da
existência de nossa espécie, e quase toda a poluição gerada em milênios de
civilização (incluindo mesmo os mais daninhos poluentes) seria filtrada e
reabsorvida pela natureza.
Assim, imaginar um mundo ainda ocupado pela espécie humana, mas na
regência anárquica do Dao e sem qualquer interferência jurídica, é ainda mais
simples: se o Dao corrige o mundo, corrige os homens. Não é preciso criar novas
leis e nem reformular as antigas: abandonando-as, tudo retoma a ordem do
Curso, e as sociedades lentamente se encaminham para o termo médio da
existência: Poupem as palavras,
e tudo andará por si mesmo.
Um ciclone não dura a manhã inteira.
Um aguaceiro não dura todo um dia.
E quem os produz?
O Céu e a Terra.
Se o Céu e a Terra nada podem fazer de durável,
muito menos o pode o homem!
XXIII
A Era é outra, outras são as conjunturas, outras as pessoas, opostos os
hemisférios e diversas as civilizações. Considerar do taoísmo que propõe um raso
“pulo à Natureza” é um equívoco semelhante ao “grande salto adiante”. Nada se
dá repentinamente no taoísmo. O vagar é próprio do Curso, pelo que a lição
essencial de Laozi está em algo imune à crítica fatalista que não pode ver além
da irrisória e impermanente realidade: para além do tempo, de qualquer tempo, e
sob quaisquer condições, com ou sem nefandas leis, o que importa é a vida
tranqüila, a quietude interior e a integração com o Dao.
100
IIII. ILAÇÕES: NO DELTA DO CURSO, A NASCENTE DO CURSO.
Cuida do fim assim como do começo,e nada estará perdido.
Laozi.
Concluir um tema em si inconcluso e fadado a um destino cíclico, como o
é por sua natureza a filosofia do Dao, seria tarefa ingrata em sua impossibilidade,
não tivesse Voltaire, tomado pelo espírito irresignável dos que se abstêm do
mundo exterior, excedido-se em poética contemplação e talhado na última frase
de “Cândido” o clímax de seu desgosto com a insanidade dos regimes
absolutistas europeus e, em última análise, com toda a humanidade:- Tudo isso é muito bonito, mas o que é preciso é cultivar o
nosso jardim.
Já em antecipação à censura prolixa que se abate raivosa sobre os que
poupam à reflexão após tantas palavras, insiste-se que mais dizer pouco ajudará
o jardim, pois é chegado o momento de apenas aceitar a benéfica recorrência que
se faz ler no belíssimo aforisma XLVI: Quando o Tao reina sobre a Terra,
usamos cavalos de corrida para puxar esterco.
Quando o Tao se perdeu na Terra,
criamos cavalos de guerra nos pastos verdes.
Não há pecado maior do que ter muitos desejos.
Não há desgraça maior do que ser insaciável.
Não há falta maior do que querer possuir.
Por isso:
a suficiência da suficiência é a suficiência que dura.
101
ESCÓLIOS MEDITATIVOS
Desvairio laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em
500 páginas uma idéia cuja exposição oral cabe em poucos minutos.Jorge Luis Borges
FILOSOFIA:LAO-TZU. Tao-te King. Texto, tradução do mandarim e comentários: Richard
Wilhelm. Tradução do alemão: Margit Martincic. São Paulo: Editora Pensamento,
1995.
LAOZI. Dao De Jing. Organização e tradução do mandarim: Mário Bruno
Sproviero. São Paulo: Hedra, 2007.
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------
BARUCH DE SPINOZA. Ética demonstrada à maneira dos geômetras. Tradução:
Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002.
CONFÚCIO. Os Analectos. Tradução do mandarim: D.C. Lau. Tradução do inglês:
Caroline Chang. Porto Alegre: L&PM, 2007.
ENRIQUE DUSSEL. 1492: El encobrimiento del otro. La Paz: Plural Editores,
1984.
_______ Hipótesis para el estudio de latinoamerica em la historia universal.
Buenos Aires: Clacso, s/d.
E.P. THOMPSON. A miséria da Teoria: um planetário de erros - crítica ao
pensamento político de Althusser. S/e, s/l, s/d.
ERASMO DE ROTTERDAM. Elogio da Loucura. Tradução: Alex Marins. São
Paulo: Martin Claret, 2002.
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