O USO DE DROGAS COMO QUESTÃO SOCIAL: UMA ANÁLISE DA ...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CINCIAS JURDICAS E ECONMICAS
INSTITUTO DE ECONOMIA Curso de Especializao lato sensu em Polticas Pblicas
O USO DE DROGAS COMO QUESTO SOCIAL: UMA ANLISE DA POLTICA DE ACOLHIMENTO
COMPULSRIO DE CRIANAS E ADOLESCENTES USURIOS DE DROGAS NA CIDADE DO RIO DE
JANEIRO
ANA CLARA TELLES CAVALCANTE DE SOUZA
ORIENTADORA: Profa. Thula Rafaela de Oliveira Pires
DEZEMBRO 2013
__________________________________________________________________________________________www.neip.info
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CINCIAS JURDICAS E ECONMICAS
INSTITUTO DE ECONOMIA Curso de Especializao lato sensu em Polticas Pblicas
O USO DE DROGAS COMO QUESTO SOCIAL: UMA ANLISE DA POLTICA DE ACOLHIMENTO
COMPULSRIO DE CRIANAS E ADOLESCENTES USURIOS DE DROGAS NA CIDADE DO RIO DE
JANEIRO
ANA CLARA TELLES CAVALCANTE DE SOUZA
Monografia de concluso do Curso de Especializao lato sensu em Polticas Pblicas, apresentada ao Instituto de Economia da UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de especialista em Polticas Pblicas.
ORIENTADORA: Profa. Thula Rafaela de Oliveira Pires
DEZEMBRO 2013
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As opinies expressas neste trabalho so da exclusiva responsabilidade do autor
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Ptria amada, o que oferece a teus filhos Sofridos:
Dignidade ou jazigos? Criolo, Lion Man
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AGRADECIMENTOS Agradeo, sempre em primeiro lugar, minha me, por ser minha eterna fonte de inspirao e incentivo. Agradeo, tambm, professora Thula Pires, pela brilhante orientao e por suas aulas fantsticas. Devo muito, ainda, Fabiana Gaspar, por ter aceitado compor a banca examinadora e, especialmente, por, l atrs, ter acreditado em mim quando nem eu acreditava. Meus agradecimentos, ainda, equipe do curso, com meno especial Luisa Maciel. Por fim, ao Fabiano, meu companheiro de vida e de sonhos.
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RESUMO Durante o sculo XX, o Brasil, pautado pelo chamado proibicionismo, comprometeu-se com uma srie de tratativas internacionais que probem a produo, a circulao e o consumo de determinadas substncias psicoativas. Desde ento, sob esta lgica proibicionista que o pas vem formulando polticas pblicas sobre drogas ilcitas. O presente trabalho pretendeu analisar, nesse contexto, a poltica de acolhimento compulsrio de crianas e adolescentes usurios de drogas levada a cabo na cidade do Rio de Janeiro pela ento Secretaria Municipal de Assistncia Social (SMAS/RJ) durante os anos de 2011 e 2012. Foi objetivo da pesquisa investigar at que ponto essa poltica pode ser identificada como ao pautada pelas lgicas do tratamento e do cuidado, ambientada, portanto, fora da esfera penal do Estado. A pesquisa utilizou prioritariamente referenciais tericos da Sociologia e da Criminologia Crtica. Pretendeu-se elaborar, ainda, um rpido panorama das polticas sobre drogas elaboradas em mbito internacional, bem como uma perspectiva histria das polticas pblicas sobre drogas desenvolvidas no Brasil. Para tal, o estudo requereu pesquisa a partir de duas linhas metodolgicas: a pesquisa documental e a pesquisa bibliogrfica. Com base no que foi estudado, entendeu-se que, embora a referida poltica esteja identificada administrativamente como ao de Assistncia Social vinculada, na cidade do Rio de Janeiro, ento SMAS/RJ , na prtica, ela se inseria em uma poltica mais ampla de controle (via proibio) de drogas ilcitas que, executada nacional e internacionalmente, tem como base a represso penal e o controle social. Pde-se concluir, assim, que a referida poltica e, de um modo geral, as polticas pblicas sobre drogas no Brasil, por estarem sob o guarda-chuva do proibicionismo ocidental, tornam-se impossibilitadas de concretizar as lgicas de terapia, cuidado e autonomia que deveriam estar em sua base, atuando, em realidade, como um brao do sistema penal estatal. Palavras-chave: Drogas; Proibicionismo; Polticas Pblicas; Acolhimento Compulsrio; Crianas e Adolescentes; Sistema Penal.
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SMBOLOS, ABREVIATURAS, SIGLAS E CONVENES AA Alcolicos Annimos ALERJ Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro ABORDA Associao Brasileira de Redutores de Danos CAPS Centro de Ateno Psicossocial CAPS-AD Centro de Ateno Psicossocial em lcool e Outras Drogas CBDD Comisso Brasileira sobre Drogas e Democracia CDHC/ALERJ Comisso de Direitos Humanos e Cidadania/ALERJ CETAD Centro de Estudos e Tratamento de Abuso de Drogas CNAS Conselho Nacional de Assistncia Social CONAD Conselho Nacional de Polticas sobre Drogas CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criana e do Adolescente CNS-DST/AIDS Coordenao Nacional de DST/AIDS CREAS Centro de Referncia Especializado de Assistncia Social CRESS/RJ Conselho Regional de Servio Social/RJ CRP/RJ Conselho Regional de Psicologia/RJ DEGASE Departamento Geral de Aes Socioeducativas DPCA Delegacia de Proteo a Criana e Adolescente UNODC Escritrio das Naes Unidas sobre Drogas e Crime IHRA International Harm Reduction Association JIFE Junta Internacional de Fiscalizao de Entorpecentes OAB Organizao dos Advogados do Brasil OMS Organizao Mundial de Sade ONU Organizao das Naes Unidas PNAD I Poltica Nacional Antidrogas PNAD II Poltica Nacional sobre Drogas PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PTS Programa de troca de seringas PT Partido dos Trabalhadores REDUC Rede Brasileira de Reduo de Danos SDH/PR Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica SENAD Secretaria Nacional de Polticas sobre Drogas SISNAD Sistema Nacional de Polticas Pblicas sobre Drogas SUPERA Sistema para Deteco do Uso Abusivo e Dependncia de Substncias
Psicoativas: Encaminhamento, Interveno Breve, Reinsero Social e Acompanhamento
SMAS/RJ Secretaria Municipal de Assistncia Social/RJ SMDS/RJ Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social/RJ SMS/RJ Secretaria Municipal de Sade/RJ SUS Sistema nico de Sade UA Unidade de Acolhimento UNGASS United Nations General Assembly Special Session UNICEF United Nations Childrens Fund
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NDICE
INTRODUO ........................................................................................................................ 8
CAPTULO I: POLTICAS GLOBAIS DE CONTROLE DE DROGAS ILCITAS ..... 12
I.1 Trajetria internacional dos movimentos de criminalizao de drogas ......................... 12
I.2 Medicalizao e militarizao no controle de substncias psicoativas .......................... 16
I.3 Efeitos primrios e secundrios da criminalizao das drogas ...................................... 22
CAPTULO II: POLTICAS PBLICAS SOBRE DROGAS NO BRASIL .................... 29
II.1 Do processo de elaborao de polticas pblicas .......................................................... 29
II.2 Drogas no Brasil: de uma questo privada a uma questo de polticas pblicas .......... 31
II.3 A virada dos anos 90: preveno, reduo de danos e respeito dignidade humana ... 37
CAPTULO III: ACOLHIMENTO COMPULSRIO DE CRIANAS E ADOLESCENTES USURIOS DE DROGAS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO ... 49
III.1 Caracterizao, marcos normativos, prticas cotidianas .............................................. 49
III.2 Recebimento, questionamentos e crticas .................................................................... 52
III.3 Consideraes finais .................................................................................................... 60
CONCLUSO ......................................................................................................................... 64
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................. 67
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INTRODUO
Durante o sculo XX, o Brasil se comprometeu gradualmente com uma srie de
tratativas internacionais que probem a produo, a distribuio e o consumo de determinadas
substncias psicoativas. Juntos, estes marcos normativos conformam um regime internacional
de controle de drogas ilcitas que, impulsionado por organismos internacionais como a
Organizao das Naes Unidas (ONU), tm como objetivo final alcanar um mundo sem
drogas (UNGASS, 1998). Desde ento, sob a lgica da proibio que o pas vem
formulando uma srie de estratgias de abordagem a estas substncias, e que variam desde
aes no mbito jurdico-penal at polticas pblicas pretensamente elaboradas nas reas da
sade e da assistncia social.
O presente trabalho pretende analisar, nesse contexto, a poltica de acolhimento
compulsrio de crianas e adolescentes usurios de drogas levada a cabo na cidade do Rio de
Janeiro pela ento Secretaria Municipal de Assistncia Social (SMAS/RJ). Normatizada pela
Resoluo n 20 que, publicada no Dirio Oficial do Municpio do Rio de Janeiro em 27 de
maio de 2011, estabelecia o Protocolo do Servio Especializado em Abordagem Social, esta
poltica determinava, entre outras coisas, os parmetros de abordagem e recolhimento de
crianas e adolescentes que estivessem em situao de rua em perodo noturno e, ou, que
estivessem sob ntida influncia do uso de drogas. Caso a segunda situao fosse verificada
e este o foco do presente trabalho , o procedimento indicado seria o de encaminhamento
compulsrio a abrigo especializado, uma vez diagnosticada a necessidade de tratamento
para recuperao (art. 5, 3).
Embora, discursivamente, sua proposta tenha sido a da terapia e de cuidado, a poltica
de acolhimento compulsrio da ento SMAS/RJ encontrou oposio em variadas
instituies e organizaes da sociedade civil, especialmente no que tange a alegadas
violaes aos direitos da criana e do adolescente, aos Direitos Humanos e a preceitos
constitucionais como o da autonomia e dignidade humanas. Tendo essas crticas em vista,
objetivo da pesquisa investigar at que ponto essa poltica pode ser identificada, de fato, como
ao pautada pelas lgicas do tratamento e do cuidado, ambientada, portanto, fora da esfera
penal do Estado. Para tal, o estudo se estruturou em torno de trs perguntas norteadoras: (1) o
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que guia, em termos de rationale, as polticas pblicas sobre drogas nas sociedades ocidentais
modernas? (2) Como o Brasil se insere nesse contexto? (3) Como a poltica de acolhimento
compulsrio se insere nesse contexto?
Aps a reeleio de Eduardo Paes para a prefeitura do municpio do Rio de Janeiro, no
final de 2012, o vice-prefeito Adilson Pires (PT-RJ) assumiu o cargo de secretrio municipal
de Assistncia Social, ocupado, anteriormente, por Rodrigo Bethlem. Meses depois, efetuou-
se a mudana de nome da secretaria, que passou a se chamar Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social (SMDS/RJ). A mudana de chefia da secretaria significou, ademais
de uma simples de troca de comando e de nome, algumas importantes inflexes na forma
como se conduziam as polticas sobre drogas, sendo talvez a mais evidente a reformulao e
ampliao do projeto Casa Viva, que congregava algumas das principais instituies de
abrigamento de crianas e adolescentes no mbito da poltica de acolhimento compulsrio1.
Por esse motivo, e tendo em vista a escassez de bibliografia tcnica e acadmica sobre
mudanas to recentes, decidimos delimitar temporalmente nosso objeto de estudo, a fim de
evitar concluses precipitadas e crticas incompletas. Dessa forma, analisaremos as normas,
os discursos e as prticas associadas poltica de acolhimento compulsrio na cidade do
Rio de Janeiro no que tange ao perodo de 2011 a 2012, quando ela ainda era executada pela
ento SMAS/RJ, e quando iniciamos nossa pesquisa. Ainda que sutis mudanas possam estar
em curso, acreditamos que a poltica de acolhimento compulsrio constituiu parte
importante do paradigma de abordagem do municpio a questes relativas ao uso de drogas, e
por isso julgamos importante estud-la a fundo, investigando suas premissas e o contexto em
que ela se inseria quando foi elaborada.
Cabe, ainda, uma breve observao sobre a escolha do termo acolhimento, entre
aspas, para tratar da prtica de recolhimento e abrigamento compulsrios das crianas e dos
adolescentes em situao de rua. Como Mrcia Elizabeth Gatto Brito (2011) salienta, a
expresso acolhimento foi largamente utilizada pelo governo municipal do Rio de Janeiro
como forma de oposio terminologia recolhimento, adotada, em forma de denncia, por
variados movimentos e instituies de defesa dos Direitos Humanos e das crianas e
1 De acordo com informaes oficiais, uma das principais mudanas foi a integrao s aes da SMDS/RJ das polticas de sade e de educao do municpio, com o objetivo de construir um servio que possibilite que os usurios restabeleam laos, criem memria e reintegrem-se sociedade (VIVA RIO, 2013). Os recolhimentos, no entanto, continuam a se dar compulsoriamente, discursivamente respaldados pelo Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), segundo fontes extraoficiais. Ainda assim, percebem-se graduais mudanas em relao abordagem da administrao anterior, tanto no nmero das aes quanto na forma como elas tm sido executadas pelas equipes dos Centros de Referncia Especializados de Assistncia Social (CREAS).
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adolescentes. Escolhemos colocar o primeiro termo em destaque como forma de evidenciar as
tenses polticas que o subjazem, bem como as contradies em que entrava o poder pblico
quando reiteradamente utilizava a referida terminologia para designar tudo, menos uma ao
de acolhida.
Em termos de metodologia, o estudo desenvolvido requereu pesquisa a partir de duas
linhas metodolgicas: a pesquisa documental e a pesquisa bibliogrfica. A pesquisa
documental permitiu o acesso s normas domsticas e internacionais para cumprir o objetivo
de caracterizao das polticas sobre drogas no Brasil e no mundo. Ainda, foi ferramenta-
chave para a anlise da poltica de acolhimento compulsrio de crianas e adolescentes
usurias de drogas executada na cidade do Rio de Janeiro como objeto de estudo proposto ,
atravs da leitura de suas diretrizes governamentais e fundamentos normativos, alm de
relatrios governamentais e no governamentais que versam sobre ela. Por outro lado, por
requerer reflexo sobre os dados coletados, a pesquisa bibliogrfica proporcionou acesso a
obras cientficas reflexivas e crticas dos objetos do presente estudo, sobretudo aquelas
desenvolvidas no mbito da Sociologia e da Criminologia Crtica, colaborando, assim, para a
construo dos argumentos do trabalho.
Ainda, justificamos nossos esforos de pesquisa com base em duas expectativas. Em
primeiro lugar, buscamos contribuir, dentro do campo das polticas pblicas, para o reforo de
uma prtica de reflexo e reviso que acredita ser instrumento essencial para o
aperfeioamento do trato pblico s questes cotidianas. Ainda, oferecendo questionamentos
e buscando novas perspectivas para a questo, esperamos poder colaborar tambm para o
fortalecimento terico e analtico das polticas pblicas sobre drogas pensadas e praticadas
cotidianamente no pas.
Por fim, cabe comentar o caminho que percorreremos na busca por respostas s nossas
perguntas de pesquisa. No primeiro captulo, procuraremos delimitar o trajeto histrico do
regime internacional de controle de drogas ilcitas, comentando seus principais paradigmas de
abordagem, bem como alguns dos aportes tericos crticos que versam sobre o proibicionismo
internacional. No segundo captulo, buscaremos caracterizar as polticas brasileiras sobre
drogas nesse contexto, cabendo, inclusive, uma breve exposio sobre processos de
elaborao de polticas pblicas. Enfim, no terceiro e ltimo captulo, passaremos a analisar
especificamente a poltica de acolhimento compulsrio de crianas e adolescentes usurios
de drogas na cidade do Rio de Janeiro, abordando suas principais normas e prticas, seu
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recebimento e suas crticas, e finalizando com comentrios e reflexes finais tendo em vista
tudo o que foi anteriormente estudado.
Esperamos, com isso, responder de forma minimamente satisfatria aos trs
questionamentos que guiam nossa pesquisa.
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CAPTULO I: POLTICAS GLOBAIS DE CONTROLE DE DROGAS ILCITAS
I.1 Trajetria internacional dos movimentos de criminalizao de drogas
Nos anos 2000, a obrigao internacional de controlar o uso, o porte e o comrcio de
drogas ilcitas j alcanava 95% dos Estados-membros da Organizao das Naes Unidas
(ONU), atingindo 99% da populao mundial (JIFE, 2009). Por obrigao, entendem-se os
compromissos assumidos por tais Estados-nao, atravs de um conjunto de convenes e
tratados internacionais, em controlar dentro e fora de suas fronteiras a circulao de tais
substncias com o objetivo de diluir o uso por suas populaes (SOUZA, 2011, p. 19). O
controle internacional de drogas ilcitas, no entanto, processo recente na histria mundial,
cuja movimentao normativa data, especialmente, do incio do sculo XX, quando se iniciou
a maior parte dos movimentos de criminalizao e proibio de determinadas substncias
psicoativas nos Estados nacionais (RODRIGUES, L., 2006).
Atualmente, a sustentao do regime internacional de controle de drogas ilcitas se d,
principalmente, atravs das trs convenes sobre o tema elaboradas no mbito da ONU, que,
na segunda metade do sculo XX, uniformizaram e deram vida prtica s responsabilidades
estatais de fiscalizao em mbitos domstico e global (RODRIGUES, L., 2006). Os
primeiros movimentos de coordenao internacional em torno do tema, no entanto, so
ligeiramente anteriores a elas e tm como referncia a Conferncia de Xangai, de 1909, que
reuniu as principais potncias coloniais europeias, os Estados Unidos e representantes do
imprio chins com o objetivo de colocar o controle do pio na pauta das discusses
internacionais. Apesar dos poucos efeitos prticos devido ao lobby da indstria farmacutica
europeia, a conferncia representou a primeira tentativa de elaborao de um sistema de
cooperao internacional em questes sobre drogas, tornando-se inspirao para a 1
Conveno sobre pio de Haia, em 1912 (RODRIGUES, L., 2006).
A Conferncia de Xangai deve ser entendida, ainda, no contexto das ambies polticas
em torno no continente asitico, especialmente a partir dos Estados Unidos, cuja poltica
externa voltava-se, no incio do sculo XX, para a China (RESTREPO, 2002). Dcadas antes,
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a Guerra do pio (1839-1842) entre China e Reino Unido [havia] aberto definitivamente o
mercado chins para a entrada macia da papoula de pio e seus derivados, sobretudo
aqueles advindos da ndia, ainda sob controle britnico (SOUZA, 2011, p. 20). Por esse
motivo, o impulso a uma movimentao internacional de controle do pio e seus derivados
desconstrua um importante vetor de hierarquia de produo entre os Estados europeus e a
China e servia, portanto, aos interesses polticos dos Estados Unidos, o principal
impulsionador da Conferncia de Xangai (RESTREPO, 2002; SOUZA, 2011).
Essa movimentao, no entanto, s veio a se concretizar em um tratado internacional
sobre o tema com a Conveno sobre pio, de 1912, que restringiu o uso ldico das
substncias narcticas pio e seus derivados e tambm da cocana, em posio de grande
visibilidade nas sociedades ocidentais (RODRIGUES, L., 2006). Junto Conveno
Internacional sobre pio de 1925, ela delineou o modelo multilateral de interveno em
questes de drogas que seria consolidado pelas convenes de Genebra de 1931 e 1939 e,
mais tarde, pelas trs convenes da ONU na forma de proibio. Esses instrumentos
normativos tambm foram importantes para que se justificassem, em nvel domstico,
alteraes nas legislaes estatais, impulsionando a aprovao de leis rgidas sobre controle
de drogas nos Estados Unidos, na Frana e no Reino Unido (RODRIGUES, L., 2006).
J sobre um aspecto subjetivo, Andrs Lpez Restrepo (2002) nos indica que a
construo da proibio internacional de determinadas substncias psicoativas tem razes em
dois fenmenos em especfico que se interrelacionam: o puritanismo de origem protestante,
por um lado, e a hierarquia social e racial existente nos Estados Unidos, por outro. Em relao
ao primeiro, Restrepo diz que o movimento gradual de controle e proibio de determinadas
substncias psicoativas teve influncia direta do protestantismo, cuja moral religiosa se
baseava em preceitos de sobriedade e abstinncia. O autor explica que a ocorrncia desse
fenmeno no exclusiva aos Estados Unidos, Estado marcadamente influenciado poltica e
ideologicamente pela moral protestante, mas tambm esteve presente nos Estados europeus de
denominao luterana, entre eles, os escandinavos; nos Estados Unidos, porm, o extremismo
com que a movimentao em direo proibio foi conduzida levou ao que Restrepo
identifica como o atual proibicionismo2 estadunidense, hoje difundido em escala mundial.
2 No presente trabalho, o proibicionismo ser entendido como a ideologia que sustenta a proibio como a melhor forma de lidar com as questes sociais advindas do uso problemtico de determinadas drogas, em consonncia ao que j foi previamente defendido em SOUZA, 2011.
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J no que concerne ao segundo fenmeno, Restrepo faz correlao direta entre os
movimentos em direo proibio do consumo de determinadas substncias psicoativas e a
relaes verticais de poder de base tnico-racial existentes nos Estados Unidos, que
concediam a cidadania plena notadamente aos homens brancos, protestantes e anglo-saxes.
De acordo com o autor, havia, nos Estados Unidos, uma cidadania parcial ou recortada, em
que minorias tnicas e religiosas eram excludas do processo cvico (RESTREPO, 2002, p. 8).
Muitas delas, usurias tradicionais ou culturais de drogas ou socialmente identificadas como
tal , viram-se moral e socialmente constrangidas pelas investidas penais de controle de
substncias psicoativas ilcitas, levando consigo o rtulo de criminosas.
A concluses semelhantes chega Thiago Rodrigues (2012), que expe ainda que a
afinidade entre o controle de drogas ilcitas e a prtica de controle social contra minorias
sociais, tnicas ou imigrantes tambm verificada em outras sociedades, como a brasileira:
Nos EUA, esse vnculo, de corte xenfobo e racista, aconteceu com a maconha, identificada com os hispnicos, o pio com os chineses, a cocana com os negros, o lcool com os irlandeses e italianos; no Brasil, a herona, por exemplo, tornou-se um problema de sade pblica quando, nos anos 1910, passou a ser tida como droga de cafetes e prostitutas, enquanto a maconha, vista como substncia de negros capoeiras, era associada a um problema de ordem pblica j no sculo XIX (RODRIGUES, 2004; PASSETTI, 1991). (RODRIGUES, T., 2012, p. 10)
Quando internacionalizado, o proibicionismo estadunidense foi potencializado pelo
carter racista e paternalista da poltica externa do pas, que trabalhava a partir de dois
pressupostos especficos: em primeiro lugar, a noo de que tinham o dever de libertar os
outros povos do mundo; e, em segundo lugar, o entendimento de que esse dever lhe era
imputado porque, como nao branca e anglo-sax, os Estados Unidos tinham
responsabilidade tnico-racial sobre as outras naes (HUNT, 1987 apud RESTREPO,
2002). Essa dupla viso j se via refletida na prpria configurao poltica que delineou a
Conferncia de Xangai e, mais tarde, as convenes sobre o pio, servindo a um propsito
misto de interferir politicamente nas relaes hierrquicas de poder entre China e Reino
Unido, por um lado, e amenizar o problema do consumo problemtico de pio por
determinada parcela da populao chinesa preocupao da agenda dos grupos missionrios
protestantes , por outro (cf. LA FEBER, 1995 apud RESTREPO, 2002).
Em resumo, Andrs Lpez Restrepo afirma que a proibio dessas substncias
Permitiu que, nos Estados Unidos, um grupo de brancos e protestantes impusesse sua viso do lcool e das drogas sobre outros grupos. Dessa maneira, o proibicionismo pode ser considerado
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como uma forma de racismo, pois, em parte, resultado da existncia de hierarquia social. (RESTREPO, 2002, p.8)
Uma vez criada a ONU, o controle internacional de drogas ilcitas teve suas linhas
mestras definidas atravs de trs convenes, claramente influenciadas por um carter
proibicionista (RODRIGUES, L., 2006, p. 39). Segundo Luciana Boiteux Rodrigues (2006), a
primeira delas, a Conveno nica sobre Entorpecentes, de 1961, trazia s polticas estatais
de controle de drogas trs novidades principais: [1] a instituio em escala internacional e
generalizada da obrigao de controle de drogas ilcitas em seus diversos estgios de
produo cultivo, comrcio e consumo; [2] a expressa proibio do consumo das
substncias ilcitas para fins no controlados, incluindo o uso religioso ou tradicional; e [3] a
delegao primria aos Estados signatrios da responsabilidade de incorporao do que na
conveno estava previsto. Dessa forma, a conveno concretizava uma abordagem
estadocntrica em matria de drogas ilcitas, criava uma srie de demandas domsticas por
servios de represso para satisfazer as obrigaes convencionadas e, especialmente, dava
aval para que os Estados se sobrepusessem em relao aos interesses de suas populaes
tnicas, incriminando o uso cultural de substncias naturais de uso tradicional e religioso
como o pio, a folha de coca e a cannabis (SOUZA, 2011).
Como referncia, a Conveno adotou um sistema de classificao do controle de
drogas a partir de um modelo de quatro listas que designavam tratamento poltico-legal
distinto para substncias psicoativas de acordo com sua potencialidade de abuso e sua
possibilidade de uso para fins teraputicos. Na existncia da primeira e inexistncia da
segunda, a conveno recomendava a adoo de expressa proibio, relacionando as
substncias na Lista I entre elas, o pio e seus derivados, a folha de coca, a cocana e a
cannabis. Para controle mdico-cientfico desse sistema, a conveno indicava a Organizao
Mundial de Sade (OMS), responsvel por sugerir alteraes ou, no caso de sugestes
advindas de outras partes, dar a palavra final sobre a pertinncia cientfica das argumentaes
(CONVENO NICA SOBRE ENTORPECENTES, 1961).
Dez anos depois, em 1971, a ONU impulsionava mais uma conveno sobre o tema, a
Conveno sobre Substncias Psicotrpicas. Nesse documento, foram contempladas
substncias psicoativas que no haviam sido controladas pelo instrumento normativo anterior,
especificamente aquelas produzidas de maneira industrializada, em laboratrio, e que haviam
se difundido sobremaneira na dcada anterior (RODRIGUES, L., 2006). No por acaso,
entrou no rol de substncias expressamente proibidas o cido lisrgico, ou LSD, substncia
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que se acreditava ser largamente utilizada pela classe mdia jovem e branca dos Estados
ocidentais, a mesma que incensava movimentos insurgentes de contracultura e de
questionamento poltico-social (RODRIGUES, T., 2003).
Por ltimo, em 1988, foi posta em cena a Conveno das Naes Unidas contra o
Trfico Ilcito de Entorpecentes e Substncias Psicotrpicas. Associando de vez o trfico de
drogas ilcitas ao crime organizado transnacional e posicionando-o como ameaa global, o
texto da conveno chamava os Estados-parte a acirrarem suas leis penais em direo
represso no apenas do comrcio ilcito, mas tambm do prprio usurio das substncias
proscritas, que passou a ser expressamente incriminado (RODRIGUES, L., 2006). Alm
disso, colocava no centro da atuao internacional contra o trfico ilcito a diminuio da
oferta dessas substncias via erradicao de cultivos ilegais, inaugurando uma dcada de
recorrentes intervenes a Estados produtores de drogas, sobretudo os latino-americanos,
sob influncia dos Estados Unidos.
No obstante, as trs convenes da ONU sobre o tema anunciam no apenas
movimentao de cunho normativo e legal em direo proibio de determinadas drogas,
como so tambm e especialmente expresso direta dos processos intersubjetivos de
difuso de valores e conhecimento acerca dessas substncias. Neste trabalho, sero enfocados
dois movimentos principais de abordagem a questes sobre drogas que se lanam, ao mesmo
tempo, em campo domstico, regional e global os processos de medicalizao e
militarizao que giram em torno do fenmeno das substncias psicoativas e definem, em
grande parte do mundo, o trato pblico sobre o tema. A prxima seo ser dedicada ao
detalhamento destes movimentos, a fim de demonstrar como permearam a elaborao e
difuso dos trs marcos normativos principais em matria de drogas em mbito internacional.
I.2 Medicalizao e militarizao no controle de substncias psicoativas
O processo de apropriao das questes relativas ao uso de drogas pelo discurso mdico
recente, e a prpria constituio da medicina moderna como cincia legtima coincide com o
perodo de formulao do fenmeno contemporneo das drogas (ADIALA, 1986 apud
FIORE, 2002). Em perodos anteriores, a droga, como substncia psicoativa, era manipulada
pelo saber mdico como objeto de investigao, mas prioritariamente no sentido de busca da
cura para males e doenas humanas (RODRIGUES, L., 2006). Conforme nos informa o
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antroplogo Maurcio Fiore (2002), apenas no incio do sculo XX que algumas substncias
psicoativas passam a ser entendidas, pela medicina, como portadoras de potencialidades
malficas, momento em que a prpria questo das drogas se constitui (FIORE, 2002, p. 4
grifos nossos).
A medicalizao em torno de questes de drogas acompanha a prpria inflexo que
ocorria no interior da cincia mdica a respeito da definio de patologias relacionadas a essas
substncias (FIORE, 2002). Se, no sculo XVIII, o uso problemtico de substncias
psicoativas era estreitamente associado a aspectos morais, culturais e raciais do indivduo, j
no sculo XX a dependncia qumica vai ser considerada uma entidade nosolgica
especfica, podendo ser diagnosticada separadamente de caractersticas pessoais (FIORE,
2002, p. 11). Dessa forma, a medicina passa a identificar na droga o vetor de uma doena, e
no na pessoa que a consome, deixando de classific-la como usurio-problema.
No entanto, especialmente atravs do estabelecimento do Estado teraputico que a
medicina ganha legitimidade exclusiva para tratar, em nome do Estado, da sade de sua
populao (ROSEN, 1994 apud FIORE, 2002). Mais ainda, com sua criao, designada ao
prprio aparelho estatal a funo de fiscalizao e controle de prticas sanitrias no
autorizadas pela cincia mdica legtima, fenmeno que pode ser observado sobremaneira na
dinmica das polticas estatais sobre drogas. Na contemporaneidade, o discurso mdico o
saber autorizado a versar sobre o assunto de drogas, amparado legalmente pelo Estado e
discursivamente pelo senso comum (FIORE, 2002).
Rosa Del Olmo (1990) tambm nos informa que o discurso mdico constitui parte
importante na construo de esteretipos sobre o uso e o usurio dessas substncias,
contribuindo para o controle social informal que, para a criminloga, to importante para a
boa operao do controle social formal neste caso, o aparelho jurdico estatal. Em
conjugao com os discursos dos meios de comunicao e os discursos morais, o discurso
mdico legitima alguns estigmas sobre o usurio de drogas, notadamente os do doente e do
dependente; [d]aquele que se ope ao consenso normalmente, jovem; do viciado ou
do ocioso; e daquele que se rendeu ao prazer proibido (OLMO, 1990, p. 23-24). Segundo
a autora, esses trs discursos reforam e so reforados, ainda, pelo discurso jurdico que,
criminalizador, apoia-se na alegada periculosidade dessas substncias para marcar de vez a
diferenciao entre as drogas lcitas das ilcitas; entre os consumidores de umas e de outras; e
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tambm entre o consumidor (o doente) e o traficante (o criminoso) movimento que o
criminalista Salo de Carvalho (1997) chama de ideologia da diferenciao.
A relao entre medicalizao e criminalizao tambm apontada por Fiore (2002),
que prossegue afirmando que os discursos mdicos acabam legitimando no uma abordagem
multidisciplinar a questes de uso de drogas, pautada pela terapia e pelo cuidado, mas sim um
arcabouo de entendimento ao fenmeno de cunho moral e biopoltico, adaptado a um
conjunto amplo de outros saberes sobre drogas, inclusive aqueles vindos do senso comum
(FIORE, 2002). Sob o pretenso objetivo de defender interesses superiores da humanidade,
os discursos mdicos sobre drogas dizem resguardar um distanciamento dos diversos aspectos
que compem a questo que no encontra respaldo na realidade (FIORE, 2002, p. 24).
Sobretudo, conforme nos d a entender o trabalho de Maurcio Fiore, situam-se em sua
relao dialtica com a criminalizao, legitimando-a permanentemente e por ela tambm
sendo constantemente autorizada.
No processo de internacionalizao do proibicionismo estadunidense que impulsionou
a difuso de normas legais nacionais e internacionais de proibio de determinadas drogas , a
medicina teve papel destacado, endossando cientificamente os argumentos a favor do controle
e da criminalizao internacional sobre essas substncias. Esse posicionamento pode ser
entendido, em parte, como estratgia eficiente dentro do complexo contexto de disputas que
rondava a consolidao da medicina como saber legitimamente cientfico (FIORE, 2002, p.
5). No apenas era objetivo mdico a monopolizao da manipulao de receitas e remdios,
como era interessante, para a estabilizao da medicina social, o estigma e a criminalizao de
condutas da medicina popular, incluindo o uso no mdico das substncias de propriedade
psicoativa (FIORE, 2002; ver tambm RODRIGUES, T., 2007).
Na Conveno nica sobre Entorpecentes de 1961, o esprito da medicalizao da
questo das drogas j estava explicitamente colocado; em seu prembulo, a carta a
classificava como um mal grave para o indivduo e [que] entranha um perigo social e
econmico para a humanidade. Se, por um lado, o saber mdico dava legitimidade ao
discurso da proibio, amparada em argumentos cientficos confiveis e imparciais, por
outro, a cincia mdica era pela proibio internacional definitivamente legitimada como
demonstrado pela centralizao do discurso legitimador nas mos da OMS, responsvel pelo
controle das listas de substncias psicoativas. Alm disso, seu carter estadocntrico
suportava o modelo do Estado teraputico que, visando a preservar nas mos da medicina o
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conhecimento sobre sade e drogas, demandava ao Estado o dever de coibir qualquer
manipulao no mdica dessas substncias.
Sendo assim, tornadas uma questo de sade pblica, as drogas tiveram seus poderes de
cura e tratamento discursivamente diminudos diante de seu alarmado potencial malfico e
destruidor. Nos anos 1960 que testemunharam a popularizao e o alastramento do consumo
de maconha e cido lisrgico pela classe mdia branca dos grandes centros urbanos , foi o
discurso da medicalizao que sustentou a proibio generalizada dessas substncias, sob o
argumento de que estavam contaminando o corpo social (RODRIGUES, 2007; ver tambm
OLMO, 1990). A maconha, por exemplo, que nos Estados Unidos era considerada a erva
assassina que levava agressividade e violncia por ser associada populao pobre e de
origem mexicana, logo em seguida foi classificada como a droga do excludo, que deveria
ser controlada para evitar o alastramento da sndrome amotivacional entre a juventude
branca (OLMO, 1990, p. 36).
Em 1972, ainda, foi adicionado Conveno nica um protocolo de emendas que, de
maneira geral, robustecia as medidas de preveno produo, ao trfico e ao uso de drogas
ilcitas. No entanto, reforava tambm a necessidade de abordagem ao uso abusivo dessas
substncias pela via teraputica, abrindo aos Estados a possibilidade de conjuno ou
substituio das penas privativas de liberdade por sentenas de reabilitao do uso de drogas
(RODRIGUES, L., 2006). Dessa forma, tal Protocolo reforava o status do consumo de
entorpecentes como conduta a ser legalmente perseguida pelo Estado seja por seu aparato
policial-penal, seja por seu aparato sanitrio , e confirmava o carter de problema de sade
pblica que foi impingido ao uso de drogas. (SOUZA, 2011, p. 24 grifos da autora).
O discurso da medicalizao das drogas ilcitas, portanto, guarda relao estreita com o
prprio fenmeno da criminalizao e no pode ser entendido separadamente dele. Conforme
nos mostra trabalhos como o de Maurcio Fiore (2002) e Rosa Del Olmo (1990),
medicalizao e criminalizao so duas concepes dinmicas, que operam simultaneamente
na construo de saberes e debates sobre o tema e que se reforam mutuamente. Dentro desta
dinmica, o saber mdico fundamental para a classificao do lcito e do ilcito e para a
deciso sobre quais tipos de uso devem ser permitidos e quais devem ser proscritos.
Luciana Boiteux Rodrigues, ao falar sobre o binarismo entre drogas legais e ilegais,
deixa clara a contradio em que entra o discurso oficial mdico, que legitima um duplo
padro de tratamento jurdico a substncias no to diferentes entre si:
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A atual poltica de controle de drogas [...] tem em sua origem aspectos religiosos, econmicos e sociais, muito embora na atualidade seja mais perceptvel o discurso oficial mdico. No h como se deixar de analisar o quadro dentro de um contexto mais amplo, que leva, na atualidade, coexistncia de drogas proibidas, de consumo semiclandestino, por um lado, e de substncias teraputicas legais, fabricadas pelas grandes indstrias multinacionais, cuja diferenciao feita por critrios poltico-legislativos e sofre a influncia de atitudes sociais que determinam quais drogas so admissveis e atribuem qualidades ticas aos produtos qumicos. (RODRIGUES, L., 2006, p. 32 grifos nossos)3
A partir da dcada de 1970, no entanto, a bibliografia geral sobre o tema comea a
apontar uma inflexo no discurso internacional sobre drogas, que iniciava um distanciamento
do campo da sade pblica em direo ao da segurana pblica (SOUZA, 2011). Na origem
dessa transio estava, em especial, o momento poltico interno por qual passavam os Estados
Unidos durante a gesto do presidente Richard Nixon (1969-1974). Em sua campanha
presidncia, Nixon adotou como bandeira principal a luta contra a criminalidade e, dentro
dela, deu prioridade ao que alcunhou de guerra s drogas, transformando-as em alvo dos
aparatos de segurana pblica e associando seu comrcio e distribuio violncia e
criminalidade (FRAGA, 2007).
Nos anos seguintes, sobretudo a partir da gesto de Ronald Reagan (1981-1989) como
presidente dos Estados Unidos, a questo do trfico de drogas foi promovida a assunto de
Estado. Embora tenha sido sob o governo Nixon que questes relativas s drogas se tornaram
um problema de segurana, foi Reagan quem as fez assunto de Defesa Nacional, impingindo
ao combate ao narcotrfico carter intervencionista e militarizado (FRAGA, 2007). Os anos
1980 testemunharam, portanto, a internacionalizao, a partir dos Estados Unidos, da
militarizao das polticas sobre drogas, que se v refletida sobremaneira na Conveno das
Naes Unidas contra o Trfico Ilcito de 1988 (CARVALHO, S., 2001).
Luciana Boiteux Rodrigues (2006) chama a ateno para o uso extensivo de termos
blicos no texto da Conveno de 1988 associando de vez o comrcio ilcito de drogas ao
que chamava de crime organizado transnacional, a carta priorizava expresses como
guerra, combate e eliminao. Com esprito altamente incriminador, a Conveno
elencava uma srie de recomendaes de medidas internacionais de represso jurdico-penal
no apenas s redes responsveis pelo trfico de drogas ilcitas, mas aos prprios usurios
dessas substncias, expressamente criminalizados. Como principal estratgia de combate ao
narcotrfico internacional, ainda, indicava a diminuio da oferta de drogas pela erradicao
de cultivos ilcitos, o que, na prtica, abria de vez as portas do regime internacional para 3 Em sua verso original, Luciana Rodrigues indica que a frase entre aspas simples de autoria de Antonio Escohotado (1996).
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possibilidades de interveno militarizada em pases produtores de drogas (RODRIGUES,
L., 2006).
Internacionalmente, o alvo do combate militarizado a cocana e seu insumo natural,
a folha de coca e os pases que, no imaginrio popular ou governamental, a produzem:
notadamente a Bolvia, a Colmbia e os demais Estados ao sul do continente americano
(OLMO, 1991). Sob a ideia de que essas substncias causavam dano ao Estado, democracia
e comunidade internacional como um todo, foram revistos e transformados os mtodos de
combate s drogas para abarcar aes de interveno militarizada internacional nesses espaos
(OLMO; 1991; FRAGA, 2007). Legitimando a militarizao, ascendeu o discurso de
polarizao entre Estados produtores e Estados consumidores de drogas, sustentada pela
dualidade agressor-vtima e que responsabilizava os primeiros atores pelo flagelo do consumo
abusivo de drogas registrado nos demais (RODRIGUES, T., 2007).
Segundo Salo de Carvalho (2001), dentro dos Estados, a consequncia da militarizao
no hemisfrio ocidental a confuso entre questes de Segurana Pblica e de Segurana
Nacional. Para ele, o consenso internacional demonstra que o modelo jurdico-poltico,
inserido na esfera do penal/carcerrio, seria o de reconhecida eficcia para a eliminao do
mal que corrompe e contamina as sociedades livres e democrticas (CARVALHO, S., 2001,
p. 133). Atravs da definio militarizada do problema das drogas, permitida, segundo
Carvalho, a renncia a diversos dispositivos legais dentro dos Estados nacionais de proteo
do indivduo, sobretudo na esfera jurdico-penal, com o objetivo da defesa nacional e da
proteo soberania e aos interesses dos Estados:
A iluso da erradicao do fenmeno, divulgado pelo discurso central blico, leva os pases perifricos a estabelecerem polticas extremamente repressivas e dissociadas de sua realidade marginal, pois a transnacionalizao do controle, por se autoperceber universal, no compreende as autonomias culturais e polticas. (CARVALHO, S., 2001, p. 142)
Os processos de medicalizao como discurso que baliza a compreenso sobre o uso
de drogas nas sociedades ocidentais e de militarizao como fenmeno que orienta, a
partir do final do sculo XX, as polticas de segurana pblica sobre drogas de grande parte
dos pases do hemisfrio so essenciais, portanto, para a compreenso de como se d o trato
pblico questo das drogas no Brasil e no mundo. No segundo captulo do presente trabalho,
ser detalhada a forma como, no Brasil, ambas as abordagens conduziram o (no)
desenvolvimento de polticas pblicas sobre drogas no pas. Por ora, cabe ainda trazer
algumas abordagens tericas crticas do processo de criminalizao do uso e do comrcio
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dessas substncias, que serviro, futuramente, para a prpria anlise das polticas de
acolhimento compulsrio executadas contra crianas e adolescentes usurias de drogas na
cidade do Rio de Janeiro.
I.3 Efeitos primrios e secundrios da criminalizao das drogas
Para o socilogo italiano Alessandro Baratta4, a poltica de criminalizao de
determinadas substncias psicoativas um sistema autorreferenciado, ou seja, um sistema
que se autorreproduz ideolgica e materialmente (1993, p. 197 traduo livre). Por
reproduo ideolgica, o autor entende o processo pelo qual cada ator ou grupo de atores de
um sistema confirma a imagem que tm da realidade na atitude dos outros atores,
estabelecendo uma relao de dependncia ideolgica uns pelos outros. J a reproduo
material, para Baratta, o processo pelo qual esse mesmo sistema produz uma realidade cada
vez mais parecida com a imagem inicial na qual se baseia e se legitima. Para o socilogo,
possvel entender esse movimento de autorreproduo como uma profecia autorrealizvel5,
em que a reao social criminalizadora produz a mesma realidade que lhe d, inicialmente,
aval para existir (BARATTA, 1993, p. 199 traduo livre).
De acordo com Baratta, essa realidade inicial que se autorreproduz composta,
basicamente, por quatro elementos principais: (1) uma relao necessria entre consumo de
drogas e dependncia (e a noo de que, necessariamente, o uso de drogas mais leves leva ao
uso das mais pesadas); (2) a ideia de que os usurios de drogas, em geral, pertencem a uma
subcultura diferente da maioria da sociedade, que seria normal; (3) a certeza do
comportamento antissocial e delitivo dos usurios de drogas, que os impediria de ter uma vida
produtiva e que os leva criminalidade; e (4) a noo de que os usurios de drogas se
encontram em um estado de doena psicofsica, em que a dependncia irreversvel
(BARATTA, 1993, p. 198). Ainda que, segundo o autor, essa primeira imagem no
corresponda realidade representando, para ele, mais a exceo do que a regra, provada por
argumentos cientficos , Baratta diz que, atualmente, a distncia entre a imagem inicial do
sistema e a realidade dela decorrente tende a diminuir atravs do mecanismo de
autorreproduo. Dessa forma, a prpria dinmica da criminalizao cria efeitos parecidos
com a imagem inicial como a marginalizao do usurio de drogas, a dificuldade de
4 Alessandro Baratta foi um dos principais nomes da Criminologia Crtica, teoria criminolgica de orientao marxista que se coloca em contraposio criminologia tradicional positivista. Em sua importante obra, Baratta se ocupou, entre outras coisas, de demonstrar a perversidade por trs da seletividade do sistema penal, comprometendo-se com a transformao de relaes desiguais de poder e da estrutura social (LOPES, 2008). 5 Ver Merton (1957).
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abordagem sanitria ao uso problemtico e a exposio violncia e a drogas mais pesadas
que, em ltima instncia, legitimaram sua existncia.
Do ponto de vista da homogeneidade interna, Baratta classifica o sistema de
criminalizao de determinadas drogas como um sistema fechado, em que o consenso sobre
suas polticas se estende por todos os grupos de atores exceo de uma minoria dissidente,
os prprios usurios de drogas (BARATTA, 1993, p. 200). Segundo ele, por ser um sistema
altamente homogneo e resistente a mudanas, ele sustenta uma aparncia de estabilidade, em
que os atores confirmam, uns nos outros, suas posies favorveis poltica de
criminalizao. Alm disso, a existncia de um nico grupo desviante, diz o autor, refora o
prprio carter autorreprodutor do sistema, tornando-se alvo da hostilidade geral que refora o
consenso social sobre a questo. De acordo com Baratta, isso se verifica sobretudo quando,
como no caso do circuito da droga, estamos na presena de um sistema de controle social e a
minoria desviada constitui o grupo em relao ao qual se exerce o controle (BARATTA,
1993, p. 201 traduo livre).
Nesse sistema fechado, diz Baratta, os meios de comunicao so um elemento
determinante, no porque impem opinio pblica determinada imagem da realidade, mas
porque estabelecem, com ela, uma relao de mtuo condicionamento. Nesse sentido,
constituem instrumentos fundamentais de autorreproduo ideolgica e material do sistema,
no sentido da homogeneidade e do consenso. Relao de interdependncia estabelecida,
tambm, com outros grupos de atores, como especialistas, polticos e juristas, que se
reforam reciprocamente; todos eles desenvolvem tanto no nvel real como simblico a guerra
contra o problema da droga, que se dirige essencialmente s contra os consumidores.
(MEUDT, 1977 apud BARATTA, 1993, p. 203 traduo livre).
Ainda segundo o autor, estabilidade do sistema sustentada, tambm, pela realizao de
pequenas transformaes internas que preservam suas principais caractersticas. Dessa forma,
mnimas mudanas so introduzidas ao sistema para impedir sua desestabilizao sem que,
necessariamente, transformaes de maior grandeza tomem efeito. O autor denomina essas
pequenas alteraes no sistema como as mudanas que no mudam e cita como exemplo as
modificaes na legislao penal italiana para favorecer o tratamento alternativo a usurios de
drogas processados criminalmente, que, segundo ele, na prtica no surtem efeito na
quantidade de consumidores encarcerados (BARATTA, 1993, p. 205).
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Conforme afirma Baratta, sobre essa minoria desviante, recaem, muitas vezes, os efeitos
secundrios das drogas, isto , as consequncias decorrentes das prprias prticas sistmicas
de criminalizao (BARATTA, 1993, p. 205). Alguns desses efeitos, segundo o socilogo,
so a marginalizao e o estigma do consumidor dessas substncias, que no raras vezes
estimulam a formao de subculturas e o distanciamento social. Dessa forma, por conta da
represso e do estigma, a situao psquica dos dependentes de droga criminalizados se
transforma no poucas vezes no sentido do esteretipo hoje dominante, reproduzindo, como
foi apontado anteriormente, uma realidade legitimadora do sistema (BARATTA, 1993, p. 207
traduo livre). Este processo de estigma e consequente isolamento social, no entanto, no
distribudo igualmente na sociedade, mas concentrado nos grupos em maior desvantagem
social, apesar de o uso de drogas ser caracterstico, como o prprio autor aponta, de todas as
reas sociais.
Outro importante efeito secundrio do sistema , para ele, concernente justia penal.
Segundo Baratta, no campo das drogas, a poltica criminal ignora, recorrentemente, princpios
do direito penal liberal, como a ideia de um direito penal mnimo, em direo represso
e penalizao excessiva e injustificadas (BARATTA, 1993, p. 211). As prticas de
criminalizao do sistema, nesse sentido, favorecem a violao de princpios fundamentais do
Estado de Direito e de direitos humanos, que so legitimadas pelo consenso do sistema
fechado.
Por ltimo, para o socilogo, no menos danosos so os efeitos negativos que a
criminalizao implica a outros sistemas de controle, em especial, o sistema teraputico-
assistencial. Segundo o autor, o sistema de criminalizao impe condies para a prtica
teraputica e de cuidado de acordo com lgicas de represso e de penalizao, indo de
encontro a mtodos cientficos mais efetivos. Ainda, influencia negativamente o tipo de
relao estabelecida entre os profissionais de cuidado e assistncia, por um lado, e o usurio
de drogas receptor desses servios, por outro, construindo um relacionamento baseado na
vigilncia e no controle, e no na confiana e na livre comunicao. Para Baratta, na prtica,
o sistema de tratamento e de assistncia est integrado ao da justia penal, em vez de
oferecer um sistema alternativo de abordagem s questes relativas a drogas (BARATTA,
1993, p. 212 traduo livre).
Pensamento semelhante ao conceito apresentado por Baratta de extrapolao do sistema
penal para outros sistemas de controle est presente na prpria obra do filsofo francs
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Michel Foucault (2003). Para Foucault, tanto o encarceramento penitencirio,
especificamente, quanto o sistema penal, de forma mais ampla, so parte de um sistema
difundido de controle punitivo que abrange outras instituies que no apenas a penitenciria,
mas tambm as instituies educacionais, os manicmios, os locais de trabalho. Dessa forma,
as crianas so punidas, os alunos so punidos, os operrios so punidos, os soldados so
punidos (FOUCAULT, 2003, p. 65).
A instituies similares o cientista social canadense Erving Goffman d o nome de
instituies totais, que define como o lugar de residncia e de trabalho de grupos de
pessoas que amputadas da sociedade por um perodo considervel de tempo encontram-se
compartilhando uma situao comum, transcorrendo parte da sua vida em um lugar fechado e
formalmente administrado (GOFFMAN, 1961 apud CASTRO, 1983, p. 180). O carter
totalizador dessas instituies, segundo ele, reflete-se especialmente na impossibilidade de
intercmbio e contato social com o mundo externo. Para Goffman, essas instituies totais se
manifestam em cinco categorias, resumidas pela criminloga venezuelana Lola Aniyar de
Castro de maneira esclarecedora:
1. As que buscam a tutela de incapazes no perigosos (cegos, velhos, rfos e indigentes). 2. As que albergam incapazes que so perigosos para a coletividade, embora no intencionalmente (sanatrios de tuberculosos, hospitais psiquitricos, leprosrios). 3. Instituies que dizem proteger a comunidade de perigos intencionais contra ela (crceres, penitencirias, campos de concentrao). 4. Instituies para desenvolver uma atividade, que encontram a sua justificao no nvel instrumental (quartis, navios, colgios, plantaes coloniais, grandes fbricas). 5. As que se definem como separadas do mundo (conventos, mosteiros etc.) geralmente orientadas para a preparao religiosa. (CASTRO, 1983, p. 180 grifos nossos)
Segundo Aniyar de Castro, o objetivo ltimo dessas instituies a disciplina, em que
pessoas de qualquer natureza devam ser mantidas em controle (CASTRO, 1983, p. 182).
Arquitetonicamente, diz a autora, esse poder disciplinador est organizado na forma do
panptico de Jeremy Bentham, emanando a partir de um ncleo central de controle sobre
ramificaes variadas de tipos marginalizados. O crcere, nesse quadro, no diferente de
outras instituies totais que se dispem ao controle social as escolas, os asilos, os
manicmios e que constituem os braos de alcance do panptico, sendo to-somente uma
das modalidades de controle social, para o qual o sistema penal presta relevante servio ainda
que de forma no exclusiva, uma vez que existem controles punitivos, como certas prticas
psiquitricas [...] que se apresentam formalmente como no punitivas (ZACCONE, 2007, p.
29).
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importante salientar, ainda, que a razo de ser dessas instituies est intimamente
ligada aos interesses do sistema de produo dominante. A disciplina do crcere e tambm o
de outras instituies totais anda lado a lado com a organizao capitalista do trabalho da
mo de obra disponvel, que d o tom das reformas e contrarreformas penitencirias
(CASTRO, 1983, p. 182). Lola Aniyar de Castro aponta que, no sistema capitalista
contemporneo, a priso cumpre duas funes especficas: uma destrutiva, que aniquila o
excesso de oferta de fora de trabalho; e uma produtiva, que se direciona reeducao
quando h demanda por fora de trabalho no sistema de produo capitalista (RUSCHE, 1999
e PAVARINI, 1976 apud CASTRO, 1983, p. 191).
Lola Aniyar de Castro acrescenta ainda que, medida que o sistema capitalista de
acumulao de consolida e se aperfeioa, diluem-se cada vez mais as paredes do crcere como
instituio de controle social. Dessa forma, os mecanismos penais, ou punitivos, de disciplina
e controle social tendem-se a se difundir capilarmente no territrio, atravs da estrutura dos
meios de comunicao em massa, da polcia, da assistncia social. a cidade como
instituio de controle total, diz a autora, apoiando-se no trabalho de Dario Melossi (1976)
no se encerram os indivduos: so seguidos onde esto normalmente encerrados
(MELOSSI, 1976, p. 533 apud CASTRO, 1983).
Seguindo a mesma tradio da criminologia crtica, a historiadora Vera Malaguti Batista
(2003) d a essas funes a de controle social e de adequao ao processo de acumulao de
capital o nome de funes ocultas do sistema penal (em contraposio a suas funes
declaradas). Funes estas que, em pases perifricos como os latino-americanos, ganham
configurao ainda mais cruel, tornando-se, mais do que aparato disciplinador, um complexo
social genocida e etnocida em relao aos setores mais vulnerveis da populao,
caracterizado por prises sem condenao, execues extrajudiciais, presena de grupos de
extermnio, aparatos judiciais militarizados (ZAFFARONI, 1991). Segundo Batista,
Utilizando amplamente o exerccio do poder de sequestro e estigmatizao, o verdadeiro e real poder do sistema penal no o repressor mas o exerccio positivo, configurador, simblico. Existe uma renncia expressa legalidade penal atravs de um controle social militarizado e verticalizado sobre os setores mais pobres da populao ou sobre os dissidentes. Esse poder configurador tambm repressivo ao interiorizar a disciplina, conformando uma sociedade submetida a uma vigilncia interiorizada da autoridade. fundamental o papel dos meios de comunicao de massa na introjeo dessa ordem verticalizante. Esta vigilncia disciplinada, camuflada, no percebida em nvel consciente. (BATISTA, 2003, p. 54 grifos nossos)
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A partir do que foi brevemente explicitado, pode-se entender, portanto, o sistema penal
como um entre variados aparatos sociais que, como instituies totais, confundem-se nos
objetivos e tambm nos mtodos. A lgica e o poder punitivos, nesse sentido, no apenas no
so exclusivos ao crcere (estando presentes em escolas, instituies psiquitricas, locais de
trabalho), como tendem como explicou Aniyar de Castro capilarizao pelo territrio de
maneira a tornar a cidade a instituio total por excelncia. Essas instituies, conquanto
tenham funes declaradas diversas, ocultam uma razo de ser essencialmente direcionada
disciplina e ao controle social dos marginalizados.
O mesmo movimento de anlise pode ser feito para identificar quais seriam as funes
declaradas e as funes ocultas da criminalizao das drogas que hoje temos como ilcitas
ou, conforme classifica Leonardo Sica (2005), suas funes manifestas e latentes. De acordo
com o criminalista, os objetivos declarados da chamada guerra s drogas so claros e
diretos, compreendendo: [1] a diminuio e a eliminao da difuso das substncias
psicoativas em questo, atravs de mecanismos de coibio da oferta e da demanda; [2] o
resguardo da sade pblica (no campo normativo); e [3] em relao represso, a preveno
geral, entendida como dissuaso e intimidao da coletividade ante a ameaa do rigor da lei
penal (SICA, 2005, p. 9). No entanto, segundo o autor, uma anlise que parta da constatao
de que nenhum desses objetivos foi minimamente alcanado capaz de revelar a existncia de
outras razes para a manuteno de um sistema ineficiente e produtor de variados efeitos
colaterais (secundrios, como diz Baratta).
Sendo assim, de acordo com Sica, a primeira funo oculta ou latente da criminalizao
de psicoativos a possibilidade de aumento do controle e da ingerncia sobre a populao
(sobretudo, a marginalizada), manifestada atravs da aprovao de leis e prticas que violam
garantias fundamentais e tambm da interferncia no que ele chama de ltimo reduto da
soberania nacional: o direito de punir (SICA, 2005, p. 10); exemplos vo da prtica cotidiana
de busca domiciliar sem autorizao judicial, no Brasil, at a estigmatizao de grupos sociais
indesejveis, como imigrantes, no caso de pases europeus. Ainda, o criminalista cita: o
silenciamento e a ocultao (por meio da priso) dos atores que de fato sofrem com o
problema, impedindo que a fraqueza do sistema seja manifestada; uma funo diversiva e
simblica, que tira o foco de aes mais perigosas ou cometidas por indivduos ou grupos de
interesse com poder; o aparelhamento da ao estatal, facilitando a forma com que o Estado
lida com a questo, sem que seja necessria uma anlise apurada e especfica aos problemas
emergentes; e, por ltimo, o lucro financeiro gerado pelo prprio status ilcito do comrcio de
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drogas proibidas e que injeta enormes somas de capital no mercado atravs de crimes
adjacentes como a lavagem de dinheiro e a corrupo.
Leonardo Sica explica que o modelo adotado gera, no entanto, mais do que a percepo
constante de fracasso (em relao a suas funes manifestas, nunca atingidas), consequncias
sociais prticas que se verificam cotidianamente: obstculos implementao de polticas
sociais e de sade de reduo de danos (devido ao seu status ilegal); a clandestinizao e a
marginalizao de pessoas e grupos vulnerveis; a adoo de uma perspectiva reducionista (e
a impossibilidade, tambm, de se explorar enfoques outros que tentem corrigir essa falha); e,
por ltimo, o funcionamento penal como controlador do ndice de preos da droga no
mercado negro. Em consonncia com o trabalho de Baratta, o autor tambm deixa claro que
os efeitos prticos da proibio no apenas pem um desafio implementao dos objetivos
manifestos do modelo, como, mais ainda, constituem muitos dos prprios problemas que a
proibio procura combater. A criminalizao, nesse sentido, funciona: mas de acordo com
suas funes latentes, tendo as funes manifestas o papel de objetivos de fachada contra os
quais difcil de opor publicamente (SICA, 2005).
Tendo em vista o que foi colocado, partiremos, a seguir, para a anlise das polticas
pblicas sobre drogas desenvolvidas no Brasil a partir do sculo XX. De fato, pautado pelo
chamado proibicionismo internacional que o pas vem formulando uma srie de polticas
pblicas sobre drogas ilcitas. Pretendemos, assim, contextualiz-las luz da trajetria
histrica dos movimentos de criminalizao de determinadas substncias psicoativas que
ocorriam em mbito internacional, sem perder de vista, tambm, os enfoques tericos crticos
abordados no presente captulo.
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CAPTULO II: POLTICAS PBLICAS SOBRE DROGAS NO BRASIL
II.1 Do processo de elaborao de polticas pblicas
O cientista social Klaus Frey (2000), quando fala da fase de percepo e definio de
problemas dentro de um ciclo de definio de polticas6, reproduz um dos conceitos mais
usuais do campo de anlise de polticas pblicas: um problema analtico s passa a ser
considerado um problema de polticas pblicas quando se torna relevante dos pontos de vista
poltico e administrativo. Em outras palavras, problemas no se tornam alvo de polticas
pblicas simplesmente porque existem; para que entrem na agenda de ao governamental,
eles precisam ser percebidos como tal por atores poltica e/ou administrativamente influentes.
Ao colocar a questo, Frey e outros autores assumem, portanto, o papel imprescindvel das
relaes polticas de poder para a definio do objeto com o qual uma poltica pblica ter de
lidar e, consequentemente, evidenciam a necessidade de estud-las no campo da anlise de
polticas pblicas.
Quando determinado problema no entendido pelos atores governamentais como um
problema de polticas pblicas, tem-se geralmente o que Maria das Graas Rua (1998) chama
de uma no deciso. Complementando a conceituao de Klaus Frey sobre a fase de
percepo e definio de problemas, Rua esclarece que a no deciso no a ausncia de
deciso sobre a insero de determinada questo na agenda de polticas pblicas, mas
exatamente a ao poltica e administrativa de no inclu-la na pauta de ao governamental.
A no deciso sobre um problema acontece, segundo ela, especialmente quando existem
barreiras culturais e institucionais que impedem sua apreciao, ou quando sua incluso se
ope a fortes interesses e a arraigados cdigos de valores.
Sobre os processos de deciso e no deciso, Klaus Frey chama a ateno para o papel
indispensvel da mdia e de outras formas de comunicao poltica e social. Segundo autor,
frequentemente so elas as responsveis por dar relevncia poltica determinada questo,
fazendo com que se tornem um problema de polticas pblicas e gerem um ciclo de polticas.
6 Traduo livre do conceito de seu famoso conceito de policy cycle.
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Percorrendo o caminho lgico inverso, pode-se concluir tambm que o no tratamento de uma
questo como uma de polticas pblicas pelos veculos de comunicao atravs de um
posicionamento claro ou ento pela hesitao em abord-lo pode, da mesma forma,
contribuir para que um estado de no deciso persista, sem que se perceba a necessidade de
dar tratamento poltico a um problema analtico.
Klaus Frey (2000) deixa claro, no entanto, que no somente importante ao analista de
polticas pblicas se interessar pelos movimentos de percepo de uma questo de polticas
pblicas ou seja, ponderar se, como e quando determinada questo se torna um problema de
polticas pblicas , mas tambm analisar a maneira como ela definida quais so suas
caractersticas, no que consiste. O modo como se define um problema de polticas pblicas
vai ser, segundo Frey, de fundamental importncia para a proposio e posterior escolha de
solues a ele na fase de elaborao de programas. Para Maria das Graas Rua (1998), essa
relao direta se d porque no processo de definio do problema que se caracterizam as
questes relacionadas a ele, ou seja, as outras demandas que tambm estaro em jogo e que
devero ser abordadas politicamente caso se decida por incluir o problema na agenda
governamental.
Tanto Frey quanto Rua assumem que na fase de elaborao de programas sobre uma
questo ou de formulao de alternativas, como classifica a ltima autora esto em
disputa diferentes concepes polticas sobre a melhor maneira de solucion-la. Dessa forma,
as relaes polticas de poder e as barreiras culturais e institucionais presentes durante o
processo de percepo e definio de um problema de polticas pblicas tambm tm papel
decisivo na definio de aes e polticas para abord-lo. Mais ainda, segundo Frey, no
raramente um programa de solues para a questo j foi antecipadamente negociado entre os
atores polticos mais relevantes durante a fase de percepo e soluo de problemas dando
margem para que se questione se, em determinadas situaes, a prpria percepo e definio
de um problema de polticas pblicas no vem a partir de uma necessidade poltica de
emprego de determinada soluo.
De uma forma geral, tudo o que foi exposto acima se relaciona ainda com o conceito
tradicional, dentro do campo de anlise de polticas pblicas, de questo social (ver CASTEL,
2003 e ROSANVALLON, 1998). Convencionalmente, define-se questo social como o
problema ou a temtica social que, a partir de determinado marco histrico, passa a ser
entendida pelas autoridades polticas como uma questo que demanda ao governamental. O
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conceito de questo social, portanto, j esclarece que o objeto de polticas pblicas deve ser
previamente percebido e definido como tal a partir de um prisma poltico-administrativo,
podendo sofrer mutaes no tempo e no espao.
A sntese dos conceitos acima apresentados de especial importncia como introduo
ao argumento que ser apresentado nas prximas sees, uma vez que nos d base terica
para pensar o processo de incluso no campo das polticas pblicas no Brasil de questes
relativas ao uso e ao comrcio de drogas. Como brevemente introduzido no captulo anterior e
como ser mais bem desenvolvido a seguir, nos ltimos cem anos, o governo brasileiro
passou a se ocupar gradualmente com o problema das drogas, mas a partir de um paradigma
iminentemente jurdico-criminal, sem que tenham sido desenvolvidas, historicamente,
polticas pblicas consistentes que no envolvessem ou dependessem da represso penal e da
criminalizao. Mais ainda, a forma como o problema foi definido como um mal a ser
combatido, ora como doena, ora como ameaa integridade e segurana do Estado deu
pouco espao para que se pensasse o uso de drogas a partir de lgicas de terapia, cuidado e
autonomia, tendo-se escolhido, historicamente, um enfoque medicalizado ou militarizado de
lidar com as drogas no Brasil.
Ainda, uma importante contribuio desta literatura precisamente a forma como ela
recoloca a poltica nas polticas pblicas. Nesse sentido, devemos transpor a ideia de que o
processo de elaborao de polticas pblicas um fenmeno tcnico, cientfico e
despolitizado para entend-lo como territrio de constantes tenses e disputas polticas. Por
esse motivo, esta breve reviso nos ajudar a dar sentido trajetria histrica de construo
de polticas pblicas sobre drogas no Brasil, entendendo a forma como, gradualmente, o uso
de determinadas substncias psicoativas deixou de ser assunto de mbito privado dos
indivduos, tornando-se, por um lado, uma questo de segurana pblica e nacional e, por
outro, um tema de polticas pblicas. sobre isso que nos debruaremos a seguir.
II.2 Drogas no Brasil: de uma questo privada a uma questo de polticas pblicas
No Brasil, as primeiras movimentaes expressivas de criminalizao do uso, do porte e
do comrcio de determinadas substncias psicoativas datam do final do sculo XIX
(CARVALHO, S., 1997). Esse processo comea a tomar fora a partir do incio do sculo
seguinte, incentivado pela preocupao estatal com a onda da toxicomania que, vinda do
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continente europeu, difundia-se pela classe intelectual do pas atravs de substncias como o
pio e o haxixe (CARVALHO, S., 1997, p. 20). Consta que a primeira lei especfica sobre
drogas no Brasil o decreto 4.294 de 6 de julho de 1921, que, entre outras coisas, dispunha
das penalidades para a venda de substncias como a cocana, o pio e a morfina e criava um
estabelecimento para a internao de usurios de lcool e outras drogas psicoativas
(CARVALHO, J., 2011; ver tambm MORAIS, 2005).
Como nos informa o pesquisador Paulo Csar Morais (2005), essa normativa
substituda, pouco mais de uma dcada depois, pelo decreto-lei 24.505, de 1934, consolidando
a criminalizao do uso e comrcio de substncias psicoativas em termos semelhantes ao que
vemos atualmente. Para alguns estudiosos, no entanto, em 1936 que se distingue de maneira
mais expressiva o impulso pela criminalizao de substncias psicoativas como uma forma de
luta contra a dependncia qumica no Brasil, atravs do Decreto 7807, que criou a Comisso
Permanente de Fiscalizao de Entorpecentes (GRECO FILHO, 1995 apud CARVALHO, S.,
1997; CARVALHO, J., 2011). Fato que nesses marcos normativos da primeira parte do
sculo XX via-se a influncia direta de legislaes estrangeiras e internacionais sobre o tema,
especialmente, dos Estados Unidos, do Japo e das convenes internacionais, que
penetravam sobremaneira na opinio pblica (MORAIS, 2005; CARVALHO, J., 2011).
Dessa forma, como mostra o criminalista Salo de Carvalho (1997), j em 1938 est
presente um processo de ajuste das polticas domsticas de controle de drogas ilcitas do
Brasil a um modelo internacional de conduta penal sobre substncias psicoativas, a partir do
Decreto-lei 891, de elaborado de acordo com a Conveno de Genebra de 1936. A Conveno
se insere em um contexto mais amplo de internacionalizao da criminalizao de substncias
psicoativas que, no mbito normativo, encontra suas razes ainda no incio do sculo XX, a
partir das Convenes sobre o pio (RODRIGUES, L., 2006). Esse processo de globalizao
do controle de drogas ilcitas vai encontrar seu ponto mais intenso atravs das trs
Convenes da Organizao das Naes Unidas (ONU) de 1961, 1971 e 1988 que, como
visto anteriormente, sero responsveis por dar uniformidade s polticas sobre drogas da
quase totalidade dos Estados nacionais do planeta at o final do sculo (RODRIGUES, L.,
2006; JIFE, 2009).
Leituras histricas das polticas pblicas sobre drogas no pas do conta de que a
criminalizao de determinadas substncias psicoativas no Brasil se fundamenta, ainda, em
7 Posteriormente modificado pelo Decreto 2.953 de 1938.
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relaes hierrquicas de poder de cunho social e tnico-racial que operavam no final do
sculo XIX e incio do sculo XX. como assim consideram a criminalizao da maconha
que, concretizada ainda no perodo imperial e inserida em um contexto de penalizao e
represso a prticas religiosas, ldicas e culturais da populao negra, estaria mais relacionada
a tentativas de controle da mo de obra dos escravos e, posteriormente, dos negros livres em
centros urbanos do que a preocupaes factuais com o potencial lesivo da substncia
(FIORE, 2002; ver tambm CHALHOUB, 1986, p. 68, cf. indicao do ltimo). Concluses
similares tambm so encontradas em estudos sobre os movimentos de criminalizao de
psicoativos em outros contextos nacionais, em que minorias populacionais, sobretudo aquelas
de origem imigrante, tinham sua relao tradicional com determinadas substncias impactada
por processos de incriminao como o caso dos chineses, irlandeses e mexicanos nos
Estados Unidos (ver RODRIGUES, T., 2007).
A relao entre a criminalizao de determinadas drogas e motivaes polticas de
cunho tnico-racial tambm pode ser verificada quando investigamos o papel que a medicina
teve na construo de polticas repressivas a essas substncias. Segundo Morais (2005), o
saber mdico do incio do sculo XIX que, conforme j visto no captulo anterior, envolvia-
se em um complexo campo de disputas polticas para se consolidar como cincia oficial do
Estado era essencialmente racista e etnocntrico, associando frequentemente caractersticas
genticas a desvios morais. Nesse contexto, a medicina no raramente apoiava medidas de
carter eugnico e higienista com o objetivo de doutrinao do povo e de conformao a
um ideal tnico-racial considerado superior (MORAIS, 2005, p. 178).
De acordo com Morais, ento, o viciado era entendido, pela medicina do incio do
sculo passado, como um desviante em termos morais tanto quanto em termos cientficos e
psicolgicos. Segundo o autor, j naquela poca, o perigo e a perverso esto sempre
associados ao viciado, que, por sua vez, relacionado, efetiva ou simbolicamente, ao
comunismo, aos judeus, aos alemes, s camadas populares e aos comportamentos
desviantes, os indesejveis da formao social brasileira (MORAIS, 2005, p. 181). com
o aval (e o impulso) da medicina que, nesse momento, as drogas surgem como problema
poltico, com o qual se deve lidar atravs de aes repressivas e de controle social em relao
a determinadas classes subalternas (SOUZA, D., 1996).
Sendo assim, a criminalizao de determinadas drogas contou com expressivo e
determinante apoio da comunidade mdica, que, ao endossar a criao de uma categoria
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criminal para o usurio dessas substncias, corroborava, segundo Morais, uma viso sobre a
questo de carter mais policialesco e moralista do que tcnico e cientfico. Considerando a si
mesmos como patriotas, desinteressados, cientistas, devotados sade pblica, esses atores
impulsionavam prticas de disciplina e controle da vida privada e coletiva das populaes,
como a esterilizao e o controle de hbitos higinicos (MORAIS, 2005, p. 193). O endosso a
prticas de represso e criminalizao fica claro nesta passagem da obra Vcios Sociais
Elegantes (1924), de autoria dos mdicos Pernambuco Filho e Adauto Botelho8:
"Para boa profilaxia das toxicomanias, torna-se imprescindvel o auxlio de leis coercitivas e vigorosas que evitem, de um lado, o derrame comrcio-industrial das substncias perigosas e de outro que assegurem a fiscalizao e a punio dos viciados, j por si perigosos ao meio e sociedade, pelos atos delituosos que possam praticar, j pela faina vangloriada de contaminar os outros" (PERMANBUCO & BOTELHO, 1924, p. 122)
Como nos chama a ateno Morais, Pernambuco e Botelho entendem que a soluo para
o problema das toxicomanias a aplicao de medidas de criminalizao, por um lado, e de
educao, por outro o embrio de um binmio que se reproduz at os dias atuais, atravs da
relao de dependncia estabelecida, no mbito das polticas pblicas sobre drogas, entre
aes repressivas e preventivas. Sendo assim, como o prprio pesquisador coloca, punir e
amedrontar foram os procedimentos profilticos privilegiados pela medicina para livrar a
sociedade dos viciados (MORAIS, 2005, p. 186). A legislao punitiva, nesse sentido,
entendida como uma parte importante seno essencial da prpria lgica da preveno,
assumindo carter pedaggico e moralmente doutrinador9.
Ao estudar os discursos mdicos sobre o uso de drogas no Brasil, o antroplogo
Maurcio Fiore (2002) afirma que, ainda que no seja ponto pacfico dentro do prprio campo
da medicina e das cincias correlatas, a identificao do uso de drogas como problema de
sade pblica crescente, sobretudo, entre os circuitos miditicos e acadmicos, que tendem a
incluir e dar protagonismo ao discurso mdico quando tratam sobre drogas. Segundo o autor,
esse fenmeno alimentado pela preponderncia da medicina como nico saber autorizado a
tratar a questo que, por sua vez, tambm a alimenta. No entanto, Fiore destaca que, ainda
que os saberes mdicos sejam considerados, no Brasil, como o discurso legtimo para abordar
a questo, paradoxalmente eles no foram capazes de penetrar suficientemente no ethos das
polticas pblicas sobre drogas no pas corroborando a viso da pesquisadora Delma de 8 Referncia encontrada a partir do trabalho de Morais (2005). 9 Para determinados estudiosos, a criminalizao para fins pedaggicos ou morais inconstitucional, uma vez que viola preceitos bsicos da Constituio Brasileira que prezam pela pluralidade e pelo respeito diversidade de credos e opinies. Para aprofundamento nessa discusso, indicamos, entre outras obras, o trabalho de Jos Henrique Torres (2009).
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Souza (1996) de que, at recentemente, a represso era o nico meio de trato pblico
questo das drogas no Brasil.
Delma de Souza nos informa que, at o final do sculo XX, as principais formas de trato
pblico da questo das drogas no Brasil se davam pela via da represso, instrumentalizada
atravs da criminalizao. Segundo Souza, ainda na dcada de 1990 as polticas pblicas
sobre drogas eram incipientes e no raras vezes experimentais sobretudo aquelas de carter
preventivo. A pesquisadora chama a ateno tambm para o fato de as abordagens pblicas s
questes sobre drogas no pas seguirem uma configurao prioritariamente jurdico-mdica,
observao que tambm feita por Eduardo Vargas (1998), em citao encontrada no
trabalho de Fiore (2002), quando fala dos movimentos de proibio de determinadas drogas
nas sociedades modernas:
De fato, mais do que apropriar-se da experincia do uso de drogas, o que as sociedades modernas parecem ter feito foi criar literalmente o prprio fenmeno das drogas; e o criaram por duas vias principais: a da medicalizao e da criminalizao da experincia do consumo de substncias que produzem efeitos sobre os corpos e que, at sua prescrio e penalizao, no eram consideradas como drogas (VARGAS, 1998, p. 124 apud FIORE, 2002 grifos nossos)
Conforme j explicitado no primeiro captulo, a relao dialtica entre medicalizao e
criminalizao no processo de controle de drogas ilcitas dentro dos Estados nacionais
modernos tambm encontra eco nas anlises das polticas internacionais sobre drogas. Dessa
forma, pode-se dizer que as movimentaes globais em torno da efetivao da prescrio a
determinadas substncias psicoativas desenvolveram-se, especialmente durante a dcada de
1980, a partir de um processo duplo de medicalizao e militarizao, que tinham em
comum o fato de, primeiramente, perceberem as substncias psicoativas como uma ameaa e,
em segundo lugar, justificarem medidas proibitivas e repressivas a partir de tal entendimento
(SOUZA, A., 2011, p. 13; ver tambm RODRIGUES, T., 2003 e CARVALHO, S., 1998). A
militarizao, em mbito internacional, cumpre a faceta repressiva que, em nvel domstico,
executada primariamente pela via da criminalizao e do envolvimento da questo na esfera
penal do Estado e, a partir de sua relao com a medicalizao, identifica nas drogas ilcitas
uma ameaa simultnea segurana e sade pblicas (SOUZA, A., 2011).
De fato, o que se v que, no campo das polticas pblicas sobre drogas no Brasil,
estratgias de educao ou preveno, por um lado, e teraputicas ou de cuidado, por outro,
so coadunadas e, em ltima instncia, subordinadas a aes de represso. Relembrando o
argumento do socilogo italiano Alessandro Baratta (1993) exposto no primeiro captulo, em
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um sistema autorreferenciado como o da criminalizao das drogas, o paradigma punitivo-
repressivo extrapola para outros sistemas de controle, como o teraputico-assistencial e o
educativo, o que os torna, na prtica, integrados justia penal. Sendo assim, at o final do
sculo XX, grande parte dos marcos normativos concebidos pelo Estado brasileiro para lidar
com a questo das drogas era de cunho jurdico-penal, materializado em leis e decretos que,
no obstante tratassem, no discurso, de questes como preveno e tratamento, tornavam-se
mais conhecidos por seus efeitos prticos no campo das penas.
Um exemplo contundente nesse sentido foi a lei 6.368, de 1976, que vigorou at meados
dos anos 2000, quando foi substituda pela lei 11.343, de 2006. Chamada, poca, de Lei de
Txicos, a legislao trazia em seu texto disposies sobre medidas de preveno e
represso, incluindo um captulo sobre tratamento e recuperao e algumas consideraes
sobre medidas educativas. No entanto, largamente influenciada pelas tratativas internacionais
sobre drogas, a lei conservava em si o aspecto jurdico-mdico das leis brasileiras anteriores
sobre o tema em que a preveno do mal das drogas era instrumentalizada pela represso
criminal ao mesmo tempo em que trazia um novo elemento ao contexto brasileiro, de cunho
jurdico poltico em que a figura do traficante de drogas ganhava nfase como inimigo
poltico a ser combatido:
No que concerne ao plano poltico-criminal, mantm-se o discurso mdico-jurdico, com a diferenciao bsica entre dependente e criminoso e a manuteno dos esteretipos consumidor-doente e traficante-delinquente, instaurando-se, gradualmente, o discurso jurdico-poltico (plano da segurana) onde surgir a figura do inimigo, igualmente encarnada no traficante. Percebe-se, nesse ponto, o porqu da excessiva exacerbao da pena ao traficante em relao aos estatutos pretritos (CARVALHO, S., 1997, p. 32)
A lei 6.368/76, portanto, foi essencialmente um instrumento legal da represso de
drogas ilcitas mais do que uma normativa de polticas pblicas de preveno, educao e
tratamento. De fato, conforme D