O Último Soneto

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Um conto lírico sobre a morte.

Transcript of O Último Soneto

  • O ltimo SonetoYuri Rodrigues Braz

    A noite j ia fria, os ventos sopravam l fora e uma meia-lua tomada de um fosco fantasmagrico parecia sorrir-lhe de escrnio. Carlos Eduardo estava encafuado em seu quarto com uma verso antiga do Drcula nas mos, vista da janela aberta que deixava a lua, sua amante solitria, entrar e beijar-lhe a plida tez.

    A cena no era incomum, naquele quarto metodicamente organizado, Carlos Eduardo sempre gostara de ler. Acreditava que saber e sabor fundiam-se em apenas um significado, e que cada livro deveria ser degustado com sutileza e com uma apreciao vagarosa.

    Ao seu lado o blsamo reconfortante, uma boa safra de um Valpolicella vermelho escuro que parecia sangue. O vinho era o seu nico parceiro naquela noite, e o clice, o nico suporte da sua tristeza. O aroma lembrava alguma substncia forte, como caf, e o sabor era igualmente presente e corpulento. Tudo o que ele precisava, um pouco de dignidade antes do fim.

    Carlos Eduardo esta inquieto e por vezes olhava janela para o seu prprio ptio, resplandecente, alguns mrmores brancos e vermelhos no incio e o jardim ao fundo. Dois longos bancos de metal, um em cada lado, e alguns vasos ornamentando o todo. Era lindo, mas no para Carlos, no naquela noite.

    Encheu mais uma vez o clice com o maldito lquido que tomava-lhe a conscincia e virou-o, como quem bebe gua. A viso j no era to boa e os sentidos j lhe enganavam como uma criana travessa. Ele queria mais! Tomou daquele veneno nos lbios da garrafa, e tomou-o a gosto. Ele j no tinha medo de fatos futuros, apenas o seu passado o amedrontava. Parecia querer tirar daquele veneno a coragem que lhe faltava, parecia querer tomar bravura e no apenas vinho.

    No adiantava, nada mais tinha sentido. No conseguia ler, no conseguia admirar a lua e nem conseguia mais beber. Com passos errantes arrastou-se at a gaveta de uma pequena mesa de mrmore que tinha comprado a um ano atrs, pegou um estilete que usava para apontar o lpis que utilizava para escrever alguns versos tristes. Pegou tambm o lpis, parecia ter tomado coragem.

    Arrastou o sof velho porm confortvel que tinha beira da janela e sentou-se no cho. As luzes estava apagadas e apenas o claro da lua iluminava-o. Esticou-se para pegar um pedao de papel na escrivaninha que estava ao lado, ps-se curvado contra este papel, escreveu alguma palavra da alma e jogou o papel em cima da cama. O que estaria escrito? Quais versos tristes? A poesia a tristeza transcrita, palavras que choram pelo seu poeta, gritos da alma transcritos no papel.

    As horas se arrastavam, Carlos Eduardo se arrastava. Pegou o estilete, esticou o brao rumo a janela e olhou por alguns minutos sua lmina iluminada pela lua, vira seu reflexo distorcido, um rosto plido e triste to diferente do rapaz enrgico que sempre fora. To diferente de tudo que sempre fora.

    At alguns dias atrs era ento feliz, com todos os predicados que este adjetivo pode

  • carregar. Sonhava ter carreira, famlia e tudo o mais que um homem honrado pode ansiar. Lembra-se que sonhava com um futuro glorioso! Pobre homem, sendo agora encarado pela lmina de um estilete. O que pode o homem saber a respeito da glria e do futuro? No h glria alguma na lmina de um estilete.

    Ainda teve tempo de virar-se para o lado e colocar para tocar no computador porttil, que estava jogado em cima da cama, o Ein Deutsches Requiem do Brahms. Sempre gostara daquela msica, mas jamais imaginou que ela velaria-o solitariamente em uma morte to prematura. As cordas daquele violoncelo pareciam gritar a sua dor.

    Tudo comeou a trs meses atrs. s vezes a morte veste-se com roupas to bonitas que engana-nos, fazendo crer na rvore da vida, quando na verdade semeia morte. A vida s pode ser uma rvore que nasce, cresce e morre, sozinha, jogada num pntano sujo e escuro. Vira carvo.

    A trs meses atrs sorriu para ele, na tela daquele mesmo computador porttil, o mais lindo sorriso que uma mulher pode oferecer a um homem. Uma foto que invadira sua tela e o seu corao. Ironia? Do que mais feita a vida seno de desiluses e ironias?

    Amaram-se, no se pode dizer que no. Foram os trs meses mais maravilhosos da vida daquele rapaz, talvez tambm daquela dama. Amaram-se com todo amor que a vida pode oferecer. Cheiraram rosas, leram Shakespeare, beijaram-se, abraaram-se, foram felizes.

    Mas, como a saciedade enfadonha, aquela dama comeou a ser abraada pela monotonia. No Carlos Eduardo. Ele fora criado segundo os costumes clssicos e aprendera que na solido estava a verdadeira evoluo do homem. Somente o silncio permitia reflexo e auto-conhecimento. No silncio daquele amor ele afogava-se num desejo eterno, numa alegria jamais vista. Ele amava estar ao lado dela, ele amava ler no colo dela, ele amava admir-la em silncio.

    Ele a amava. E foi consumido por esse amor. Estava sendo morto pelo mesmo amor que lhe dera a vida. Estava sendo velado pela mesmo memria que outrora foi-lhe a essncia da sua existncia. Lembranas! So as folhas que o outono no pde levar, sempre melhores na memria do que quando vividas.

    Pois, depois de dois meses desse amor intenso, a bela dama comeara a recolher-se sua prpria companhia, deixando o nosso Carlos sozinho, apaixonado e sem o seu amor. A bela dama criava argumentos diversos para manter-se longe do seu amado. Ele, um cavalheiro, sempre respeitou a opinio da sua donzela, sempre fez-lhe tudo o que ela o pedia. Recolhia-se ento, solitrio, e lia algum dos seus melanclicos clssicos, sob mesma lua que hoje sorria de escrnio sua morte.

    Ele suportou por um ms, mas a sua alma tinha vida prpria e era enfurecida. Naquela noite, depois de mais um desses falsos argumentos, Carlos Eduardo voltara para casa. Era cedo ainda, o sol estava dando seu beijo de despedida no horizonte, anunciando a noite que estava por vir. Naquela noite Carlos perdeu a razo. Quem guarda o que sente, sempre perde a razo.

    Naquela noite ele resolveu agir diferente. Se era esse tipo vago de amor que sua donzela queria, era ento isso que ele iria fazer. Tomou uma dose do seu melhor Whisky e foi para a rua procurar alguma mentira para se iludir, procurar mostrar para si mesmo que era capaz tambm de

  • ser feliz longe dela. s vezes nossa vaidade nos faz isso, inventa uma mentira para nos consolar.

    brio, mais de raiva do que do Whisky, ele viu ao longe uma moa plida de chapu negro. Teve ento uma idia que mais tarde estaria refletida na lmina de um estilete. s vezes, tomado por um sentimento maior que nossa razo, algumas idias nos parecem melhores do que realmente so.

    Resolveu que molharia os lbios daquela moa com todo o sangue que seu corao gotejava. Ele queria-a, no por desejo pois amava a sua donzela, mas para provar para si mesmo que ele era melhor do que aquilo, para provar para si mesmo que algum era capaz de am-lo de verdade, para provar para si mesmo que ainda era vivo. Mas fenecia o nosso Carlos sem saber, pelo amor que um dia sorriu-lhe.

    Esperou ela passar perto dele, via a sua sombra bela mas no via sua face. O chapu revelava-lhe apenas os lbios. Os belos lbios de batom vermelho e a pele to alva quanto a lua. Parecia ser nova, muito nova. Parecia ser bela, muito bela.

    Quando enfim ela estava sua frente, com seus passinhos de donzela, ele segurou-a pelo brao e puxou-a com a fora que somente o erro pode nos dar. O chapu voou com o vento, descobrindo a sua bela face. Estava assustada, mas no tanto.

    Carlos Eduardo no disse uma s palavra, segurou a cabea dela com suas mos furiosas, despia-a com seus olhos verdes e profundos. Beijou-a. Sob a luz daquela lua, ele beijou aquela moa. Beijou-a sem dizer uma s palavra. Beijou-a sem sentir um s sentimento.

    Mas o amor realmente perigoso. Ele sentiu naquele beijo o veneno da mgoa. Sentiu remorsos pois amava a sua rosa. Porque maldio ela no retribua o amor que ele to humildemente oferecia? Porque?

    Segurou com suas mos rgidas o pescoo daquela garota, fechou os olhos e lembrou-se da sua amada. Sufocava-a, mas no via. Ela agitou-se por alguns segundos; ele no via nada. Seu pensamento estava distante, nos olhos da mulher que amava. Quando de repente, tomado pelo calor da clera, foi acordado pelo peso da garota. Ela falecera em suas mos.

    Assassino! Logo ele que sempre viveu de amor. Logo ele que sempre quis apenas um amor que lhe tomasse a alma. Logo ele, um poeta, morrendo por amor. Matando por amor. Um poeta assassino que fazia poemas com sangue e amava com a morte.

    Pois aconteceu que ele ficou desesperado. Arrastou-a para dentro e colocou-a em cima do sof. Um cadver no sof que outrora foi o cenrio da mais linda cena de amor. Um cadver apodrecendo as memrias de um amor infinito! Ele no sabia o que fazer, guardou o Whisky e pegou uma garrafa de Valpolicella que guardava ento para uma ocasio especial. Pegou tambm um clice qualquer, encheu-lhe com o veneno e tomou de um s gole. A morte ocasio especial?

    Acometeu-lhe ento uma idia digna daquela lua. Resolveu enterr-la no jardim. Sim, o que mais poderia fazer-se com um cadver seno enterr-lo? E foi isso que ele fez, enterrou-a naquele jardim. Revolveu a terra o mais que pde e tentou deixar a aparncia o mais normal possvel. Enterrou-a junto com todos os sonhos que algum dia teve. Enterrou-se junto sem saber.

  • Entrou a passos largos, sem medir tudo o que acabara de fazer. Carregou a garrafa de vinho e o clice para o quarto. Entrou de um s passo, no acendeu a luz, abriu a janela e o quarto foi tomado pela luz da lua. Viu o jardim e estremeceu lembrana do cadver que estava ali enterrado. Virou-se de um s golpe, foi at a sua estante de livros e pegou o primeiro livro que exibiu-se sua viso. Drcula, do mestre Bram Stoker.

    Chorava o nosso Carlos Eduardo. Chorava pelo amor que o matava. Chorava pela morte e pelo amor. Porque as mulheres de seu tempo no sabiam mais amar sem medidas? Algum deveria ter dito para a sua donzela que o amor no acaba, que o amor no se cansa. Algum deveria ter dito quela que tomou os seus sonhos que no amor, e somente no amor, quanto mais se d, mais se tem. Quanto mais se ama, mais amor o corao tem para se amar.

    Sentou ento no sof diante da janela, passou algumas pginas do livro, tomou algumas taas do vinho. Pensava. Aquela noite no acabaria ali. Ele no seria mais capaz de viver, ele no suportava mais aquele amor, ele queria que a sua rosa o amasse de verdade. Ansiava que ela regozijasse estar sempre ao lado dele. Ansiava que ela amasse tambm a presena dele, como ele amava a presena dela. Mas sabia que aquilo jamais aconteceria, pobre Carlos.

    Resolveu ento que no queria mais viver. Resolveu que a vida no valia mais a pena pois as pessoas no sabiam mais como amar. Resolveu que seria mais feliz em seu prprio tmulo, sendo alimento de vermes, regado pelas lgrimas dos entes queridos, iluminado na solido pela lua cheia.

    Embriagado, levantou-se sem foras e sem equilbrio, pegou um estilete e um lpis. Arrastou o sof, pegou um papel e despediu-se para sempre da vida e do amor - com estes versos que jogou em cima da cama:

    O ltimo Soneto

    Beija minha pele, claro lunarD este ltimo beijo em mimPara ento despedir-se do fim

    Com o amor que no pude contar.

    Com amor que encarei a vidaCom amor que encontrei a morte

    Se foi esta minha triste sorteDeixa minha memria esquecida.

    Deixa, lua, este servo sinceroDo qual a vida no teve penaMorrer pelo sentimento fero.

    Se o amor foi minha cantilenaDa vida nada mais eu espero

    Morrer pelo amor que condena.