O TRÁGICO EM QUESTÃO: A REUNIÃO DO FOGO A DESPONTAR NO SANGUE · A esse contexto se insere a...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO O TRÁGICO EM QUESTÃO: A REUNIÃO DO FOGO A DESPONTAR NO SANGUE Cristiane Agnes Stolet Correia Faculdade de Letras 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

O TRÁGICO EM QUESTÃO: A REUNIÃO DO FOGO

A DESPONTAR NO SANGUE

Cristiane Agnes Stolet Correia

Faculdade de Letras

2006

Cristiane Agnes Stolet Correia

O TRÁGICO EM QUESTÃO:

A reunião do fogo a despontar no sangue

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Poética)

Orientador: Alberto Pucheu

Rio de Janeiro 2006

A todos os fogos do caminho.

O pensamento surgiu quando o trágico obscureceu a claridade do racional e irracional, do físico e do político,

do mito e do culto, do desespero e da salvação. (Emmanuel Carneiro Leão)

Crescer significa abrir-se à amplidão do céu mas também deitar raízes na obscuridade da terra. Tudo que é verdadeiro

e autêntico, somente chega à maturidade se o homem for ao mesmo tempo ambas as coisas: disponível ao apelo de mais alto céu

e abrigado pela proteção da terra que tudo oculta e produz. (Martin Heidegger)

RESUMO

O foco da presente dissertação é o trágico. O emergir desta questão se dará principalmente pelo revisitar mítico (especialmente dionisíaco) e pelo perpassar das ambigüidades inerentes ao fogo, que o transpõem à condição de símbolo essencialmente trágico, onde vige a reunião do todo. A esse contexto se insere a interpretação de Bodas de

Sangue, de Federico García Lorca. Na reunião do fogo a despontar no sangue, vige o limite do homem. Mas a busca de se adentrar a questão do trágico se revigora na tentativa de resgatar o seu saber e restituí-lo à sua condição de pensamento originário. Convergindo mitos, símbolos e poesia como que pelo atravessar de um raio, lança-se inexoravelmente na afirmação incondicional do mundo trágico pelo viés do pensamento.

RESUMEN

El foco de la presente disertación es el trágico. El emerger de esta cuestión se hará principalmente por el revisitar mítico, especialmente por lo que se refiere a Dioniso, y por el traspasar de las ambigüedades del fuego, que lo trasponen a la condición de símbolo esencialmente trágico, donde vigora la reunión del todo. A ese contexto se añade la interpretación de Bodas de Sangre, de Federico García Lorca. En la reunión del fuego a despuntar en la sangre, está el límite del hombre. Empero la búsqueda de adentrarse la cuestión del trágico se revigora en el intento de rescatar su saber y restituirlo a su condición de pensamiento originario. Convergiendo mitos, símbolos y poesía como que por el atravesar de un rayo, se lanza inexorablemente en la afirmación incondicional del mundo trágico por la perspectiva que se quiere pensamiento.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ……………………………………………………………………..10 2 ADENTRANDO A NOÇÃO DE TRÁGICO ………………………………………12 2.1 Tragédia x trágico ................................................................................................12 2.2 O trágico do/no real .............................................................................................14 2.3 Estranheza do mundo: fraternidade como elo trágico..........................................18 2.4 O pensar como saber trágico................................................................................21 3 O MITO DE DIONISO E SEUS DESDOBRAMENTOS..........................................25 3.1 Dioniso..................................................................................................................25 3.2 Versões do mito – diálogos com o trágico............................................................26 3.3 Mito e culto...........................................................................................................34 3.4 Dos cultos à tragédia.............................................................................................38 4 REVISITANDO E QUESTIONANDO ARISTÓTELES...........................................43 4.1 Considerações preliminares......................................................................................43 4.2 Considerações sobre o fenômento trágico-tragédia..............................................44 5 CONHECENDO O TRÁGICO...................................................................................51 6 O DIONISÍACO..........................................................................................................58 6.1 Adentrando as noções de dionisíaco e apolíneo...................................................58 7 A IMAGEM DO FOGO – AMBIGÜIDADES TRÁGICAS......................................66 7.1 Mundo e fogo........................................................................................................68 7.1.1 Começando por uma manifestação natural do fogo.......................................68 7.1.2 Resgatando Heráclito.....................................................................................69 7.1.3 Repensando o incêndio e as características essenciais do fogo.....................72 7.2 A produção do fogo: ambigüidades......................................................................75 7.3 O que os mitos têm a dizer sobre o fogo...............................................................78 8 O FOGO TRÁGICO NO SANGUE............................................................................84 8.1 As bodas de sangue..............................................................................................87

8.2 O nome..................................................................................................................89 8.3 Primeiro quadro- despontar de toda a trama.........................................................90 8.4 O trágico em tudo - enfoque no coro dionisíaco e no cavalo indissociável..........95 8.5 A confirmação de Leonardo-cavalo no terceiro quadro......................................100 8.6 Segundo ato: início da concretização do enunciado............................................100 8.7 Símbolos que personificam o trágico e se reúnem no todo do bosque...............103 9 CONCLUSÃO...........................................................................................................113 10 REFERÊNCIAS.......................................................................................................114

Sim, eu sei de onde sou! Insaciável como o fogo Eu ardo e me consumo

Tudo o que toco vira flama E tudo o que deixo carvão:

Sou fogo, não há dúvida. (Friedrich Nietzsche)

Mundo é fogo duradouro, um surgir que dura e sustenta. No “fogo”, vigora o iluminar, o incandescer, o flamejar, o

aparecer suave, esse que amplia o claro na vastidão. No “fogo”, vigora também o destruir, o abater, o fechar, o extinguir.

(Martin Heidegger)

1 INTRODUÇÃO A presente dissertação se propõe a trilhar os caminhos do trágico na tentativa de se

resgatar a dimensão essencialmente trágica do real. Sabendo-se que o mito e a poesia

sempre abrem novas possibilidades de pensamento, opta-se por convergir ambas as

perspectivas. De antemão se sabe que imensa é a pluralidade mítica e poética, muitos são os

caminhos que se apresentam. Mesmo assim, é necessário escolher um e adentrá-lo. Ainda

que depois se mude a direção, existe o ponto de partida e a opção por uma via.

Ao menos de uma coisa estou certa: de que não busco apresentar nenhuma

metodologia, nenhum sistema a ser adotado. O que está em jogo não é um conjunto de

regras a serem memorizadas. Não, isso não teria o menor sentido, nenhuma razão de ser,

aliás, nem seria. O que está em questão é algo muito mais complexo: é o próprio artístico, a

própria vida a se movimentar na dinâmica essencialmente trágica.

Dada a nossa condição, só há como se pautar desde o âmbito humano para um maior

aprofundamento nas questões que se apresentam. Somente pela experiência pensada será

possível adentrar o mundo das questões e se esquecer das normas fictícias. O saber trágico

atua conjuntamente ao pensamento. Eis o que vale. Vale esquentar e proliferar as fagulhas

das indagações essenciais. O que importa é a busca constante de se pensar estabelecendo

conexões, elos. Esta é a preocupação que permeia todo o processo que se inaugura com a

presente dissertação.

Com o clamor do trágico, delineia-se o dito processo não só pelo revisitar mítico

(especialmente dionisíaco), como também pelo perpassar das ambigüidades inerentes ao

fogo, que o transpõem à condição de símbolo essencialmente trágico, onde vige a reunião

do todo. A esse contexto se insere a interpretação de Bodas de Sangue, de Federico García

Lorca.

Convergindo mitos, símbolos e poesia como que pelo atravessar de um raio, lança-se

inexoravelmente na afirmação incondicional do mundo trágico pelo viés do pensamento.

Eis o que se pretende.

2 ADENTRANDO A NOÇÃO DE TRÁGICO

2.1 Tragédia x trágico

Os termos tragédia e trágico têm a mesma raiz. Se tal característica se dá a nível

visível (no próprio corpo dos vocábulos), isso só reflete e reforça algo intrínseco à

semântica. Aprende-se pela gramática que “é o radical que irmana as palavras da mesma

família e lhes transmite uma base comum de significação” (CUNHA; CINTRA, 1985,

p.78). Assim sendo, conclui-se que as palavras tragédia e trágico estão, de alguma maneira,

atreladas1. A base, o radical, é comum, mas os desdobramentos se diferem. Cabe, então,

investigar: primeiro, qual o elo entre os dois termos; segundo, em que o trágico se difere da

tragédia.

Convém ainda destacar outro aspecto no âmbito gramatical. Enquanto tragédia

constitui claramente um substantivo, trágico tende a funcionar como adjetivo. Se fosse só

isso, a questão já estaria toda resolvida. A conclusão seria: a tragédia nomeia um

determinado gênero literário e trágico é o caráter deste gênero. Entretanto, ao se

substantivar o hipotético adjetivo como “o trágico” (lembrando que este é o foco do

presente estudo), complica-se a lógica anterior. Agora, ambos, “tragédia” e “trágico”,

passam a ser substantivos, a designar, a nomear. A dois substantivos correspondem duas

realidades. Ainda que haja algo de comum a ambos os termos, parece estar provado que as

divergências entre eles são substanciais. Cabe, então, trilhar o caminho apontado pelos

nomes em questão, na busca de apreensão do fenômeno do trágico.

1 Convém ressaltar que tomo raiz e radical como termos equivalentes, desconsiderando as possíveis diferenças entre eles. O que interessa é a ênfase no que há de comum entre os vocábulos, explícito nas formas destes: trag.

“Tragédia” faz menção a um gênero poético, já que vários filósofos, começando por

Aristóteles, se propuseram a definir o que seria a tragédia no âmbito literário, buscando

características recorrentes neste gênero artístico2. Tal postura culminou em um

entendimento mais sistemático do termo, com uma espécie de exposição de normas e

fórmulas que caracterizariam a tragédia enquanto tal. Este esforço faz parte da tradição

filosófica ocidental. O problema está justamente nos desdobramentos que decorrem de dita

sistematização. O principal deles é a explicação do trágico a partir da mesma perspectiva. A

apreensão do trágico enquanto mero constituinte da tragédia acaba por aniquilar o seu vigor

essencial, já que também tenta explicá-lo por uma simples junção de determinadas

características.

Tal justaposição nem se aproxima do verdadeiro entendimento do que vem a ser o

trágico, muito pelo contrário, abafa-o. O essencialmente trágico só pode ser compreendido

quando se percebe e aceita que ele nunca é plenamente visível ao entendimento humano.

Não é da tragédia que advém o trágico. O movimento é inverso. Por mais que a dita

inversão soe estranha a princípio, não é difícil compreendê-la: se há algo que possa ser

intitulado tragédia por apresentar características trágicas, é do trágico que provém todo o

eclodir manifestativo da/na tragédia. Poder-se-ia, inclusive, dizer que a tragédia funcionaria

como uma lente de aumento do trágico.

Não há dúvidas de que a tragédia é um lugar privilegiado da dimensão trágica (como

os próprios nomes já o indicam), entretanto, não é a única possibilidade do eclodir desta. O

2 A discussão acerca da Poética de Aristóteles será retomada mais adiante. Ainda que o filósofo priorize o gênero literário, o caráter trágico já se deixa antever. Além do mais, não há como negar a importância da obra aristotélica que traz questões de vital importância para o pensar, permanecendo o filósofo como um marco na tradição filosófica ocidental.

trágico não se limita, de modo algum, a um pretenso gênero poético, mas se constitui na

própria dinâmica do real.

2.2 O trágico do/no real

A totalidade do real, o espaço-tempo de todas as coisas, não é apenas o reino aberto das diferenças, onde tudo se distingue de tudo, onde cada coisa é somente ela mesma, por não ser nenhuma das outras, onde os seres são indivíduos, por se definirem em estruturas diferenciais. A totalidade do real é também o reino misterioso da identidade, onde cada coisa não é somente ela mesma, por ser todas as outras, onde os indivíduos não são definíveis, por serem uni-versais, onde tudo é uno: hen panta. No movimento de sua realização, a realidade é tanto o horizonte em expansão da luz de todas as singularidades como a uni-versalidade protetora da noite, onde todos os gatos são pardos. A noite dá à luz os indivíduos para no fim do dia os recolher em seu seio materno. O mundo é a articulação das diferenças de Dionísio Zagreu, dividido e fragmentado, com a identidade de Hades, simples e indiferenciado. Na tensão desta tragédia o homem assume as dimensões ontológicas de uma uni-versalidade individual. (CARNEIRO LEÃO, 2002, p.84).

Faz-se imprescindível adentrar as vias abertas pelo pensador. Carneiro Leão aponta

para a dinâmica essencialmente trágica do real. Ao dizer que “o mundo é a articulação das

diferenças de Dionísio Zagreu, dividido e fragmentado, com a identidade de Hades”, o

filósofo retoma o mito do deus trágico por excelência (o que será visto mais adiante),

reinaugurando, assim, o entendimento do trágico na tensão entre o singular e o universal.

Por um lado, toda singularidade participa do uno do real, já que dele advém, daí a

identidade entre todas as singularidades. Por outro lado, cada singularidade adquire uma

particularidade, diferenciando-se, assim, de todas as outras, sendo única. É nesta tensão que

o mundo se movimenta e se manifesta.

O todo do real não consiste, como se poderia supor em uma perspectiva lógica, na

soma das particularidades. O movimento é mais complexo, visto que envolve um cobrir-se

e um desencobrir-se. Vale retomar o exemplo citado por Carneiro Leão na busca de um

aprofundamento de pensar o trágico: dia e noite. Sabendo-se que nossa cultura ocidental se

fundamenta em uma noção temporal cronológica, é fato que há uma grande tendência em se

apreender o dia e a noite como meras manifestações sucessivas. No entanto, tal perspectiva

deixa de lado um fator essencial da dinâmica do real: o encobrir-se. Entender o dia e a noite

em um dar-se sucessivo é considerar apenas a singularidade de cada um, esquecendo-se da

universalidade do todo, é ignorar o caráter essencialmente trágico do real, de onde

germinam as múltiplas singularidades simultaneamente una. O real, ora se dá como dia, ora

se dá como noite. A claridade do primeiro esconde temporariamente a escuridão, a qual a

noite resgata, ocultando, por sua vez, a luz do dia. Um não vive sem o outro. Mais: um

depende do outro para se afirmar em sua singularidade, ao mesmo tempo em que ambos são

um. Eis a ambigüidade trágica. O trágico une ambiguamente, portanto, o claro e o escuro, o

que se mostra e o que se vela, na dinâmica ininterrupta do real. Nesta dimensão, o trágico é

inerente ao real, atravessando tudo que deste participa.

Dialogando diretamente com a condição essencialmente trágica, o caráter da infinitude

é destacado por Octavio Paz. O pensador afirma que a modernidade

começa com o descobrimento do duplo infinito: o cósmico e o psíquico. O homem sentiu que lhe faltara, literalmente, chão. A nova ciência abrira o espaço e por essa fenda o olho humano descobriu alguma coisa rebelde ao pensamento: o infinito. (PAZ, 1993, p.21).3

Infinito e trágico interagem no apontar para a impossibilidade de inteiro

conhecimento. Ambos revigoram a certeza inquietante de que sempre haverá algo velado

não descoberto pelo homem. Inerente ao real, o trágico restaura o velar-se inclusive no

3 Retificaria, no entanto, o final da afirmação de Paz, considerando ser o infinito rebelde a um entendimento meramente racional. O pensamento inaugural já se movimenta entre o finito e o infinito. Tal questão será abordada, de alguma maneira, no item subseqüente a este, na relação entre pensar e saber trágico.

desvelar-se. Como o dia e a noite, um não vive sem o outro. Vale ressaltar ainda que a

dinâmica trágica não se dá de modo simplesmente dialético, como alguns filósofos

interpretaram4, mas, antes, move-se no eixo da ambigüidade. Desvelar implica velar e vice-

versa. Na ambigüidade trágica reside todo o impulso do real. O infinito, manifestando-se no

finito, mas reforçando o caráter velado de tudo que existe, é apenas outra possibilidade

lingüística de referir-se à dinâmica inerentemente trágica do real. O infinito ou o trágico,

claro, mostra-se “rebelde” a um entendimento meramente racional, já que seu movimento

se perfaz no âmago da própria vida. A totalidade da vida, de fato, não pode ser apreendida

somente pela razão.

É certo que o velado do infinito-trágico é o que conduz o homem. “O que se retrai é o

que nos arrasta, quer saibamos ou não” (CARNEIRO LEÃO, 2002, p.74). Tal afirmação

pode ser verificada em todos os âmbitos da vida humana. Cabe tomar para exemplificação,

em uma perspectiva bastante ampla, a ciência. O homem, movido pelo desejo de conhecer e

superar o desconhecido, aprimorou seus conhecimentos científicos no decorrer dos tempos,

avançando das mais remotas descobertas aos mais sofisticados meios tecnológicos. Se o

homem já dispusesse de antemão de todo o conhecimento do real, o que o moveria no

mundo? Difícil sabê-lo. Realmente o homem precisa desconhecer para sentir-se tocado a

buscar o conhecimento. Ao ser arrastado pelo desconhecido, o homem se abre a novas

possibilidades. Correspondendo às ofertas do real, o homem caminha.

Sendo a ambigüidade trágica a dinâmica do velamento e desvelamento do real, a

afirmação de Carneiro Leão coloca o trágico como o cerne vital da/na experiência humana.

No parágrafo anterior, mencionou-se a experiência do trágico na relação entre homem e

4 Não é proposta do presente trabalho apresentar tais formulações. No entanto, vale dizer que a dialética implica uma tensão extrínseca, ao passo que a ambigüidade vai abarcar a tensão inerente ao real intrinsecamente.

mundo. Mas essa experiência não configura a plenitude da experiência humana. O pleno

sentido de ser homem se perfaz na comunhão entre duas relações essenciais: homem-

mundo e homem-homem. Ambas as experiências (homem-mundo e homem-homem) só se

dão verdadeiramente quando os caminhos se inserem em via de mão dupla.

Fundamentalmente se faz necessária uma dinâmica de reciprocidade, como em qualquer

relação que se quer verdadeira. Considerando a anterior menção à relação entre homem e

mundo no âmbito do trágico, vale comentar a relação homem-homem também sob a

perspectiva trágica com o intuito de adentrar um pouco mais tal fenômeno.

Uma relação envolve necessariamente ao menos dois pólos que interagem. Sendo

assim, apreende-se que a relação homem-homem se dá entre dois, sejam dois homens

distintos, seja um homem que se desdobra em dois. Enfocar-se-á no presente momento a

segunda possibilidade. Vale, para tanto, ressaltar que o trágico não é apenas vivenciado em

uma relação que se estabelece no diálogo entre homem e algo exterior a ele, mas é vivido

principalmente na dimensão do intrínseco ao humano. O homem também vivencia o trágico

em seu próprio ser. Sendo ele uma das manifestações do real, ele não é só parte do cosmo,

como é também um cosmo próprio, não só participando do trágico, como também o sendo

essencialmente. A própria natureza humana se constitui trágica, e o homem não é só o que

se desvela, mas também o que se vela.

A dimensão finita-infinita do real se manifesta nitidamente no âmbito humano. Se, por

um lado, o homem assegura sua singularidade no seu caráter de finitude, por outro, tem

suas bases alicerçadas no obscuro e lançadas rumo ao desconhecido. Em outras palavras:

movendo-se no infinito e participando dele, vigora-se a universalidade do homem; sua

identidade, entretanto, perfaz-se na finitude. Apreende-se, assim, a condição essencialmente

trágica do humano.

Visto ser o trágico inerente ao real e, portanto, caráter que transpassa tudo que dele

participa, constitui-se no elo que plenifica o encontro entre homem e mundo. No obscuro

trágico do retraimento reside o potencial de tudo que existe, inclusive o potencial de

humanização do homem. Deixar-se arrastar pelo impulso trágico enquanto retraimento é o

primeiro passo para se tornar ser humano em sua dimensão total. O trágico perfaz o

humano do/no homem. No reunir-se enquanto humano, inaugura-se o homem no pleno

viver e morrer. Já dizia Heráclito que “princípio e fim se reúnem na circunferência do

círculo” (CARNEIRO LEÃO, 1991, p.87). Eis a dinâmica da vida–morte. No resgate de

sua dimensão originária, o homem se confirma como morada de todas as ambigüidades.

Percebe-se, pois, que o trágico amplia o horizonte da experiência humana, lançando o

homem rumo à plenitude da vida e da morte. Auscultando o trágico, o homem atualiza sua

humanidade e dignifica sua existência.

2.3 Estranheza do mundo: fraternidade como elo trágico

Para se adentrar o tópico que aqui se inicia, convém primeiramente interrogar o

próprio título dado a este, o qual parece resguardar um total destoar. Trilhar-se-á a via que

se deixa apontar pela linguagem. Primeiro: “estranheza do mundo”. Mas por que

estranheza? O que há de estranho? O estranho aponta para aquilo que não se conhece

inteiramente, portanto, o próprio real em todas as suas dimensões. No caráter inapreensível

do mundo ao conhecimento humano reside a estranheza. Também no caráter inapreensível

de si mesmo vigora a estranheza do/no homem.

Vale retomar alguns aspectos abordados no item anterior para entrelaçá-los ao vigor

do estranho. Viu-se que o homem, para conquistar e manter sua humanidade, não pode

permitir que se rompa o elo trágico. Como universalidade individual em constante devir,

deve preservar e corresponder à sua essência trágica. Mas por onde começar? Não há

exatamente um início de onde se deva partir, pois já se está desde sempre na tragicidade

inerente ao real. O que se faz imprescindível é dispor de um cuidado permanente com o

realizar-se, portanto, o cuidado em se auscultar a essencialidade trágica. Infelizmente se

nota uma crescente perda de contato com a dimensão trágica na atualidade. Há uma forte

tendência em se priorizar tão somente o indivíduo, valorizando-se em demasia o âmbito da

singularidade, buscando-se gerar sujeitos capazes de empreendimentos.

Entretanto, ainda que o discurso priorize a noção de sujeito, o que realmente está em

jogo são os empreendimentos. A super valorização enquanto sujeito é uma grande ilusão,

criada principalmente pela sociedade de consumo para atender às suas necessidades. O

indivíduo crê que, consumindo o melhor, faz-se o melhor. Mas o que se vê na realidade é

uma proliferação de uma igualdade. Se todos são conduzidos a consumir o melhor, não só

tendem a se deixar levar, abrindo mão, muitas vezes, da sua liberdade de escolha e de seu

poder de decisão, como também consumem o mesmo. Todos anseiam e trabalham por um

“bom” padrão de vida. À medida que aumentam a quantidade e qualidade de seus

consumos (em todos os âmbitos), crêem-se sujeitos, quando funcionam como objetos do

sistema. Prolifera-se a igualdade, a perda das identidades que encontra abrigo em um

discurso persuasivo e adornado a pregar a individualidade e a esconder a indiferenciação

que o move.

Urge cada vez mais a necessidade de se buscar o elo trágico para se recuperar o

pensamento e, conseqüentemente, a humanidade. Parodiando, de certa maneira, Octavio

Paz 5, afirma-se ser a fraternidade o elo que assegura a ambigüidade trágica inerente ao

homem. O filósofo diz:

... liberdade, igualdade e fraternidade. A relação entre elas é incerta, ou melhor, problemática. Há contradição entre elas: qual a ponte que pode uni-las? Na minha opinião, a palavra central da tríade é fraternidade. Nela se enlaçam as outras duas. A liberdade pode existir sem igualdade e vice-versa. A primeira, isolada, aprofunda as desigualdades e aprofunda as tiranias; a segunda, oprime a liberdade e termina por aniquilá-la. A fraternidade é o nexo que as comunica, a virtude que as humaniza e as harmoniza. (PAZ, 1993, p. 137).

Sendo apenas liberdade, o homem despreza a identidade universal. Sendo apenas

igualdade, o homem se esquece de sua individualidade. Infelizmente, como já visto, parece

que nossa sociedade tende a priorizar as extremidades, esquecendo-se de comungar

ambiguamente liberdade e igualdade. Tal comunhão só se faz possível pela fraternidade.

Retomando o título, percebe-se, assim, que “a estranheza do mundo” se perfaz na

“fraternidade como elo trágico”. O estranho do mundo e do homem, entretanto, só advém

na familiaridade da proximidade. Para sentir e viver a estranheza, é necessário ter sido

tocado, é necessário conhecê-la de alguma maneira. (Afinal, só se nomeia aquilo que

minimamente se conhece. Ao se desconhecer inteiramente algo, nada acontece à percepção

humana). O conhecimento trágico é estranhamente oferecido pela fraternidade, ao se

entendê-la como o que une liberdade e igualdade, ou seja, o que comunga do singular e do

universal, prorrompendo, inclusive, a humanidade intrínseca ao homem. Compactuando

com o caráter essencialmente trágico do real, a fraternidade se incorpora como elo trágico,

aproximando o que é estranho.

5 Octavio Paz não chega a falar sobre o trágico. Na realidade, no texto em que fala de liberdade, igualdade e fraternidade, ele está, em um primeiro momento, repensando a história e, mais adiante, pensando como a poesia pode contribuir para este repensar. Uso, portanto, o cerne de sua questão para refletir o trágico.

2.4 O pensar como saber trágico

Nos meandros do estranhamento, manifesta-se o pensar como saber trágico. A

aproximação se faz necessária e a etimologia se apresenta como uma grande aliada neste

processo, apontando justamente para o elo estranho que une o pensar ao saber trágico.

Atualmente se tende a compreender o movimento do pensar como equivalente a

racionalizar. Entretanto, entender o pensamento como sinônimo de razão é não atender à

sua dimensão essencial. Pensar provém do latim pensare, que sinaliza duas direções. A

primeira diretriz se refere ao ato de colocar penso (curativo para tratar um ferimento), ou

seja, corresponde à noção de tratar, cuidar. A segunda diretriz retrata o uso mais difundido

no português coloquial: “refletir, meditar, raciocinar” (CUNHA, 1986, p. 593). Mas não

estariam as duas vertentes entrecruzadas apontando para algo essencial do pensar?

Há duas noções aparentemente opostas para o verbo pensar: uma se relaciona

diretamente com o sensível, com o exterior (como visto, diz respeito ao pôr penso em uma

ferida); ao passo que a outra se dá no âmbito interno, sendo inapreensível de modo direto

pelas vias sensíveis. Não há dúvidas de que é possível visualizar o tratamento de uma ferida

“a olho nu” (no que se faz visível, é claro), porém o mesmo não pode ser dito com relação

ao raciocínio. Percebe-se, pois, que pensar reúne interno e externo. O cuidado da ferida

exterior também deve traspassar as vias internas. Pensar não é só raciocinar, é também

cuidar. Mas cuidar em pensar não seria o mesmo que cuidar em ser?

Se no âmbito da singularidade o pensar envolve a dimensão sensível e a não sensível

(conforme explicitado anteriormente), isso só reflete as tensões implícitas ao próprio real.

Heidegger já dizia que “o pensamento percebe [...] o real em seu próprio ser” (2002, p.121).

Não seria, então, o pensamento a condição de abertura ao mundo para que este se dê tal

qual é? Assim, como ser possível entender pensar e raciocinar como sinônimos? É certo

que tal compreensão mata um lado do pensar, mutila-o.

O racional não é poderoso o suficiente para apreender a totalidade da natureza. Muitas

vezes a razão julga possuir esse poder, julga ser conhecedora da verdade, dos verdadeiros

preceitos morais. Esquece-se, entretanto, que tais valores são construídos pela própria

razão; não são, em hipótese alguma, intrínsecos à dimensão natural do cosmos.

Quando não se consegue ver o caráter construtivo de valores morais, tem-se um problema:

a ilusão que esquece seu caráter ilusório e se quer verdadeira. Se a moral é um valor

construído pelo homem, então, ela pode ser destruída e reconstruída conforme a

necessidade e a liberdade do devir. Claro: se há uma moral, é porque o homem “saudável”6

não conseguiria viver sem nenhum parâmetro a lhe dar medida, não suportaria se perder no

caos absoluto, morreria. Assim sendo, a grande questão não é anular o ilusório (mesmo

porque isto acarretaria a aniquilação do indivíduo), mas, antes, reconhecê-lo como tal,

correspondendo ao seu dinamismo. Só desta maneira pode o homem livrar-se das amarras

ilusórias dos valores morais e enxergar a moral pela ótica da vida

O trágico aponta justamente para a fragilidade dos juízos humanos ao mostrar que o

indivíduo nada pode perante uma força maior. O trágico está no homem e está além dele,

pois é o primeiro quem conduz o “jogo”. É claro que o homem dá solução a muitas coisas,

porém, isto se dá quando ele corresponde à dinâmica trágica do real. Aliás, ele só soluciona

aquilo permitido, ofertado pelo real. Sendo uma das moradas do trágico, o homem, por

mais que tente, nunca logra o pleno domínio da natureza. Obscurecendo a lógica racional, o

trágico recorda que nem tudo é passível de explicação, que nem tudo está ao alcance dos

6 Coloco “saudável” entre aspas por se tratar da saúde pela ótica de uma medicina otimista que não quer dar lugar ao incontrolável.

homens. Ter coragem para auscultar o trágico é, pois, ter coragem de corresponder ao pleno

vigor de ser homem, é verdadeiramente pensar. Pensar não implica, em hipótese alguma,

passividade, muito pelo contrário, implica o aderir à dinâmica inerente ao ser do real. O

agir individual só se plenifica quando este corresponde ao vigor misterioso que o incita,

quando corresponde à dinâmica do fundo que se faz aparente.

Para Carneiro Leão (2002, p.83), “trágico é o abandono desesperado do homem às

forças da natureza”. Tudo sempre se encaminha para a aniquilação total do indivíduo, para

o gerir impetuoso do destino. De ser flama o homem não pode escapar. “O único direito do

homem - Aquele que se desvia do tradicional é vítima do extraordinário; aquele que

permanece no tradicional é seu escravo. Em ambos os casos ele é arruinado”. (NIETZSCHE,

2003 a, p. 277). Vale reconhecer que é na aceitação de sua limitação e no entregar-se ao seu

destino que se vislumbra o gênio, aquele que se liberta da própria individuação e se funde

com o artista primordial do mundo. O trágico, instaura, pois, o gênio.

Sendo a fatalidade inerente à existência humana, o trágico é irremediável, é o cerne da

própria vida. Gerando-se vida, gera-se morte, morre o indivíduo, mas a vida continua,

sempre... Opera-se a reconciliação total do homem com a natureza, resgatando a dimensão

humana natural. Portanto, o trágico reinaugura “o conhecimento fundamental da unidade de

tudo que existe”. (NIETZSCHE, 2003 b, p.70).

Hoje a palavra trágico parece necessariamente denotar sofrimento. Entretanto, não se

pode perder de vista que o sofrimento diz respeito ao âmbito meramente individual. O

trágico ultrapassa os limites unicamente do humano, ampliando o horizonte da experiência

do homem e lançando-o rumo à plenitude da morte e da vida. É no pensamento trágico que

se afirma incondicionalmente a vida:

Para Dioniso, o sofrimento, a morte e o declínio são apenas a outra face da alegria, da ressurreição e da volta [...] Os homens não têm de fugir à vida como os pessimistas, mas, como alegres convivas de um banquete que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma vez mais. (NIETZSCHE, 1987, p. 14)

Revisitando a figura de Dioniso na cultura grega, clama por revigorar a afirmação

incondicional de vida. Como dizia Heráclito (CARNEIRO LEÃO, 1991, p. 89), “pensar

reúne tudo”. Mas o trágico também não reconcilia, fundindo, reunindo tudo? Apreende-se

daí a equivalência entre o pensar e o saber trágico. Assim sendo, a tentativa de se adentrar

as veias do saber trágico na presente dissertação se funde com a busca incessante de trilhar

os caminhos do pensar.

3 O MITO DE DIONISO E SEUS DESDOBRAMENTOS

Considerando a equivalência entre pensar e saber trágico e sabendo-se da riqueza

mítica, é nos meandros do pensamento acerca do mito inaugural da tragédia (Dioniso) que

se buscará resgatar a veia trágica.

3.1 DIONISO

Muitas são as variações em torno do mito de Dioniso. Mais numerosas ainda são as

interpretações acerca do deus, o que não deixa margem a dúvidas quanto à relevância das

manifestações religiosas e culturais a partir do mito em questão. Até hoje a figura de

Dioniso continua a incomodar, prossegue sendo alvo de interesse, permanece suscitando

questionamentos.

Não se pretende aqui, de modo algum, esgotar os caminhos que se apresentam pela

veia mítica dionisíaca (mesmo porque isto seria impossível), mas tão somente buscar

abordar as questões inerentes a Dioniso em diálogo perpétuo com o fenômeno que este

reinaugura: o trágico. Em conformidade com tal posicionamento, o presente capítulo

constará de três movimentos principais.

Em um primeiro momento, buscar-se-á adentrar o mito propriamente dito,

apresentando algumas de suas variações e repensando o eixo comum que perpassa as

diversas nuances do mito conjuntamente a suas possíveis interpretações.

O segundo passo consistirá na aproximação às manifestações cultuais em honra do

deus seguindo a trilha deixada pelas nomenclaturas existentes, de acordo com o

levantamento feito por estudiosos importantes, como Carl Kerényi, Junito de Souza

Brandão e Walter Friedrich Otto.

O terceiro movimento basear-se-á na análise da evolução dos cultos dionisíacos à

tragédia, ressaltando sempre o eixo trágico comum a ambos, e tendo como ponto de partida

as meditações de Nietzsche em O Nascimento da Tragédia.

3.2 Versões do mito de Dioniso – diálogos com o trágico

Conforme mencionado anteriormente, há muitas versões para o mito de Dioniso. Não

se pretende aqui enumerar todas essas versões sistematicamente, mesmo porque seria

impossível assegurar a apreensão de toda a diversidade mítica acerca do deus. Portanto, a

proposta que aqui se apresenta se delineia a partir de descrições de algumas vertentes do

mito, interpretando-as concomitantemente, na tentativa de aliar o ato de descrever ao

processo do pensar. Faz-se necessário, pois, colocar a proposta em prática. Iniciar-se-á por

uma versão mítica do nascimento de Dioniso bastante difundida, quiçá a mais conhecida.

De Zeus e Perséfone nasce o primeiro Dioniso, também nomeado Zagreu. A esposa de

Zeus, Hera, enciumada, decide eliminar o jovem deus, encarregando esta tarefa aos Titãs.

Zeus, por sua vez, precavendo-se contra a ira da mulher, confia o filho Zagreu aos cuidados

de Apolo e dos Curetes, que o criam nas florestas do monte Parnaso. O pequeno Dioniso

assume diversas formas, dificultando, assim, que o encontrem. Entretanto, um dia, mesmo

estando metamorfoseado em touro, os Titãs o reconhecem e o devoram. Palas Atena

consegue salvar apenas o coração do deus, entregando-o a Sêmele (uma mortal princesa

tebana). A princesa engole o coração palpitante, engravidando, assim, do segundo Dioniso.

Hera, mais uma vez enciumada, resolve aniquilar Sêmele. Para tanto, transforma-se na

ama da tebana, ganha sua confiança e a aconselha a pedir a Zeus que se apresente em todo

seu esplendor. Sêmele cai na armadilha. Mesmo advertindo a amante quanto à

periculosidade do seu pedido, Zeus a atende, já que tinha jurado jamais contrariá-la. Então,

o deus se apresenta em raios e trovões. O palácio se incendeia e a princesa morre. Zeus

recolhe do ventre de Sêmele o inacabado segundo Dioniso e o coloca em sua coxa para que

complete o período de gestação necessário. Nascido Dioniso, Zeus o confia às Ninfas e aos

Sátiros do Monte Nisa. Convém parar o mito por aqui, já são muitas as informações e

observações dignas de nota.

O mito é riquíssimo em detalhes. Não cabe à presente dissertação ater-se a todos esses

detalhes (por mais interessantes que sejam), mas sim ressaltar aqueles que melhor

contribuem para a apreensão do fenômeno do trágico. Alguns destes detalhes importantes

serão pontuados no presente tópico, ao passo que outros só serão retomados mais adiante

para fins de ordenação e organização.

Vale destacar, em primeiro lugar, que o deus nasce ao menos duas vezes7. Após o

primeiro nascimento, ele é dilacerado e devorado pelos Titãs, restando-lhe apenas o

coração, que é salvo e dá origem ao segundo Dioniso. Os germens do trágico já podem ser

apreendidos dessa passagem do mito.

Por um lado, é somente por ter nascido que Dioniso se torna passível de morte, o que

se concretiza efetivamente no mito. Por outro lado, é por ter morrido que o deus pode

renascer. A partir daí, fica patente a impossibilidade de se conceber a morte como algo

subseqüente à vida. O mito reforça o fato de a morte já ser desde sempre inerente à própria

dinâmica vital. Eis aí uma das mais potentes sementes trágicas: a fusão morte-vida. É claro

7 Digo “ao menos duas vezes” para o ato de nascer de Dioniso porque o deus parece ser muito mais aquele que não cessa de nascer e morrer, como será visto mais adiante.

que esta fusão só tem vez na esfera particular, individual. No que diz respeito ao universal,

a vida não admite morte jamais8.

Outro aspecto que dialoga diretamente com o duplo nascimento de Dioniso é o

contínuo metamorfosear-se deste. Faz-se necessário dar um passo atrás para prosseguir.

O primeiro Dioniso é dividido em partes quando é capturado pelos Titãs, tanto é assim que

se salva apenas seu coração. Ou seja: o que estava unificado em vida, divide-se em morte.

Aqui reside o cerne da ambigüidade dionisíaca.

Ao nascer, Dioniso é uno. Mas será que essa unificação em vida é tão certa assim?

Não é esse mesmo uno divino que se converte em diversos ao assumir variadas formas?

Ainda assim, por mais que o deus mude (e ele realmente muda), continua sendo Dioniso.

A divisão na morte se confirma com a salvação de apenas um órgão do deus. Certifica-

se que Dioniso realmente foi dilacerado pelos Titãs. A princípio, parece que ele deixa de

ser Dioniso, de ter vida ao ser reduzido a partes que se perdem separadamente no titânico.

Mas será que ele deixa de ser Dioniso mesmo, de ter vida própria ao ser estilhaçado? Se um

estilhaço sobrevive e o faz renascer inteiro... Isto só pode ser explicado ao se entender que

o fragmento, de alguma maneira, contém o todo. Em outras palavras, o uno também reside

nas partes.

Resumindo a ambigüidade trágica dionisíaca: um em múltiplos e múltiplos em um.

Dioniso estabelece simultaneamente a unidade da mudança e da duração, o que se

comprova pela interpretação dos dois aspectos aqui mencionados (o duplo nascimento e o

contínuo metamorfosear-se). Vige no deus o poder incessante de transformação e a

permanência de si mesmo. Esse aspecto inerente ao deus ainda é reforçado pela pluralidade

8 Essa argumentação é bastante desenvolvida na introdução do livro de Kerényi (2002) a partir da distinção entre bíos e zoé, respectivamente vida finita e infinita na língua grega.

de nomes pelos quais é conhecido, estando cada nomenclatura a resgatar e realçar

determinadas características do deus.

Em uma pequena variação da vertente do mito aqui apresentada, é Zeus quem engole o

coração do filho quando este é retalhado. Só então ele fecunda Sêmele. Sendo Zeus ou

Sêmele quem engole o coração de Dioniso, o que vale ressaltar é a dupla gestação que se

perfaz fisicamente tanto no feminino como no masculino, tanto no humano como no divino.

Em ambas as versões, Dioniso passa um período na coxa do pai. O deus não é gerado nem

formado da maneira normal; já aí se instaura sua duplicidade ambígua. Dioniso é fruto de

uma mulher e do grande pai dos deuses, sendo não só formado por ambos (o que seria de se

esperar), como também em ambos. Daí ele agregar o homem e a mulher, o divino e o

humano, daí ser o mortal imortal.

Esse caráter da ambivalência em sua formação aparece em outro desdobramento do

mito (e, conseqüentemente, em outro momento), como pode ser verificado a seguir a partir

de um mito tardio9. Segundo este, Dioniso foi entregue a Hermes pelo pai logo após seu

nascimento. Hermes, por sua vez, confiou o menino aos cuidados de uma mulher chamada

Ino.

Ela e seu marido Atamas deveriam criar Dioniso como uma menina, junto com seus dois filhos. A ciumenta Hera fez com que Ino e Atamas enlouquecessem. Em sua loucura, Atamas caçou Learco, seu filho mais velho, como se fora um veado, e o matou. Ino jogou Melicertes, seu filho mais moço, num caldeirão cheio de água fervente; em seguida, atirou-se ao mar com ele. Zeus salvou Dioniso da fúria de Hera transformando-o em um cabrito, e enviando-o com Hermes às ninfas do Nisa. (KERÉNYI, 2002, p. 212.)

Esta passagem do chamado mito tardio já está impregnada do dionisíaco. No início,

por exemplo, já se verifica a dualidade masculino-feminino. Se, antes do nascimento,

9 Nomenclatura usada por Apolodoro (1921) e Kerényi (1951).

Dioniso já carrega a ambigüidade masculino-feminino por ter se desenvolvido não só na

mãe como também no pai (conforme visto), na passagem transcrita acima, esta

ambigüidade ganha força. Apesar de ser do sexo masculino, Dioniso deve ser criado como

menina pelo casal. A proposta para criação do deus vem, assim, enfatizar seu caráter

essencialmente dual.

Em um segundo momento, aparece a loucura como resultado da vingança de Hera. É

um tema bastante complexo e não cabe ao presente trabalho buscar desenvolvê-lo com

desenvoltura. Ainda assim, vale destacar que a loucura possibilita a libertação das

convenções. O louco não conhece limites, antes se entrega ao ilimitado.

Dioniso é por excelência o deus do desmedido, aquele que ultrapassa todas as

fronteiras, a ultrapassagem dos próprios limites da natureza (o que se reflete, por exemplo,

na imagem que se tem do deus, metade homem, metade animal). Ele vige no que não tem

fim, no eterno devir. Assim sendo, a loucura parece viver do/no dionisíaco.

Ainda que todos os caminhos míticos retomem a ambigüidade inerente ao deus em

diversos âmbitos, vale apontar mais duas variações do mito que reforçam as reflexões

empreendidas até o presente momento e lançam novas sementes.

A primeira variação consiste em uma versão órfica, defendida por Onomácrito.

(KERÉNYI, 2002). De acordo com essa perspectiva, os titãs matam o primeiro Dioniso e se

preparam para comê-lo.

[...] a vítima dos titãs foi cortada em sete pedaços e lançada em um caldeirão sobre uma trípode. Em seguida, as porções de carne foram tiradas do caldeirão, postas em espetos e colocadas sobre o fogo. Mas a refeição não foi comida: atraído pelo aroma, Zeus apareceu e, com seu raio, impediu os titãs de consumar o festim canibalesco. (KERÉNYI, 2002, p. 211.)

Ainda segundo esta tradição órfica, o calor do raio de Zeus fez com que os titãs

desaparecessem, deixando um rastro de vapor. Este vapor se tornou fuligem, a qual formou

a humanidade. A materialidade a partir da fuligem aponta duas direções. De acordo com

Onomácrito, ela não se constituía apenas de restos dos titãs, mas nela também vigorava o

próprio Dioniso (até mesmo porque as partes do deus já tinham sido “colocadas sobre o

fogo”).

É importante notar que o elemento “fogo” já aparece nessa manifestação mítica dotado

de ambigüidade trágica. Dos restos do calor produzido pelo raio em fogo, aparece a fuligem

que encobre os titãs e Dioniso para descobri-los no homem. Essa visão órfica capta a

ambigüidade trágica inerente ao homem, simbolizada pelo fogo.

Seguindo as vias abertas por tal perspectiva mítica, é possível compreender o homem a

partir de sua formação: ele é atravessado não só por Dioniso (que é o deus da ambigüidade

trágica por excelência), como também pelo potencial de destruição do dionisíaco

(representado pelos titãs). Interpreta-se daí que o homem é substancialmente dionisíaco ao

mesmo tempo em que é dotado de força destruidora para combater sua ambigüidade mítica.

O homem caminha sendo essencialmente conflito, luta, tensão.

Esta tensão está sempre presente nas versões míticas que envolvem Dioniso, pois é

intrínseca ao próprio deus. Os titãs não logram a morte definitiva de Dioniso; pelo

contrário, o que os relatos míticos nos mostram é que este jamais morre, está enraizado em

tudo, surpreendendo com sua incessante multiplicação no dinamismo vital e mortal de tudo

que existe. Ele caminha em todas as direções, afirmando, intensificando, tensionando. É

justamente na tensão de seus contrários que o deus tragicamente persiste. O trágico no

homem se dignifica na adesão a esse vigor dionisíaco.

A segunda variação digna de apontamento se refere ao órgão do deus salvo que

culminou na origem do segundo Dioniso. Até agora só se falou no coração. Entretanto, de

acordo com a “versão evemerística que faz de Zeus um rei cretense” (KERÉNYI, 2002, p.

223), o órgão que se salvou e foi levado para gerar pela segunda vez o deus não foi o

coração, mas sim o falo. Importa, assim, em primeira instância, pensar o que vem a

representar respectivamente o coração e o falo no contexto apresentado.

Hoje se tende a relacionar coração a sentimento, afetividade. Entretanto, “todas as

civilizações tradicionais localizam no coração [...] a inteligência e a intuição”

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p.224). No questionamento sobre o que vem a ser

inteligência e intuição, é possível perceber que a primeira sinaliza para o não sensível, ao

passo que a segunda, ao contrário, aproxima-se mais do sensível.

Diz-se geralmente que alguém é inteligente quando aprende com facilidade, apresenta

um raciocínio rápido, o que aponta claramente para o intelectual. Por outro lado, ao se

afirmar que alguém tem a intuição aguçada, por exemplo, não se pretende elogiar a

intelectualidade, mas sim ressaltar um aspecto da sensibilidade humana não de todo

apreendido pela inteligência. A intuição parece apontar para uma harmonia dialógica entre

o indivíduo e o cosmos.

Assim sendo, o coração, sendo portador da inteligência e da intuição, reúne o sensível

e o não sensível, o racional e o não racional, apresentando-se como o lugar privilegiado de

conhecimento, portanto, na acepção mesma de pensamento, de sabedoria trágica. É

compreensível, pois, que dele se dê a conhecer o uno, que dele se origine todo o ser, como

no caso do mito de Dioniso. O coração realmente é um órgão central e vital para a

preservação da vida, afinal, é ele que assegura a circulação do sangue. Não é de se

estranhar, pois, que o mito de Dioniso encontre no coração o poder para fazer renascer o

deus.

Mas não é somente a versão mais conhecida do mito que trabalha com um órgão

central para a existência do todo. Também a variação mítica que coloca o falo como a parte

do corpo salva de onde se origina o segundo Dioniso prioriza o caráter central do órgão

(neste caso, até mesmo físico). O falo, sendo “fonte e canal do sêmen”, é “símbolo do poder

gerador” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p.316), o que condiz claramente com a

contextualização do mito. Se do falo emerge o poder gerador, nada mais coerente que dele

se engendre o segundo Dioniso.

Conclui-se que os dois órgãos apresentados nas vertentes do mito, por mais diferentes

que possam parecer (e o são), convergem para um ponto: ambos são verdadeiramente

geradores. De acordo com as considerações feitas, o coração equivaleria ao lugar de onde

provém o conhecimento mais pleno. O falo, por sua vez, traria em si o gérmen de uma nova

vida. Mas a ação de conhecer não está diretamente incorporada a um novo viver?

Toma-se a liberdade de fundir as duas vertentes do mito em prol da abertura de um

caminho bastante revelador. Dioniso, oriundo do coração e do falo, é fundamentalmente a

potência que gera e gere a vida no mundo pelo pleno conhecer.

Os homens só têm acesso a essa força motriz pelo próprio sofrer10. O trágico aponta

para essa dimensão essencial revigorada no mito. O gerar é o verbo, é o centro de tudo (daí

a importância central dos órgãos), os pólos interagem mutuamente: a experiência gera o

conhecimento e o conhecimento gera a experiência. Eis uma nova vida, sempre.

10 O sofrer é usado na acepção de vivenciar, passar pela experiência.

3.3 Mito e culto

Dioniso é tido como deus do vinho, pois, de acordo com as vertentes míticas

existentes, é ele quem descobre a bebida, inaugurando-a junto aos sátiros e às ninfas. Eles

não só bebem do vinho até se embriagarem, como também dançam impetuosamente sob

efeito da embriaguez. É justamente a embriaguez causada pelo vinho o elo entre este e

Dioniso. Ressalta-se que esta embriaguez não deve ser equiparada a uma mera reação

físico-química à presença do vinho no corporal. O que está em jogo na embriaguez aqui em

questão é nada mais nada menos que o frenesi do êxtase dionisíaco. Não é difícil apreender

tal correlação. Para tanto, faz-se necessário retornar ao mito.

A visão mítica se entranha na cultura grega. Daí advém a vital necessidade de se

pensar o mito. Só neste proceder poder-se-á adentrar verdadeiramente as ritualizações na

cultura grega, o que justifica o caminho trilhado até o presente momento e o que ainda está

por vir. Retomando o mito: Dioniso não só descobre o vinho, mas também ingere a bebida

e a distribui entre os demais.

É claro que o vinho é descoberto graças à oferta da própria natureza. Por outro lado, a

videira se atualiza em vinho por intermédio de Dioniso, é ele quem potencializa o ser vinho

da uva. Mas o deus não se contenta em ser apenas um mediador, ele ingere a bebida. Deste

modo, não se limita mais a transformar componentes externos, ele também conduz a sua

própria transformação. Contendo vinho, Dioniso comunga do potencial da natureza.

Apreende-se daí que, assim como a natureza se potencializa no vinho, Dioniso também o

faz, potencializando o que é. O potencial dionisíaco se extasia na embriaguez.

Mas o deus ainda não se satisfaz e distribui vinho para todos com os quais convive.

Assim, o êxtase dionisíaco se lança em outros corpos. Todos comungam da mesma

embriaguez. Todos passam a ser Dioniso. Tal perspectiva se concretiza com o uso das

máscaras11. As máscaras usadas nos ritos de iniciação, por exemplo, eram tidas como

mediadoras para a encarnação do próprio deus.

Vale relembrar e retomar a proposta inicial para o presente tópico: partir de alguns

nomes dados ao deus em estudo para se aventurar rumo às principais manifestações cultuais

em sua honra, manifestações estas imprescindíveis para o emergir do trágico.

Comumente se atribui ao deus em estudo os nomes Dioniso e Baco. Se Dioniso

remonta à origem do mito (por ser aquele duas vezes nascido), Baco conduz ao culto

propriamente dito, onde se encontram as bacantes, as quais se tornaram mundialmente

conhecidas pelo texto de Eurípedes.

As bacantes atuam de modo aparentemente louco, pois são inteiramente desregradas,

não conhecendo medidas nem limites. No culto a Baco, elas estão entregues ao êxtase

dionisíaco e dançam ao ritmo da loucura báquica. Vale chamar a atenção ainda para o fato

de que, muitas vezes, as adoradoras de Dioniso são representadas portando cobras. Se, em

um período tardio, as serpentes serviam apenas como adorno, anteriormente, as víboras

eram despedaçadas na orgia báquica. Mas por que a relação com as cobras?

As serpentes se movimentam pelo rastejar. Seus corpos não apontam nem para cima

nem para baixo, já que estão inteiramente em contato com a superfície pela qual se

locomovem. Rastejando-se pela terra, as serpentes servem elas próprias como uma espécie

de divisa dinâmica entre o subterrâneo e o ar. Assim, elas realmente não apontam somente

para o superior ou para o inferior, mas para ambos simultaneamente. Elas participam da

terra assim como participam do ar. Enfim, um símbolo dotado de ambigüidade, o que não

11 Elemento fundamental na civilização grega. Convém ressaltar que os gregos “conheceram as máscaras rituais das cerimônias e as danças sagradas, as máscaras funerárias, as máscaras votivas, as máscaras de disfarce, as máscaras de teatro” (CHEVALIER; GHERBRANT, 1982, P. 443).

poderia ser diferente, afinal, as serpentes fazem parte (seja como for) do ritual das bacantes,

as seguidoras de Baco, o deus que é a própria ambigüidade (conforme verificado a partir do

mito).

Ovídio, nas Metamorfoses (1957), assinalou um detalhe do mito bastante revelador.

Segundo ele, Zeus se disfarça assumindo a forma de uma serpente para seduzir a filha

Perséfone. No encontro entre os dois, gera-se Dioniso. Em tal contexto, a serpente abarca e

reforça o sentido não só da claridade divina como também da obscuridade das trevas. A

serpente é Zeus, o deus dos relâmpagos, dos súbitos ímpetos de luz. Zeus, o deus dos raios

que, ao descarregar-se violentamente sobre a terra, nutre-a assombrosamente.

Assombro e sombra se irmanam na fusão entre luz e trevas inaugurada por Zeus. Em

forma de raio, ao deixar o céu rumo a terra, Zeus sai da claridade solar / lunar em direção à

obscuridade terrestre. A interseção constitui a sombra, a serpente que enlaça os dois

mundos, pois une, no âmbito externo, pelo próprio físico, o obscuro do subterrâneo à

claridade que se apresenta sobre a terra, e agrega, internamente, a luz e a escuridão de Zeus.

Dela se origina Baco, que herda toda sua ambigüidade.

As bacantes, por sua vez, embaladas pela música do deus, revigoram a ambigüidade

trágica báquica. Movidas pelo/no êxtase dionisíaco despedaçam as serpentes, fundamento

do próprio Dioniso. Mas o deus não se renova na fragmentação? É Zagreus (outro nome do

deus) quem impera e se fortalece.

Segundo Kerényi (2002), zagréus designa na língua grega aquele que captura animais

vivos. Ele defende ser Zagreus o maior entre os caçadores, considerando que o alvo de sua

captura são os animais selvagens. Assim sendo, nos cultos ao deus, costumava-se sacrificar

grandes animais, como o bode ou até mesmo o touro:

Parece muito difícil crer que, em um culto dionisíaco selvático, animais tão fortes como são os touros fossem destroçados pelos dentes dos participantes e devorados crus; mas temos um testemunho explícito de que esse rito monstruoso acontecia numa festa bienal de Dioniso. O deus reteve até mais tarde epítetos como “Omestés” e “Omádios”, isto é, “comedor de carne crua”. Num coro de sua tragédia Os Cretenses, Eurípedes fala da celebração de ritos, na Cova do Ida, em que se comia carne crua. A finalidade evidente de “capturar vivo” era dilacerar os animais e comer-lhes a carne crua.

(KERÉNYI, 2002, p. 74-75.)

Mais uma vez os adoradores de Dioniso se transfiguram no próprio deus.

Dioniso é chamando também “Falen ou Falenos e a procissão do Phalos ocupa um

lugar importante em muitas das suas festas” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p.

266). A partir do que já foi dito anteriormente a respeito do falo, cuja simbologia remete à

preponderância do poder gerador, pode-se depreender que as procissões fálicas celebravam

a capacidade divina de vivificar. É esta capacidade de tornar vívido que atravessa os

homens e os dota de virilidade. Eis o elo dionisíaco.

Conclui-se que é possível apreender um núcleo comum em todas as manifestações

cultuais aqui citadas: a instauração de um ponto de convergência entre o deus e os homens.

As ritualizações atualizam o mito, revigorando-o principalmente nos próprios adoradores

do deus. O que está em questão sempre é, de alguma maneira, a busca pela superação dos

limites humanos, pelo pulsar dionisiacamente. Em outras palavras, o rito faz reviver o mito

em prol do saber trágico.

São muitos os epítetos para nomear Dioniso, o que realça o caráter múltiplo do deus.

Dentre tantos nomes, cinco foram tratados neste item. A partir daí, delineou-se os principais

cultos dionisíacos, resgatando o que há de comum entre eles. Cumpre agora avançar para a

terceira proposta do capítulo: focar a dinâmica que conduz os cultos dionisíacos à tragédia,

ressaltando sempre o eixo trágico comum a ambos, e tendo como ponto de partida as

reflexões presentes na Poética e em O Nascimento da Tragédia.

3.4 Dos cultos à tragédia

É amplamente aceita a hipótese de que do culto em honra ao deus Dioniso teria se

originado a tragédia. Isto se explica, em parte, pela própria composição do vocábulo. A

palavra tragédia é formada por tragos e ode, havendo duas possíveis interpretações que

foram feitas a partir daí. A primeira entende a tragédia como “canto de bode”, ao passo que

a segunda destaca o “canto pelo bode”.

A simples alternância da preposição acarreta uma diferença significativa. O “canto de

bode” assinala o agente do canto, remetendo-nos obrigatoriamente aos sátiros, seres com

características humanas e bestiais (apresentando traços de bodes e cavalos). Vale anotar

ainda que os sátiros (ou silenos) também eram “chamados bodes devido à sua

impetuosidade sexual”12 (ROSENFELD, 2000, p. 48). Os sátiros acompanhavam o cortejo

de Dioniso, cantando em seu louvor.

A expressão “canto pelo bode”, por sua vez, destaca o sacrifício do bode no ritual

dionisíaco. Entoavam-se cantos pelo bode, para obtê-lo como prêmio.

De qualquer modo, seja “canto de bode” ou “canto pelo bode”, em ambas as

traduções/interpretações subsiste o caráter ritualístico em honra a Baco. Daí a tese

amplamente aceita de que a tragédia teria se originado do culto ao deus Dioniso. Tal

formulação se inicia na Poética de Aristóteles. Segundo o filósofo, a tragédia teria surgido

12 Faz-se mister assinalar a correlação entre o aspecto humano-bestial dos sátiros e a capacidade/pré-disposição de Dioniso em metamorfosear-se em bode, como atestam vários momentos do mito.

dos solistas do ditirambo13, cujo entoar já abarca tanto o elemento lírico como o dramático.

Ainda de acordo com a visão aristotélica, o poema trágico teria passado por uma fase

satírica antes de se constituir como a tragédia propriamente dita.

Por mais que se questione os argumentos de Aristóteles, estes ganham impulso não só

pela compreensão do vocábulo tragédia como também pelos dados históricos aos quais se

tem acesso. Sabe-se que as representações trágicas tinham espaço na época das festas mais

importantes em homenagem a Dioniso: as Grandes Dionísias. Ao espetáculo artístico se

integravam elementos do âmbito do religioso, como, por exemplo, “procissão de jovens,

sacrifícios violentos, transporte e exibição do ídolo divino” (VERNANT; VIDAL-

NAQUET, 1991, p.20). Além disso, convém enfatizar que tudo isso tinha lugar em um

teatro consagrado a Dioniso onde se reservava um templo para o deus, com a exibição,

inclusive, de uma imagem deste (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1991, p.20.).

Seja como for, todos os indícios apontam, em maior ou menor escala, para a intrínseca

relação entre o religioso e o poético na gênese da tragédia. É, pois, justamente esse caráter

de comunhão entre a esfera do sagrado e do artístico que importa no estudo que aqui se

apresenta, já que revigora o sentido do trágico. Para tal fim, vale comentar alguns aspectos

fundamentais de uma obra que, além de resgatar a preponderância do universo religioso-

artístico, enfatiza em todas as dimensões o poder do mito essencialmente trágico (Dioniso).

Refere-se à tragédia As Bacantes, de Eurípedes.

Na peça, Dioniso se impõe como divindade. Em resposta ao descrédito na sua

condição divina (tanto por parte de Penteu, rei de Tebas, como por parte de suas próprias

tias maternas), atua irrebatível o deus. Convém lembrar que As Bacantes já se inicia com o

13 “ditirambo, canto hínico e fervoroso de um coro dançante acompanhado pela flauta, com o qual, a partir de certo momento, se celebrava de preferência Dioniso” (ROSENFELD, 2000, p. 48.)

discurso divino, é Dioniso quem introduz a tragédia. Essa introdução no âmbito do discurso

é significativa, pois reflete na ordenação formal da tragédia o que está para além desta,

deixando antever o princípio operacional do deus a incitar e controlar os acontecimentos

trágicos. O mote principal de As Bacantes é o culto ao deus Baco. Já aí se deixa despontar a

interação entre o religioso-ritualístico e o artístico.

No âmbito do literário, Dioniso não só introduz a obra, como desta participa enquanto

personagem. Assim sendo, o personagem que incorpora atua visivelmente no operar dos

acontecimentos. Mas a atuação do deus não se restringe ao que se faz visível aos homens.

Dioniso induz o fervoroso delírio báquico. Aqui não é o personagem que incorpora o

agente, mas o deus do culto. Neste contexto, a atuação de Dioniso não diz respeito ao

literário, mas tão somente ao sagrado. Os efeitos do delírio báquico se fazem presentes na

obra, mas o que os motiva permanece indecifrável, principalmente por se dar na esfera do

sagrado.

Confirma-se, portanto, que o obrar de Dioniso em As Bacantes funde o religioso e o

artístico no mesmo universo. Para que a apreensão desta fusão opere mais profundamente,

faz-se mister, no entanto, em um primeiro momento, investigar separadamente os dois

níveis de atuação do deus. Primeiro, focar-se-á o agir do deus do culto, visto sustentar toda

a dimensão trágica da obra.

O operar sagrado de Dioniso aponta duas direções bem definidas e distintas. Aqueles

que veneram o deus vivenciam inteiramente o êxtase em toda a sua glória, ao passo que

aqueles que o negam são tomados por uma loucura devastadora, pagando um preço bem

alto. Percebe-se claramente em As Bacantes esses dois direcionamentos.

De um lado, as fiéis seguidoras de Baco, entregues ao sagrado, são arrebatadas

extaticamente, transfigurando-se no próprio deus pela embriaguez divina. Não há nenhum

indício de sofrimento, pelo contrário, só há espaço para satisfação na dança báquica. De

outro lado, as irmãs de Sêmele, não acreditando que ela tivesse sido fecundada por um

deus, põem em xeque a divindade deste. À descrença Dioniso revida com a loucura cega,

culminando na morte daquele que também zombou do deus: nada mais nada menos que o

rei de Tebas, Penteu. Aquele de maior poder no âmbito do humano é reduzido a nada.

Tendo desafiado o poder do deus, Penteu tem a revanche: é dilacerado pelas mulheres

tomadas pela loucura báquica que o confundem com um animal de caça. É Agave, sua

própria mãe, a primeira a lançar-se contra ele e a que exibe sua cabeça como trunfo para a

cidade inteira. Apreende-se daí a severidade da punição conferida pelo deus àqueles que

não o dignificam. A peça atesta a

Plenitude do êxtase, do entusiasmo, da possessão, mas também bem-aventurança do vinho, alegria da festa, prazer do amor, felicidade do cotidiano, Dioniso pode trazer tudo isso se os homens souberem acolhê-lo, e as cidades, reconhecê-lo; assim como pode trazer infelicidade e destruição, se negado. Mas em nenhum dos casos ele vem para anunciar uma sorte melhor no Além. Ele não preconiza a fuga para fora do mundo, nem pretende trazer às almas, através de um modo de vida ascético, o acesso à imortalidade. Os homens devem, pelo contrário, aceitar sua condição mortal, saber que não são nada diante das forças que transbordam de toda parte e que têm o poder de esmagá-los. Dioniso não faz exceção à regra. Seu fiel submete-se a ele como a uma força irracional que o ultrapassa e dele dispõe; o deus não tem contas a prestar; [...] além do bem e do mal, supremamente suave ou supremamente terrível, ele brinca de fazer surgir, à nossa volta e dentro de nós, as múltiplas figuras do Outro.

(VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1991, p. 278-279).

O tempo presente clama todo o seu vigor. Dioniso valoriza o aqui e agora, fazendo

urgir a necessidade de atuação no momento presente. Em As Bacantes, enfatiza-se

nitidamente a vitalidade e o dinamismo: Dioniso sempre se atualiza, seja através dos ritos

consagrados a ele, seja como outro de si mesmo, no personagem que se apresenta. Fica-nos

a lição: ao dinamismo temporal se deve corresponder inteiramente, só assim é possível

caminhar sendo.

4 REVISITANDO E QUESTIONANDO ARISTÓTELES

4.1 Considerações preliminares

Com relação às tragédias gregas, poucas foram as que chegaram ao nosso

conhecimento, muitas se perderam. A parca quantidade não impediu, entretanto, o

crescente interesse pelo gênero por estudiosos. Ao trabalho de teóricos se uniu a labuta de

escritores que se lançaram inclusive no aviar de novas tragédias. É certo que a tragédia se

firmou como um importante gênero artístico na literatura ocidental.

Do termo grego trago(i)dia resultou o vocábulo latino tragoedía (CUNHA, 1986, p.

780), culminando em tragédia no português. Se originariamente a palavra grega denotava

apenas o sentido ritualístico-religioso, de onde proveio a posterior designação às

manifestações artísticas daí decorridas, hoje, tragédia não se refere apenas a um gênero

literário. O nome tomou gosto no português coloquial e é usado em situações que aludem à

própria realidade. O mesmo aconteceu com trágico.

Não se pretende esmiuçar as diferenças de sentido que se configuraram em dito

processo. O enfoque fundamental recai no entrelace entre arte e real. Em um primeiro

momento, tragédia e trágico competiam somente no âmbito artístico. A incorporação de

ambos os termos ganhou força a ponto de se aderir nuances de sentidos no âmbito do real.

O movimento do literário ao real é o cerne da principal questão. Há uma forte tradição

ocidental que defende ser a arte mera cópia do real. A dinâmica que se perfaz a partir das

duas palavras em foco questiona dita tradição. Se há duas nomenclaturas designando, a

princípio, caracteres exclusivos do artístico, e estas passam posteriormente a designar

caracteres do real, parece que é o real a cópia, e não o contrário. Mas não é bem assim... O

equívoco está em se entender arte e real sob o prisma do cronológico, em um dar-se

sucessivo, sendo pólos que nunca se encontram. O que é copiado, claro, sempre vem depois

do original.

O processo que se opera a partir dos vocábulos tragédia e trágico derruba o caráter

que se quer cronológico, fazendo emergir a interação mútua entre arte e real. O artístico já

está no real desde sempre, é o que está para além do ordinário. Poder-se-ia até mesmo dizer

que este artístico, muitas vezes, desdobra-se nitidamente em arte para se fazer notar. Arte e

real não são pólos distintos, mas pólos que participam de uma mesma dinâmica. Não só o

real se faz arte, como também a arte se faz real. A tragédia, com sua tragicidade, sendo a

priori arte que se faz real, opera no emergir do trágico inerente ao real, o que se reflete

inclusive na extensão do uso dos termos.

Percebe-se, portanto, a interação indissociável arte-real/real-arte. Assim sendo, dado o

caráter essencialmente trágico do real, este poderia, sem nenhum problema, ser nomeado de

tragédia.

4.2 Considerações sobre o fenômeno trágico-tragédia

O presente item visa a adentrar o pensamento aristotélico acerca do trágico a partir das

observações feitas na Poética. Como o próprio nome já insinua, a Poética se propõe a

pensar a poesia em suas diversas manifestações. Enfocar-se-á, entretanto, apenas as

questões relativas à tragédia (dado o caráter da investigação que aqui se apresenta),

vislumbrando sempre o caráter fenomenológico do trágico.

Ainda que alguns filósofos digam que Aristóteles apresenta apenas uma teoria da

tragédia enquanto gênero, não abordando o trágico propriamente dito14, defende-se aqui, ao

contrário, que a obra Poética aponta para a constituição de um dos principais pilares de

uma filosofia acerca do trágico, seja direta ou indiretamente. O texto em questão é iniciado

do seguinte modo:

Falemos da poesia,-dela mesma e dos seus gêneros, da efetividade de cada um deles, da composição que se deve dar às fábulas se quisermos que a poesia resulte perfeita, e ainda de quantos e quais os elementos de cada gênero, e, semelhantemente, de tudo

quanto pertence a esta [...] (grifo nosso) (ARISTÓTELES, 1964, p. 101).

A partir da perspectiva adotada na abertura da Poética, não há dúvidas de que a obra

se propõe a investigar e delimitar os diferentes gêneros artísticos. Isso não quer dizer que

Aristóteles desenvolva apenas uma teoria sobre a tragédia sem pensar, em nenhuma

instância, sobre o trágico, mesmo porque seria impossível teorizar sobre aquela sem passar

por este. Sim, aspectos como a origem e o desenvolvimento da tragédia são abordados na

Poética. Mas, de qualquer modo, há sempre algo de essencial que perpassa todos os

âmbitos do gênero artístico em questão: o trágico. Ainda que, em determinados momentos,

a obra de Aristóteles tenda a normatizar, a julgar e estipular o que é melhor para atingir a

finalidade de cada gênero, subsiste o essencial.

A importância da Poética na fundamentação da tradição do pensamento ocidental

acerca da poesia é inquestionável. Vale destacar que tamanha contribuição para o poético se

deu tanto no âmbito mais geral (no tocante à poesia propriamente dita) como no âmbito

mais específico (no que diz respeito aos gêneros poéticos). Muitas questões fundamentais

14 Szondi, por exemplo, partilha dessa visão. Em Ensaio sobre o trágico (2004), ele defende ser Schelling quem inaugura uma “filosofia do trágico”: “Desde Aristóteles há uma poética da tragédia; apenas desde Schelling, uma filosofia do trágico” (SZONDI, 2004, p. 23.)

são abordadas no decorrer da obra, mas não são resolvidas. Poder-se-ia até mesmo arriscar

dizer que o grande mérito da Poética se dá muito mais pelo apontamento de questões

essenciais que pelo esclarecimento destas. As lacunas existem e são fundamentais.

Pretende-se aqui adentrar as vias abertas pela obra em questão e buscar trilhar um caminho

que se perfaz especialmente no que se deixa antever entre as lacunas (no que tangencia a

tragédia e, é claro, o trágico). Para lograr tal intento, faz-se mister começar pelo princípio

inaugural, que se manifesta na famosa definição de Aristóteles para a tragédia. Analisando

as tragédias gregas conhecidas na busca do eixo comum entre estas, eis a conclusão do

filósofo a respeito deste gênero:

É pois a tragédia imitação de ações de caráter elevado, completa em si mesma, de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do drama, imitação que se efetua, não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação desses sentimentos. (ARISTÓTELES, 1964, p. 110).

Há várias questões a serem abordadas na definição aristotélica. Propõe-se pensar tais

questões na ordem mesma em que o filósofo as apresentou para fins de maior organização e

clareza sem, no entanto, reter-se a detalhes irrelevantes para o saber trágico.

Primeiro, Aristóteles diz que a tragédia é “imitação de ações”. Convém pensar os

vocábulos empregados conjuntamente. Ação implica necessariamente movimento. Tudo

que vive está em ação, participando da dinâmica do velar-se e desvelar-se. Sendo a tragédia

“imitação de ações” e perpassando a ação a dinâmica de tudo que existe, não há como se

entender imitação como algo estanque. Se o material de imitação são as ações, a imitação

também participa do/no agir. A imitação adquire sentido no agir do imitar. As ações se

plenificam no vigor da imitação. Neste contexto, imitar implica agir e vice-versa. Sendo a

imitação de ações o primeiro quesito que demanda a tragédia, é o pilar que sustenta toda a

dimensão trágica. O trágico, reinaugurando o imitar das ações, faz vigorar o essencial do

agir. No operar da imitação trágica, emerge o sentido da própria ação. Mas que ação é essa?

É Aristóteles mesmo quem aponta uma resposta ao afirmar que a tragédia é “imitação

de ações de caráter elevado”. E o que poderiam ser estas “ações de caráter elevado”? Já foi

visto que o agir abrange tudo que existe; ao se especificar, entretanto, o agir como o de

“caráter elevado”, restringe-se a abrangência do termo. Então haveria um agir elevado que

se distinguiria dos demais? Parece que sim, se não, não haveria motivo para o uso de dita

expressão. Se o essencial da ação é a dinâmica, o movimento, é daí que provém o caráter

elevado (ou não) da ação.

O mundo está em movimento desde sempre, ele é o próprio dinamismo da ação. Tudo

que do mundo participa se insere nessa dinâmica. Cada coisa, digamos, “imitando” a ação

do mundo, também se perfaz na ação. Percebe-se, pois, que a ação do/no mundo comporta

inúmeras ações. Eis o realizar-se do mundo enquanto mundo.

O realizar-se de cada coisa no mundo só se dá na correspondência à sua própria

dinâmica intrínseca ao movimento do real. Eis o que se pode entender como ação “de

caráter elevado”. Elevado porque eleva o ser, na ação, à sua própria dimensão. Elevar-se e

desvelar-se se irmanam, pois, no caráter de imitação de ações na tragédia.

Ao menos duas conclusões advêm das considerações empreendidas até o presente

momento. Em primeiro lugar, a percepção de que o movimento só se constitui elevado

quando a ação se perfaz fundamentalmente no âmbito interno de onde atua. Em segundo

lugar, o reconhecimento de que a expressão de caráter elevado funciona como

intensificadora do verdadeiro sentido da imitação de ações: a correspondência ao que se é

na dinâmica do sendo. O sentido trágico da existência se mostra na “imitação de ações de

caráter elevado”, perpetuando-se na tragédia.

A definição aristotélica da tragédia prossegue por sua caracterização. De acordo com

esta, a tragédia se apresenta “completa em si mesma, de certa extensão, em linguagem

ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do

drama, imitação que se efetua, não por narrativa, mas mediante atores”. Não convém para o

presente estudo desenvolver essa parte em virtude não só da clareza na exposição das

idéias, mas principalmente da não relevância destas para se pensar o fenômeno do trágico.

Está claro que nesse trecho se prioriza tão somente o aspecto formal do gênero da tragédia.

A parte final da definição, entretanto, é imprescindível para levantar questões

fundamentais no tocante ao trágico. Vale relembrá-la: a tragédia, “suscitando o terror e a

piedade, tem por efeito a purificação desses sentimentos”. As noções de terror, piedade e

purificação são apenas lançadas, em nenhum momento se esclarece o que estas vêm a ser

exatamente. Faz-se necessário investigá-las. Para tanto, vale seguir a ordem mesma da

apresentação dos termos. Primeiro: terror.

É certo que o terror estremece o aparente equilíbrio das coisas, instaurando o perigo.

Não há dúvidas de que a tendência de qualquer ser humano frente ao terrível é o impulso

para trás, é a busca do distanciamento, da fuga da submissão ao terrificante. Entretanto, por

mais que o terror leve a uma disposição de afastamento (e, de fato, o leva), não há como se

desviar da via já tomada pelo aterrorizador. Inexoravelmente se sucumbe ao apelo do terror,

pois afastar-se implica corresponder à dinâmica do terrível.

Convém ressaltar ainda que o terrível prende a atenção; de certa maneira, imobiliza. A

imobilidade se dá na permanência do caráter aterrorizador do outro, que se reflete, é claro,

na manutenção da relação que se estabelece pelo terrível. Qualquer pessoa assaltada pelo

terror pode se manter imóvel temporariamente em virtude do impacto. No entanto, assim

que possível, corresponde ao apelo do terrível, afastando-se. O movimento rumo a uma

maior distância prosseguirá enquanto o terror for sentido próximo no âmbito interno, enfim,

enquanto imobilizar-se como terror.

A tragédia, por conseguinte, suscitando o terror, imobiliza/apreende a atenção do

leitor/espectador, mantendo-o a uma certa distância dos acontecimentos.

Entretanto, de acordo com a definição apresentada para tragédia, esta suscita terror e

piedade. Convém, portanto, questionar o segundo termo (piedade) na sua relação aditiva

com o primeiro (terror). Antes, porém, de entrelaçar o sentido da concomitância entre os

dois efeitos almejados, faz-se mister buscar a apreensão do essencial no apiedar-se. Na

tentativa de se iniciar tal empreitada, pergunta-se: o que vem a ser piedade? Como esta é

sentida, vivida?

De uma coisa, ao menos, não resta dúvidas: aterrorizar-se e apiedar-se são

sentimentos/ações muito diferentes. Parece, inclusive, que apontam direções antagônicas. A

piedade, ao contrário do terror, conduz a uma certa identificação, a um aproximar-se do

outro. No apiedar-se, vigora a compaixão. Compartilhando da paixão do outro, compactua-

se do ser do outro. A piedade, portanto, implica o movimento que se perfaz rumo à

eliminação das diferenças, apontando para a unidade que transpassa e funde todos os seres.

O terror, por sua vez, conduzindo o distanciar-se, instaura o movimento inverso,

revigorando a diferença, a singularidade de tudo que existe.

A tragédia, provocando terror e piedade, afasta e aproxima, separa e funde. O

resultado desta tensão, conforme a definição aristotélica é a purificação desses sentimentos.

Mas como entender purificação nesse contexto?

Predomina na tradição o entendimento de purificação como sinônimo de expurgação.

De acordo com essa perspectiva, a finalidade da tragédia consiste em expurgar/eliminar os

sentimentos negativos de terror e piedade, “purificando” o indivíduo. Fazendo purificar se

equivaler a expurgar, anula-se qualquer possibilidade de sabedoria trágica, pois se a

tragédia visa somente a eliminação do que não presta, apenas subtrai, nada acrescenta. Qual

seria o sentido da tragédia em expurgar justamente os efeitos que acarreta? Por que

provocar terror e piedade se estes, uma vez emersos, são eliminados? Em que isso

dialogaria com o trágico? Parece que em nada.

A purificação como finalidade da tragédia se dá em outro âmbito, no âmbito essencial

do saber trágico. A tensão entre o distanciar-se suscitado pelo terror e o aproximar-se

provocado pela piedade converge para o lugar propício da experiência do saber trágico,

nem longe nem perto demais. Por um lado, se o terror imperasse, a excessiva distância não

permitiria o contato necessário para que se desse o conhecer. Por outro lado, se a piedade

imperasse, o contato em demasia confundiria tudo, não resguardaria as identidades e,

conseqüentemente, não preservaria o mínimo de distância para preservar o espaço do saber.

Mas a tragédia suscita simultaneamente terror e piedade. As forças interagem para o

distanciar e o aproximar, no ponto de equilíbrio tensional eclode a purificação, o saber

trágico. Uma coisa é certa: uma vez perpassado por essa experiência do conhecer, pelo

saber trágico a partir da “imitação de ações de caráter elevado” não se é mais o mesmo.

5 CONHECENDO O TRÁGICO

Muitos foram os filósofos tocados pelo trágico. Pensadores renomados como

Schelling, Hegel, Schopenhauer e Nietzsche, por exemplo, buscaram pensar esta questão.

Os estudos empreendidos são amplos, as considerações feitas, muitas. Assim sendo, não se

pretende apresentar todas as questões dignas de nota, mas tão somente selecionar alguns

aspectos que atravessam permanentemente a dimensão trágica.

Nesta perspectiva, cabe primeiro repensar a nossa própria condição. O que é o

homem? O que se sabe ao certo é que o humano é desde sempre, por mais que não queira

admitir, submisso ao poder da natureza. Não há outra possibilidade: a morte individual é

certa, inerente à condição de ser indivíduo. Por mais que se lute contra a morte, o máximo

que se crê poder fazer é adiá-la, nunca impedi-la. Acredita-se, repito, poder postergá-la,

mas nada assegura que o homem realmente adie os acontecimentos.

De qualquer modo, o fim de todos é o mesmo, por mais que se dê de diversas maneiras

e a cada um. Então, por que insistir em lutar contra algo que não tem jeito, que mais dia,

menos dia, ocorrerá? Por que insistir em viver? A resposta poderia advir de outra pergunta:

o que seria do homem se ele não tivesse a capacidade de atuar, de agir? Simplesmente não

se faria homem.

Para ser indivíduo, é necessário não só ser construído (visto que a natureza se

encarrega de produzir suas singularidades), como também construir e agir em sua força

individual. Nisto consiste a liberdade humana. Não é porque a destruição é fatal que se

deve desistir de ser livre enquanto é tempo. Nisto consiste a vida.

Não há dúvidas de que a tragédia chama a atenção para a conduta de ao menos um

personagem principal que luta com todas as suas forças até o fim, seja este qual for. Eis o

herói trágico. Esta perspectiva da tragédia coloca em foco o pleno agir individual. Destaca-

se, assim, a liberdade do sujeito. O sujeito é livre para agir, deve fazer jus a essa liberdade.

Convém relembrar, entretanto, que esta possibilidade de ação no âmbito individual só pode

advir da ausculta do real. O ser livre é justamente corresponder à dinâmica do trágico.

Segundo Schelling (citado por SZONDI, 2004, p.31-32), o trágico, ao primar pela

liberdade do sujeito, o qual deve lutar com todas as suas forças dignamente até o fim,

valoriza-o como herói, comportando neste a dialética simultânea do vencedor e do vencido.

Vencido pela fatalidade trágica inevitável, mas vencedor como afirmador de sua liberdade,

como homem livre que dignifica sua existência.

Poder-se-ia inclusive dizer que é a situação trágica que incita o herói a agir, já que o

coloca em uma espécie de encurralada. Resta ao herói fazer de sua situação limite a mola

propulsora para, de alguma maneira, vencer o limitado e lançar-se rumo ao ilimitado. Ao

lutar contra a fatalidade trágica, o mortal perece. Daí advém o emergir de dois estados

aparentemente contraditórios, mas intrinsecamente complementares em sua dialética. Do

perecer do indivíduo resulta sua imortalidade, visto que o nome do herói permanece na

memória, ao mesmo tempo, é na morte aparente do indivíduo que este se reconcilia e se

integra na natureza. Assim, o trágico comporta simultaneamente a reconciliação com o

universal de onde tudo provém e a glória singular manifesta pelo nome vivo na lembrança.

Conclui-se, portanto, que o movimento do limitado rumo ao ilimitado se manifesta nas

duas direções assinaladas pelo trágico: o indivíduo não só, ao retornar ao universal, funde-

se com o que é essencialmente sem limite, como também ganha notoriedade ilimitada

quando, perecendo na aparência, conquista a imortalidade do nome. O uso da liberdade

individual é, sem dúvida, fator imprescindível para tal conquista.

Ao se avaliar as atitudes do herói trágico, notar-se-á que ele é dotado de pathos, é

movido por algo que transborda os limites da individualidade humana. Ultrapassando a

medida dos mortais, ele se aproxima muito mais dos deuses, que são essencialmente

ilimitados. O herói trágico aponta, assim, de certa maneira, para a possibilidade aparente do

divino no mundo.

A cólera, a ira, pode ser uma exemplificação do pathos heróico. Muito freqüentemente

a desmedida colérica culmina na morte do herói. Rompe-se a configuração individual

humana e prevalece a força da natureza, essencialmente dinâmica com seu poder de

destruição e recriação. O herói trágico reforça, assim, o vigor manifestativo da natureza.

Mas ele só pode atuar como pleno mediador da natureza porque também se faz natureza em

todo o seu potencial. Eis a força una da physis.

Vale enfatizar que é no ápice da união natureza-indivíduo que a singularidade é

aniquilada no âmbito aparente, reconciliando-se integralmente com/no universal. Na

destruição do indivíduo, no sacrifício do herói, a natureza mostra toda a sua força original

na unidade restabelecida.

Valendo-se de comentários de Szondi (2004, p.37-45) a respeito de Hegel, destaca-se

que a concepção hegeliana do fenômeno trágico se fundamenta na noção de ética. Segundo

o filósofo, é a ética que assegura a unidade do cosmos. Mas, se por um lado, a ética une

todos os seres no uno, integrando-os em sua condição universal; por outro lado, a ética se

multiplica, diversifica-se conforme as particularidades das singularidades existentes.

Havendo uma diversidade dos poderes considerados éticos, há conflito. Está criado o

conflito trágico.

O gérmen trágico se desenvolve justamente pelo fato de a conciliação entre o singular

e o universal possibilitar diferentes manifestações éticas:

... tudo o que se exterioriza na objetividade real está submetido ao princípio de particularização; sendo assim, tanto os poderes éticos quanto o caráter ativo são diferenciados em relação a seu conteúdo e sua manifestação individual. Mas se, como reivindica a poesia dramática, essas potências particulares são incitadas a aparecer em atividade e se realizam como a meta determinada de um pathos humano que age, então sua harmonia é suprimida e elas aparecem em isolamento recíproco, umas contra as outras. A ação individual pretende então, sob determinadas circunstâncias, realizar uma meta ou um caráter que é unilateralmente isolado em sua completa determinação. De acordo com tais pressupostos, esse caráter necessariamente incitará o pathos oposto contra si, provocando conflitos inevitáveis. Assim, o trágico consiste originalmente no fato de que, em tal colisão, cada um dos lados opostos se justifica, e no entanto cada lado só é capaz de estabelecer o verdadeiro conteúdo positivo de sua meta e de seu caráter ao negar e violar o outro poder, igualmente justificado. Portanto, cada lado se torna culpado em sua eticidade. (HEGEL citado por SZONDI, 2004, p.41-42).

Vale notar que o universal, ao adquirir forma singular, perde o seu aspecto exclusivo

de universalidade, já que este se particulariza em um indivíduo. Seguindo o caminho desta

percepção, entende-se que o individual é sustentado pelo divino, este justificando as ações

daquele. Relembrando que o universal tem múltiplas possibilidades de manifestações

singulares, sempre as justificando, são gerados conflitos entre as diferentes posturas

individuais. Reside aí o gérmen trágico. O trágico se originaria pelo fato de o divino dar a

base da ética humana.

De acordo com Hegel, o pathos do herói trágico isola o indivíduo, rompendo com a

harmonia universal, já que também incita o pathos oposto. Ambos, no entanto, estão

fundamentados pelo princípio da eticidade (fundamentado no/pelo universal). Assim, cada

indivíduo defende sua postura “com unhas e dentes”, não só desafiando, como buscando

aniquilar a postura adversária para se fazer vencedor. Conclui-se, pois, que é a própria ética

que torna cada personagem justo e injusto simultaneamente. Eis a dialética trágica.

É certo que os personagens tomados pelo pathos perdem a visão coerente do todo e

defendem a qualquer custo a sua própria eticidade, não lhe importando a eticidade do outro.

Poder-se ia argumentar, então, que o pathos acarretaria a perda do vínculo com o universal,

já que deixaria de apreender o todo. A questão, entretanto, parece mais complexa do que se

possa deduzir de antemão.

Ainda que a adesão a uma causa implique a perda da visão coerente do todo, ao se

defender uma única perspectiva a qualquer custo, e isso possa parecer que há uma ruptura

do uno, não o é. Muito pelo contrário: é o uno que fundamenta o pathos trágico. Só pode

ser pathos o que é todo, o que não conhece medida. O que seria o transbordamento dos

limites individuais senão o reencontro do singular com o universal? Não é o perpassar do

divino no homem que permite que ele seja pathos ético?

Entretanto, o herói trágico aponta para uma ruptura sim. Mas em que âmbito se daria

essa ruptura? Ao se estabelecer o conflito trágico, rompe-se com a certeza de uma única

possibilidade ética. A diversidade dos heróis trágicos nas diferentes tragédias, todos sendo

plenos em sua eticidade, põe em questão a própria ética.

A ética do herói é ser inteiro ilimitadamente. O pathos heróico é o emergir do todo em

um. O herói trágico rompe com o limitado e irrompe total em sua particularidade. Se o

herói adere a uma única perspectiva, esquecendo-se das demais, não está rompendo com o

uno, mas, pelo contrário, está agindo na/pela dinâmica do próprio universal.

Também vale mencionar algumas noções de Schopenhauer no que diz respeito à

compreensão do fenômeno trágico. Compreendendo o universo como “gradações da

objetivação da vontade”, Schopenhauer vai entender o conflito trágico como “a luta das

diversas manifestações da vontade umas com as outras”, ou melhor, “a luta da vontade

contra si mesma” (SZONDI, 2004, p.53). Daí a percepção do trágico como autodestruição

da vontade. Ora, não há uma grande semelhança entre o que Schopenhauer chama

“vontade” e o que Hegel nomeia como ética?

Se, para Schopenhauer, o mundo é formado por diversas gradações de vontade, as

quais, por manifestarem-se de formas diversas, entram em conflito umas com as outras e

também entre si mesma (já que cada gradação é um todo enquanto fragmento, mas também

forma o todo da unidade da vontade); para Hegel, a ética, da mesma forma, por assumir

diferentes manifestações de acordo com as particularidades, engendra o conflito trágico.

Há, entretanto, uma diferença que parece decisiva na abordagem dos dois filósofos.

Por um lado, Hegel aponta no conflito trágico a supremacia do ético, compreendendo o

espírito da eticidade como espírito verdadeiro e, definitivamente, resgatando e reafirmando

a dialética da eticidade. A ética, pois, com todas suas ambigüidades, reina absoluta.

Por outro lado, Schopenhauer entende o fenômeno trágico como o auto-aniquilamento

da vontade. Para o filósofo, o herói da ação trágica é a vontade que, ao aniquilar a si

mesma, possibilita ao homem o conhecimento de que a vida humana não vale a pena por

não ser a verdadeira, portanto, só resta a resignação. A vontade, pois, com todas as suas

ambigüidades, naufraga.

Daí advém uma interessante percepção apontada pelo pensador: a do fenômeno trágico

como “auto-supressão daquilo que constitui o mundo” (SZONDI, 2004, p.52). Poder-se-ia,

inclusive, falar em uma estética da negatividade.

Em contrapartida a esse negativismo, movimenta-se Nietzsche. Ainda que seus

escritos demonstrem influência dos conceitos filosóficos instaurados por Schopenhauer, tal

influência se manifesta como um contra-ataque, detonando algumas noções para recriá-las

em outras nomenclaturas sob uma perspectiva bem diversa.

Um nítido exemplo da postura descrita no parágrafo anterior são os conceitos de

“vontade” e “representação” de Schopenhauer. Como já observou Szondi, Nietzsche

transforma a compreensão metafísica de tais noções em uma compreensão estética:

Nietzsche reencontra o ímpeto cego original do conceito de vontade no mundo dionisíaco da embriaguez, e a visibilidade e o autoconhecimento do conceito de representação no mundo apolíneo do sonho e da imagem, cujo imperativo para os homens é ‘Conhece-te a ti mesmo’ (SZONDI, 2004, p.67-68).

Tanto no conceito de representação (Schopenhauer) como no de apolíneo (Nietzsche),

a individuação se opõe complementarmente ao Universal ou Uno- Primordial (vontade para

Schopenhauer e dionisíaco para Nietzsche). Em ambos os casos, pode-se fundamentar a

noção de oposição complementar ao se considerar que o universal necessita do singular

para que se manifeste. É só na particularidade que o Uno pode aparecer e se justificar.

Também o indivíduo necessita do dionisíaco para que se constitua enquanto tal, mesmo

porque é do Uno que a singularidade provém.

Considerando que a manifestação da vontade em uma determinada individualidade só

pode ser temporária, é certo o perecer do indivíduo em um determinado momento e sua

reintegração à natureza. Mais uma vez o trágico inerente à condição humana, o trágico

como fatalidade irrevogável. Nietzsche, entretanto, não vai de modo algum aderir à

filosofia da negatividade de Schopenhauer, muito pelo contrário, o dionisíaco vai implicar

em afirmatividade absoluta, em afirmatividade incondicional de vida.

Agora se pode falar verdadeiramente de uma via de mão dupla: o dionisíaco vai em

direção ao apolíneo assim como o apolíneo vai em direção ao dionisíaco. É inevitável o

encontro Apolo-Dioniso, a própria ambigüidade.

6 O DIONISÍACO

A busca pela apreensão do trágico não cessa. Inúmeros estudos versaram e versam

sobre o fenômeno. Aristóteles, digamos, “dá o pontapé inicial”, contribuindo também,

como todo filósofo, para o fervilhar das idéias. Assim sendo, outros caminhos foram e estão

sendo descobertos. Dentre estes, destaca-se o despontar de outros nomes na tentativa de se

apreender a complexidade do fenômeno do trágico. Aderindo a essa perspectiva, faz-se

mister adentrar noções que se desenvolveram a partir dos mitos, seus ritos e de

considerações posteriores acerca destes e daqueles. Nietzsche se estabelece como marco no

pensamento ocidental acerca do trágico ao reinaugurá-lo, dimensionando-o

dionisiacamente. Buscar-se-á no próximo item apresentar as noções primordiais que

norteiam o saber trágico na concepção nietzschiana, como o dionisíaco e o apolíneo.

6.1. Adentrando as noções de dionisíaco e apolíneo

Nietzsche é um dos filósofos que rompe com o simplesmente dicotômico. Relendo os

gregos, busca resgatar a ambigüidade inerente ao real. Uma das ambigüidades bastante

explorada pelo pensador é expressa pelo princípio de individuação e Uno-Primordial,

Apolo e Dioniso, respectivamente. Em uma leitura rasa, parece tratar-se de mais uma

dicotomia. Entretanto, é o gérmen da ambigüidade que semeia tal relação. Se há uma

multiplicidade aparente nas doações que se apresentam, é graças ao fundo único e

misterioso de onde provêm. Vale lembrar o mito de Dioniso, que fundamenta o

essencialmente ambíguo: como pensar a noção de uno, que o próprio deus inaugura,

quando ele mesmo experimenta em si o sofrimento da individuação, visto que é dilacerado

pelos titãs?

Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche defende a necessidade da conciliação

perfeita entre Apolo e Dioniso, o que consistiria a verdadeira tragédia, “de modo que esses

dois impulsos artísticos são obrigados a desdobrar suas forças em rigorosa proporção

recíproca, segundo a lei da eterna justiça”. (NIETZSCHE, 2003 b, p. 143-144).

São nas individuações que as forças dionisíacas ganham impulso, o que culmina

tragicamente no “abismo entre um homem e outro”, dando “lugar a um superpotente

sentimento de unidade que reconduz ao coração da natureza” (NIETZSCHE, 2003 b, p.55).

Esta seria a centelha trágica. Parece que muito mais que compreender Nietzsche, urge a

vital necessidade de mergulhar em seu inesgotável universo, não como um obediente

discípulo (o que de nada valeria, apenas ratificaria um desvio marcado pela ignorância na

leitura de Nietzsche), mas sim com a curiosidade e o espanto daquele que se aventura a

trilhar seu próprio caminho. Em um dos fragmentos de Nietzsche publicado postumamente,

encontra-se a seguinte afirmação:

O homem trágico como o homem nomeado para ser professor dos homens. A formação e a educação não devem tomar como norma o talento mediano para o éthos e o intelecto, mas justamente essas naturezas trágicas. (grifo do autor)

(NIETZSCHE, 2005 b, p.8).

Em primeiro lugar, cabe notar que a palavra “professor” vem destacada, o que

contribui para o questionamento do sentido corriqueiro do vocábulo. Seria professor aquele

que ensina? Supondo-se que sim, o que caberia a esse “professor dos homens” ensinar?

Sendo o homem trágico por excelência o nomeado para ser professor dos homens, como

pensar o humano nessa dimensão?

Considerando a avalanche de possíveis questionamentos, propõe-se que se busque

entender: primeiro, o que Nietzsche está entendendo como o trágico para caracterizar o

homem como tal; segundo: o que implica ser professor dos homens; terceiro: por que é o

homem trágico quem deve ser nomeado para assumir este lugar. É claro que este

entendimento se refere a uma proposta mais geral, já que para se alcançá-lo, será necessário

galgar vários degraus.

Não há como se pensar o que vem a ser o trágico do nada. Não há dúvida de que as

tragédias, como o nome já indica, manifestam mais diretamente o trágico. Portanto, a opção

por se partir de dois elementos imprescindíveis da tragédia clássica: o coro e o herói trágico

para se buscar apreender e discutir a noção de trágico. Vale aventurar-se pelo pulsar da veia

nietzschiana.

Nietzsche reconhece na natureza dois impulsos artísticos: o dionisíaco e o apolíneo. A

partir daí, ele pensa as obras de arte como “imitação” em maior ou menor grau desses

impulsos. Diz o filósofo:

Examinamos o apolíneo e [...] o dionisíaco, como poderes artísticos que, sem a

mediação do artista humano, irrompem da própria natureza [...] Em face desses estados artísticos imediatos da natureza, todo artista é um “imitador”, e isso quer como artista onírico apolíneo, quer como artista extático dionisíaco, ou enfim – como por exemplo na tragédia grega – enquanto artista ao mesmo tempo onírico e extático. (grifo do autor) (NIETZSCHE, 2003 b, p. 32).

Nota-se que Nietzsche ressalta o âmbito da criação, do artístico, que se inaugura na

própria natureza. Em O Nascimento da Tragédia, as diversas manifestações artísticas serão

pensadas sempre a partir das noções do dionisíaco e do apolíneo.

Retomando o fragmento transcrito, Nietzsche diz que “na tragédia grega”, o artista é

“ao mesmo tempo onírico e extático”, o que também quer dizer apolíneo e dionisíaco,

respectivamente. O apolíneo é tomado como onírico por seu poder de configurar imagens,

ao passo que o dionisíaco é extático por seu poder de embriagar o indivíduo no auto-

esquecimento e devolvê-lo ao cerne da natureza. Cabe investigar com mais calma essas

noções.

Se, ao início da leitura de O Nascimento da Tragédia, pode parecer que Apolo e

Dioniso constituem forças antagônicas, no decorrer da leitura vai se compreendendo a vital

relação entre ambos. Fazendo-se valer dos deuses da mitologia grega, Nietzsche os recria,

já que vai desdobrando e criando novos conceitos.

À noção de dionisíaco ele introduz e atrela nomes como “o verdadeiramente-existente

e Uno- primordial”, “o gênio da natureza”, “o eterno padecente e pleno de contradição”, “o

pai de todas as coisas”. De acordo com essas nomenclaturas, percebe-se que Dioniso é

percebido como a força de origem do próprio mundo, como o fundo que clama por emergir.

É o lugar do êxtase, da embriaguez, do que não tem limite. É a afirmação total da vida.

Poder-se-ia dizer, de acordo com nosso filósofo, que o lugar privilegiado do dionisíaco

é a música. Nietzsche diz que “o caráter da música dionisíaca e, portanto, da música em

geral” é “a comovedora violência do som, a torrente unitária da melodia e o mundo

absolutamente incomparável da harmonia”. (NIETZSCHE, 2003 b, p.34).

A música, como dinâmica não formal que é, não se prende, por isso mesmo, ao limite

(intrínseco à forma). A música é encarada como uma espécie de expressão do mundo, uma

linguagem universal no mais alto grau. Na agressão da “torrente unitária” musical vigora o

dionisíaco. O “Uno-primordial”, “o gênio da natureza” faz sentir sua potência pela veia

musical.

Transpondo para a tragédia, tem-se no coro o lugar privilegiado do dionisíaco.

Originado no ditirambo (canto cultual inicialmente dedicado apenas a Dioniso), o coro

trágico reinaugura a música extática. No frêmito coral, não importam os indivíduos, mas

sim a massa dionisíaca que se faz una: a sabedoria de Dioniso. É a torrente vital em toda

sua abundância.

Esse coro contempla em sua visão o seu senhor e mestre Dionísio e é por isso eternamente o coro servente [...] Nessa posição de absoluto servimento em face do deus, o coro é pois, literalmente, a mais alta expressão da natureza e profere, como esta, em seu entusiasmo, sentenças de oráculo e de sabedoria; como compadecente ele é ao mesmo tempo o sábio que, do coração do mundo, enuncia a verdade. (grifo do autor) (NIETZSCHE, 2003 b, p.61).

Como origem da tragédia, o coro dionisíaco se faz fundamento. Sendo o dionisíaco o

fundo inesgotável do mundo, ele só se realiza plenamente ao lançar-se no devir

apolineamente, ou seja, em configurações aparentes. Dioniso precisa de Apolo até mesmo

para não se afundar definitivamente no ilimitado e ser pura destruição. É na configuração

apolínea que se dá a realização e a delimitação formal do dionisíaco.

Vale destacar outras nomeações usadas por Nietzsche também para designar o

apolíneo, como por exemplo, “a reverberação da eterna dor primordial”, “o reflexo do

eterno contraditório” e “o princípio de individuação”. Buscar-se-á adentrar essas três

designações.

Primeiro, “a reverberação da eterna dor primordial”. Mas o que seria essa “eterna dor

primordial”? Relembrando uma das principais vertentes do mito, será que residiria no

dilaceramento de Dioniso pelos titãs a sua dor primordial? Afinal, Dioniso, desfeito em

pedaços, é destruição, mas também é multiplicação de singularidades. Daí também se

entender o dionisíaco como “o eterno contraditório”, em um movimento ininterrupto de

destruir e construir. O apolíneo, como reverberação dessa “eterna dor primordial” e

“reflexo do eterno contraditório”, reflete o despedaçamento de Dioniso em diferentes

imagens.

É no aparente que vige o limite, a medida. Apolo é, pois, o deus da bela aparência, do

comedido, regido pelo “princípio de individuação”, sendo este o que dá forma e limite ao

impulso dionisíaco. Se o dionisíaco é o fundo disforme universal, o apolíneo individualiza,

faz singular. Do fundo dionisíaco, emergem as configurações apolíneas, transpondo para a

tragédia: do coro trágico, brotam as cenas da tragédia. Por isso mesmo é que Nietzsche

interpreta “a tragédia grega como sendo o coro dionisíaco a descarregar-se sempre de novo

em um mundo de imagens apolíneo” (NIETZSCHE, 2003 b, p. 60).

Deste mundo de imagens apolíneo, há uma figura fundamental na tragédia grega: o

herói trágico. Pode-se dizer que o herói encarna a força apolínea por excelência, pois ele

assimila o princípio de individuação em alto grau. Ele não só aparece singularmente na

tragédia clássica, mas leva sua individualidade às últimas conseqüências, tanto que o nome

do indivíduo heróico sempre prevalece. Podemos dizer, portanto, que “o herói vence ao

perecer” (NIETZSCHE, 2005 b, p.14). É o auge da força apolínea.

Entretanto, se, como visto anteriormente, a configuração apolínea provém do fundo

dionisíaco, o auge da força apolínea também é o auge da força dionisíaca. Nietzsche vai

interpretar o herói, a configuração apolínea por excelência, como uma máscara, portanto,

uma aparência, de Dioniso. Ele diz:

o único Dionísio verdadeiramente real aparece numa pluralidade de configurações, na máscara de um herói lutador e como que enredado nas malhas da vontade individual (...) e o fato de ele aparecer com tanta precisão e nitidez épicas é efeito do Apolo oniromante que interpreta para o coro o seu estado dionisíaco, através daquela aparência similiforme. Na verdade, porém, aquele herói é o Dionísio sofredor, dos Mistérios, aquele deus que experimenta em si os padecimentos da individuação... (NIETZSCHE, 2002 a, p. 69-70) (grifo do autor)

Assim como no herói fulgura a força dionisíaca pelo apolíneo, poder-se-ia dizer que

no coro trágico o apolíneo se redime no dionisíaco. Ambos os impulsos estão presentes em

todos os elementos da tragédia, o que há é uma proeminência ora de um ora de outro.

Sendo, entretanto, o dionisíaco, o “pai de todas as coisas”, podemos dizer que ele

predomina no efeito geral da tragédia. Afinal,

a forma mais universal do destino trágico é a derrota vitoriosa ou o fato de alcançar a vitória na derrota. A cada vez, o indivíduo é derrotado: e, apesar disso, percebemos seu aniquilamento como uma vitória. Para o herói trágico, é necessário sucumbir por aquilo que ele deve vencer. Nesse grave confronto, intuímos algo da já aludida estima suprema da individuação: aquela de que um originário precisa para alcançar seu último objetivo de prazer. De modo que o perecer se revela tão digno e respeitável quanto o nascer, e de modo que o nascimento deve cumprir, ao perecer, a missão que lhe é imposta como indivíduo. (NIETZSCHE, 2005 b, p. 12) (grifo do autor).

Na tragédia, é atribuída uma grande importância à aparição apolínea, como, por

exemplo, a que se configura no herói trágico, mas esse aparecer termina sendo aniquilado

pelo fundo dionisíaco, com prazer inclusive, e adquirindo novas fulgurações. O

desaparecimento da vida individual em nada afeta a potência da eterna força vital

dionisíaca. O prazer na tragédia só se justifica pela ótica do coro, que reintegra o homem ao

Uno-primordial.

Cabe retomar e reforçar a visão de Nietzsche do mundo, que abarca simultaneamente o

vigor do dionisíaco e do apolíneo. O processo artístico original de vida é justamente o

tônico que faz emergir e imergir. Sendo a tragédia a tensão oriunda da conjunção Apolo-

Dioniso, é a arte que inaugura o estado artístico propriamente vital: o trágico. O trágico é,

portanto, o ser da própria realidade e implica a plena adesão à vida.

A difícil relação entre o apolíneo e o dionisíaco na tragédia poderia realmente ser simbolizada através de uma aliança fraterna entre as duas divindades: Dionísio fala a linguagem de Apolo, mas Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dionísio: com o que fica alcançada a meta suprema da tragédia e da arte em geral. (NIETZSCHE, 2003 b, p. 130).

Mas o que seria a meta suprema da tragédia e da arte em geral? Volto ao início do

presente capítulo para responder a esta pergunta: “o homem trágico como o homem

nomeado para ser professor dos homens. A formação e a educação não devem tomar como

norma o talento mediano para o ethos e o intelecto, mas justamente essas naturezas

trágicas”.

A formação do humano se fundamenta essencialmente no trágico. Eis o que deve ser

“ensinado”, ou melhor, vivido pelo professor. “Ser homem trágico” implica assumir e

corresponder à natureza trágica. Eis a meta suprema da arte: resgatar o homem trágico, o

que permite a conciliação entre Apolo e Dioniso, o que diz sim a tudo o que é vida.

7 A IMAGEM DO FOGO – AMBIGÜIDADES TRÁGICAS

Ao transpassar das noções que permeiam o trágico se inseriu a necessidade de

revigorar a imagem do fogo como símbolo. Considerando que o elemento ígneo reúne todas

as características essencialmente trágicas, buscar-se-á no presente capítulo apontar este

total recolhimento trágico do fogo. Para tanto, valer-se-á principalmente de fragmentos de

Heráclito, de algumas idéias contidas em escritos de Martin Heidegger e de Emmanuel

Carneiro Leão, das chamadas poética e psicanálise do fogo, ambas propostas por Gaston

Bachelard.

“No fogo vigora o iluminar, o incandescer, o flamejar, o aparecer suave, esse que

amplia o claro na vastidão. No fogo, vigora também o destruir, o abater, o fechar, o

extinguir”. (HEIDEGGER, 2002, p. 243). É justamente neste operar em direções

aparentemente antagônicas que reside o trágico.

O atuar ambíguo do fogo se faz visível aos olhos dos homens: assim como ele dá a

luz, iluminando o obscuro, assim como ele aquece, mantendo acesa a chama vital, ele

também devasta, corrói, transforma tudo em cinzas. A impressão que se tem é que o fogo

caminha para destruir quando excede. São várias as manifestações ígneas apreendidas pelo

homem que podem exemplificar tal impressão.

O fogo dentro dos limites de uma fogueira causa bem-estar, aquece, conforta; mas a

ultrapassagem deste espaço pode culminar em queimadas. Eis um exemplo de onde se

sobressaem efeitos provocados pelo fogo de acordo com seu limite ou não limite espacial.

No âmbito temporal, também é possível exemplificar os efeitos de um não exceder e

de um exceder. O fogo também passou a ser muito comum no preparo de alimentos. Sabe-

se que cada alimento pede determinado tempo para ser cozido pelo fogo, devendo-se

também respeitar a intensidade ígnea para tanto. Ultrapassando-se este período e/ou

abusando-se da intensidade do fogo, o paladar do alimento fica comprometido. Tende-se a

perder o gosto próprio de cada substância com o ranço deixado pela invasão do fogo.

Se o uso adequado do calor propicia a diferenciação entre os alimentos, aguçando o

específico de cada um, a utilização em demasia do fogo acaba por aniquilar o que é próprio

de cada alimento, as especificidades são gradativamente anuladas e tudo vai se igualando

no queimado, o gosto e o cheiro que prevalece é um só.

Várias outras imagens ígneas poderiam ser citadas para exemplificar os diversos

efeitos do fogo de acordo com sua medida15. Entretanto, não se faz necessário dito

procedimento no momento presente. O que cabe enfatizar é o atuar do fogo que pode se dar

essencialmente em duas direções: uma que se faz agradável aos olhos dos homens, outra

que os desagrada ou até mesmo apavora. O não limite da manifestação ígnea pode

desembocar no incontrolável, na morte. Eis o que assusta.

A grande complicação é precisar a linha tênue que separa o operar vital do operar

mortal do elemento fogo. Arriscaria dizer que esta é realmente uma missão impossível,

visto que essa linha não existe, é uma invenção humana na qual o homem quer crer. A

impressão de que o fogo só é mortal por exceder determinadas medidas só pode advir da

interpretação humana. O fogo nos mostra em suas manifestações naturais que o seu atuar

vigora infinito desde sempre, não conhecendo limite. É o homem que, essencialmente

limitado em sua individualidade, transpõe as suas próprias experiências de limitação em

noções para o elemento ígneo.

15 Optou-se pelo uso do vocábulo “medida” neste momento para fins esclarecedores. Entretanto, esta nomenclatura será discutida mais adiante (a partir de Heidegger) ao se comentar o fragmento 30 de Heráclito.

“No fogo vigora o iluminar, o incandescer, o flamejar, o aparecer suave, esse que

amplia o claro na vastidão. [...] vigora também o destruir, o abater, o fechar, o extinguir”.

(HEIDEGGER, 2002, p. 243). A vastidão do fogo se dá tanto no que se mostra iluminando,

como no que se encobre fechando. Impossível delimitar seu território. O homem quer

delimitá-lo a qualquer custo, e assim necessita, mas o fogo nunca se deixa apreender e

dominar totalmente. A condição essencialmente limitada do homem o conduz à busca de

medida para tudo, entretanto, o fogo sempre fala mais alto...

7.1 Mundo e fogo

No tópico que aqui se apresenta, buscar-se-á investigar como a imagem do fogo abarca

as ambigüidades inerentes à existência. Sabendo-se que na vigência da reunião do ambíguo

no fogo emerge a ambigüidade trágica, tentar-se-á pensá-la mais.

Ainda que essencialmente o fogo permaneça o mesmo, ele se mostra em diversas

aparências. Assim sendo, o presente estudo percorrerá dois movimentos principais: em um

primeiro momento, partir-se-á das características do fogo que se fazem visíveis aos homens

para, a partir daí, lograr a apreensão do essencial deste elemento originário.

7.1.1. Começando por uma manifestação natural do fogo

Ter-se-á como exemplo para o presente item um incêndio em uma floresta produzido

pela própria natureza. Uma vez iniciado, sem a interferência do homem, não há como

prever até aonde vai a atuação do fogo incendiário, a intensidade que alcançará tampouco a

área que afetará. O fogo, como tudo que participa do mundo, sendo-o também, carrega em

si o gérmen do próprio devir.

Se, por um lado, um incêndio destrói vidas, devasta, por outro lado, este mesmo

incêndio pode abrir uma clareira e apontar um caminho. Concomitantemente se perfaz um

destruir e um construir; no que algo se encobre, algo se descobre.

Um grilo vivia numa clareira da Floresta. A clareira é dada pela ausência da Floresta na forma de liberdade das árvores. Em ausência, a Floresta presenteia o grilo com sua presença de claridade. É que na claridade da clareira se concentra toda a Floresta. Quer ouvindo a sinfonia dos sons ou respirando os perfumes silvestres, quer pulando sobre as folhas ou cantando o ar da liberdade, quer olhando a variedade das cores ou movendo-se no espaço dos lugares, o grilo pulsa com as pulsações e vibra com as vibrações da Floresta. (CARNEIRO LEÃO, 2002, p.175).

Percebe-se a partir do trecho transcrito que a aparente ausência da floresta encobre sua

presença. Mas o grilo, sabendo auscultar a clareira, vive em plena floresta. Um novo

sentido da floresta se dá a conhecer na clareira.

Retomando o incêndio: este, ao transformar tudo o que toca, gera ausência, mas

também presença, inaugurando um novo sentido para a existência que se perfaz. Cabe

sempre lembrar o exemplo do grilo. Eis o que vale: redescobrir na vigência do presente.

7.1.2 Resgatando Heráclito

A dinâmica do fogo concentra a dinâmica do mundo. Talvez por isso a equivalência de

ambos aos olhos de Heráclito:

O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez mas sempre foi, é e será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando. (Heráclito citado por CARNEIRO LEÃO, 1991, p.67).

São várias as questões apontadas por Heráclito. Buscar-se-á assinalar as idéias

fundamentais na compreensão da equivalência ambiguamente trágica entre mundo e fogo.

Os temas serão abordados respeitando a ordem mesma da exposição heraclitiana dos

argumentos para fins organizacionais e esclarecedores.

Primeiro: “o mundo, o mesmo em todos”. Não é difícil apreender o sentido que neste

trecho se instaura. Basta lembrar o mito dionisíaco. Não é Dioniso o deus que se transforma

continuamente, mas permanece o mesmo? Ainda adquirindo várias aparências, não

continua sendo um? Já se viu anteriormente, a partir do mito, como o deus se multiplica,

mas como na sua multiplicidade vige o uno. Da mesma forma que um contem muitos,

muitos são um. É esta percepção mítica que está em jogo ao se afirmar que o mundo é o

mesmo em todos. O mundo é múltiplo, mas tudo é mundo. A multiplicidade afirma não só

as diferenças, como também a identidade.

Outro aspecto que chama a atenção no fragmento do pensador é a não aceitação de

uma ordenação cronológica. Ao se negar a criação do mundo por parte de alguém (seja este

alguém deus ou homem), desconstrói-se a noção de que vigora a relação de causa e efeito

para tudo que existe. Ao se dizer que “o mundo [...] sempre foi, é e será”, reinaugura-se a

apreensão do tempo. O mundo, sendo “fogo sempre vivo”, é o próprio originário. Assim, é

ele quem funda tudo, inclusive a temporalidade, mesmo porque, para nós, não há como

estar fora do tempo... Somos seres temporais.

Por fim: “fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida

apagando”. Sabendo-se que a medida não vigora no fogo, mas sim no homem, estranha-se a

utilização deste vocábulo para expressar a dinâmica ígnea. Talvez o problema esteja na

tradução. Heidegger (1998), ao comentar esse fragmento de Heráclito, desenvolve essa

idéia, com base, claro, no original grego. A tradução mais adequada proposta pelo

filósofo16 seria “amplitude”. Mas o que entender por este vocábulo?

Visto ser o verbo o instaurador do movimento, cabe restituir o verbo de mesmo radical

que “amplitude” para se pensar o que vem a ser o substantivo. Pois bem: ampliar. Ampliar

remete a aumentar, a abrir. Sabendo-se que só está disposto à abertura o que também o está

para o fechamento, ampliar abarca tanto abrir como fechar.

A flor, por exemplo, quando está fechada, mostra-se como botão, exibe uma parte de

sua beleza enquanto oculta outra. Ao desabrochar, ela se abre em outra possibilidade de

aparição, ao mesmo tempo em que vela parte do que é. Assim como a flor, tudo que

participa do mundo, movimenta-se na dinâmica do ampliar, velando e desvelando

simultaneamente sempre. Amplitude, portanto, diz respeito ao grau de abertura e

fechamento do mundo, apontando não só para aquilo que aparece como também para o que

não se deixa ver.

Retomando o fragmento de Heráclito com o entendimento da medida como amplitude

nesta dimensão, percebe-se que acender é abrir, e apagar é fechar. Sendo o fogo que acende

e apaga conforme sua própria amplitude, e sendo o mundo “fogo sempre vivo”, faz-se

necessário adentrar um pouco mais a natureza do fogo. Tendo-se assinalado a dinâmica

ígnea, apontada pelo verbo ampliar, deve-se pensar o que faz do fogo um substantivo. Isto

é: cabe buscar sua substância, aquilo que permanece, que verdadeiramente o caracteriza.

Pela frase de Heráclito, sempre vivo é a expressão que qualifica o fogo. Mas o que o

faz sempre vivo é justamente a sua dinâmica de acender/abrir e apagar/fechar, que nunca

cessa. É, portanto, o movimento do ampliar que se perfaz desde sempre o essencial para a

16 Cabe destacar que também este livro se trata de uma tradução. Portanto, sob a perspectiva da tradutora, Márcia de Sá Cavalcante Schuback, o vocábulo que melhor corresponderia ao alemão usado por Heidegger seria “amplitude”. De qualquer modo, o que mais importa é o resgate das noções que dito vocábulo opera.

substância do fogo. A substância é o próprio movimento. Eis o mundo, “fogo sempre vivo”,

que se mostra e se oculta incansável e incessantemente.

O uso do substantivo (amplitude, na tradução proposta por Márcia Sá Cavalcante

Schuback) e não do verbo (ampliar, neste caso) se justifica pelo fato de o essencial do

verbo (a dinâmica que este inaugura) ser permanente. Poder-se-ia dizer, inclusive, que

verbo se faz substantivo e substantivo se faz verbo neste contexto.

7.1.3 Repensando o incêndio e as características essenciais do fogo

“O fogo, sobrevindo, há de distinguir e reunir todas as coisas”. (Heráclito citado por

CARNEIRO LEÃO, 1991, p. 75). Para se pensar esta afirmação de Heráclito, vale retomar

a imagem de um incêndio.

Ao se observar a repercussão de um incêndio, nota-se o todo e as partes. Não se deve

entender o todo, entretanto, como a mera soma das partes, esta falsa compreensão abafaria

o sentido do todo. Para se caminhar em direção à percepção do que vem a ser o todo de um

incêndio, torna-se necessário resgatar a noção essencial de que sempre há um velado que

não se mostra por inteiro.

Com relação às partes, também se pode afirmar que cada uma delas é um todo. A

partir da imagem de um incêndio, é possível dizer que cada labareda tem vida própria e

trilha seu próprio caminho. Uma labareda pode locomover-se, multiplicar-se ou

simplesmente extinguir-se, o que não quer dizer que o incêndio necessariamente aderirá ao

caminho percorrido por uma labareda, ainda que o fogo se faça (e realmente se faz)

plenamente presente em cada uma das labaredas incendiárias. O incêndio também aviará

sua própria via, seja locomovendo-se, multiplicando-se ou extinguindo-se.

É claro que há um momento, não se sabe qual, em que a extinção aparente é

inevitável. O fogo tem seu limite na aparência, que por natureza já é delimitada. Ao

extravasar seu vigor no visível, o fogo fatalmente está condenado às ruínas, às cinzas.

Conclui-se, pois, que o movimento de desencobrimento do fogo culmina necessariamente

no seu aniquilamento enquanto singularidade aparente e ao seu retorno ao coração da

natureza.

Relembrando a citação inicial do tópico presente: “O fogo, sobrevindo, há de

distinguir e reunir todas as coisas”. No incêndio, o fogo distingue cada labareda como

única, mas também as reúne enquanto o todo do incêndio, enquanto cinzas.

É do próprio vigor ígneo manifestado que emerge o potencial de destruição, até de si

mesmo. Saindo da esfera do descoberto, o fogo volta a encobrir-se. Assim como a fênix a

despontar renovada das cinzas, o fogo sempre renasce. Mas o renascimento visível do fogo

se dará sob determinadas condições. E a principal delas se institui com o calor. Não há

como negar que fogo e calor se irmanam.

O mundo, como “fogo sempre vivo”, é o mesmo a se mostrar em diversas aparências.

Considerar-se-á duas doações do mundo-fogo onde clama o calor: o sol e os vulcões.

Ambos podem aquecer e queimar, construir e destruir.

O sol, sendo-nos oferecido pelos céus, brinda-nos com o calor vital. Mas, se por um

lado, é pelo calor que emana do sol que se pode assegurar a vida dos mortais, por outro

lado, um aquecimento além dos limites tolerados pela aparência gera destruição. O ardor

vital pode se tornar ardor mortal.

Também é do sol que provém a luz do dia. O iluminar diurno distingue cada coisa,

reconhece cada um em sua singularidade. E o homem pode contemplar essa multiplicidade

de singularidades, além, é claro, de também poder se afirmar como único em sua

individualidade. À luz do sol, cada um ganha, digamos, seu próprio status. Ao se olhar

direta e insistentemente para a luz solar, porém, a visão humana não suporta a intensidade

luminosa e perde momentaneamente sua capacidade de enxergar, de distinguir cada coisa.

A luz, portanto, em sua relação com o humano, tanto pode clarear como cegar. O sol,

ao iluminar e ao obscurecer, ao aquecer e ao queimar (os primeiros distinguindo e os

últimos igualando), oferece vida e morte.

O erigir de um vulcão, doação da terra, também oferece vida e morte. A terra gera

vulcões, fecundando-os em seu ventre. As lavas brotam de suas entranhas, mas se

esparramam na superfície. Vida e morte. Afinal,

O fogo não apenas destrói a erva inútil, como enriquece a terra. Será preciso recordar os pensamentos virgilianos tão ativos ainda na alma de nossos lavradores? ‘Também é bom incendiar, de vez em quando, um campo estéril e entregar a palha superficial à chama crepitante... (Bachelard, 1999, p. 152).

Enfim, “tanto mais felicidade quanto mais vulcânico é o solo” (NIETZSCHE, 2003 a,

p. 285). A terra também precisa de calor vital para engendrar. Estando este calor excessivo

em suas próprias entranhas, transborda-se em fogo, que a realimenta, fecundando-a .

Sendo o fogo doação da terra e do céu, é o que tudo reúne, é onde tudo comunga. O

calor do céu lança seus raios para a terra, ao passo que o calor da terra emerge em direção

ao sol. O fogo é “sempre vivo”, é a indecisão entre a presença e a ausência, na medida em

que nem sempre se faz aparente, mas sempre incita o aparente, na medida em que é o motor

da própria dinâmica vital.

7.2 A produção do fogo: ambigüidades

Se no tópico anterior foram vistas as ambigüidades inerentes às manifestações naturais

do fogo, cabe ao presente item investigar como tais ambigüidades perpassam a busca do

homem pelo produzir do fogo.

O homem, amedrontado ante a força trágica da natureza e sendo criatura naturalmente

inquieta, buscando incessantemente ultrapassar seus próprios limites, não se contentou em

simplesmente contemplar as manifestações do fogo, mas quis ser capaz de produzi-lo

quando lhe aprouvesse.

Aceitar a supremacia do fogo natural certamente é algo terrivelmente assustador

dentro das limitações humanas. Considere-se, por exemplo, o incêndio de uma floresta por

um raio ou um vulcão em erupção. O que um simples mortal pode sob tais poderes se não

conhece minimamente a natureza do fogo? Fugir?

E foi assim que o homem se aventurou a adentrar a natureza do fogo, buscando

apreender como incitá-lo. Insistentemente, pelo movimento frenético de fricção entre dois

pedaços de madeira, produziu-se fogo. Intriga, contudo, a intuição certeira do homem na

insistência da fricção entre dois pedaços de madeira. Bachelard (1999) discute o surgir da

produção ígnea, reconhecendo na “fricção [...] uma experiência fortemente sexualizada”.

(BACHELARD, 1999, p. 37). Daí talvez a relação entre sexo e fogo que se difunde no

senso comum até os dias atuais.

De qualquer modo, partindo-se ou não da experiência mais primitiva do homem,

adentra-se a natureza do fogo. Com o movimento agitado das mãos friccionando as

madeiras, o calor interno dos corpos ganha força e emerge como fogo nas madeiras,

queimando-as, tornando-as cinzas. Aniquilação dos indivíduos, intensificação da vida.

Ambigüidade trágica.

Ilusão, no entanto, pensar que foi o homem quem o produziu. Tudo na natureza já está

dado de antemão ao homem, cabe-lhe ir descobrindo as capacidades latentes arraigadas no

real. Com o fogo não seria diferente. No entanto, ainda que o homem não seja sujeito17, é

ele o meio no/ pelo qual a natureza encontra estímulos para se manifestar enquanto fogo.

Ao acreditar produzir o fogo, o homem se sente menos inseguro, sente poder dominar

tal fúria da natureza. Outra grande ilusão. É claro que se aquecer próximo a uma fogueira é

uma experiência bem mais reconfortante e segura que estar próximo a um vulcão, por

exemplo. No entanto, nem mesmo o domínio do homem sobre o agir da fogueira poderá ser

total.

Reconhece-se que, diante de uma fogueira, o homem pode evitar o alastrar do fogo.

No entanto, ele jamais terá o poder de determinar a força de uma chama, o destino de uma

fagulha. A força da natureza sempre se mostra superior à mera força humana. Mas, é claro,

não é o homem apenas mais uma manifestação da natureza? Então, como querer sobrepor-

se a algo quando se está intrinsicamente inserido nesse algo?

Participando da produção do fogo, o homem não só se insere na dinâmica ígnea como

também se afirma como fogo. “Ao apreender o surgimento do fogo, o ser participa do fogo,

o próprio ser surge”. (BACHELARD, 1990, p. 9) “O fogo está em nós e fora de nós,

invisível e brilhante, espírito e fumaça”. (BACHELARD, 1999, p. 83).

17 De acordo com o caminho que vem sendo percorrido na presente monografia, não se deve pensar o homem como sujeito tampouco como objeto, mas em uma dimensão essencialmente ambígua.

É o calor, propriedade essencial do fogo, que dá vida aos homens. Animados pelo ser

do fogo, cada homem é chama. Chama que arde enquanto vigora o fogo. Chama que se

apaga. Chama que se desfaz em cinzas.

O mais curioso: “é, sem dúvida, um dos maiores milagres da Natureza que o Fogo

mais violento possa ser produzido num instante pela percussão dos corpos aparentemente

mais frios” (BACHELARD, 1999, p. 42). Será mesmo milagre ou o frio já comporta o

quente e vice-versa? Não estariam as oscilações do tempo a todo o momento a nos dizer

isso?

Não vive na terra simultaneamente a força do erigir de um vulcão e as correntes de

água? Não vive nas alturas o astro mais quente que às vezes se esconde para possibilitar a

doação do ar fresco, frio? Às vezes o sol não se doa junto à gélida chuva? Então, por que

separar frio e quente? Morte e vida? Tudo é um. O um que detém o poder, poder de

multiplicar as aparências, poder de devolvê-las às suas entranhas.

Toda vida é um hiperbólico processo de renovação, que só pelo lado da aparência tem um processo de aniquilamento. O precipitado da vida é um vivente- apto à vida- Como o calor se relaciona à chama- assim x à vida. Um dos fatores é um vivente (suscitável)- o outro vida (estímulo) (x é vida subalterna, que se encontra ainda sob o limite- ou melhor, efeito imperf [eito] da vida). O produto é vida. Ambos os fatores são relativos e mutáveis- Daí surge uma série de vida. Vida em geral atua em tudo. Só que aquilo que não alcança o limite se chama – morto- natureza morta. X é a suscitação e o suscitante da natureza morta. (NOVALIS, 2001, p. 152).

Compreende-se, pois, a morte como o que ainda não é, o que ainda não se manifestou

inteiramente, como o mistério de onde nascem vidas singulares. O vivente é, assim, o limite

da natureza morta. Assim como “o calor se relaciona à chama” como um modo de sê-la

temporariamente, o vivente, desde que é chamado à vida, já é chamado à morte, sendo a

vida a marca limitada do infinito.

Fatalmente o vivente retornará ao ventre mortal, renovando-se as aparências. Não é

exatamente isso que o fogo trágico vem nos mostrar?

7.3 O que os mitos têm a dizer sobre o fogo

São vários os deuses da mitologia grega que, de alguma maneira, relacionam-se com o

elemento fogo. Não se pretende recontar os mitos no presente tópico, mas apenas

apresentar alguns aspectos mitológicos que contribuem para a apreensão do fogo como

símbolo trágico. Para tanto, partir-se-á de algumas características inerentes aos deuses em

questão, além de determinadas ações empreendidas pelos mesmos. Vale iniciar dito

procedimento pelo considerado pai dos deuses: Zeus.

Foram os Ciclopes que “deram a Zeus o raio e o trovão” (BRANDÃO, 2000, p. 495).

Assim, o senhor do universo passa a deter um poderoso instrumento de combate: um feixe

condensado de fogo. “Astrapaîos (o que lança raios)” e “brontaîos (o que troveja)”

(BRANDÃO, 2000, p.493) são alguns dos epítetos pelos quais o deus é conhecido, o que

reforça a característica essencial do deus: o de portador do fogo celeste.

Sendo senhor dos raios, Zeus lança, quando julga necessário, o fogo dos céus, dotado

de intensa luz e calor, em direção a terra. Geralmente se relaciona o raio do deus à sua

cólera. O raio castigaria, puniria, com o fim de pôr ordem, de fazer justiça. Mas o raio se

compõe por relâmpago e trovão.

Talvez a ordenação imposta por Zeus a partir do raio se aclare mais pela aproximação

ao relampejar. Afinal, no relâmpago vigora a luz, o iluminar. Daí a possibilidade de Zeus

configurar a feitura da justiça através da iluminação, ou seja, da inteligência, da verdade.

Esta concepção de Zeus se fortalece inclusive quando os estóicos passam a vê-lo como

único. À denominação de Deus se unem outras como Fogo, Razão e Alma do mundo.

(apud BRANDÃO, 2000, p. 500).

Zeus, representando o fogo celeste, é ambiguamente aclarador e destruidor (ninguém

duvida do seu potencial de destruição). E é justamente esta dinâmica que converge o poder

de criação do deus. Sabe-se que da união de Zeus com várias mortais e imortais se

originaram muitos outros deuses. Sabendo-se que as estórias míticas em torno de um deus

manifestam o que ele simboliza, Zeus pode ser considerado como a força da própria

criação. Mas não é a sua apresentação em todo o esplendor que devasta? (haja vista, por

exemplo, a sua aparição a Sêmele no mito dionisíaco). Portanto, o que detém o fogo

celeste, o pai, sendo o originário, só cria porque também destrói. Mais uma vez a

ambigüidade do fogo.

O raio, provindo dos céus, atinge a terra, mas não pertence ao domínio dos humanos.

Os homens podem vê-lo, sentir seus efeitos, somente. O fogo de Zeus ainda é uma potência

unicamente divina, ainda que se mostre aos olhos dos homens sob a forma de raio.

Além de deter luz e calor, a que mais o raio pode remeter? Por partir dos céus e

alcançar a terra, o raio reúne as duas esferas: a celeste e a terrestre, portanto, deuses e

homens, infinito e finito, invisível e visível.

Heráclito diz: “O raio conduz, porém, o ente em sua totalidade” (HEIDEGGER, 1998,

p.173). Pensando com Heráclito, então, o fogo, enquanto raio, conduziria, apontaria um

caminho, uma direção, permitindo ao ente se encontrar em sua totalidade. Mas o que seria a

totalidade do ente? Certamente a dimensão meramente humana não daria conta desta

totalidade. A plenitude se perfaz no raio, que converge tudo, todo o terrestre pode ser

tocado pelo fogo celeste.

Há uma vertente mítica não muito difundida que vê em Hermes o inventor do fogo

(apud DETIENNE; SISSA, 1990, p.275). Vale assinalar este encaminhamento por sinalizar

várias questões dignas de nota e dialogar diretamente com o último fragmento de Heráclito

aqui transcrito.

De acordo com essa versão, Hermes descobriu o fogo pela fricção de dois pedaços de

madeira. Ainda que o movimento operado pelo deus para a produção do fogo nos seja

previsível atualmente, o fato de ter sido Hermes, e não qualquer outro deus, a colocá-lo em

prática é algo que chama a atenção, obrigando-nos a questionar: por que é justamente

Hermes quem opera na produção do fogo? Qual a diferença entre o fogo inaugurado por

Hermes e o fogo do raio de Zeus?

Como já foi visto anteriormente, o fogo que advinha na forma de raio era de domínio

exclusivo de Zeus. O único que podia fazer uso deste fogo como lhe aprouvesse era o

próprio deus. Sendo Zeus a morada do fogo celeste, este se perpetuava no Olimpo, e os

homens não tinham como alcançá-lo. Na verdade, os humanos só participavam deste fogo

na medida em que o deus o decidisse.

Com a descoberta de um movimento capaz de produzir fogo a partir de objetos

encontrados na terra, o fogo se aproxima muito mais dos seres humanos. O friccionar de

dois pedaços de madeira foi inaugurado mitologicamente por um deus, mas é uma prática

acessível a qualquer homem. Assim, o fogo, que anteriormente pertencia ao domínio de um

único deus e tinha sua origem unicamente nos céus, passa a poder nascer e se difundir na

terra.

As características essenciais de Hermes, aliadas a atitude do deus que culmina na

descoberta do fogo, são dados que enfatizam ainda mais a dinâmica do fogo enquanto raio.

Não é Hermes o elo entre deuses e homens? Não é ele o grande intérprete que tem

especialmente a esperteza como força? Hermes não tem morada fixa, está sempre nos

caminhos, sempre a conduzir. Mas o raio também não conduz? Eis a ligação entre Hermes

e o raio: ambos conduzem.

“Para servir de mensageiro ao deus do céu, quem poderia ser mais indicado do que

Hermes, que voa com a rapidez de um raio e aparece misteriosamente em todas as partes?”

(FRIEDRICH OTTO, 2005, p.111). Enfim, Hermes opera tal qual o raio: une céu e terra,

imortais e mortais. Ambos, o deus e o raio, interferem, em maior ou menor grau, no

caminho dos homens.

A principal diferença entre o fogo produzido por Hermes e o fogo celeste de Zeus

reside em sua relação com o humano em virtude da própria natureza dos deuses. Zeus é pai

de Hermes, é pai dos deuses e dos homens. Governa o universo, impera. Hermes abre

caminhos, oportunidades, é “o mais amigo dos homens dentre todos os divinos”.

(FRIEDRICH OTTO, 2005, p.92).

Dada a nossa condição, Hermes nos toca mais profundamente ao reinaugurar o sentido

do fogo: o raio. Tudo é reunido na vigência do raio. O próprio Hermes configura esta

reunião, reiterando-a quando promove a visibilidade do fogo.

Convém ainda acrescentar às figuras míticas aqui apresentadas outro deus de suma

importância na discussão acerca do fogo: Prometeu.

Prometeu se assemelha em vários aspectos a Hermes, dentre os quais vale destacar sua

sagacidade e sua tendência a se tornar próximo aos humanos, a ponto de ser considerado o

benfeitor da humanidade. O que cabe destacar do mito prometéico é o roubo de uma

centelha, do fogo celeste para dá-lo aos homens:

Como quem não quer nada, sobe ao céu, como um viajante que passeia, com uma planta na mão: um galho de funcho, bem verde por fora. O funcho tem uma disposição particular e, de certa forma, sua estrutura é o contrário das outras árvores. Estas são secas por fora, do lado da casa, e úmidas por dentro, onde circula a seiva. Inversamente, o funcho é úmido e verde por fora, mas totalmente seco por dentro. Prometeu apanha uma semente do fogo de Zeus [...] e a enfia no funcho. Este começa a queimar por dentro ao longo de todo o caule. Prometeu volta para a terra, sempre como um viajante desinteressado que passeia à sombra do funcho. Mas dentro da planta o fogo arde. Prometeu dá aos homens esse fogo tirado de uma semente do fogo celeste. Então, eles acendem a fogueira e cozinham a carne. (VERNANT, 2000, p.65-66).

Mesmo sabendo de antemão sobre o alto preço a pagar (o que já se evidencia no

próprio nome do deus: “prometeu” remete àquele que vê antes), Prometeu vai atrás do fogo

celeste para doar uma parte deste aos homens. Assim, o deus acende a inteligência neles,

dignificando a existência humana.

Parece, entretanto, que o fogo roubado por Prometeu

já não é mais o de antes. O fogo que Zeus escondeu é o fogo celeste, esse que ele tem permanentemente na mão, é um fogo que nunca enfraquece, que nunca se apaga: o fogo imortal. O fogo de que os homens dispõe, a partir dessa semente de fogo, é um fogo que “nasceu”, pois saiu de uma semente, e por conseguinte é um fogo que morre. (VERNANT, 2000, p.67)

A questão que se apresenta, porém, talvez não afirme verdadeiramente a divergência

entre as naturezas ígneas. O fogo é essencialmente o mesmo. Como o homem só é capaz de

apreender o que emerge na visibilidade, visto também atuar e ser no limite que vige na

aparência, ele toma o apagar do fogo como sinônimo de morte. Cabe, entretanto, atentar

para o sentido de morte, para o que seria morte do fogo. Haja vista a equivalência entre o

apagar e o encobrir-se, a morte passa a ser tão somente aquilo que se oculta, que não se

deixa antever.

Portanto, o fogo de Hermes e de Prometeu é o mesmo de Zeus sim, diferindo-se os

dois primeiros do último apenas por serem acessíveis aos homens. O raio de Zeus só

adquire sentido para a humanidade a partir do roubo prometéico18. A reunião do raio só se

efetiva e se faz sentir no sangue dos homens com o fogo de Hermes e Prometeu.

Na vigência do “fogo sempre vivo”, essencialmente visível e invisível, vigora o

trágico. Zeus é raio, Hermes e Prometeu o conduzem (cada um à sua maneira) aos homens.

O sangue humano é tocado pelo fogo.

18 Faço menção aqui apenas à versão prometéica do mito em virtude de sua maior difusão.

8 O FOGO TRÁGICO NO SANGUE

Ao caminho trilhado até aqui se une agora a interpretação de uma obra de García

Lorca: Bodas de sangue. Sendo um poeta que reinaugura o trágico (especialmente em sua

trilogia teatral: Yerma, La casa de Bernarda Alba e Bodas de sangre), Lorca retoma e

reinventa simultaneamente o emergir do mundo trágico grego.

Tendo-se já adentrado este mundo na presente dissertação, a partir de uma abordagem

que buscou aliar o mítico e o poético ao pensamento, Bodas de sangue vem aprofundar

ainda mais as questões apresentadas e reafirmar a dimensão essencialmente trágica inerente

à condição humana.

A obra é riquíssima em detalhes, são muitos os elementos que fazem despontar sua

tragicidade. Focar-se-á, no entanto, os elementos que apontam para uma convergência entre

o sangue e o fogo, além, é claro, de dados primordiais para a interpretação da obra. No

mundo poético de Bodas de Sangue, as forças da natureza se sobressaem, atuando em todo

o seu vigor. Tal caráter já se deixa antever no próprio título do texto. Por que Bodas de

sangue?

“O sangue simboliza todos os valores solidários do fogo, do calor e da vida, que têm

parentesco com o sol”. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p.584). Primeiro convém

investigar a relação indicada entre sangue e fogo. Se “o sangue simboliza todos os valores

solidários do fogo”, reside na doação ígnea o símbolo do sangue. Sendo solidário, o fogo se

doa, seja como luz, seja como treva, acendendo ou apagando, construindo ou destruindo,

animando ou desanimando. Sendo símbolo o que reúne, está o sangue a reunir as

ambigüidades do fogo. Mas “o sangue é universalmente considerado como o veículo da

vida”. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p.584).

Assim, sendo o “veículo da vida”, o sangue é o meio pelo qual se confere vida aos

seres. Pelo senso comum, parece um paradoxo: como o sangue pode dar vida se nele estão

unidas as ambigüidades trágicas do fogo? A questão é que é justamente por reunir o trágico

do fogo que o sangue media a vida. Faz-se necessário, portanto, repensar a noção de vida.

Para isso, vale retomar a etimologia e, conseqüentemente, a evolução histórica deste

vocábulo.

Vida provém da palavra latina vita. “Na sua linguagem cotidiana, os gregos tinham

duas palavras da mesma raiz que vita, mas com formas fonéticas muito diferentes: bíos e

zoé”. (KERÉNYI, 2002, p. XVII). Cabe retomar a distinção entre ambos os vocábulos

apontada pelo autor:

O significado de zoé é vida em geral, sem caracterização ulterior. Quando a palavra bíos é pronunciada, outra coisa ressoa; ela toca os contornos, por assim dizer, os traços característicos de uma vida específica, as linhas de fronteira que distinguem um vivente do outro. (KERÉNYI, 2002, p. XVIII).

Nesta dimensão, o sangue, sendo “veículo da vida”, conduz zoé para bíos. Zoé, vida

ilimitada e infinita, é transportada no sangue. No limite dos corpos, zoé passa a ser bíos,

animando individualidades. Extravasados os contornos corporais, o sangue mais uma vez se

verte em zoé. Zoé nunca morre, não cessa, não se apaga, como fogo originário. Sendo o

sangue o condutor de zoé para a criação de singularidade, é no sangue que vigora o raio do

fogo.

“O raio conduz, porém, o ente em sua totalidade”. (HEIDEGGER, 1998, p. 173). O

raio é o fogo de luz que “perpassa iluminando [...] o todo” (HEIDEGGER, 1998, p. 173).

Na repercussão do fogo enquanto raio, reúne-se tudo, culminando no aparecimento da

junção própria do mundo. Junção, como já anunciada anteriormente, de céu e terra, imortais

e mortais.

Tal junção se efetiva mais sensivelmente para os humanos no sangue, que se faz raio

de fogo. No conduzir zoé para bíos e devolver bíos a zoé, o sangue simboliza o essencial

trágico do raio. O sangue chama o homem à vida, torna-o chama. Animado com o fogo

vital, o homem se distingue, torna-se único. Mas sabe-se que o ser humano, sendo chama, é

chamado à morte já no mesmo instante em que é chamado à vida. Bíos surge de zoé e a ela

retorna. O raio ilumina, anima, mas também destrói.

Sabendo-se que a natureza nunca se mostra inteiramente, que ela sempre pressupõe

um movimento de velar-se e desvelar-se, ela aflora dentro dos limites dos entes e das

coisas. No entanto, é quando esses perdem seu caráter singular que a natureza os retoma

inteiramente para si. Aí residiria, então, a tragicidade do homem: ele tem a sua

individualidade aniquilada para integrar-se à dinâmica natural do destino. Assim sendo, o

vigor do trágico aponta para aquilo que põe o homem em movimento, não em vista de si

mesmo, mas apenas como meio, meio para o pleno emergir da natureza. Portanto, o trágico

consiste na dinâmica da própria vida enquanto zoé.

A plenitude da vida, entretanto, só pode ser sentida pelos homens em seu sangue,

elemento que dá e tira a tonicidade vital humana. Emerge-se o pensamento nos homens a

partir do raio do sangue, instaura-se o trágico. Vale lembrar a relação entre pensar e saber

trágico feita anteriormente, e também a necessidade de designar o homem trágico para ser o

professor dos homens. A afirmação de tudo o que é vida por parte deste se refere à

dinâmica de zoé.

O indivíduo, singularmente limitado, não é só sustentado pelo ilimitado, como

também se dirige inevitavelmente em direção a este, condição essencialmente trágica. E é

justamente o manifestar do sangue enquanto raio que possibilita o emergir da natureza em

todo o seu vigor, ou seja, que permite despontar o ilimitado. Limite e não limite se

encontram, pois, no limiar da existência humana, no trágico.

8.1 As bodas de sangue

O título da obra de García Lorca anuncia que as bodas são de sangue, já concentrando

toda a ambigüidade trágica que se desenvolve no texto. Gostaria de ressaltar quatro

possibilidades de uso da preposição de com o intuito de adentrar mais os sentidos que se

configuram a partir da expressão bodas de sangue.

Primeiro: a preposição de pode ser usada para indicar procedência, origem. Uma

pessoa procede, vem de algum lugar. Ao querermos saber a nacionalidade de alguém,

perguntamos: De onde é? A preposição atua, portanto, como elo entre algo e a origem desse

algo.

Mas pensemos nas seguintes possibilidades de emprego da preposição de: “O caderno

de Mário está novo”, “O livro de minha avó é ótimo”. A primeira frase não deixa margem a

dúvidas: o caderno pertence a Mário. Com relação à segunda frase, entretanto, o uso

coloquial permite duas interpretações: o livro pode pertencer à minha avó sim, mas também

pode ter sido escrito por ela. Percebe-se, assim, que de pode conectar um objeto não só ao

seu possuidor, como também ao seu, digamos, criador. No primeiro caso, a preposição

assinala uma relação de posse; no segundo, conecta o objeto (o livro) àquele que o escreveu

(o autor). Escrever um livro consiste claramente em uma ação, portanto, aquele que

escreve, faz a ação, age, é o agente.

Outra possibilidade de emprego da preposição de é formar uma locução adjetiva,

qualificando o substantivo. Tal emprego pode ser observado, por exemplo, na expressão de

veludo no seguinte contexto: Ele tem uma pele de veludo.

Tentemos agora transpor essas noções às bodas de sangue, na tentativa de se adentrar

mais as questões que já se deixam antever nesta estrutura. Caminhando de trás para frente,

comecemos pelo último sentido apontado, segundo o qual a preposição constitui uma

locução adjetiva.

Pois bem: ao se entender as bodas de sangue como as bodas sangüíneas ou

sanguinolentas, remete-se em uma primeira instância para a visibilidade do sangue: as

bodas realmente são sanguinolentas, pois culminam no derramamento sangüíneo.

Retomando-se, no entanto, os sentidos que comungam o agente e/ou o possuidor ao

objeto, é possível afirmar: primeiro que é o sangue quem possui as bodas, segundo que é o

sangue quem age sobre as bodas. As duas interpretações estão interligadas. Por mais que

tais constatações soem estranhas a princípio, o uso comum e corriqueiro da preposição no

contexto tratado contribui para um melhor entendimento.

Ao se possuir um objeto, detém-se o controle sobre este, usa-o quando e como bem se

entender. A ação não depende, portanto, do objeto, mas sim daquele que está conectado à

preposição. As bodas, sendo possuídas pelo sangue, configuram-se a partir das ações do

fogo do sangue.

A primeira interpretação apontada anteriormente para o uso da preposição de assinalou

a noção de origem. Mais uma vez a questão se converge: as bodas se originam no sangue, o

qual, as possui, portanto, age e atua sobre elas. Na verdade, a ação operada pelo sangue é o

próprio originar das bodas. Eis o porquê de as bodas serem sanguinolentas.

Com o arrebatamento ígneo do sangue, originam-se as bodas sangüíneas. Tudo aflui.

O presente tópico se fecha, a questão permanece aberta em todo o tecer do texto.

8.2 O nome

Com relação às designações dos personagens, cabe enfatizar que o único a possuir

nome próprio em toda a obra é Leonardo. Os demais aparecem como representantes de uma

determinada função: a mãe, a noiva, o noivo, a mulher de Leonardo, e assim por diante19.

Leonardo, portanto, é o único que ganha contornos de indivíduo, de único. Esse dado nos

faz relacioná-lo, de certa maneira, ao herói trágico: ambos têm aniquilada a sua

individualidade em vida por lutar inteiramente até o fim, lançando-se na imortalidade do

nome com a morte.

Padecendo pelo sangue, Leonardo faz jus ao nome. Leonardo deriva de león, que

remete, sem dúvida alguma, à noção de soberano. Afinal, o animal leão, sendo o rei dos

animais, “é a própria encarnação do Poder, da Sabedoria, da Justiça”. (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 1982, p. 401). Ainda assim, Leonardo morre, o seu fogo transpõe os

limites corporais e se faz fogo-fátuo.

A abertura oferecida pelo título da obra de García Lorca (movimento iniciado no

tópico anterior) possibilitou que se adentrasse o mundo poético-trágico das bodas de

sangue. Buscar-se-á prosseguir a trilhar o caminho que se abriu respeitando agora a

seqüência de apresentação dos quadros na obra. Tal procedimento não reflete, em hipótese

alguma, uma postura rígida e única, mas tão somente se justifica por possibilitar uma

melhor organização na exposição e no desenvolvimento das idéias.

19 No que diz respeito aos personagens simbólicos, como a lua no terceiro ato, estes serão analisados mais adiante.

8.3 Primeiro quadro – despontar de toda a trama

A peça se abre com o diálogo entre o noivo e a mãe. Nas primeiras falas, pode parecer

que se trata apenas de uma conversa prosaica entre mãe e filho, este avisando que vai à

vinha e que lá comerá uvas. O fato de ir à vinha, no entanto, e não a nenhum outro lugar, é

algo que chama a atenção, que já une, de certa maneira, o mundo poético de Bodas de

sangue à embriaguez dionisíaca. Afinal, não é Dioniso o deus que ainda criança espreme o

líquido das uvas e, assim, descobre o vinho?

Mito e poesia interagem no tecer do texto já desde as primeiras palavras. Remonta-se,

portanto, aos primórdios da tragédia, considerando que esta tenha se originado dos

ditirambos entoados em honra a Dioniso. Mas a conexão entre o mundo grego e o mundo

apresentado na obra de García Lorca não pára por aí, vários são os elementos do mundo

grego reinaugurados em Bodas de sangue. Sabendo-se que características essenciais do

mundo grego emergem nas tragédias clássicas e que a tragédia moderna lorquiana as

retoma, direta ou indiretamente, sabe-se também que uma nova possibilidade de

pensamento se instaura.

O suposto diálogo prosaico entre mãe e filho no início da obra já se encarrega de

introduzir vários elementos essencialmente gregos. O primeiro já se solidifica pelo elo que

se estabelece com o deus Dioniso a partir da vinha, mais especificamente, da menção às

uvas que serão cortadas por uma navalha com o intuito de servirem como alimento para o

noivo. Repito: as uvas serão cortadas por uma navalha. A navalha se apresenta, pois, como

o agente do cortar. Esta dimensão do agir da navalha nos remete necessariamente a um

mundo sobrenatural no sentido de que há forças atuantes que se fazem invisíveis aos olhos

dos homens. No terceiro ato este mundo se explicita na obra com o aparecimento de vários

outros símbolos, o que será visto mais adiante.

O pedido do noivo à mãe para que ela lhe dê a navalha a fim de que possa cortar as

uvas já deixa antever a tragédia, principalmente com a tensão que irrompe da insistência

obssessiva materna com relação a “todo lo que puede cortar el cuerpo de un hombre”.

(GARCÍA LORCA, 1996, p. 94). Também, pudera: a mãe teve os laços cortados. Primeiro,

o marido; depois, um filho. Só lhe resta o filho que está noivo.

Para a mãe, a navalha é uma serpente: “No sé cómo te atreves a llevar uma navaja em

tu cuerpo, ni cómo yo dejo a la serpiente dentro del arcón”20. (GARCÍA LORCA, 1996,

p.94).

Pelo critério da visibilidade, ao se comparar o homem com a serpente, as diferenças

são tamanhas. O homem se põe de pé, atua na vertical; a serpente age na horizontal. Tal

distinção faz com que os homens olhem as serpentes de cima para baixo, mas possibilita

que estas ganhem mais velocidade, que se misturem mais facilmente com a terra, a mãe de

toda a natureza. O bote se perfaz na indiferença do todo, no obscuro; o ataque é certeiro.

A navalha é a serpente que, guardada, prepara-se para abocanhar sua vítima. Mais uma

vez a conexão com o mito dionisíaco, basta recordar o uso de serpentes como adorno pelas

bacantes, seguidoras fiéis de Dioniso, e a vertente mítica que aponta a transformação de

Zeus em uma serpente para enganar a filha Perséfone e seduzi-la, gerando aí o deus

Dioniso.

A presentificação da serpente no mito e nos ritos se atualiza em Bodas de sangue com

a navalha, que introduz, por sua vez, a noção do sacrifício ritualístico na obra. “ ¿Y es justo

20 “Não sei como você se atreve a levar uma navalha no corpo, nem sei como ainda deixo essa serpente dentro do baú.”(GARCÍA LORCA, 1977, p. 13).

y puede ser que cosa pequeña como una pistola o una navaja pueda acabar con un hombre,

que es un toro?”21

A navalha, transpassando a pele, faz derramar o sangue, podendo apagar o fogo vital

de “um homem, que é um touro”. Eis outra menção à aliança da obra com o dionisíaco. Já

foi visto anteriormente que era muito comum o sacrifício de grandes animais, como o bode

ou até mesmo o touro, em honra ao deus Dioniso. Portanto, uma das possibilidades de se

vigorar e celebrar a embriaguez dionisíaca residia no sacrifício de um touro.

Em Bodas de Sangue, ao se dizer que a navalha pode dar “cabo de um homem, que é

um touro”, ressalta-se o teor sacrificial do rito, indicando-se o que deve ocorrer. Na

verdade, García Lorca apresenta muitos elementos que funcionam como indícios do que

acontecerá. Tal perspectiva só reforça o caráter trágico essencialmente grego, onde o que

prevalece não é o que se conta, mas como se conta. Basta mencionar as tragédias gregas

que se baseavam em mitos conhecidos e nem por isso deixavam de suscitar o terror e a

piedade, nem de operar a catarse.

O sentido do oferecimento do touro nos ritos se perfaz principalmente pela força do

animal. Consagra-se ao deus um animal de grande impetuosidade. Sendo símbolo “do

espírito macho e combativo das forças elementares do sangue” (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 1982, p. 650) (grifo do autor), o touro é vencido e vencedor no ritual, é o

que morre para o deus, mas também o que é páreo para ele.

Vale destacar ainda que “o simbolismo do touro está igualmente ligado ao da [...] Lua”

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 651). Ver-se-á que a lua é quem traz a morte no

21 E é justo, e é possível que uma coisa pequena como uma pistola ou uma navalha dê cabo de um homem, que é um touro? (GARCÍA LORCA, 1975, p. 74).

terceiro ato. Portanto, à imagem de “um homem, que é um touro” se atrela a simbologia

lunar, brilho de fatalidade.

Em vários momentos da peça se faz referência aos personagens a partir de imagens

florais, o que reforça ainda mais a interferência da lua na vida dos seres, ou seja, o elo que

se ata entre, digamos, os homens touros e a lua. Afinal, acreditava-se na lua como a

divindade a presidir a vida:

Que la luna preside los ritmos de la vegetación puede seguir siendo uma experiencia actual a través de la percepción del régimen de lluvias y mareas. Mas para la mente arcaica estas son experiencias religiosas: la religión luna-vegetación-aguas es percibida como mágica y misteriosa, como obra de la suprema potencia de la divinidad lunar. Si la fecundidad animal y humana dependía de la luna, la fertilidad vegetal depende igualmente de ella... (GARCÍA LORCA, 1996, p. 71-72).

Detendo o poder de fecundar, de dar à luz uma chama, a lua se apodera das vidas,

podendo sugá-las novamente a qualquer momento, o que se evidencia em Bodas de Sangue

nas cenas que se desenrolam no bosque.

A mãe, ao relacionar o homem ao touro no contexto que se desenvolve, antecipa

inclusive os que serão passíveis de morte na tragédia. Os alvos do sacrifício são dois. As

imagens vão sendo construídas sem dar espaço a dúvidas.

Primeiro, é a própria mãe quem introduz a noção de casta já no primeiro quadro. A

valorização da linhagem e a distinção pela casta é algo que realmente vai se consolidando

no decorrer da obra.

Desde o início parece que a mãe pressente o que vai ocorrer, que está ciente de sua

sina. Ela não só implica com o fato de o filho sair levando consigo uma navalha e chora a

tragédia que arruinou os seus, como também declara sentir uma “pedrada na testa” ao se

referir à noiva. Um pouco mais adiante, uma vizinha, ao visitá-la, a informa de que a mãe

da noiva não amava ao marido. Eis o primeiro alvo do sacrifício apontado, justamente no

resgate de noções que permeiam a sina dos homens.

Por outro lado, Leonardo é o único digno de nome em toda a obra, e um nome cujo

sentido remete a leão, um animal selvagem, feroz. Sendo o personagem de maior relevo,

distinguindo-se dos demais, começando pela singularidade do nome, é o único que veste a

roupagem do herói trágico. Eis o segundo alvo do sacrifício apontado.

Outro indício da tragédia na fala da mãe se dá com a repetição do número três. Ela diz:

“Tres años. ¿Ella tuvo un novio, no?”22 (GARCÍA LORCA, 1996, p. 96); “Le compras

unas medias caladas, y para ti dos trajes... ¡Tres! ¡No te tengo más que a ti!”23 (GARCÍA

LORCA, 1996, p. 97).

Primeiro, a constatação dos três anos de relacionamento entre noivo e noiva seguida da

pergunta se ela não teve outro noivo anteriormente. Depois, a sugestão materna ao filho

para que compre três roupas, seguida da afirmação que só tem a ele. A ordem das

observações maternas soam fatídicas: não só se arma o triângulo amoroso como também se

foca a condição única do noivo enquanto filho no presente momento.

Após a partida do filho, uma vizinha chega e a mãe descobre na conversa que o ex-

noivo da noiva de seu filho é Leonardo, filho dos Félix, família com a qual trava uma

relação de ódio. Outro indício do trágico. A rivalidade entre as duas famílias parece

prosseguir. Leonardo e o noivo estão aí para dar continuidade e testemunho a este embate

trágico de gerações.

O texto está repleto de ambigüidades. Um dos exemplos é a declaração da mãe de que

sente que o filho vai embora. Para ela, a partida se dá porque ele se casa, mas a tragicidade

22 Três anos. Ela teve um noivo, não? (GARCÍA LORCA, 1975, p. 75). 23 ... lhe compras umas meias rendadas, e para ti duas roupas... Três! Não tenho senão a ti! (GARCÍA LORCA, 1975, p. 76).

que vem sendo tecida na obra faz despontar outro sentido: a partida mortal. E

ambiguamente se embalam muitas outras frases... novos sentidos vão sendo desvelados...

O que importa é perceber que a trama, mesmo sendo praticamente toda entregue já no

primeiro quadro a partir de muitos indícios, ganha força trágica na poesia sempre reinante

de Bodas de sangue. O fogo trágico, como dito, jamais se apaga.

8.4 O trágico em tudo – enfoque no coro dionisíaco e no cavalo indissociável

Se no primeiro quadro de Bodas de Sangue se focou a realidade da mãe e do noivo, o

segundo quadro nos apresenta outro ambiente, na verdade, o ambiente antagônico ao

primeiro: a casa e a família de Leonardo. Digo que os dois ambientes se opõem em virtude

da inimizade e do ódio existente entre as duas famílias, que se perpetua em um duelo

sucessivo entre as gerações.

A cena se inicia com uma canção de ninar para o filho de Leonardo. Mais uma vez se

abre um quadro com a aparência de algo ingenuamente cotidiano. Mas, como no quadro

anterior, é na simplicidade do comum, do corriqueiro, que a obra faz emergir o

extraordinário, ressaltando ainda mais elementos que pressagiam o que ocorrerá e

assinalando insistentemente o trágico que se vislumbra no sangue, nas bodas de sangue.

O primeiro sinal de tragicidade do segundo quadro emerge da própria canção de ninar

que se apresenta no texto, a qual soa extremamente rara. García Lorca inventou a canção

que aparece na obra a partir de uma versão muito popular existente em Granada, que ele

cita no seu ensaio Las nanas infantiles. Segundo o próprio autor, a versão primeira dizia o

seguinte: “A la nana, nana nana a la nanita de aquel que llevó el caballo al agua y lo dejó

sin beber...”(GARCÍA LORCA, 1996, p. 72). Tamanha diferença se postula ao dizer:

SUEGRA Nana, niño, nana Del caballo grande Que no quiso el agua. El agua era negra Dentro de las ramas. Cuando llega al puente Se detiene y canta. ¿Quién dirá, mi niño, lo que tiene el agua, con su larga cola por su verde sala? [...] Duérmete, rosal, Que el caballo se pone a llorar. Las patas heridas, Las crines heladas, Dentro de los ojos Un puñal de plata. Bajaban al río. ¡Ay, cómo bajaban! La sangre corría Más fuerte que el agua.24 (GARCÍA LORCA, 1996, p. 100-101).

24 SOGRA Nana, meu menino, do cavalo grande que não quis a água. A água era negra Por dentro das ramas. Quando chega à ponte, se detém e canta Quem dirá, menino, O que tem a água, Com tão longa cauda, Em tão verde sala? [...] Dorme, meu rosal, Que o cavalo se põe a chorar. As patas, feridas, As crinas, geladas, E dentro dos olhos Um punhal de prata. Entravam no rio, Ai, ai, como entravam! O sangue corria Mais forte do que a água. (GARCÍA LORCA, 1975, p. 78-79).

O segundo verso da canção já relaciona Leonardo ao cavalo. Afinal, canta-se para o

filho dele dormir, o qual é nomeado “menino do cavalo grande” (haja vista a possibilidade

de a preposição de assinalar a origem, a procedência).

As demais imagens que se tecem na canção de ninar fortalecem o teor trágico dos

eventos (vale ressaltar o punhal de prata e o sangue), que fica ainda mais acentuado por se

contrapor ao tom aparentemente inocente que se deixa antever no mundo infantil. Quanto

maior o contraste, maior a distinção, maior o destaque.

E a entrada de Leonardo imediatamente após o entoar trágico para embalar o menino

só reafirma o que desde o início estava assinalado: eis o “cavalo grande que não quis a

água”, que tem “as patas, feridas, as crinas, geladas, e dentro dos olhos um punhal de prata

[...] o sangue corria mais forte do que a água”.

Esta oposição que se estabelece entre o sangue e a água se explica mais nitidamente

pela compreensão do fogo enquanto sangue vital. A noiva, mais adiante, em seu embate

com a mãe do noivo, retoma as mesmas imagens que aparecem nessa canção de ninar para

justificar a sua fuga com Leonardo, afirmando ser ele o fogo que a consumia, ao passo que

o noivo mesmo era apenas “um pouquinho de água”. (GARCÍA LORCA, 1975, p. 122).

A relação entre o cavalo e Leonardo fica ainda mais nítida com o diálogo que se

estabelece entre ele e a mulher após sua chegada, quando se insere a discussão acerca do

cavalo mesmo no qual Leonardo monta. Segundo ela, vizinhas o viram no cavalo nos

limites das terras; ela mesma, tendo notado o suor excessivo do animal, parece acreditar no

que lhe foi dito. Ele nega, ainda que os fatos o desmintam e mostrem o contrário.

De qualquer modo, a associação entre Leonardo e o cavalo está feita. Ele sai

novamente, as duas mulheres (a sogra e a esposa) fecham o quadro tal qual foi iniciado:

com a mesma canção de ninar em que a figura do cavalo predomina tragicamente.

Tendo-se acompanhado a exposição dos acontecimentos, convém chamar a atenção

agora para dois aspectos essenciais deste segundo quadro que aprofundam o aflorar do

trágico. Sabendo-se que a canção de ninar abre e fecha a cena (o que certamente não é em

vão), vale repensá-la.

Sendo entoada pelas duas mulheres, ora por uma, ora por outra, a canção não só traz a

marca da musicalidade, como também potencializa o trágico, reafirmando e reforçando os

símbolos trágicos apontados no primeiro quadro a partir principalmente da apresentação de

outro símbolo: o cavalo. Eis os dois aspectos essenciais anteriormente citados: a

musicalidade e o cavalo.

Pensando-se em termos de tragédia, a musicalidade remete ao coro. Mas será que uma

simples canção (que de simples, aliás, não tem nada) para embalar o sono de uma criança

pode assumir a proporção de coro trágico? Para responder a esta questão, cabe primeiro

relembrar a perspectiva que adotamos no entendimento acerca do coro.

O coro trágico é visto como “a mais alta expressão da natureza” que “profere [...]

sentenças de oráculo e de sabedoria; como compadecente ele é ao mesmo tempo o sábio

que, do coração do mundo, enuncia a verdade”. (NIETZSCHE, 2003 b, p. 61) (grifo do

autor).

Tendo-se percebido o aflorar do trágico na canção de ninar, não é difícil apreender a

sua dimensão coral. Sendo o trágico a condição essencial de tudo que existe, ao se resgatar

o trágico, enuncia-se a verdade, proferindo-se “sentenças de oráculo e de sabedoria”. (apud

NIETZSCHE, 2003 b, p. 61). E não é justamente isso que a música cantada pelas mulheres

faz ao reunir símbolos como o cavalo, o punhal de prata e o sangue? Portanto, no

corriqueiro do ato de se colocar um bebê para dormir, desponta-se a sabedoria trágica,

ratificando que o trágico perpassa tudo, conforme anunciado no título do presente tópico.

Reafirma-se que o coro não subsiste na forma, mas no potencial dionisíaco que

manifesta, que se perfaz na eliminação dos contornos particulares e na reunião do todo em

um. Assim sendo, o considerado “hino à faca” (que será visto mais adiante) também é uma

manifestação coral, visto apagar os limites individuais em prol do comum, instaurado pelo

talher. O hino à faca, destacando o próprio agente do trágico, revigora-o e se dignifica na

comunhão do todo, na comunhão dionisíaca.

Retomando a canção de ninar, cabe pensar a imagem central que ela introduz: o

cavalo. Visto já ter sido mencionada a relação que se explicita entre o animal e Leonardo

no texto, resta ainda investigar o que se inaugura com dita relação.

Uma crença, que parece estar fixada na memória de todos os povos, associa originariamente o cavalo às trevas do mundo ctoniano, quer ele surja, galopando como o sangue nas veias, das entranhas da terra ou dos abismos do mar. Filho da noite e do mistério, este cavalo arquetípico é ao mesmo tempo portador da morte e

da vida, ligado ao fogo destruidor e triunfante. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 171) (grifo nosso).

A associação simbólica do animal o relaciona, de certa maneira, ao que está oculto, ao

que é treva, ao sangue ainda dentro das veias, ao que não está nem nunca estará sob o

domínio humano. O cavalo configura, portanto, a força da natureza em seu mais alto grau: é

o “portador da vida e da morte”.

Sendo Leonardo o indivíduo nomeado, o único singular em toda a obra, ele concentra

todo o poder de configuração apolínea. Por outro lado, estando atrelado ao cavalo, que

representa, por assim dizer, os instintos animalescos, Leonardo vige no dionisíaco, e vice-

versa. Pensar em Leonardo como homem e cavalo, seguindo as marcas indicadas pelo

texto, remete-nos à imagem do centauro. Assim, Leonardo e o animal se fecham no

indissociável, sendo “fogo destruidor e triunfante”.

Vale mencionar ainda o mito de Pégaso, o cavalo alado. De acordo com uma versão

mítica bastante conhecida, ele é filho de Geia, da própria terra fecundada pelo sangue de

Górgona, reunindo já de antemão as propriedades terrestres: água e fogo. “Pégaso, cavalo

alado, está sempre relacionado com a água. [...] Está, outrossim, ligado às tempestades, por

isso que é “o portador do trovão e do raio por conta do prudente Zeus””. (BRANDÃO,

1991, v. 2, p. 248).

Como raio de fogo, o cavalo conduz, mas como água, é a fonte. Portanto, a fonte de

Leonardo é o cavalo que, querendo ou não, o conduz como raio de fogo.

8.5 A confirmação de Leonardo-cavalo no terceiro quadro

Enfim, o terceiro quadro, que se passa na casa da noiva e de seu pai, quando ela é

pedida em casamento. Tudo é acertado entre os familiares. Termina-se o quadro com o

diálogo entre a criada e a noiva, onde a primeira afirma ter visto Leonardo montado em seu

cavalo parado na janela da noiva durante a madrugada, mais especificamente às três (vale

ressaltar a insistência nesse numeral). Ela, assim como Leonardo, nega tudo, mas nesse

momento se escuta o ruído de um cavalo. Fim bastante revelador do primeiro ato.

8.6 Segundo ato: início da concretização do enunciado

No segundo ato, as bodas combinadas entre as famílias (entre a noiva e o noivo) são o

centro de toda a organização cênica, desde os preparativos para o casamento até a festa em

si. Inicia-se com os mesmos personagens que fecharam o ato anterior: a noiva e a criada, a

segunda auxiliando a primeira com seus adornos. Enquanto a ação de se arrumar transcorre,

o diálogo se efetua reforçando e consagrando o que já se deixou antever.

O primeiro aspecto enfatizado no diálogo entre as duas recai na sina, desta vez o

destino aparecendo atrelado ao local de origem. O lugar é de onde se emana o calor do fogo

a consumir todos. O contraste entre a noiva e a criada nesta cena chega a ser grotesco.

Enquanto a animação da última se irradia fortemente, parecendo até mesmo que é ela quem

está prestes a se casar, a noiva parece definhar em sua desolação.

A aparição de Leonardo, sozinho, na casa da noiva, em seguida, fere todas as

convenções. Afinal, ele é casado e tem filho, devendo, portanto, apresentar-se com a

família para a cerimônia de um casamento, conforme as normas estipuladas socialmente.

Mas a força do sangue fala mais alto e o cavalo galga impetuosamente em direção a sua

sina...

A noiva aparece e, lutando contra si mesma, tenta se mostrar altiva, fazendo uso de seu

orgulho, destrinchando-se em palavras prepotentes, mas que se tornam vãs. A criada,

vislumbrando o que verdadeiramente acontece, interpõe-se entre os dois e trata logo de

separá-los, pois sabe que há fagulhas explosivas a ponto de arrebentarem, quer eles

queiram, quer não.

Na cena da festa do casamento, a fuga dos amantes se forma e se efetua na

obscuridade para o público. Não há nenhuma cena que mostre algo sendo combinado entre

Leonardo e a noiva, mas, muito pelo contrário, o que se expõe é a determinação para que o

casamento se cumpra. Ainda que seja nítido o incômodo da noiva na festa, a posição que

ela assume mostra claramente que ela está disposta a cumprir com a palavra, casando-se

com seu noivo e respeitando-o.

Durante a festa, apresenta-se cenicamente a comemoração da boda, a animação dos

convidados a falar e a dançar. Um clima tipicamente festivo. Em contrapartida, a noiva é

quem não se sente bem e, esquiva, comunica ao noivo que irá descansar um pouco, que à

noite estará melhor (no contexto apresentado, esta frase, como tantas outras, soa

estranhamente irônica). Cabe ressaltar que na cena anterior a essa, aparece a mulher de

Leonardo perguntando por ele, dizendo não encontrá-lo e acrescentando ainda que o cavalo

não está na cocheira.

O público, assim, primeiro é informado sobre a desaparição de Leonardo com seu

cavalo, depois assiste ao diálogo após o qual a noiva se retira. Dispondo dos presságios

anteriormente assinalados, é possível apreender o que acontece na obscuridade.

Sabendo-se que o sangue no interior dos corpos dos amantes é quem os conduz,

juntamente com o cavalo de Leonardo (no sentido literal e não literal), o culminar dos

acontecimentos é inevitável. Sendo o dionisíaco quem anima profundamente a ambos pelo

fogo do sangue, ele ainda está velado, protegido pela delimitação dos corpos, mas ávido de

explosão. Do mesmo modo se dá a fuga da noiva com Leonardo: velada, mas galopando na

irrupção.

Os demais personagens, no entanto, prosseguem participando da festa. Então uma

moça chama aos noivos para a dança. O pai da noiva vai à procura da filha, não a encontra.

A criada e o noivo também procuram. Nada. Neste momento a mulher de Leonardo entra

gritando que a noiva e Leonardo fugiram no cavalo.

Termina-se o ato com a fala da mãe, que comanda o que será feito: a separação de

todos em dois grupos para a busca dos fugitivos. “Ha llegado otra vez la hora de la sangre”.

(GARCÍA LORCA, 1996, p. 140). Início da concretização do enunciado no primeiro ato.

8.7 Símbolos que personificam o trágico e se reúnem no todo do bosque

Tendo-se visto um pouco da simbologia do cavalo no contexto da obra, estando-se

ciente também do seu papel de condutor, a partida dos amantes no animal não deixa

margem a dúvidas de que, se o sangue os conduz até esse momento, incitando-os para todo

o agir da fuga, o cavalo os conduzirá literalmente de agora em diante. Serão levados ao

bosque, um bosque marcado visivelmente pelo sobrenatural.

O operar do texto remete o tempo inteiro para o que está além do domínio humano,

começando já pelo próprio título Bodas de Sangue. É no terceiro ato, no entanto, que este

mundo se faz visível na obra, a partir principalmente de alguns símbolos que personificam

o trágico.

O ato se inicia com o diálogo entre três lenhadores no bosque à noite. Vários aspectos

já chamam a atenção. O fato não só de serem três homens que conversam (uma vez mais a

insistência no numeral), como também destes homens serem lenhadores, atuarem cortando,

é algo bastante revelador. Além disso, o ambiente é noturno, sombrio, é a própria morada

do mistério. Afinal, a escuridão é a grande acolhedora, é onde tudo encontra abrigo, onde

qualquer coisa pode se ocultar.

As palavras dos lenhadores vão direto ao ponto: a fuga dos amantes e a perseguição a

eles. A luz da lua também é introduzida no diálogo, dando a entender que, quando esta sair,

todos poderão ser avistados e haverá o embate. Faz-se mister repensar os elementos

assinalados na descrição cênica. Primeiro, o numeral.

“O número três é, universalmente, um número fundamental”. (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 1982, p. 654). Afinal, é o número que reflete o produto da criação, de

dois seres se gera um terceiro. Sendo fruto de dois, o três remete necessariamente à noção

de fecundidade. Talvez por isso “os psicanalistas vêem no número três, com Freud, um

símbolo sexual” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 656), o que dialoga diretamente

com o contexto de Bodas de Sangue. O que é o fogo do sangue dos amantes senão uma

força galopante que perpassa o todo? (incluindo, é claro, a sexualidade).

“O 3, dizem os Chineses, é um número perfeito [...] a expressão da totalidade [...] É o

acabamento da manifestação: o homem, filho do Céu e da Terra, completa a Grande

Tríade”. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 654). A completude do todo expressa

pelo número três nos faz pensar na reunião de tudo em um. Ao estar completo, inteiro, o

todo é um. Esta dimensão possibilita a compreensão do número três como símbolo do que

lança na indiferença do todo, no que iguala tudo em um, o que se perfaz efetivamente na

escuridão da noite. À interpretação do três focando a produção, o caráter sexual, se une esta

outra.

Mas são os três lenhadores que configuram a cena. Os lenhadores cortam a madeira,

extirpam a vida. O desenlace está confirmado. Eis o que apreendemos até agora do que

emerge no início do terceiro ato de Bodas de Sangue: o fogo do sangue, irrigando, conduz a

conversão noturna com o desenlace vital no âmbito individual. A conversa entre os

lenhadores prossegue confirmando os presságios e o agir do fogo do sangue:

LEÑADOR 2°: Hay que seguir la inclinación; han hecho bien en huir. LEÑADOR 1°: Se estaban engañando uno a otro y al final la sangre pudo más. LEÑADOR 3°: ¡La sangre! LEÑADOR 1°: Hay que seguir el camino de la sangre. LEÑADOR 2°: Pero sangre que se ve la luz se la bebe la tierra. LENÃDOR 1°: ¿Y qué? Vale más ser muerto desangrado que vivo con ella podrida.25 (GARCÍA LORCA, 1996, p. 142).

25 2° LENHADOR: Deve-se seguir a inclinação: fizeram bem em fugir. 1° LENHADOR: Andavam a enganar-se um ao outro e, por fim, o sangue foi mais forte. 3° LENHADOR: O sangue! 1° LENHADOR: Deve-se seguir o caminho do sangue.

Cabe ressaltar ainda que os lenhadores assumem a função de coro no terceiro ato, são

eles que proferem “sentenças de oráculo e de sabedoria” (NIETZSCHE, 2003 b, p. 61)

desde o abrir do primeiro quadro.

Sentindo o despontar da lua, os lenhadores partem. A lua aparece como um lenhador

jovem. Une-se aqui diretamente a ação de cortar vidas singulares à lua. O solilóquio que

segue reforça ainda mais o teor trágico dos futuros acontecimentos. A lua não quer apenas

cortar vidas, apagar chamas, ela também reclama o sangue de suas vítimas. Sua declaração

é categórica, soa irascível:

[...] ¡Tengo frio! Mis cenizas de soñolientos metales, buscan la cresta del fuego por los montes y las calles. [...] Pues esta noche tendrán Mis mejillas roja sangre, [...] ¡No haya sombra ni emboscada, que no puedan escaparse! ¡Que quiero entrar en un pecho para poder calentarme! [...] Yo haré lucir al caballo Una fiebre de diamante26. (GARCÍA LORCA, 1996, p. 144-145)

2° LENHADOR: Mas sangue que vê luz é bebido pela terra. 1° LENHADOR: E que tem isso? Mais vale morrer dessangrado que viver com ele podre. (GARCÍA LORCA, 1975, p. 108). 26 Tenho frio, minhas cinzas de sonolentos metais buscan a crista de fogo por qualquer parte e lugar. [...] Mas esta noite terão minhas faces rubro sangue, [...] Nem sombra nem emboscada

Sabe-se que a lua se apresenta ao menos em quatro momentos distintos, perpassando

as fases nova, crescente, cheia, minguante, nova de novo, e assim por diante. A visível

periodicidade lunar remonta à idéia de renovação, que se deixa vislumbrar a cada lua nova.

Pode-se dizer também que “a lua é [...] o primeiro morto. Durante três noites, em cada mês

lunar, ela está como morta, desapareceu...” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 418).

A lua só fulgura à noite, daí também a sua conexão com a escuridão, com o insondável

da morte. O dia sempre a oculta. O desaparecimento lunar (tanto diário como mensal) e seu

reaparecimento, pressupondo uma renovação, sugere um reabastecimento de suas energias.

Em sua apresentação em Bodas de sangue, a lua-lenhador requer o sangue como alimento

sacrificial.

Tendo apenas o contexto noturno para aparição, é na noite que a lua vige. Geralmente

durante a noite se dorme e se sonha. Os sonhos estão relacionados, sob a perspectiva

psicanalítica, ao inconsciente, ao que se oculta à razão humana. Daí se declarar que

A zona lunar da personalidade é esta zona noturna, inconsciente, crepuscular dos nossos tropismos, das nossas pulsões instintivas, é a parte do primitivo que dorme em nós, vivaz ainda no sono, nos sonhos, nas fantasias, na imaginação, e que modela a nossa sensibilidade profunda [...] encantamento [...] encolhido num sono da vida senão entregue à embriaguez do instinto, abandonado ao transe de um arrepio vital, que arrebata [...] (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 421).

que lhes permita escapar! Pois desejo entrar num peito Que calor me possa dar! [...] Numa febre de diamantes Há de o cavalo brilhar. (GARCÍA LORCA, 1975, p. 110-111).

Para os “Astecas, a Lua era filha de Tlaloc, deus das chuvas, associado igualmente ao

fogo”. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 419).

Unindo as considerações astrológicas às dos astecas, pode-se dizer que a associação da

lua ao fogo se dá pelo dionisíaco que ela abarca. O raio lunar vige no obscuro, no uno,

afinal, “à noite todos os gatos são pardos”. Tudo é sombrio, tudo é um. Eis o fundamento

dionisíaco.

O vigorar espacial da lua (assim como de todos os astros) a torna inacessível, só

podendo ser sentida pela fria luz de seus raios. A frieza lunar a afasta do calor vital,

aproximando-a ainda mais da morte, tenebrosamente fria.

Embalando o sono, a lua dispõe no âmbito individual uma área inacessível durante a

vigília. Assim como ela se vela e se desvela no celeste, possibilita um simultâneo velar-se e

desvelar-se no terrestre: enquanto oculta as diferenças na escuridão da noite, reabre o oculto

no humano pelo sonho. Até que se cansa de brincar com algumas individualidades e as

traga definitivamente para o velado. Eis o operar da lua em Bodas de Sangue.

Após a aparição da lua na peça, surge a mendiga, considerada diácono da lua (apud

ALVAREZ MIRANDA, 1963), a qual interfere diretamente no caminho dos personagens.

Ao se deparar com o noivo, a mendiga o instrui, mostrando-o por onde deve seguir,

acompanhando-o, inclusive.

Logo depois aparecem pela primeira e única vez Leonardo e a noiva no bosque. Do

dueto que se estabelece entre os dois, emerge quente o trágico imposto pelo sangue. O fogo

sangüíneo é citado como obra da própria lua: “Clavos de luna nos funden mi cintura y tus

caderas”27 (GARCÍA LORCA, 1996, p. 154).

27 “Cravos de lua a ambos nos estão pregando: meu cinto e tuas cadeiras”. (GARCÍA LORCA, 1975, p.116).

Os amantes deixam a cena abraçados. A lua reaparece muito lentamente. Ouvem-se

dois gritos. A mendiga também aparece. Pronto. O destino se cumpriu. Derrama-se o

sangue dos varões, o que já havia sido indiciado desde o início da peça com as observações

maternas. A lua e a mendiga se mostram como as agentes personificadas do trágico nesse

mundo sobrenatural. O bosque as recolhe novamente.

Faz-se mister destacar ainda que é por um mesmo objeto cortante, uma faca, que o

noivo e Leonardo morrem. No contato direto com a carne, a faca perfura e encontra o

sangue, obrigando-o a se libertar de seus limites. Assim como a faca, “el puñal, como un

rayo de sol, incendia las terribles hondonadas”. (GARCÍA LORCA, p. 230) (grifo nosso).

No contato direto com o sangue, a faca o auxilia no reconduzir-se para zoé. Sendo

“raio de sol”, o punhal aquece, queima, conduz a vida e a morte. É no encontro do objeto

cortante com o sangue, pois, que bíos e zoé se fundem. Talvez daí o término de Bodas de

Sangue com uma espécie de hino à faca em que entoam a mãe e a noiva, respectivamente.

MADRE [...] Vecinas, con un cuchillo, Con un cuchillito, En un día señalado, entre las dos y las tres, Se mataron los dos hombres del amor. Con un cuchillo, Con un cuchillito Que apenas cabe en la mano, pero que penetra fino Por las carnes asombradas, Y que se para en el sitio Donde tiembla enmarañada La oscura raíz del grito. NOVIA Y esto es un cuchillo, Un cuchillito Que apenas cabe en la mano; Pez sin escamas ni río,

Para que en un día señalado, entre las dos y las tres, Con este cuchillo Se queden dos hombres duros Con los labios amarillos. MADRE Y apenas cabe en la mano, Pero que penetra frío Por las carnes asombradas Y allí se para, en el sitio Donde tiembla enmarañada La oscura raíz del grito28.

García Lorca ainda propõe na rubrica que as vizinhas estejam ajoelhadas no solo

durante esse canto. E assim a obra se fecha.

Dois homens morreram, um que deixa o nome vivo na memória, outro que se vai

apenas como o noivo. A faca une ambos na morte. A morte dos varões é, portanto, sentida

28 MÃE Vizinhas: com uma faca, com uma faquinha, em um dia assinalado, duas ou três da manhã, se mataram estes dois homens do amor. Com uma faca, Com uma faquinha Que some dentro da mão, Mas que penetra bem fina Pelas carnes assombradas, E que pára lá no abrigo Onde treme emaranhada A obscura raiz do grito. NOIVA E isto é uma faca, Uma faquinha, Que some dentro da mão; peixe escamado e sem rio, Para que um dia assinalado, duas ou três da manhã, Com esta faquinha, dois homens fiquem caídos com os lábios amarelos. MÃE E some dentro da mão, Mas como penetra fria pelas carnes assombradas! - E pára ali, bem no abrigo onde treme emaranhada a obscura raiz do grito. (GARCÍA LORCA, 1977, p. 144-145).

pelas mulheres que ficam. O foco recai na mãe e na noiva, as duas dotadas de grande força,

concentrando visões e posturas irreconciliáveis no âmbito da singularidade.

A mãe simboliza a tradição. Todos os homens de sua família tiveram o sangue

derramado por um objeto cortante: eis a sina de sua casta. Ela, agora só, incorpora toda a

tradição da terra. É mãe com todo o vigor. Tendo tido seus filhos arrancados, ela se

compadece na força de mãe, na força do próprio sangue materno, coagulando-o como uma

rocha.

A noiva, por sua vez, resplandece como “donzela perdida”, perdida pelo fogo de seu

sangue que a consumiu. Por mais que ela não quisesse, que estivesse realmente disposta a

se casar com seu noivo conforme o combinado (como muitas vezes se deixa antever no

texto), buscando, inclusive, fugir de Leonardo, ou melhor, do que sente por ele, não teve

escapatória: impossível fugir do próprio sangue, do próprio fogo.

Na verdade, a ferida tanto na noiva como em Leonardo sempre existiu e nunca foi

inteiramente cicatrizada, apenas superficialmente podia parecer estar fechada. Os

personagens queriam acreditar estarem livres da grande ferida trágica e lutaram contra o

destino, impulsionados pela família: Leonardo se casou com outra e a noiva, como já dito,

lutando contra seus sentimentos, comprometeu-se a efetivar matrimônio com o noivo

escolhido.

Inevitavelmente o destino trágico se faz. O sangue que move os personagens os lança

no abismo trágico e a ironia trágica ri: os supostos indivíduos, querendo acreditar estar

curados da ferida, são tragados pela ferida que se abre em sangue, são curados de suas

limitações e libertos, libertos no fogo que desde sempre os incendiou: Leonardo se faz

fogo-fátuo, ainda que seu nome permaneça nas lembranças, ao passo que a noiva

finalmente admite a fatalidade de sua sina em chaga:

Yo era uma mujer quemada, llena de llagas por dentro y por fuera, y tu hijo era un poquito de agua de la que yo esperaba hijos, tierra, salud; pero el otro era un río oscuro, lleno de ramas que acercaba a mí el rumor de los juncos y su cantar entre dientes. Y yo corría con tu hijo que era como un niñito de agua fría y el otro me mandaba ciento de pájaros que me inpedían el andar y que dejaban escarcha sobre mis heridas de pobre mujer marchita, de muchacha acariciada por el fuego. Yo no quería, ¡óyelo bien!, yo no quería. ¡Tu hijo era mi fin y yo no lo he engañado, pero el brazo del otro me arrastró como un golpe de mar, como la cabezada de un mulo, y me hubiera arrastrado siempre, siempre, aunque hubiera sido vieja y todos los hijos de tus hijos me hubiesen agarrado de los cabellos.29 (GARCÍA LORCA, 1996, p. 162-163).

Ainda com todas as diferenças entre o que a mãe e a noiva configuram, as duas

protagonistas se aliam no canto final à faca. O “raio de sol” reúne tudo em zoé. Assim, já

não são as singularidades de bíos que cantam, mas a força de zoé que emerge da força

ritualística. Só mesmo na fusão operada pelo sangue enquanto raio, com a mediação da

faca, fala mais alto a força do sangue ritualístico, sacrificial. E o que importa não é nem

mais a tradição nem a força de uma mulher queimada, mas tão somente o “raio de sol” a

apunhalar.

Pelo sangue que corre nas veias, os indivíduos já estão desde sempre condenados a um

destino trágico. Em Bodas de Sangue, a tragicidade das bodas é reforçada pelo elemento

29 Eu era uma mulher ferida pelo fogo, cheia de chagas por dentro e por fora, e seu filho era um pouquinho de água, de quem eu esperava filhos, terra, saúde; mas o outro era um rio escuro, cheio de ramagens, de onde me chegava o sussurro dos juncos e um murmúrio abafado. E eu corria com seu filho, que era como um fiozinho de água fria, e o outro me mandava centenas de pássaros que me impediam de andar e derramavam orvalho nas minhas feridas de mulher fraca e abatida, de moça acariciada pelo fogo. Eu não queria, ouviu bem? Eu não queria! Teu filho era o meu fim, e eu não o traí, mas o braço do outro me arrastou como a correnteza do mar, como um coice, e teria me arrastado sempre, sempre, mesmo que eu fosse velha e todos os filhos do seu filho me agarrassem pelos cabelos! (GARCÍA LORCA, 1977, p. 140-141).

sangue, força superior às singularidades dos personagens, força que anima os indivíduos e

os aniquila.

9. CONCLUSÃO

A presente dissertação buscou adentrar a questão do trágico, na tentativa de resgatar o

seu saber e restituí-lo à sua condição de pensamento originário. Neste movimento, algumas

ações foram incitadas e emergiram no processo.

Primeiro, instaurou-se a necessidade de se repensar o trágico a partir da própria

nomenclatura, que já deixa antever, pela formação vocabular mesma, pelo radical comum

entre trágico e tragédia, por exemplo, a relação radical existente entre os dois vocábulos.

Daí se pôde desdobrar mais profundamente o trágico e se aproximar mais de um resgate de

sua condição essencial, inerente ao real.

Caminhando no saber trágico, no operar do pensar, adentrou-se o mundo mítico,

principalmente a partir de Dioniso, que emerge sendo o próprio trágico a revigorar-se. De

Dioniso se foi aos primórdios da tragédia, confirmando, portanto, o elo essencial entre

trágico e tragédia.

Sabendo-se que muitos filósofos foram tocados pelo trágico e se aventuraram a pensá-

lo, se desejou revisitar alguns deles, como Aristóteles e Nietzsche. A partir da Poética, de

Aristóteles, se buscou repensar algumas noções fundamentais, principalmente aos

referenciais de terror e piedade. Com Nietzsche, revigorou-se o dionisíaco e o apolíneo a

partir de dois elementos da tragédia: o coro e o herói.

Por fim, a reunião do fogo como símbolo trágico, e o sangue como a sua pulsão. Com

Bodas de Sangue, o trágico do real passa a ser sentido no interior dos corpos humanos,

alimentado pelo próprio sangue.

O nosso limite se confirma. O trágico não tem fim...

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