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1 O USO DO BRINCAR NA ESCUTA PSICOLÓGICA DE CRIANÇAS HOSPITALIZADAS: CONTRIBUIÇÕES PSICANALÍTICAS RENATA FURTADO ISAÍAS 1 KELLY MOREIRA DE ALBUQUERQUE 2 Resumo: Objetivamos investigar, à luz da psicanálise, a utilização da atividade lúdica do brincar como um dispositivo de intervenção na escuta clínica de crianças no ambiente hospitalar. Acredita-se que a teoria e método psicanalíticos podem estabelecer interlocuções favoráveis com a medicina de modo a incluir a atenção ao sujeito e ao seu sofrimento psíquico decorrentes da experiência com doenças orgânicas no hospital. Trata-se de um estudo teórico que se organizou da seguinte forma: primeiramente abordamos o conceito histórico de infância para compreendermos as modificações simbólicas pelas quais este passou. Em seguida, situamos o inédito freudiano sobre a infância, em especial, sua relação com a sexualidade. Após, exploramos o lugar do brincar na clínica dos primórdios da psicanálise com crianças. Posteriormente, propomos um diálogo entre medicina e psicanálise, na tentativa de demarcar as especificidades e contribuições da teoria psicanalítica no hospital. Por fim, apresentaremos a importância da atividade lúdica do brincar na escuta analítica de crianças hospitalizadas. À guisa de conclusão afirmamos que o brincar, por revelar os medos e fantasias singulares da criança, permite a esta elaborar simbolicamente, pelo viés da linguagem, a vivência de uma doença. Palavras-chaves: Psicanálise. Infância. Hospital. Brincar. THE PLAY USING THE LISTENING PSYCHOLOGY OF HOSPITALIZED CHILDREN: CONTRIBUTIONS PSYCHOANALYTIC Abstract: This study investigates, in the light of psychoanalysis, the use of playing of playing as an intervention device in clinical listening to children in the hospital. It is believed that the theory and psychoanalytic method can establish favorable dialogues with medicine to include attention to the subject and its psychological distress resulting from experience with organic diseases in the hospital. This is a theoretical study that is organized as follows: first approach the historical concept of childhood to understand the symbolic modifications why this happened. Then we place the unprecedented Freudian about childhood, in particular its relationship to sexuality. After we explore the role of playing in the clinic from the early days of psychoanalysis with children. Subsequently, we propose a dialogue between medicine and psychoanalysis in an attempt to demarcate the characteristics and contributions of 1 Graduada em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). E-mail: [email protected]. 2 Docente do curso de Graduação em Psicologia Fanor Devry Brasil. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: [email protected].

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O USO DO BRINCAR NA ESCUTA PSICOLÓGICA DE

CRIANÇAS HOSPITALIZADAS: CONTRIBUIÇÕES

PSICANALÍTICAS

RENATA FURTADO ISAÍAS1

KELLY MOREIRA DE ALBUQUERQUE2

Resumo: Objetivamos investigar, à luz da psicanálise, a utilização da atividade lúdica do brincar como um

dispositivo de intervenção na escuta clínica de crianças no ambiente hospitalar. Acredita-se que a teoria e

método psicanalíticos podem estabelecer interlocuções favoráveis com a medicina de modo a incluir a

atenção ao sujeito e ao seu sofrimento psíquico decorrentes da experiência com doenças orgânicas no

hospital. Trata-se de um estudo teórico que se organizou da seguinte forma: primeiramente abordamos o

conceito histórico de infância para compreendermos as modificações simbólicas pelas quais este passou.

Em seguida, situamos o inédito freudiano sobre a infância, em especial, sua relação com a sexualidade.

Após, exploramos o lugar do brincar na clínica dos primórdios da psicanálise com crianças. Posteriormente,

propomos um diálogo entre medicina e psicanálise, na tentativa de demarcar as especificidades e

contribuições da teoria psicanalítica no hospital. Por fim, apresentaremos a importância da atividade lúdica

do brincar na escuta analítica de crianças hospitalizadas. À guisa de conclusão afirmamos que o brincar,

por revelar os medos e fantasias singulares da criança, permite a esta elaborar simbolicamente, pelo viés da

linguagem, a vivência de uma doença.

Palavras-chaves: Psicanálise. Infância. Hospital. Brincar.

THE PLAY USING THE LISTENING PSYCHOLOGY OF

HOSPITALIZED CHILDREN: CONTRIBUTIONS

PSYCHOANALYTIC Abstract: This study investigates, in the light of psychoanalysis, the use of playing of playing as an

intervention device in clinical listening to children in the hospital. It is believed that the theory and

psychoanalytic method can establish favorable dialogues with medicine to include attention to the subject

and its psychological distress resulting from experience with organic diseases in the hospital. This is a

theoretical study that is organized as follows: first approach the historical concept of childhood to

understand the symbolic modifications why this happened. Then we place the unprecedented Freudian

about childhood, in particular its relationship to sexuality. After we explore the role of playing in the clinic

from the early days of psychoanalysis with children. Subsequently, we propose a dialogue between

medicine and psychoanalysis in an attempt to demarcate the characteristics and contributions of

1 Graduada em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). E-mail: [email protected]. 2 Docente do curso de Graduação em Psicologia Fanor Devry Brasil. Mestre em Psicologia pela

Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: [email protected].

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psychoanalytic theory in the hospital. Finally, we will present the importance of playing the play in analytic

listening hospitalized children. In conclusion we say that the play, to reveal the fears and fantasies of natural

child, allows this elaborate symbolically, from the perspective of language, the experience of a disease.

Key-words: Psychoanalysis. Childhood. Hospital. Play.

INTRODUÇÃO

Objetivamos por meio deste estudo ver o papel do lúdico como um dispositivo de

intervenção no tratamento de crianças hospitalizadas. É interessante ressaltar que não

podemos considerar o lúdico apenas pelo uso de brinquedos, haja vista o objeto não

possuir significado igual para todas as crianças. Sabe-se que as crianças se utilizam da

imaginação, assim, uma boneca não será apenas uma boneca, mas um objeto pelo qual se

investe uma fantasia. Iremos abordar o lúdico através de desenhos, modelagens e

brinquedos ou qualquer outro equipamento que possa ser manejado simbolicamente pela

criança. Ora, o brinquedo, para Brougère (1995), é um objeto cultural produzido por

adultos, mas seu valor está na imagem simbólica representada pela criança, que ganha

significado no processo da brincadeira, comunicando seus pensamentos.

Ao se trabalhar com a criança é necessário entender sua significação em um

determinado contexto e momento histórico, pois se sabe que a criança é um conceito

historicamente datado. É interessante ressaltar que a palavra infância vem de infante que

significa “não falante”. De fato, até o século XVIII as crianças não tinham vez nem “voz”.

Desta forma, para entendermos o sentido atual que é dado à infância, teremos que nos

remeter à construção do conceito. Na Idade Medieval, de acordo com Stellin (1994), a

criança era considerada como um adulto em escala reduzida, não havia distinção entre o

adulto e a criança. Essa fase, a infância, não era vista como diferenciada, peculiar e

decisiva na construção do sujeito. Logo que as crianças não precisavam mais dos cuidados

maternos se inseriam na vida adulta, com os mesmos trabalhos dos demais, inclusive

usando as mesmas vestimentas. Contudo havia, de acordo com Ariès (1981), um

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tratamento superficial que as famílias ou empregados dedicavam quando as crianças

ainda eram bebês. Dessa manieira, os pais passaram a ter novos sentimentos pelas

crianças. Vários fatores contribuíram para essas mudanças, por exemplo, o capitalismo,

que se preocupava com o aumento da população, o que possibilitava ver a questão da alta

mortalidade infantil. Outro fator que contribuiu para essa mudança foi que o Estado

moderno quis aumentar a população para o povoamento de colônias e o aumento do

contingente militar. A criança, passa a ser vista, como uma força de produção que traria

lucros a longo prazo, fato que fez valorizar a educação pedagógica. Essa época coincide

com a Filosofia das Luzes, que trouxe uma preocupação humanizada de igualdade e

felicidade.

Com esse olhar diferenciado para a criança, conforme Costa (2007), no séc. XIX

desenvolveu-se a pedagogia, pediatria entre outras especializações em torno da criança.

A infância passou a ser um direito inato do homem, sendo colocada dentro das escolas, a

criança passou a vestir roupas específicas, a ler a sua própria literatura e a brincar com os

seus próprios jogos. A psicologia é vista como algo capaz de produzir um discurso

científico sobre a infância, através do qual outras práticas possam se nortear.

A criança, segundo Costa (2007), passa a ser vista como desprovida de toda

sexualidade, essa inocência infantil passa a ser preservada pelos educadores, que

diferentemente do que acontecia anteriormente, começa a afastar a criança de assuntos

relativos ao sexo. A criança é vista como um ser assexuado, que possui uma natureza a

ser corrigida pelo adulto, não possui desejo próprio. Tal concepção predominou durante

muito tempo, até que Freud veio modificá-la.

Foi nesse momento histórico descrito que surgiu a psicanálise com Freud. Ele

abordou a infância pela lógica do inconsciente, ao invés de utilizar-se de um registro

genético e cronológico. Freud, ao escrever “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”

(1905) colocou em dúvida as concepções existentes na época sobre a atividade sexual na

infância. Ele apresenta a sexualidade da infância de uma nova forma, usando o termo

perverso-polimorfo pelo qual o corpo da criança passa a ser visto como um corpo de

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desejo. A sexualidade infantil está presente na infância e irá se prolongar durante a vida

adulta, mesmo que sob a determinação de deslocamentos e condensações característicos

das representações recalcadas. Freud elabora essa teoria da sexualidade a partir da escuta

de suas pacientes histéricas, e, como Birman (1997) afirma, qualquer análise, sempre

implicará a análise do infantil. Mas a análise de crianças só terá início com o caso “O

pequeno Hans”, publicado por Freud em 1909. Nessa análise Freud só se encontrou com

a criança uma vez, a análise foi realizada pelas interlocuções travadas com o pai da

criança. Seu propósito com o caso, segundo Costa (2007), era comprovar seus

descobrimentos sobre a sexualidade infantil. A partir de Hans, Freud revisou a questão da

análise com crianças observando que a realidade psíquica destas se assemelha à do adulto

em suas angústias, fantasias e desejos. Com isso, foi estabelecido os três parâmetros

indispensáveis para que uma análise seja possível: a demanda, a transferência e a

interpretação. A demanda foi formulada pelo pai que procurou Freud a fim de aliviar o

sofrimento de seu filho. Freud reconhece que uma análise não pode ser conduzida por um

pai, mas pode-se pensar que Freud ocupou o lugar de analista para Hans, já que ele sabia

que o pai escrevia para o mesmo relatando o que Hans sentia, Freud ocupou assim o

sujeito suposto saber, sendo possível com isso a transferência. Com relação à

interpretação, Freud, ao interpretar a fobia de cavalos como medo da represália paterna

por causa dos desejos eróticos pela mãe, possibilitou a cura da neurose. A partir do caso

do pequeno Hans foi possível, afirma Costa (2007), estabelecer as bases teóricas para a

análise de crianças, mas ainda levou muito tempo para que ela se desenvolvesse. A

psicanálise de crianças tem especificidades em relação à clínica com adultos, já que a

obediência à regra fundamental de condução de uma análise, qual seja, a associação livre,

é atravessada pelo devanear presente na brincadeira.

O papel do brincar na infância foi estudado por várias teorias, mas, de acordo com

Jardim (2003) é a psicanálise que irá atribuir sua função simbólica. Apesar de Freud não

ter atendido crianças, a não ser indiretamente, através das conversas com o pai de Hans,

ele analisou os sonhos e as brincadeiras relatadas. O brincar por si só não foi estudado

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por Freud, mas a descoberta que o mesmo poderia ser um recurso para o inconsciente foi

propiciada pelo mesmo em “Escritores criativos e devaneio” (1908), ao introduzir a ideia

de que a brincadeira da criança corresponde à fantasia no adulto.

Freud deu importância e significados a essas brincadeiras infantis, considerando-

as como a primeira manifestação da fantasia, “ao brincar toda criança se comporta como

um escritor criativo, pois cria um mundo próprio.” (FREUD, 2006, p.135). A criança sabe

distinguir o mundo criado por ela da realidade e, assim, passa a inserir as situações

imaginadas às situações vividas no mundo real. Essa conexão é que irá diferenciar o

“brincar” infantil do “fantasiar”. Quando a criança para de brincar, ela apenas renuncia a

sua ligação com os objetos reais, ao invés de brincar, ela fantasia, “cria castelos no ar”.

(FREUD, 2006, p.136). De fato, o brincar da criança é determinado pelo desejo de ser

adulto, ela imita em seus jogos o que conhece da vida dos mais velhos, colocando muita

emoção nesse mundo de brinquedos. As crianças em suas brincadeiras

repetem tudo que lhes causou uma grande impressão na vida real, e assim

procedendo, ab-reagem a intensidade da impressão, tornando-se, por assim dizer,

senhoras da situação. Por outro lado, porém, é óbvio que todas as suas brincadeiras

são influenciadas por um desejo que as domina o tempo todo: o desejo de crescer

e poder fazer o que as pessoas crescidas fazem. Pode-se também observar que a

natureza desagradável de uma experiência nem sempre a torna inapropriada para

a brincadeira. Se o médico examina a garganta de uma criança ou faz nela alguma

pequena intervenção, podemos estar inteiramente certos de que essas assustadoras

experiências serão tema da próxima brincadeira; contudo, não devemos, quanto a

isso, desprezar o fato de existir uma produção de prazer provinda de outra fonte.

Quando a criança passa da passividade da experiência para a atividade do jogo,

transfere a experiência desagradável para um de seus companheiros de brincadeira

e, dessa maneira, vinga-se num substituto (FREUD, 2006, p. 26).

Cada criança irá dar um significado diferenciado aos brinquedos expostos no

consultório, ele é apenas um mediador entre a realidade e a imaginação. Depois da

constatação de que o brinquedo pode ser utilizado na análise de crianças, ocorreu o

verdadeiro nascimento e desenvolvimento da psicanálise de crianças. Abordaremos as

pesquisas e o trabalho das primeiras analistas de crianças, considerando que cada uma

dessas teorias apresenta um modo de trabalho decorrente do entendimento desses teóricos

sobre a representação da criança.

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De acordo com Costa (2007), foi inicialmente as mulheres que analisaram

crianças, já que na época não era permitido o ingresso de mulheres na universidade.

Assim, elas começaram a praticar a psicanálise nas escolas. É inclusive essa formação

pedagógica que irá influenciar a clínica.

A primeira psicanalista de crianças foi Hugh-Hllmunth. Conforme Avellar (2011)

esta psicanalista reconheceu a importância da comunicação da criança como complexo

nuclear da neurose infantil. Valorizou o brincar e o seu sentido simbólico como forma de

desvelar os sintomas e a problemática da criança. Segundo Roza (1993), outras pioneiras

na psicanálise de crianças foram Sophi Mongenstein, na França, que escreveu um livro

sobre o desenho, e Rambert, na Suíça, que introduziu nos atendimentos infantis o

emprego de marionetes de famílias.

Mesmo com as contribuições desses autores, foram Anna Freud e Melanie Klein

que justificaram o trabalho da psicanálise infantil, que o próprio Freud tinha dúvidas,

devido às limitações do discurso verbal da criança.

Anna Freud, sexta e última filha de Sigmund Freud, conscientizava “a criança de

seu sofrimento e da necessidade de ser ajudada a se livrar de seu sintoma.” (COSTA,

2007, p. 24). Anna Freud, segundo Costa (2007), mostrou, por exemplo, que a criança

podia ser castigada se se comportasse de forma rebelde. A fim de cumprir tais objetivos

ela associava medidas pedagógicas aos meios analíticos. Neste sentido, a interveção do

analista provinha de sua autoridade.

Anna Freud, conforme Costa (2007), não se apoiou no inconsciente, nas forças

psíquicas recalcadas. De acordo com o seu ponto de vista, caberia ao analista exercer uma

ação educativa, controlando e decidindo o que deve ser rejeitado ou satisfeito, ao invés

de utilizar-se da escuta. Anna Freud, segundo Roza (1993), afirmava que na clínica

psicanalítica, o brincar não podia ser usado como método de associação livre, pois o

psiquismo das crianças é diferente dos adultos. Costa (2007) observa que Anna Freud

parece demonstrar para o analisando que o analista efetivamente ocupa o lugar do saber

e não o lugar de suposto saber, proposto, por exemplo, por Lacan.

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Já Melanie Klein, de acordo com Costa (2007), deu importância à constituição

interna da criança e na sua clínica observou o brincar infantil, fazendo interpretações do

conteúdo inconsciente expresso nos brinquedos.

Segundo Jardim (2003), foi a partir dessa ideia que a brincadeira pôde expressar

a angústia, assim como outros desejos inconscientes. Entre essas analistas, Melanie Klein

se sobressaiu ao dar uma elevada importância a esse mundo interno psíquico, utilizando

o brincar em sua atividade clínica. Para esta, segundo Segal (1975, p.13), “o brincar da

criança poderia representar simbolicamente suas ansiedades e fantasias.”, haja vista o

emprego restrito da associação livre ser limitado a crianças muito pequenas. O brincar,

então, constitui-se como expressão simbólica de conflitos inconscientes.

Através de sua clínica que se funda privilegiando o mundo interno da criança,

“Melanie Klein eleva a criança à plena condição de analisando.” (COSTA, 2007, p.42).

Nesta medida, o analista deve observar todo o comportamento da criança na hora da

sessão. O que ela brinca, como faz, tudo terá um significado. A tarefa do analista é

descobrir, através dos símbolos e brinquedos, o material inconsciente e interpretá-lo,

tentar traduzir em palavras as ansiedades e fantasias da criança, tornando-as acessíveis ao

pensamento e à fala.

Winnicott é outro nome importante ao se falar da clínica infantil psicanalítica e do

brincar infantil. Ele estudou, conforme Costa (2007), não só a técnica do brincar, mas o

conceito do brincar como uma atividade humana que se situa no espaço intermediário

entre a mãe e o bebê, o espaço potencial preenchido pela fantasia. Winnicott (1975) vê o

brincar como um fator decisivo para o desenvolvimento e utilizou-se dele em sua

psicoterapia que:

se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta.

A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em consequência, onde

o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no

sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um

estado que o é (WINNICOTT, 1975, p.59).

Para Winnicott (1975), o terapeuta deve envolver-se com o brincar do paciente,

podendo ser uma forma de comunicação. Deve-se buscar a comunicação da criança e

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sabe-se que o domínio dela pela fala normalmente não é muito expressivo, ela não é capaz

de transmitir o que ela transmitiria através da brincadeira. O brincar torna-se assim

essencial para que o paciente manifeste sua criatividade.

Segundo Winnicott (1975), o brincar espontâneo é por si mesmo uma terapia. A

criança traz para dentro da brincadeira fenômenos vivenciados na realidade externa,

usando-os a serviço de alguma amostra derivada da realidade interna. “Sem alucinar, a

criança põe para fora uma amostra do potencial onírico e vive com essa amostra num

ambiente escolhido de fragmentos oriundos da realidade externa” (WINNICOTT, 1975,

p. 76). Se observarmos que tudo o que acontece na brincadeira já foi feito antes, sentido

antes, deve-se esperar, pela evolução natural da transferência que irá surgindo pela

confiança do paciente no próprio cenário psicanalítico, que conteúdos inconscientes

apareçam neste espaço. Não se deve ser seguido pela necessidade pessoal do analista de

interpretar, mas esperar que o paciente chegue à compreensão criativamente, já que é o

paciente e apenas ele quem tem as respostas, o analista não pode interpretar de acordo

com as suas próprias imaginações criativas.

É importante falar das contribuições de Bettelheim para a psicanálise infantil. Ele

realiza uma leitura psicanalítica dos contos de fadas clássicos evidenciando a relação

destes com as emoções expressas pela criança. Algumas crianças podem se identificar

com algum conto de fadas, ele “reassegura, dá esperança para o futuro e oferece a

promessa de um final feliz” (BETTELHEIM, 2011, p.37). Uma das mensagens

transmitidas pelos contos de fadas é que uma luta contra dificuldades é algo inevitável e

pertence a existência humana. Mas se a pessoa não se intimida com situações inesperadas,

dominará os obstáculos para no fim emergir vitoriosa. Assim, o conto de fadas escolhido

pela criança normalmente não tem nada a ver com a vida exterior, mas há uma

identificação com seus problemas interiores, podendo estruturar os devaneios, dando

melhor direção a sua vida. O significado será diferente para cada pessoa:

e diferente para a mesma pessoa dependendo do momento de sua vida. A criança

extrairá significados diferentes do mesmo conto de fadas, dependendo de seus

interesses e necessidades do momento. Tendo oportunidade, voltará ao mesmo

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conto, quando estiver pronta a ampliar os velhos significados ou substituí-los por

novos (BETTELHEIM, 2011, p. 21).

Em decorrência desse significado particular, Bettelheim (2011) afirma que não há

uma história que é específica para uma idade específica, mas que irá depender dos

problemas que emergem no momento e de seu próprio momento psicológico. Assim,

como no brincar, ao contar uma história deve-se seguir a vontade demonstrada pela

criança, pois ela irá fantasiar em cima do significado que ela dá à história.

Mesmo que os pais atribuam algum significado ao filho ter se envolvido com

aquela história e que a reproduza através do brincar, é favorável, assim como Winnicott

(1975) coloca, que eles guardem isso para si, até que as crianças decidam se revelar.

Contar a elas porque um conto de fadas é tão cativante destrói, segundo Bettelheim

(2011), o encantamento da história, que depende do porquê de se estar tão maravilhada.

Ao analisar a importância da fantasia no mundo infantil, enfatiza que a capacidade de

desenvolver fantasias ultrapassa o presente, torna suportáveis as fantasias experimentadas

na realidade. A fantasia contém de forma imaginária uma enorme variedade de saídas

também presentes na realidade, tendo assim um grande material de elaboração.

Uma história relatada por Bettelheim (2011) refere-se a um menino de cinco anos

que se identificou com a história da Rapunzel no momento em que soube que sua avó,

que cuidava dele durante o dia, teria que ir ao hospital por conta de uma doença grave.

Foi importante para o menino o fato de a Rapunzel ter achado os meios de escapar de sua

condição em seu próprio corpo, as tranças, pelas quais o príncipe subiu na torre. A história

mostrou que, se necessário, ele encontraria no corpo a fonte de sua segurança. De fato, a

criança repete nas brincadeiras os mesmos personagens, tendo uma identificação com os

mesmos. Mas cada vez que ela brinca, ou ouve a história, ela nunca será a mesma, está

sendo sentida de uma maneira diferente. Para Bettelheim (2011) sem fantasias a vida fica

limitada, e a infância é a época que essas fantasias precisam ser nutridas. Jardim (2003)

afirma que no brincar ou no conto de fadas, a criança encontra uma saída através da

imaginação para aliviar a frustação, a decepção e o desespero. Assim, a criança recorre à

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fantasia, transgredindo a realidade como satisfação, para não ceder ao desespero, devendo

o adulto não interferir na brincadeira. A experiência da criança deve ser respeitada:

Seu mundo é rico e em contínua mudança, inclui um intercâmbio permanente entre

fantasia e realidade. Se o adulto interfere e irrompe em sua atividade lúdica, pode

pertubar o desenvolvimento da experiência decisiva que a criança realiza ao

brincar. (Bettelheim. 1988, p.142).

Ao se estudar psicanálise é válido ressaltar a releitura, de forma diferenciada, feita

por Lacan da obra freudiana, ao demarcar a questão do sujeito do inconsciente, afirmando,

segundo Costa (2007), que o campo do inconsciente é o campo da linguagem. Lacan não

analisou crianças, mas observou que Melanie Klein e Anna Freud desconsideravam a

dimensão simbólica do sujeito no tratamento. Lacan pensava o sujeito pela sua relação

com a fala e com o Outro, sendo a linguagem preexistente ao sujeito. O Outro transforma

o grito produzido pelos bebês em demanda, com isso a criança entra no campo da

linguagem, mesmo que ainda não fale. O bebê, com seus balbucios, começa a fazer jogos

vocais, alucinando a voz da mãe, quando ela não está presente. Essa voz e língua são

instrumentos de gozo, esses sons são jogo de gozo que a criança pode fazer também em

resposta à demanda da mãe.

Freud, segundo Costa (2007), estudou sobre necessidade e desejo, Lacan

introduziu um terceiro elemento que é a demanda. A passagem do real para o simbólico

é feita através da intervenção do Outro, introduzindo a demanda na criança, a demanda

de amor. A necessidade é satisfeita pelo alimento e o desejo é produzido pela abertura

entre a necessidade e a demanda.

O bebê para Lacan, de acordo com Costa (2007), ocupa um lugar que já está

marcado pelo desejo do Outro, ele completa a mãe no seu desejo narcísico. Ele é fascinado

pelo olhar da mãe, se identifica com essa mãe e se aliena. A entrada do pai destitui esse

lugar imaginário onde a criança é o falo da mãe, permitindo que o infans saia desse lugar

de ser o objeto de satisfação do desejo da mãe, para se constituir como sujeito desejante.

Nesse sentido, o pai encarna a lei, permitindo assim à criança adquirir sua identidade.

Lacan não trabalhou diretamente com crianças, mas acompanhou o trabalho realizado

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pelas primeiras psicanalistas que se dedicaram à clínica com crianças, como Françoise

Dolto e Maud Mannoni, que seguiram seus ensinamentos. Fraçoise Dolto, conforme

Costa (2007), foi pioneira da psicanálise de crianças na França, era colaboradora e amiga

de Lacan.

A proposta de Dolto, de acordo com Costa (2007), era inserir a criança na estrutura

desejante da família, pois ao nascer ela já está inserida no desejo do Outro. Sendo fruto

de três desejos: o do pai, o da mãe e o do próprio sujeito. Sendo assim, para ela o sintoma

da criança é também o sintoma da estrutura familiar. Por isso é importante nas entrevistas

preliminares analisar as relações inconscientes entre os pais e a criança, remontando as

estruturas edípicas dos pais e dos avós. Com Lacan aprendeu a abordar a criança sob o

ângulo da verdade, abordando seu sintoma como sendo uma resposta ao que existe de

sintomático da estrutura familiar.

Costa (2007) afirma que para Dolto é a relação com o Outro que humaniza o bebê,

sendo que “a fala materna traduz a realidade para a criança nomeando suas sensações e

organizando seu mundo.” (COSTA, 2007, p.70). É a partir dos sentidos que o lactente

organiza suas trocas significativas com o outro cuidador, o corpo é sempre uma

construção simbólica.

Em sua clínica com crianças, Dolto, conforme Costa (2007), dava atenção ao

contexto familiar, detectando de onde vem a demanda, percebendo o lugar da criança no

narcisismo dos pais e vendo quem realmente está sofrendo. Françoise Dolto, ainda

segundo Costa (2007), não costumava utilizar o brinquedo em si, mas utilizava outros

meios de atividades lúdicas como o desenho e a modelagem, pedindo que a criança falasse

deles, buscava que o dito da criança fosse representado nessa fala; do desenho e da

modelagem buscava que o dito da criança fosse representado, dando prioridade ao

trabalho associativo, sem deixar escapar as expressões, lapsos e erros.

Assim, pensar numa possível interlocução entre Psicanálise e hospital implica

primeiramente, especificarmos o ambiente hospitalar. Este, segundo Carvalho e Couto

(2011), é um lugar propício para a vivência de situações traumáticas, não só para os

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pacientes, mas para os familiares e amigos que os acompanham e para os profissionais de

saúde que ali atuam. A psicanálise, ao se inserir nesse ambiente, passa a atuar junto com

a clínica médica. É importante saber as fronteiras e as similaridades que estão presentes

no olhar da medicina e na escuta da psicanálise.

A psicanálise, segundo Pinto (2011), surgiu a partir do desejo de Freud fundar

uma disciplina que fosse um campo de conhecimento que levasse em conta os objetivos

de observação, previsão e controle das doenças psíquicas. Mas ele percebeu que ao atuar

como médico não obtinha as transformações que ele buscava no paciente. Ao perceber

que o inconsciente dos pacientes é o determinante dos sintomas, Freud observou que os

efeitos que ele buscava dependiam do engajamento do paciente na resolução de seus

problemas, cabendo ao analista o papel de sustentar o trabalho feito pelo paciente,

utilizando-se da escuta.

O analista, designado por Lacan, não tem lugar específico para atuar,

“autorizando-o” a sair do consultório. De acordo com Moura (2011), não há uma

instituição ideal para a psicanálise, para que ela seja possível é necessário que haja um

analista e um sujeito, que só saberá o que a psicanálise oferece quando estiver diante de

um psicanalista. A inserção da psicanálise no hospital não se trata de simplesmente

estruturar um serviço de psicanálise dentro da instituição, nem de agendar com os

pacientes em ambulatórios, seguindo com isso os moldes do consultório privado. O

psicanalista deve se colocar de forma diferenciada a cada situação que é chamado a

intervir, em busca dos objetivos que se propõe. É considerado sempre o caso a caso,

buscando uma solução particular diante do sofrimento, das situações geradoras de

angustia. Ao ser chamado para resolver uma dificuldade, “o que ele pode é oferecer não

uma resolução predeterminada, mas uma que passe pela palavra, possibilitando algo do

sujeito possa advir” (CARVALHO; COUTO, 2011, p.117).

Já a clínica médica, conforme Ansermet (2003), baseia-se no olhar e procura

construir seu objeto através da observação e descrição, busca essa relação entre o olhar e

a linguagem. O olho clínico irá distinguir e classificar, o médico irá observar o que

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surpreende seu olhar e sua prática clínica se baseará em tal ponto. A clínica médica deriva

de demarcar o sujeito, irá descrevê-lo minuciosamente. Pretendendo tudo englobar, mas

nega a evidência pulsional, que a psicanálise escuta. Ela postula um objeto neutro,

positivo, imutável. Como Ansermet (2003, p. 10) escreve, “eles também têm olhos para

não ver, justamente no que as coisas os olham.”

Em contrapartida, conforme Ansermet (2003) a clínica psicanálitica aposta na

fala, ela irá se orientar a partir do que o sujeito enuncia, desenvolvendo a escuta que não

é ouvida pelo paciente, a atenção é no que não pode ser dito. Ela irá além do que se

manifesta no visível, dá acesso a algo que não pode ser capturado pelo olhar. Já que a

psicanálise baseia-se no inconsciente, ela irá levar em consideração o que permanece

escondido, não deixando-se iludir pelo manifesto.

O saber produzido em uma análise é para Pinto (2011) um saber apaixonado que

demanda interpretação. O analisante busca uma formulação científica sobre seu

sofrimento, busca a causa. Mas a psicanálise foge a essa causalidade, ela interessa-se pela

singularidade de cada sujeito, ele irá desdobra-se na linguagem. O analista utiliza-se da

enunciação para facilitar essa percepção do ato analítico pelo analisante, que o analisante

escute o que não permite escutar no domínio lógico.

A clínica psicanalítica não está apenas na escuta, está também no olhar sobre a

fala do sujeito. Como descreve Ansermet (2003, p.10): “na clínica psicanalítica podemos

dizer que nos deixamos olhar pelo olhar. Aceita-se o retorno do olhar. Trabalha-se a partir

do olhar na fala”. Com isso, a clínica psicanalítica não é apenas da escuta, mas a clínica

do olhar que põe em jogo a fala do sujeito.

Na medicina, de acordo com Ansermet (2003), o objeto vem saciar o olho, na

psicanálise é o contrário, o olho sacia o objeto. Na psicanálise não é feita uma simples

observação, o analista se insere em sua problemática. O médico irá observar no paciente

algo que ele já estudou, algo no paciente em que ele já possui um conhecimento, já para

o analista apenas o paciente pode saber o que ele sente e revela.

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Ansermet (2003) deixa claro que o saber da biologia não exclui o saber

psicanalítico. Abordar os fenômenos mentais através da anatomia ou da genética não

eliminará o sujeito, mesmo que determinado organismo seja atendido, não se pode saber

o que resultará de fato nisso. O psicanalista não pode também subtrair-se dos

determinantes corporais, mas não deve deter-se a eles, mas sim o que eles representam

para o sujeito.

De acordo com Carvalho e Couto (2011), o hospital tem as normas necessárias

para o seu funcionamento, o psicanalista deve estar atento para as diversas situações que

se advinham nesse contexto, já que ele não se deterá apenas nas demandas explícitas de

atendimento. A intervenção do analista, ainda conforme os autores, pode possibilitar que

o paciente, a família e a equipe tenham o seu espaço nesse ambiente e que possam dialogar

para possibilitar que o paciente seja ouvido.

A posição do analista é a de se oferecer para escutar e intervir em situações que

façam parte do ambiente hospitalar, mas não como o que tem o poder de solucionar os

problemas. Muitas vezes o psicanalista é chamado para ocupar o lugar de quem sabe, ou

seja, do detentor do saber. Mas a proposta de Freud é que o psicanalista se ofereça em

posição de “não saber”, necessária para a escuta dos pacientes, dos seus familiares e dos

profissionais, para que não se deixem entrar em um jogo de poder, podendo acolher as

demandas, sem que seja necessário atendê-las. O que se percebe é que muitas vezes há

um mal entendido entre o que o médico demanda e o que este lhe propõe, o médico pede

algo que não faz parte do seu saber próprio, cabe ao analista saber se o que os profissionais

pedem a ele está de acordo com o seu saber.

Além de acolher a queixa dos familiares, deve-se propor a busca de

esclarecimentos sobre a doença, muitas vezes não é possível ir além do significante da

doença até que a questão seja esclarecida, pois essas dúvidas podem ter efeitos na

localização da angústia.

O hospital, de acordo com Oliveira (1999), já carrega em si experiências

caracterizadas pela dor, doenças, perdas, desespero, enfim, uma possiblidade de

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destituição. A criança necessita de um Outro desejando por ela, no hospital isso não será

diferente. O adoecimento e a hospitalização provocam uma série de mudanças na vida da

criança, segundo Lindquist (1993), as reações são decorrentes da separação da família,

do surgimento da doença e da admissão no ambiente hospitalar, pois muitas vezes ela não

sabe o porquê de estar ali.

A criança, conforme Oliveira (1999), passa a fazer muitas perguntas, como o

porquê de estar ali ou como funciona o hospital. Essa dor causada pela internação pode

tomar uma maior dimensão se a criança não puder falar de seu sofrimento. O adulto pode

ter dificuldades de falar com a criança, mas deve saber que ela também sofre e também

se questiona. Dolto, nas palavras de Costa (2007), enfatiza a necessidade de contar a

criança, em uma linguagem acessível à sua compreensão, toda a verdade sobre a sua

história, mesmo que isso seja doloroso para ela ou para os adultos. Muitas vezes um

sintoma aponta para esse não dito.

A dor da criança não é apenas a dor física (OLIVEIRA, 1999), mas a dor de estar

ali, provavelmente destituída de sua subjetividade, a dor causada pelo sentimento de

solidão, de abandono. A criança no hospital é esse sujeito que sofre, questiona, mas que

acima de tudo, deseja.

Uma técnica utilizada com a psicanálise de crianças é o uso do brinquedo para que

ela possa expressar o que sente. Freud (2006b) ao falar das brincadeiras infantis, afirma

que as crianças as levam muito a sério, colocando toda a emoção vivida, mas as

distinguem da realidade, ligando seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis

do mundo real. A brincadeira, para Barreto (1998), é uma atividade lúdica livre, incerta e

caracterizada pelo faz-de-conta. Vimos anteriormente como os psicanalistas que

realizaram análise com crianças, utilizaram-se desse brincar na clínica e Dolto, conforme

Costa (2007), que utilizou de outras atividades lúdicas, como o desenho e a modelagem,

não interpretando os desenhos, mas tentando fazê-los ganhar vida, sem orientar, nem

reagir. Pedia para que as crianças falassem deles, para a partir desse discurso fazer

perguntas.

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Para brincar com a criança na clínica, não é necessário a utilização de brinquedos

elaborados, mas de objetos que possuem realidade própria para a criança, já que para ela

“todo objeto é um objeto descoberto” (WINNICOTT, 1975, p.141). Através dos mesmos

elas podem expressar sentimentos que estejam vivenciando, como demonstrar o modo

pelo qual ela enxerga a doença e o tratamento hospitalar. Pode expressar seus desejos,

expectativas e suas experiências atuais, projetando-se das atividades dos adultos, sendo

coerente com os papéis que assume. A sua postura como paciente e médico se expressa

de forma diferente. Podem ser utilizados desenhos, continuação de histórias, recortes de

revistas, entre outros recursos que surgem através dessa relação com o paciente.

No brincar a criança não está em uma posição passiva, como na maioria dos

procedimentos a que ela está submetida no hospital, mas ela aparece como sujeito de

desejos e vontades, não mais como mero objeto de cuidados. Na brincadeira, ela ganha

voz e espaço para utilizar a imaginação e expressar o que sente. De acordo com Jardim

(2003), o brincar envolve a relação entre o real e o imaginário, sendo atravessado pelo

simbólico, espaço no qual os objetos criam vida e se transformam de acordo com a ilusão

de quem brinca, sendo o brincar uma forma de descobrir, reinventar, reorganizar, aceitar

desafios, arriscar para progredir.

Tudo que vai surgindo na brincadeira já foi vivenciado pela criança antes, como

no brincar de casinhas, elas tendem a expressar o que experencia em sua casa, ou brincar

de médico, em que expressa o que já vivenciou nessa relação. Para Elkomin (1998), no

processo de interpretação do seu papel, a criança transforma suas ações diante da

realidade, possuindo liberdade para escolher o tema do qual quer brincar, entregando-se

com toda sua emoção nesta atividade, escolhendo os papéis que irá desempenhar, sendo

uma atividade autônoma. No ambiente hospitalar, a criança, em algumas brincadeiras,

por exemplo, é o médico ou a enfermeira e desempenha o papel dos mesmos a apartir do

modo que ela percebe, sendo muitas vezes de forma exagerada, mas sendo mesmo assim

a forma como ela vivencia.

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A criança, de acordo com Cabral (1999), seja na clínica convencional ou na análise

realizada no hospital, está ali com seu jogo, com seu brincar, encenando sua história, sua

novela familiar. O analista não é um companheiro imaginário que entra em seu brincar,

mas ele está ali como o causador do desejo de saber, oferecendo-se à consumação.

O lugar do analista, conforme Brant (1999), não é aquele que tem as respostas

para a dor e sofrimento dos pacientes, mas sim deve escutá-los além do dito, como sujeito

do inconsciente, receber sua demanda, acolher a sua dor, fornecer um espaço no qual a

criança possa expressar suas angústias, fragilidades, dificuldades frente a situação

estressante que enfrenta.

O analista deve tentar se aproximar da criança e criar um vínculo com a mesma,

deve-se jogar o jogo da criança ou nada acontecerá, pois ela não tem nenhuma razão para

escutar as perguntas monótonas dos adultos. Ao fazer essa aproximação deve-se ajudá-la

na construção de um saber, o seu saber sobre a doença, “deixando-a falar, estando atento

às suas brincadeiras, dando importância às suas perguntas, fazendo-se presente”

(OLIVEIRA, 1999, p.31).

À guisa de conclusão, vale salientar que o brincar estudado nesse trabalho é o

brincar criativo, aquele em que a criança está livre para se expressar. O lúdico terá sentido

para a psicanálise se o analista estiver escutando-a, não orientando, nem fazendo a

interpretação, mas dando voz a criança, sem influenciá-la , cabendo ao analista pedir para

a criança falar sobre o seu brincar, o seu desenho, e fazer as perguntas que caibam no

momento.

A psicanálise ao se inserir no hospital não trata simplesmente de montar um

serviço clínico dentro da instituição. A cada nova situação que o psicanalista é chamado

a atuar deve ser visto o caso singular, buscando uma solução particular diante do

sofrimento, das situações geradoras de angústia, mas sem fugir à técnica que passe pela

palavra, pela associação livre. Cada paciente que chega é um novo caso, não há casos

iguais, como aponta o olhar da medicina.

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O ambiente hospitalar tem normas estabelecidas e horários mais rigorosos do que

o sujeito estava acostumado em seu cotidiano, provocando diversas e significativas

mudanças. Não é somente a dor física, mas a dor psicológica. Por isso muitas vezes esse

processo hospitalar torna-se ainda mais doloroso para a criança, pois os adultos tentam

esconder algumas verdades da criança, tornando-se um não-dito, que a criança não tem

acesso ao seu todo, e essas partes podem aterrorizá-la ainda mais.

O brincar é uma ferramenta lúdica muito importante, pois ao brincar a criança cria

histórias e apresenta personagens que podem representar sua dor, as suas angústias. Ao

brincar a criança revela os medos e fantasias singulares, permitindo a ela elaborar

simbolicamente, pelo viés da linguagem, a vivência de sua doença.

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