O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAÇÃO

download O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAÇÃO

of 121

Transcript of O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAÇÃO

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    1/121

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE ARTES E COMUNICAO

    DEPARTAMENTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    O TRADUTOR INFIEL: A VOZ DA REENUNCIAO

    Heber de Oliveira Costa e Silva

    Recife

    2011

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    2/121

    Heber de Oliveira Costa e Silva

    O TRADUTOR INFIEL: A VOZ DA REENUNCIAO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    graduao em Letras da Universidade Federal

    de Pernambuco como requisito parcial para a

    obteno do ttulo de Mestre em Lingustica.

    Orientadora: Profa. Dra. Dris de A. C. da Cunha

    Recife

    2011

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    3/121

    Catalogao na fonteBibliotecria Glucia Cndida da Silva, CRB4-1662

    C837t Costa e Silva, Heber de Oliveira.O tradutor infiel : a voz da reenunciao / Heber de Oliveira Costa e

    Silva. Recife: O autor, 2011.120p. : il. ; 30 cm.

    Orientador: Dris de A. C. da Cunha.Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Pernambuco,

    CAC. Letras, 2011.Inclui bibliografia.

    1. Lingustica - traduo. I. Cunha, Dris de A. C. da (Orientador). II.Titulo.

    410 CDD (22.ed.) UFPE (CAC2011-21)

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    4/121

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    5/121

    Aos meus pais, Irineu e Iraneide, que trabalharama vida inteira para que eu tivesse a oportunidadede buscar o nico tesouro que nunca se esgota

    nem pode ser roubado: o conhecimento.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    6/121

    AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, a Deus, por ser um norte para quem se v perdido, e aos

    meus pais, Irineu e Iraneide, pelo suporte material e emocional.

    minha namorada, Andra Veruska, pelo carinho, pela ajuda com a pesquisa epor acreditar em mim. Tambm ao meu amigo Adriano Alves, pela inestimvel

    colaborao neste estudo. minha amiga Sarah Cato, pela reviso e pela troca de

    ideias. Ao amigo Gabriel Fontes, pelas conversas e pela reviso de material. Ao meu

    amigo Eurico Junior, pelo apoio e por ser um exemplo de dedicao e esforo. Ao meu

    amigo Waldemir Gondim e aos meus irmos, Abnere Sophia, pelo estmulo e pela

    companhia. A Paulo Gustavo e Inge Neumann, por me ajudarem a aprimorar o uso da

    lngua. Aos meus amigos Malthus de Queiroz, Catarina Bezerra, Juliana Rivas,Raquel Diehl, Rosana Meira e Katarina Farias, por estarem sempre presentes

    (mesmo quando eu no estava!) e terem buscado o conhecimento comigo. Aos amigos

    e colegas de ps-graduao, em especial Adriana Moreira, Tayana Dias, Liliane

    Cintra, Nadiana Lima, Rafaela Queiroz, Juliana Andrade e Flvia Botelho, pela

    agradvel companhia e pelas produtivas discusses. A Michele Valois, pela amizade e

    por ter me dado a honra (e o desafio) de entrar em seu lugar na Iniciao Cientfica.

    Um agradecimento especial minha orientadora, Profa. Dra. Dris Cunha, por

    ter me apresentado uma teoria em que acredito e ter me ajudado nesta caminhada

    terica, por me aconselhar quando precisei e por ser um exemplo no apenas como

    pesquisadora, mas de conduta tica. Profa. Dra. Kazue Saito, pela co-orientao,

    simpatia e pelos inestimveis conhecimentos que me passou. Profa. Dra. Kristiina

    Talvaikoski-Shilov, da Universidade de Helsinki, que gentilmente me enviou sua tese,

    de onde surgiu a semente deste trabalho. Profa. Dra. Ute Heidmann, da

    Universidade de Lausanne, que me presenteou um livro com seus valiosos artigos.

    Tambm no posso deixar de agradecer profundamente aos Profs. Drs. Brian Mossop(York University Toronto), David Lloyd (University of Southern California), Ian Mason

    (Heriot-Watt University Edinburgh) e Theo Hermans (University College London), que

    me deram ateno sem me conhecerem, generosamente enviando seus textos pela

    internet ou pelos correios.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    7/121

    A traduo, apesar da posio secundria que lhe atribuda, deriva sua fora do fato deque ainda a nossa nica resposta e a nossa nica forma de escapar da Babel.

    Theo Hermans, O Outro da Traduo, palestra, University College London, 1996.Traduo de Heber Costa.

    Em um extremo, o mundo se apresenta para ns como uma coleo de heterogeneidades;no outro, como uma superposio de textos, cada um ligeiramente distinto do anterior:tradues de tradues de tradues. Cada texto nico e, simultaneamente, a traduode outro texto. Nenhum texto inteiramente original, porque a prpria linguagem em suaessncia j uma traduo: primeiro, do mundo no verbal e, depois, porque cada signo e

    cada frase a traduo de outro signo e de outra frase. Mas esse raciocnio pode se invertersem perder sua validade: todos os textos so originais porque cada traduo distinta.Cada traduo , at certo ponto, uma inveno e assim constitui um texto nico.

    Octavio Paz, Traduo, Literatura e Literalidade (2006), p. 5-6.Traduo de Doralice Alves de Queiroz.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    8/121

    RESUMO

    Este estudo tem por objetivo principal analisar marcas discursivas da presena do

    tradutor, partindo da hiptese de que existe uma voz que reenuncia o texto traduzido.

    Para atingir esse propsito, comparamos textos selecionados das revistas National

    Geographic Magazine e The Economist com suas tradues publicadas na National

    Geographic Brasil e na Carta Capital, respectivamente, identificando as ocorrncias

    relevantes e classificando-as segundo as categorias previstas por Cunha (1992) e

    Hermans (1996). O enquadre terico em que situamos essa anlise o dialogismo, tal

    como proposto por Voloshinov e Bakhtin;estudos sobre traduo contemporneos de

    Mossop (1983, 1987, 1998), Folkart (1991) e Hermans (1996, 2004); e sobre o discurso

    reportado, em especial Cunha (1992). Examinamos algumas teorias de traduo

    tradicionais e contemporneas, bem como a concepo de lngua e linguagem a elas

    subjacente, e construtos terico-sociais associados traduo, como a fidelidade e a

    invisibilidade, confrontando-os com uma viso dialgica da linguagem. Os resultados

    mostram que as marcas da voz do tradutor esto de fato presentes no texto traduzido,

    comprovando que, tal como o discurso reportado, o processo tradutrio reenunciao,uma retomada-modificao do texto-fonte por parte de um sujeito que ocupa uma

    posio social, histrica e geogrfica nica, e no uma reproduo neutra ou um

    transporte inerte de significados entre duas lnguas.

    Palavras-chave: traduo; reenunciao; discurso reportado.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    9/121

    ABSTRACT

    The main purpose of this research is to analyze discursive traces of the translators

    presence, assuming that there is a voice that re-utters the translated text. In order to

    reach this goal, we compared selected texts from National Geographic Magazine and

    The Economist to their respective translations published in the magazines National

    Geographic Brasiland Carta Capital to identify relevant phenomena and classify them

    according to the categories used by Cunha (1992) and Hermans (1996). The framework

    of such analysis is the dialogism theory, proposed by Voloshinov and Bakhtin;

    contemporary translation studies by Mossop (1983, 1987, 1998), Folkart (1991) e

    Hermans (1996, 2004); and reported speech studies, especially by Cunha (1992). We

    examine other traditional and contemporary translation theories, as well as the language

    conception underlying them; we also inquire into some of the social and theoretical

    constructs associated with translation, such as fidelity and invisibility, confronting them

    with the dialogic notion of language. Results show that the traces of the translators

    voice are actually present in the target text, proving that the translation process is aretake-modify process (reutterance), similar to reported speech, performed by a subject

    that occupies a specific historic, geographic and social place, not some neutral

    reproduction or an inert transportation of meaning from one language to another.

    Keywords: translation; reutterance; reported speech.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    10/121

    SUMRIO

    Introduo .................................................................................................................... 10

    1 A Natureza da Traduo .......................................................................................... 15

    1.1 Uma histria do conceito atual de traduo ............................................................ 15

    1.1.1 Concepes tradicionais: imitao, substituio, transporte, recodificao .... 18

    1.1.2 Perspectivas contemporneas: leitura, cultura, discurso, reenunciao ......... 25

    1.2 A noo de fidelidade ............................................................................................. 35

    1.3 A questo da invisibilidade ...................................................................................... 44

    1.4 Autorrepresentaes dos tradutores ....................................................................... 48

    2 Dialogismo e Traduo ............................................................................................ 51

    2.1 Concepes de lngua e linguagem ........................................................................ 51

    2.2 Viso dialgica da linguagem .................................................................................. 56

    2.3 Traduo como reenunciao ................................................................................. 60

    3 Procedimentos Terico-metodolgicos ................................................................. 72

    3.1 O mtodo................................................................................................................. 723.2 O corpus.................................................................................................................. 74

    4 Anlise do Corpus.................................................................................................... 78

    Concluso .................................................................................................................... 113

    Referncias Bibliogrficas ......................................................................................... 116

    Apndice A Lista das publicaes que compem o corpus................................ 120

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    11/121

    10

    INTRODUO

    No dia 22 de outubro de 2008, o jornal Folha de Pernambuco publicou uma

    matria sobre traduo de obras literrias cujas primeiras linhas trazem uma pergunta:

    Ser que estamos lendo exatamente aquilo que o autor escreveu no original?. Essaquesto poderia se desdobrarem outras indagaes, como, por exemplo: Quanto de

    um texto traduzido de seu autor e quanto de seu tradutor? ou Quais aspectos do

    texto traduzido eram originalmente do autor e quais decorrem da participao discursiva

    do tradutor?. O fato de no nos fazermos tais perguntas no processo de leitura , para

    alguns, sinal de uma boa traduo, de um trabalho to fiel ao original1 que deixa o

    tradutor invisvel e nos deixa to confortveis em nossa lngua que no suscita

    motivos para questionarmos o texto uma ideia recorrente e j expressa por autores

    como Eugene Nida2. Essas ideias cristalizadas nos fizeram refletir sobre qual seria a

    natureza da traduo e perguntar: o tradutor pode ser considerado fiel, neutro ou

    invisvel? provvel que variaes dessa pergunta, em vrias lnguas e pocas,

    tenham sido postas no apenas de estudiosos, mas principalmente de tradutores, que

    se veem cotidianamente, em sua atividade, confrontados com dilemas e dificuldades

    que vo da tica gramtica.

    Em estudos anteriores, investigamos se existe uma presena discursiva do

    tradutor no texto traduzido e como ela se manifesta. Em artigo de 2004, publicamos osresultados de uma pesquisa em que comparvamos uma edio francesa de Madame

    Bovary, de Gustav Flaubert, com duas traduzidas para o portugus brasileiro. Com

    base na teoria dialgica do discurso, verificamos indcios de que no h uma s voz no

    texto traduzido, mas uma presena marcada dos tradutores no texto. Em particular,

    registramos a transformao de formas de transmisso do discurso (discurso direto

    para o discurso indireto, por exemplo) e a mudana dos verbos introdutrios (dit le

    professeurpara ordenou o professor) como marcas claras das escolhas enunciativas do

    tradutor. Em outras palavras, constatamos o conflito de enunciaes e a plurivocalidade

    na traduo do discurso reportado (COSTA E SILVA, 2004).

    1 Da tica do dialogismo, qual subscrevemos, no faz sentido falar em original, pois todo enunciado, diz Bakhtin(2000, p. 291), apenas mais um elo nico, complexo e histrico na cadeia que forma a comunicao humana. Dizainda (2010, p. 272) que o prprio locutor/autor, num certo grau, est sempre respondendo a outros enunciadosanteriores, porque ele no o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silncio do universo . Ver Captulo 2.2 The best translation does not sound like a translation [A melhor traduo no soa como uma traduo](NIDA & TABER, 1982, p. 12).

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    12/121

    11

    Em outra pesquisa (COSTA E SILVA, 2009), analisamos tradues (ingls

    portugus) de um mesmo texto-fonte3 produzidas por treze indivduos tambm pela

    perspectiva dialgica. Os resultados mostraram indcios de que o tradutor tende a expor

    mais sua presena discursiva quando lida com expresses para as quais no identifica

    formas estveis na lngua-alvo segundo Cereja (2005, p. 202), aquelas cujo sentidofoi assumido historicamente em virtude de seu uso reiterado. Como enunciador, o

    tradutor toma decises a todo momento, e suas decises lexicais, sintticas, etc. podem

    revelar seus posicionamentos axiolgicos relativos lngua e ao objeto do discurso.

    Alm disso, identificamos fenmenos mais sutis, que confirmam o processo de tomada

    de deciso do tradutor at em escolhas aparentemente simples. Por exemplo, na

    traduo para U.S. Congress, encontramos: congresso americano (5 vezes); congresso

    dos Estados Unidos (4 vezes); congresso norte-americano (3 vezes); e congresso

    americano (estadunidense) (1 vez). Esse dado desvela a posio ideolgica dos

    tradutores quando fazem uma opo. Enquanto americano caiu em uso corrente e j

    dicionarizado, estadunidense usado geralmente por puristas quanto etimologia das

    palavras ou por quem quer se posicionar politicamente contra o uso do termo

    americano como adjetivo ptrio referente aos Estados Unidos.

    Esses estudos e as leituras que fizemos serviram de base para esta nova

    incurso pelo estudo da traduo, concebida como fato social e como manifestao

    lingustica. Antes de tudo, diante dos ttulos por vezes enigmticos dos gnerosacadmicos, talvez seja preciso explicar, ainda que de forma sucinta, o ttulo deste

    nosso estudo. O tradutorinfiel: a voz da reenunciao revela um confronto de vises

    referentes ao tradutor e traduo. A primeira foi pensada h muitos sculos, quando

    se disse pela primeira vez a expresso tradutori, traditori, um estigma inelutvel quando

    se tem a viso de que o objetivo da traduo fidelidade ao texto-fonte viso esta

    que questionamos aqui e j indicada pelo uso de aspas no ttulo. A segunda remete

    posio que o tradutor ocupa no espao enunciativo da traduo ao mesmo tempo,

    novo senhorio e inquilino num discurso ocupado por vrias vozes. Como autor dessa

    nova enunciao, o tradutor entra em contato e conflito com todas as vozes, como diz

    Folkart (1991), que envolvem o objeto de seu discurso.

    3 Pelos motivos explicados na nota 1, doravante usaremos uma terminologia bastante difundida em estudos de

    traduo: texto-fonte ou texto de partida (TF) para o texto que sofreu o processo tradutrio; texto-alvo ou texto dechegada (TA) para o produto da traduo. O mesmo vale para correlatos como: lngua-fonte, cultura-fonte, etc.;lngua-alvo, cultura-alvo, etc. Assim, o uso de expresses derivadas de original, se ocorrer, sempre expletivo.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    13/121

    12

    Para a elaborao desta pesquisa, partimos da hiptese de que existe a voz do

    tradutor no texto traduzido. Portanto, nosso objetivo analisar indcios que revelem

    essa voz, ou seja, essa presena discursiva do sujeito no texto que ele traduziu.

    Isso comprovaria, simultaneamente, que a traduo um novo enunciado concreto,

    no mera reproduo de outro texto.O primeiro passo foi tentar compreender a natureza da traduo e como ela

    vista hoje. Assim, no primeiro captulo, comentamos a trajetria histrica do conceito

    atual de traduzir de onde ele veio, como foi formado e mostramos que um

    construto scio-histrico. Em seguida, discutimos os estudos da traduo mais

    relevantes analisando as respectivas teorias, dividindo-os em duas grandes

    perspectivas: a tradicional e a contestadora. A primeira perspectiva, fundada sobre uma

    tentativa de dar um carter cientfico traduo, enraizou-se profundamente nesta

    esfera de atividade e at hoje direciona a prtica dos tradutores, principalmente devido

    sua caracterstica normativa. Os autores e as concepes includos na segunda

    perspectiva, caracterizados pelo abandono das tentativas de tornar cientfica a traduo

    e por seu enfoque mais descritivo, difundiram-se principalmente no meio acadmico,

    mas tiveram influncia limitada sobre a prtica profissional dos tradutores. Sendo assim,

    na natureza da traduo tal como a conhecemos hoje, esto incorporadas noes

    advindas das concepes tradicionais. Entendemos que as mais intrinsecamente

    associadas traduo sejam a fidelidade e a invisibilidade. Por isso, dedicamos duassees do Captulo 1 para discuti-las de forma mais aprofundada. Na ltima parte,

    mostramos como a concepo tradicional e esses conceitos esto refletidos na

    representao social da traduo e do tradutor at hoje e as consequncias disso.

    Na primeira seo do Captulo 2, discutimos a concepo de lngua subjacente

    perspectiva tradicional, que est na origem dos problemas da viso cientificista. A

    seguir, explicamos a teoria dialgica do Crculo de Bakhtin, viso de linguagem

    fundamental no apenas para entender a natureza da traduo, como tambm para a

    prpria anlise do corpus. Na terceira seo, lanamos um novo olhar para pensar e

    analisar a traduo na perspectiva do dialogismo e de estudos tradutrios

    contemporneos coerentes com a viso dialgica. Com base nesse referencial terico,

    chegamos a uma definio de traduo e selecionamos um aparato de anlise

    adequado para o estudo do corpus.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    14/121

    13

    No terceiro captulo, descrevemos o mtodo de anlise comparativa do seu

    ponto de vista epistemolgico e explicamos o processo de seleo do corpus, que inclui

    textos escolhidos de quatro publicaes: de uma lado, a National Geographic Magazine

    e sua contraparte National Geographic Brasil(revistas informativas mensais de difuso

    cientfica); de outro, The Economiste Carta Capital(revistas informativas semanais deassuntos variados, especialmente economia, poltica e cultura). O quarto captulo o

    exame do corpus propriamente dito, partindo da contextualizao de cada texto e das

    categorias de anlise selecionadas. Os textos que compem o corpus ampliado desta

    pesquisa esto referidos no Anexo A.

    Por fim, discutimos resultados e concluses da pesquisa. Em primeiro lugar,

    constatamos que nossa hiptese de fato se confirma: existe uma voz do tradutor.

    Sendo uma reenunciao, a traduo, como toda interpretao ou compreenso

    responsiva, uma contrapalavra, uma tomada de posio sobre o tema a que se dirige,

    ou seja, verificamos que a traduo apresenta as mesmas caractersticas que todo

    enunciado: orienta-se tanto para o j-dito (que no se restringe apenas ao texto-fonte,

    mas aos discursos prvios sobre os temas tratados nas matrias) quanto para o seu

    leitor (que no algum passivo, mas um sujeito projetado com quem o tradutor

    dialoga, antecipando suas questes e seus comentrios, construindo seu texto tambm

    em forma de dilogo em cima dessas rplicas). Portanto, a traduo apresenta marcas

    e/ou indcios da presena do tradutor.Nosso objetivo pode dar a entender que procuramos algo fora do padro, um

    descuido do tradutor, como um equvoco ou um erro. Toda atividade humana est

    sujeita ao equvoco, o que no nos interessa aqui enquanto evento isolado. A despeito

    de no estarmos procurando por erros de traduo, preciso observar, segundo

    Andr Lefevere (2007, p. 156), se o que est sendo chamado de erro um incidente

    repetido e regular, porque um erro isolado apenas isso, mas uma srie recorrente de

    erros aponta mais para um padro, que a expresso de uma estratgia. A prpria

    existncia do erro deve ser considerada com cautela, visto que buscarpor oposio o

    acerto pode acabar se tornando uma cruzada por significados pr-fixados e imutveis

    a traduo perfeita. Alm disso, diz Lawrence Venuti (1997, p. 18):

    At a noo de erro lingustico est sujeita variao, j que tradues equivocadaspodem ser no apenas inteligveis, mas tambm significantes para a cultura/lngua-alvo. A

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    15/121

    14

    viabilidade de uma traduo estabelecida pelo seu relacionamento com as condiesculturais e sociais sob as quais produzida e lida.4

    Por baixo dessa dicotomia erro/acerto, est a noo da lngua como meio

    transparente, que discutiremos vrias vezes neste estudo e subentende a existncia de

    uma nica interpretao correta. Segundo Solange Mittmann (2003, p. 59),

    Se h transparncia na lngua, deve haver tambm transparncia entre lnguas. Se h umaunivocidade lgica na lngua, a traduo deve ser pensada como uma nica possibilidade deacerto, no havendo espao para equvocos de traduo, e a culpa pelos equvocos recaisobre a incompetncia do tradutor.

    Como fica patente nesta introduo, no pretendemos estabelecer novos

    dogmas ou determinar como a traduo deveria ou no ser. Seguimos Voloshinov

    (2004, p. 142), para quem algumas vezes extremamente importante expor um

    fenmeno bem conhecido e aparentemente bem estudado a uma luz nova,

    reformulando-o como problema, e o posicionamento de Meschonnic (apud

    HEIDMANN, 2010, p. 71): traduzir no pode deixar de implicar uma teoria do discurso.

    J que o discurso , antes de mais nada, uma maneira de apreender a linguagem

    (MAINGUENEAU, 2009, p. 172), estudar a traduo tambm , em primeiro lugar,

    estudar a apreenso da linguagem. No nosso caso, um estudo luz da teoria dialgica.

    So raros os autores que partem da perspectiva dialgica para compreender o

    processo tradutrio. Quando o fazem, acabam ficando no mbito da teoria: no fazem

    de fato uma anlise dialgica em textos traduzidos. Percebendo essa lacuna, Hermans

    (2004, p. 142) diz que, sem dvida, o emprego das noes de dialogismo e

    heteroglossia de Bakhtin poderia aprofundar as questes da natureza discursiva da

    traduo5. A viso dialgica se ope noo de lngua transparente, base concepo

    tradutria cujo ideal a inalcanvel cpia exata em outra lngua, de infidelidade,

    impossibilidade e invisibilidade. Por isso, estamos certos de que, trabalhando a

    traduo como reenunciao, esta pesquisa pode trazer novas possibilidades aos

    campos da anlise dialgica do discurso e dos estudos da traduo.

    4 No usaremos aspas em citaes completas traduzidas por ns, pois isso reforaria a iluso de que o autor quemfala diretamente. Entre aspas esto apenas as citaes diretas de obras j escritas ou traduzidas em portugus. Otexto-fonte vem na nota de rodap em itlico. Neste caso, a fonte diz: Even the notion of linguistic error is subject tovariation, since mistranslations, especially in literary texts, can be not merely but significant in the target-languageculture. The viability of a translation is established by its relationship to the cultural and social conditions under whichit is produced and read. Como diz Mittmann (1999, p. 222), para sermos coerentes com a teoria, talvez devssemosacrescentar na viso de seu tradutor nas citaes. No faremos isso, pois basta termos a conscincia de que otexto-fonte est sendo reenunciado, e no citado ipsis litteris (impossvel), por seu tradutor em lngua portuguesa.5No doubt an approach employing Bakhtins notions of dialogism and heteroglossia could take these issues further.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    16/121

    15

    1 A NATUREZA DA TRADUO

    1.1 Uma histria do conceito atual de traduo

    A proposta desta primeira parte mostrar que a traduo no algo absoluto,

    mas um construto histrico e relativo, e a melhor forma de fazer isso ver a trajetria

    desse conceito. Assim, apresentaremos algumas formas de entender a expresso

    traduzir no decorrer da histria. Mesmo essa proposta aparentemente simples

    apresenta dificuldades desde o comeo, como nos diz Umberto Eco (2007, p. 9):

    O que traduzir? A primeira e consoladora resposta gostaria de ser: dizer a mesma coisaem outra lngua. S que, em primeiro lugar, temos muitos problemas para estabelecer o quesignifica dizer a mesmacoisa e no sabemos bem o que isso significa por causa daquelasoperaes que chamamos de parfrase, definio, explicao, reformulao, para no falardas supostas substituies sinonmicas. Em segundo lugar, porque, diante de um texto a ser

    traduzido, no sabemos tambm o que a coisa. E, enfim, em certos casos duvidoso atmesmo o que quer dizerdizer.

    Embora j fossem adotados desde antes de Cristo, os termos que remetem

    ideia de traduzir tm trajetrias controversas. Burke & Hsia explicam que, no perodo

    moderno, havia uma variedade de termos empregados em diferentes lnguas [] Os

    termos translate, traduire, traducir, transferre (verbo latino irregular com um particpio

    passado translatus), bersetzen e assim por diante estavam entrando em uso (BURKE

    & HSIA, 2009, p. 33). Com esses termos, coexistiam outras palavras, o que indica a

    viso que se tinha da traduo poca, conforme dizem os autores na mesma pgina:

    Em alemo, por exemplo, havia verdeutschen, alemanizar, gedolmetschen, interpretar,versetzen e mgesetzen, bem como circunlquios tais como ins Teutsche gebracht [trazidoao alemo]. Em latim, havia versio, volta, convertere, converter, e interpretare []. Emingls, havia done into English [tornado ingls], reduced into English[reduzido ao ingls] []ou simplesmente englished [anglicizado]. Em italiano, havia volgarizzare, converter novernculo (il volgare); em espanhol, vulgarizarou romanzar, converter em lngua romnica.

    Comparado com a relativa hegemonia de traduzir nos dias de hoje em

    portugus, h o uso esparso de verter e do especfico interpretar (para designar

    traduo oral) , o uso de vrias expresses concomitantemente demonstra que sua

    definio nem sempre esteve prxima de um consenso como aparenta estar hoje; pelo

    contrrio, o conceito de traduo vem sendo lentamente cunhado, vindo a ganhar fora

    depois da consolidao dos vernculos, j no sculo XVIII. E, mesmo quando a palavra

    traduo era adotada, no havia garantias de que se falava da mesma coisa, j que a

    atividade era entendida de diversas formas, conforme nos conta Burke:

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    17/121

    16

    A divisa entre traduo e imitao era traada menos nitidamente do que viria a ser nosculo XIX [] O ponto crucial que o que se descrevia na poca como tradues muitasvezes diferia dos originais em importantes sentidos, fosse por abreviar os textos, fosse porampli-los. [] Textos longos podiam ser abreviados na traduo, reduzidos at a metadede sua extenso original. Outras omisses eram uma forma de expurgo. [] Passagenspodiam ser omitidas sem aviso aos leitores por razes religiosas, morais ou polticas.[] A liberdade das tradues renascentistas inclua a liberdade de acrescentar material, ou,como os retricos diziam, de ampliar (BURKE & HSIA, 2009, p. 38-39).

    Diante da oscilao do termo e da atividade, vemos que certas ncoras, hoje to

    firmes na atividade tradutria, flutuaram muito em outros tempos como, por exemplo,

    a noo de tica profissional do tradutor. Atualmente, a Federao Internacional dos

    Tradutores (FIT), na Carta do Tradutor, Seo I, Obrigaes Gerais do Tradutor, arts. 4

    e 5, diz que toda traduo dever ser fiel e verter exatamente a ideia e forma do original

    e que essa fidelidade constitui uma obrigao tanto moral quanto legal do tradutor, mas

    no deve ser confundida com traduo literal e no exclui a adaptao para fazer com

    que a forma, a atmosfera e o sentido mais profundo sejam sentidos noutra lngua e

    noutro pas6. Curiosamente, as verses em francs e ingls no site da FIT talvez no

    sejam, pelos critrios dela, fiis entre si7.

    Esse no era o cdigo de tica da Idade Moderna, quando as chamadas

    servides do tradutor eram a outros senhores: religio, moral, s presses sociais,

    etc. Falando sobre as edies de A Morte de Danton, de Georg Bchner, no incio do

    sculo XIX, Lefevere (2007, p. 244) mostra, por exemplo, como reescritores8 acabam

    muitas vezes modificando uma obra por conta de aspectos polticos, religiosos oumorais. Nesse caso, ele explica que houve mudanas para amenizar ou retirar aluses

    sexuais e crticas religio, assim como foram apagadas referncias que pudessem ser

    consideradas ofensivas ao gosto das classes mdia e alta, pblico-alvo da edio. Na

    poca, longe do politicamente correto e das noes de autoria de hoje, era mais vivel

    editar o original do que public-lo na ntegra. O mesmo vale para o tradutor. Segundo

    Freitas (2008, p. 96), no Renascimento, o tradutor gozava de um estatuto de autor,

    uma vez que ele produzia um texto que primava pelo seu efeito na cultura de chegada

    e, por conseguinte, poderia interferir mais na escritura do texto produzido.

    6The Translators Charter, Section I, art. 4. Every translation shall be faithful and render exactly the idea and form ofthe original this fidelity constituting both a moral and legal obligation for the translator. / 5. A faithful translation,however, should not be confused with a literal translation, the fidelity of a translation not excluding an adaptation tomake the form, the atmosphere and deeper meaning of the work felt in another language and country.7Na verso francesa, a moral and legal obligation torna-se un devoir moral et une obligation de nature juridique.8 A reescritura uma categoria hiperonmica criada por Lefereve em que ele inclui atividades como traduo, reviso,edio, antologizao, compilao e produo crtica(ver Lefevere, 2007 [1992], captulo 1).

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    18/121

    17

    Tanto no caso das tradues do perodo moderno quanto no exemplo dado por

    Lefevere, o autor no era o foco principal das preocupaes dos reescritores

    (tradutores, editores, revisores, etc.); hoje, pelo contrrio, o poder do autor (assegurado

    pelas leis autorais e pela liberdade de expresso) to grande que, dependendo da

    obra, uma edio com cortes ou modificaes profundas pode se tornar invivel. Essanova servido ao autor fruto de construes que foram sendo socialmente

    negociadas com o passar do tempo, resultando na posio hegemnica do autor

    quando se trata de traduo. Nesse contnuo processo de construo da palavra e da

    atividade traduo, vo sendo atrelados e excludos valores e discursos. A razo para

    isso, de acordo com Hermans (2004, p. 141), que a traduo um fato social:

    Ns podemos olhar para a traduo como um fenmeno social reconhecido, tanto umacategoria intelectual quanto uma prtica cultural. O significado do termo codificado emdicionrios, fixado pelas atividades informais e profissionais chamadas de traduo,constantemente afirmado por associaes de tradutores e por discursos educacionais,acadmicos, jornalsticos e outros discursos pblicos e privados. [] Tambm plausvelassumir que ns trazemos expectativas tanto cognitivas quanto normativas traduo.

    Ambos os conjuntos de expectativas esto sendo continuamente negociados, confirmados,ajustados e modificados pelos tradutores praticantes e por todos que falam sobre traduo.9

    Sem nos deter mais na terminologia, passaremos a discutir as duas grandes

    concepes que propuseram vises e mtodos traduo. Como dito anteriormente,

    nos restringiremos s tendncias mais expressivas do perodo de investigao terica e

    hermenutica, iniciado a partir do final do sculo XVIII com Alexander Fraser Tytler

    (1747-1819) e seu Essay on the Principles of Translation (1791), o segundo naperiodizao das obras sobre teoria, prtica e histria da traduo estabelecida por

    George Steiner (1975, p. 237). Nesse perodo, segundo Steiner, os questionamentos

    sobre a natureza da traduo comearam a ser respondidos dentro de abordagens

    lingusticas e cognitivas, chamadas de concepes tradicionais, essencialistas ou

    lingustico-cientificistas, que geralmente tm uma viso normativa de como deve ser a

    traduo. Aps a segunda metade do sculo XX, apareceram teorias menos

    associadas viso lingustica, reunidas sob o rtulo perspectivas contemporneas.

    Primeiro, apresentaremos as tradicionais, que ainda exercem grande influncia hoje.

    9 We can look upon translation as a recognized social phenomenon, both an intellectual category and a culturalpractice. The meaning of the term is codified in dictionaries, fixed by informal as well as professional activities calledtranslation, constantly affirmed by translators associations and by educational, scholarly, journalistic and other publicand private discourses. [] it is reasonable also to assume that we bring both cognitive and normative expectations totranslation. Both sets of expectations are continually being negotiated, confirmed, adjusted and modified by practisingtranslators and by all who speak about translation.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    19/121

    18

    1.1.1 Concepes tradicionais: imitao, substituio, transporte, recodificao

    Embora j existisse antes, foi com Tytler que ganhou fora a verso mais moderna

    da concepo de traduo como transparente, neutra, fiel chamada por Arrojo (2000)e Mittmann (2003) de tradicionale de lingustico-cientificista por Bohunovsky (2001). Em

    seu texto seminal de 1791, Tytler se preocupou essencialmente em estabelecer regras

    para uma boa traduo, que ele (2006, p. 190) resume em trs pontos principais10:

    (1) A traduo deve prover uma reproduo, em sua totalidade, das ideias da obra original.

    (2) O estilo e o modo de escrita da traduo devem ter a mesma natureza do original.

    (3) A traduo deve ter toda a fluncia do original.

    Embora Tytler admitisse que nem sempre era possvel encontrar correspondncia

    entre as lnguas, pois cada uma tinha seu gnio e carter , acreditava que era possvel

    solucionar esses problemas se o tradutor incorporasse o autor. Sobre a terceira regra

    acima, ele simultaneamente pergunta e responde (2006, p. 193): Como poder, ento,

    o tradutor alcanar essa difcil unio de fluncia com fidelidade? Para usar uma

    expresso ousada, ele deve adotar a prpria alma de seu autor, que deve falar por

    meio de seus prprios rgos11. Para Tytler (2006, p. 191), sempre uma falha do

    tradutor acrescentar ao sentimento do autor original o que no est estritamente de

    acordo com seu modo caracterstico de pensar ou se expressar12. A traduo seriaento uma imitao, uma cpia que busca correspondncias para se tornar o mais igual

    possvel: a traduo perfeita quando o tradutor acha na sua prpria lngua uma

    expresso idiomtica correspondente quela do original13 (TYTLER, 2006, p. 193).

    Diante disso, Bohunovsky (2001, p.52) acertadamente conclui:

    Partindo de tais princpios de traduo, fica evidente que o objetivo principal do tradutordeveria ser ficar o mais fiel ao original em sua totalidade e ficar invisvel no textotraduzido, pois o objetivo fundamental de qualquer traduo seria a reproduo dooriginal em outro cdigo.

    101. That the Translation should give a complete transcript of the ideas of the original work. 2. That the style andmanner of writing should be of the same character with that of the original. 3. That the Translation should have all theease of original composition.11How then shall a translator accomplish this difficult union of ease with fidelity? To use a bold expression, he mustadopt the very soul of his author, which must speak through his own organs.12It is always a fault when the translator adds to the sentiment of the original author what does not strictly accord withhis characteristic mode of thinking, or expressing himself.13The translation is perfect, when the translator finds in his own language an idiomatic phrase corresponding to thatof the original.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    20/121

    19

    Embora nunca tenha deixado de estar presente, essa concepo ganhou

    novamente destaque aps a Segunda Guerra Mundial, consolidada no que Bohunovsky

    (2001, p. 52) chama de linha lingustico-cientificista, que atingiu as cincias humanas e

    marcou profundamente os estudos da traduo. Segundo Venuti, isso foi percebido

    pelo ingls J. M. Cohen j em 1962, o qual observou que os tradutores do sculo XX,influenciados pelo ensino da cincia e pela importncia agregada preciso, em geral

    se concentram nos significados prosaicos e na interpretao, negligenciando a imitao

    da forma e do estilo (apud VENUTI, 1997, p. 6). De fato, esse foi o tom do trabalho de

    autores como o escocs John Catford (1917-2009), o americano Eugene Nida (1914-)

    e, no Brasil, o hngaro Paulo Rnai (1907-1992) e o alemo Erwin Theodor (1926-).

    Vale a pena discorrer sobre a viso desses autores, que tiveram um papel importante

    na forma como a traduo mais comumente vista nos dias de hoje.

    Para Catford, a traduo consistia na substituio do material textual de uma

    lngua pelo material textual equivalente em outra lngua (1980, p. 22). Talvez

    percebendo certa fragilidade, ele prprio alerta que tal definio no vaga, mas

    intencionalmente ampla. Depois, ele subdivide a traduo em duas (1980, p. 24):

    (1) total(substituio de gramtica e lxico da LF por gramtica e lxico equivalentes da LA,com substituio de fonologia/grafologia da LF por fonologia/grafologia da LA)

    (2) restrita (substituio do material textual da LF por material textual equivalente na LA,apenas em um nvel). [LF = lngua-fonte / LA = lngua-alvo]

    Catford (1980, p. 23) afirma que o problema central da prtica tradutria seriaencontrar equivalentes na lngua-alvo; e a tarefa da teoria, definir a natureza e as

    condies da equivalncia. Para ele (1980, p. 29), haveria duas formas de equivalncia:

    (a) equivalncia textual: qualquer forma da LA que se observe ser o equivalente dedeterminada forma da LF.

    (b) correspondncia formal: qualquer categoria da LA que ocupa na economia da LA omesmo lugarque determinada categoria da LF ocupa na LF.

    Para Bassnett (1994, p. 6), embora tenha contribudo do ponto de vista

    lingustico, a teoria de Catford restrita, pois implica uma concepo estreita designificado. Mary Snell-Hornby (2001, p. 19) diz que se trata de uma definio circular e

    afirma que a abordagem de Catford, baseada na gramtica sistmica de Halliday, hoje

    considerada datada e de interesse meramente histrico. Por outro lado, Nida, cuja

    viso semelhante de Catford, ainda hoje tem influncia, embora mais como tradutor

    bblico do que linguista terico (SNELL-HORNBY, 2001, p. 15).

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    21/121

    20

    Segundo Edwin Gentzler (2009, p. 75), Nida considerado o primeiro a

    estabelecer a chamada cincia da traduo, muito difundida nas dcadas de 1970 e

    1980 e ainda hoje presente. Com base na sua experincia de traduzir a Bblia, Nida

    cunhou a ideia de que traduzir reproduzir, na lngua do receptor, o equivalente natural

    mais prximo da mensagem da LF; em primeiro lugar, em termos de significado; emsegundo, em termos de estilo (NIDA & TABER, 1982, p. 12)14. Nida criou a alegoria da

    sentena como um trem cuja carga o significado: para ele, algumas palavras tinham

    uma carga maior de sentidos e outras precisam se juntar para compor apenas um,

    porm o importante que toda essa carga chegue ao seu destino, isto , que os

    componentes significativos do texto-fonte cheguem lngua-alvo, de tal forma que

    possam ser usados pelos receptores (ARROJO, 2000, p. 12).

    Snell-Hornby (2001, p. 16) aponta que as definies de Catford e Nida so

    construdas em redor do termo equivalncia (ou de um derivado), o qual, entretanto,

    no especificado, ou seja, definido de forma clara. Segundo ela (2001, p. 26), as

    categorizaes dicotomizadas de Saussure se refletiram diretamente sobre as

    dicotomias de Nida (equivalncia formal vs. dinmica) e de Catford (correspondncia

    formal vs. equivalncia textual). Para Snell-Hornby (2001, p. 18), o uso do termo

    equivalncia e derivados se complicou ainda mais por conta da orientao lgica dada

    por Noam Chomsky e que influenciou os estudos de traduo indiretamente nos anos

    1960. De fato, de acordo com Gentzler (2009, p. 72), a base de Nida est na gramticatransformacional gerativa, que, com sua legitimidade no campo da lingustica, trouxe

    credibilidade e influncia cincia da traduo de Nida, o que confirmado por Snell-

    Hornby (2001, p. 14). Contudo, um dos problemas que, para validar sua teoria da

    traduo, Nida simplifica o modelo de Chomsky, adotando somente as partes que

    tratam das estruturas profundas e superficiais, gerando uma teoria hbrida. Gentzler

    (2009, p. 74-75) explica os pontos de contato entre as ideias de Nida e de Chomsky:

    Embora as duas teorias evolussem por diferentes razes, ambas pressupem a existnciade uma entidade profunda, coerente e unificada por trs de qualquer manifestao dalngua: o ncleo, o cerne, a estrutura profunda, a essncia, o esprito so todostermos usados por Nida, muitos dos quais derivados de Chomsky. [] a teoria da traduode Nida sondava estruturas profundas prprias de todas as lnguas, encontrando meios detransformar essas entidades em lnguas diferentes.

    14Translating consists in reproducing in the receptor language the closest natural equivalent of the source-languagemessage, first in terms of meaning and secondly in terms of style. Na mesma pgina, ele refora: Translating mustaim primarily at reproducing the message[Traduzir deve ter como objetivo primordial reproduzir a mensagem].

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    22/121

    21

    Apesar de Chomsky ter advertido contra a adoo de sua teoria para aplicaes

    na traduo quando diz explicitamente que a existncia de universais formais

    profundamente enraizados no implica que deva haver um procedimento para traduo

    entre lnguas15 (1975, p. 30) , Nida ignorou essa advertncia e elaborou um

    procedimento de traduo baseado em uma noo muito simplificada da teoria deChomsky (GENTZLER, 2009, p. 78). A meta desse estudioso americano era encontrar,

    nas estruturas profundas, a prova de que uma traduo pode transpor, em essncia, a

    mesma mensagem de uma lngua para outra. Snell-Hornby (2001, p. 41) explica que,

    nessa viso, a traduo seria uma recodificao da estrutura superficial,

    representao da estrutura profunda, no-lingustica e universal. Ao extremo, esse

    princpio tornaria tudo traduzvel. Ao que parece, chegar a esses universais da traduo

    era, portanto, um dos objetivos da cincia tradutria tal como proposta por Nida.

    Segundo Gentzler (2009, p. 83), Nida acreditava que a mensagem do texto original no

    s pode ser determinada, mas tambm traduzida, para que sua recepo seja a mesma

    que foi percebida pelos receptores originais (o chamado efeito de equivalncia), mas

    essa mensagem retirada da histria, compreendida como unificada, essncia de si,

    convertida num conceito atemporal.

    Contudo, a influncia gerativista sobre ele para por a: quanto ao ato de traduzir,

    Nida o entende mesmo como um processo de transporte, um tipo de mecanismo capaz

    de transportar uma mensagem de uma lngua para a outra (MITTMANN, 2003, p. 18) .Com isso, ele pretendia propor um novo conceito de traduo, opondo um foco antigo

    (forma da mensagem) a um foco novo (resposta do receptor) (NIDA & TABER, 1982,

    p. 1)16. Entretanto, do ponto de vista da concepo de linguagem, os princpios que

    Nida apresenta17 retomam as ideias de Tytler, que enxerga a lngua como um sistema

    homogneo e autnomo, com gnio prprio, e idealiza a linguagem, excluindo o

    sujeito da produo de sentido e desconsiderando fatores cruciais, como o contexto

    mais imediato, a situao social mais ampla e a cultura de chegada.

    15 The existence of deep-seated formal universals [] does not, for example, imply that there must be somereasonable procedure for translating between languages.16Na verdade, nesse ponto, Nida se alinha com a longa tradio de tradutores da Bblia que defenderama traduo sentido-por-sentido, iniciada com So Jernimo, que abordaremos ainda neste captulo.17(i) cada lngua tem seu prprio gnio; (ii)para se comunicar eficazmente, deve-se respeitar o gnio de

    cada lngua; (iii)para preservar o contedo da mensagem, a forma deve ser mudada.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    23/121

    22

    De acordo com Snell-Hornby (2001, p. 16), nas concepes de Catford e Nida,

    bem como de Otto Kade18, o texto era visto como uma sequncia linear de unidades e a

    traduo meramente como um processo de transcodificao, que envolvia substituir

    uma sequncia de unidades equivalentes19. Para ela (2001, p. 16), esse argumento

    est embasado numa falcia: a pressuposio de que h um grau de simetria entre aslnguas que possibilita a equivalncia20. Segundo a autora (2001, p. 18), a discusso

    em torno da expresso equivalncia comeou por conta de Roman Jakobson, que, no

    seu clebre On Linguistic Aspects of Translation (1959), fala em equivalence in

    difference. De fato, os estudos de Jakobson o texto citado em especial tiveram

    profunda influncia nas teorias de traduo aqui apresentadas, como veremos no

    prximo captulo. No entanto, a equivalncia no ser objeto de maiores discusses

    neste trabalho, pois, segundo Snell-Hornby (2001, p. 22), com quem concordamos,

    esse um conceito que no serve para a teoria da traduo, visto que, alm de

    impreciso e mal-definido, traz uma iluso de simetria entre as lnguas, como foi dito

    acima, que mal consegue existir para alm de vagas aproximaes e que distorce os

    problemas bsicos da traduo. Mossop (1983, p. 255) descarta o conceito tambm do

    ponto de vista prtico, j que direciona o tradutor para textos j existentes em vez de

    focar no contexto fornecido pelo prprio texto que est sendo traduzido.

    Voltando aos autores das concepes tradicionais, Mittmann considera tambm

    Paulo Rnai, famoso tradutor hngaro-brasileiro, e Erwin Theodor, germanista radicadono Brasil, como estudiosos dessa linha. De fato, a viso de Rnai diverge pouco da que

    Nida apresenta e claramente influenciada por este ltimo. Rnai (1987, p. 15) diz que

    h certas ideias que s podem nascer na conscincia de pessoas que falam

    determinada lngua, ou mesmo que nascem unicamente por certa pessoa falar

    determinada lngua, o que remete novamente ao gnio da lngua. Esse tipo de

    afirmao carrega uma concepo de significado cristalizado no corpo material da

    lngua. No entanto, apesar de partilhar dessa e de outras noes de Nida, como a da

    18 Otto Kade, Gert Jger e Albrecht Neubert, a chamada Escola de Leipzig, fundaram um ramo dos estudos datraduo que se pretendia rigorosamente cientfico e adotava totalmente os conceitos da Lingustica Aplicada abersetzungswissenschaft. No dedicamos mais espao Escola de Leipzig porque, embora tambm tenha sido dalinha lingustico-cientificista e adotasse conceitos como o da equivalncia, teve influncia restrita e acabou seenveredando cada vez mais, especialmente no caso de Kade, para a traduo auxiliada por computador (CAT).19 [] the text was then seen as a linear sequence of units, and translation was merely a transcoding processinvolving the substitution of a sequence of equivalence units.20 A autora ilustra bem essa falcia comparando historicamente os prprios termos equivalence e quivalenzparamostrar que essas palavras, aparentemente simtricas, se prestam a usos bem diferentes em suas culturas.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    24/121

    23

    equivalncia, Rnai revela tambm uma preocupao com a forma, fruto de seu vis

    literrio e da viso estrutural da lngua.

    Pode-se alegar que Rnai tambm deu um passo adiante por tentar incluir o

    contexto como fator de importncia na traduo. Ele comenta que traduzidas as

    palavras, ou mesmo as frases, de determinado idioma para outro, elas ficamarrancadas ao contexto mltiplo da lngua-fonte e recolocadas no contexto

    completamente diverso da lngua-alvo (RNAI, 1987, p. 13). Sua definio de

    contexto, porm, no est bem consolidada: num momento, equivale a cotexto: por

    contexto, entende-se a frase ou o trecho em que a palavra se encontra de momen to

    (p. 13); noutro, algo mais intangvel: cada palavra se apresenta, de cada vez, num

    contexto diferente, que a embebe de sua atmosfera e lhe altera o sentido, s vezes

    quase imperceptivelmente (p. 19). Mas o foco de Rnai ainda estava na mensagem.

    Mittmann sintetiza as ideias de Rnai quando diz que ele pensa a traduo como uma

    reformulao interlingual de uma mensagem, isto , o resgate do pensamento original

    da palavra usada pelo autor: para ela, Rnai parte do mesmo princpio de Nida e

    Theodor: codificao-decodificao-recodificao (MITTMANN, 2003, p. 21-22).

    O pensamento de Rnai realmente no est muito distante do que pensava

    Theodor, mas este ltimo se concentra ainda mais na interpretao correta

    (THEODOR, 1976, p. 13) do texto-fonte. Da o estudioso alemo afirmar que traduzir

    no significa exclusivamente substituir palavras de um idioma por palavras do outro,mas transferir o contedo de um texto com os meios prprios de outra lngua , cujo

    primeiro passo tem de ser a decodificao apropriada das informaes contidas no

    original e sua converso em cdigo equivalente na lngua para a qual traduz (1976,

    p. 21). Segundo Mittmann (2003, p. 21), para Theodor a lngua um instrumento do

    qual o tradutor se utiliza em seu trabalho para transmitir tudo o que decodificou do texto

    original. Tambm voltado para o trabalho literrio, Theodor procura distinguir traduo,

    verso e recriao: definindo a primeira como trabalho consciente e exato de

    transposio de um idioma para outro, entretanto desprovido de cunho artstico

    (baseado na correspondncia natural ou relativa das palavras); a segunda como

    trabalho de transposio, exato e artstico; e a terceira como trabalho de passagem

    de um texto para outro idioma, artstico, mas pouco exato (THEODOR, 1976, p. 88).

    Apesar disso, Theodor no define o que vem a ser exato, dizendo apenas que a

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    25/121

    24

    referncia , evidentemente, a obra original e que necessrio o conhecimento da

    totalidade do texto, entendida como a mensagem, para uma traduo fiel (p. 86).

    Fica patente que, segundo a linha lingustico-cientificista resumida at este

    ponto, o tradutor apenas transporta a mensagem para outro cdigo, numa reproduo

    do original, sem interferncias subjetivas, sob pena de incorrer no erro (que impede atraduo perfeita) ou de no estar fazendo algo que possa ser classificado como

    traduo. Em teoria, o procedimento correto resultaria num produto fiel ao texto-fonte

    a traduo e num tradutor invisvel no texto resultante de seu trabalho (texto de

    chegada), isto , apagando quaisquer traos de sua presena discursiva21.

    Entretanto, essa viso apresenta graves problemas. Segundo Arrojo (2000,

    p. 12), se pensamos o processo de traduo como transporte de significados entre

    lngua A e lngua B, acreditamos ser o texto original um objeto estvel, transportvel, de

    contornos absolutamente claros. Isso corrobora o que diz Mittmann (2003, p. 3):

    [] a concepo tradicional se baseia na possibilidade de descobrir/decodificar opensamento do autor e recodific-lo em outra lngua. [] todos [os autores citados] tomamcomo ponto de partida para o estudo da traduo o texto e a lngua. [] Como se o texto e alngua fossem bas capazes de guardar o sentido, a mensagem, o contedo ou ainformao. E como se o sentido fosse universal, possvel de ser transferido de uma lnguapara outra, de um texto para outro.

    A viso de lngua na base das concepes essencialistas resultou em construtos

    tericos que no abarcam a complexidade da lngua e, portanto, da traduo, como o

    caso da noo de equivalncia, que, embora tenha sido expandida e desdobrada por

    vrios autores, acabou se provando nebulosa e ineficaz. Hermans (2004, p. 19) critica

    tambm a associao entre equivalncia e preciso (outro conceito obscuro):

    A traduo no pode atingir preciso total porque no h como determinar em queconsistiria a preciso total. Assim, no tem sentido continuar pensando em traduo emtermos de exigncias de equivalncia em todos os aspectos ao mesmo tempo.22

    De acordo com Snell-Hornby (2001, p. 28), a teoria da traduo cientfica e sob

    orientao lingustica permaneceu, ento, atomstica, fragmentria e desconectada da

    linguagem na sua realizao concreta, e isso paralisou o desenvolvimento datradutologia de base lingustica (2001, p. 1). Alm das categorizaes estanques

    (dicotomias e tipologias) (2001, p. 29), a autora retoma Beaugrande para elencar os

    21 A exigncia da fidelidade ao original e da invisibilidade discursiva do tradutor j foi ironizada pelo escritor hngaroDesz Kosztolnyi no conto O Tradutor Cleptomanaco (ver Referncias Bibliogrficas), em que o protagonista umtradutor que furta objetos de valor dos textos originais, isto , no os repassa ao texto traduzido.22 Translation cannot produce total accuracy because there is no way of determining what total accuracy wouldconsist of. It is therefore pointless to continue to think of translation in terms of demands for e quivalence in allrespects at once.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    26/121

    25

    problemas dessas teorias: os conceitos e procedimentos lingustico-cientificistas eram

    totalmente inapropriados para a traduo, como, por exemplo, sua nfase na

    classificao formal de constantes em prejuzo das variveis; a restrio do estudo ao

    nvel da palavra e da orao; e, sobretudo, a excluso do estudo do significado

    (SNELL-HORNBY, 2001, p. 67). Com isso, segundo a mesma autora (2001, p. 67),ganhou cada vez mais espao a opinio de que a gramtica transformacional e a

    lingustica estrutural no foram positivas para o desenvolvimento de uma teoria geral da

    traduo. Com o declnio das concepes tradicionais no meio acadmico entre os

    anos 1970 e 1980, comearam a surgir teorias descoladas do cientificismo.

    1.1.2 Perspectivas contemporneas: leitura, cultura, discurso, reenunciao

    Em 1981, Peter Newmark declara que v conceitos como unidade de traduo e

    equivalncia como patos mortos, por serem tericos demais ou arbitrrios demais

    (apud SNELL-HORNBY, 2001, p. 21). Essa era, com maior ou menor grau de

    radicalismo, a postura dos estudos na poca: renegar a influncia lingustica.

    Os estudos de traduo passaram, ento, a seguir em diferentes caminhos: os

    estudos culturais surgiram com fora, as teorias da recepo tambm marcaram alguns

    autores, enquanto a perspectiva discursiva teve um crescimento discreto. Em todo

    caso, esses novos caminhos permitem traar uma linha entre os tericos tradicionais Tytler, Catford, Nida, Kade, Theodor e Rnai e os autores que representam uma

    perspectiva contestadora, como diz Mittmann. Esse termo apenas genrico para

    designar uma postura contrria ao cientificismo, mas na realidade h diferentes vises

    contestadoras. No caso da traduo, nem sempre possvel falar de escolas ou

    correntes, por isso abordaremos os autores isoladamente. Entre os contestadores,

    inclumos Francis Aubert, Rosemary Arrojo, Theo Hermans, Lawrence Venuti, Brian

    Mossop, Barbara Folkart e Solange Mittmann, cujas ideias passamos a explicar.

    Sabe-se, no entanto, que as mudanas no ocorrem do dia para a noite. Talvez

    por isso mesmo seja interessante comear por Aubert, pois ele representa uma

    transio entre a concepo logocntrica e a discursiva. Noruegus radicado no Brasil,

    Aubert mantm pontos de contato com a tradio em alguns aspectos como, por

    exemplo, o foco na mensagem e na equivalncia, talvez reflexo da chegada tardia de

    algumas teorias lingusticas no Brasil , mas tambm acrescenta novas facetas

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    27/121

    26

    problemtica da traduo. Seu estudo sobre a fidelidade, por exemplo, foi uma grande

    contribuio. Apesar de estudar a mensagem, Aubert afirma que no se trata, nem

    seria o caso, de uma mesma mensagem: so duas as mensagens (1993, p. 32): uma

    mensagem que fruto da inteno do autor (pretendida) e outra que se realiza na

    recepo (efetiva) de cada ato comunicativo (p. 73). A efetiva a realizao de umadas potenciais leituras da pretendida (uma para cada ato de recepo) (p. 74). No caso

    da traduo, seriam dois atos comunicativos: o ato 1 e o ato 2, chamado ato tradutrio.

    Este toma como ponto de partida uma mensagem efetiva, isto , [] tal como

    decodificada pelo receptor-tradutor, e a transforma em nova mensagem pretendida (no

    idntica mensagem efetiva), que, por sua vez, ser apreendida como uma nova

    efetiva (p. 74). Assim, original e traduo so duas roupagens lingusticas, mas

    visando fins comunicativos similares, que se aproximam o suficiente (sem se

    confundirem) para que uma seja percebida como sendo a traduo a equivalncia

    da outra (p. 32). Sua viso de linguagem e de traduo ainda objetifica o processo

    comunicativo. Segundo Mittmann (2003, p. 58), Aubert no chega a romper com a

    noo de mensagem da concepo informacional, isto , de transmisso de informao

    entre os interlocutores. Porm, Aubert discorda da tradio num ponto essencial: para

    ele, no h um sentido nico, transportvel, mas mensagens que mantm entre si uma

    relao de interseco, no de identidade (1993, p. 74). Alm disso, baseado em

    Pcheux, Aubert enxerga condies de produo e de recepo bem mais abrangentesdo que as previstas pelo esquema comunicativo tradicional. Segundo ele (1993, p. 24),

    Em qualquer situao em que ocorre uma interao intersubjetiva inclusive, mas noapenas, com o suporte do cdigo lingustico , estabelece-se, entre os participantes(interlocutores), uma rede de relaes imagticas (hipteses) que, em sntese, pode serdescrita como segue: (a) o Emissorcomparece relao com: (i) uma determinada imagemde si mesmo, (ii) [] do mundo (viso de mundo), (iii) [] da situao especfica dainterao, (iv) [] do(s) seu(s) interlocutor(es), (v) [] da auto-imagem de seu(s)interlocutor(es), (vi) [] da imagem que tal(is) interlocutor(es) se faz(em) do Emissor, (vii)[] da imagem que tal(is) interlocutor(es) se faz(em) do mundo e (viii) [] da imagem quetal(is) interlocutor(es) se faz(em) da situao especfica da interao; (b) os Receptores tm,

    cada um por si, (ix) uma determinada imagem de si mesmo, (x) [] do mundo (viso demundo), (xi) []da situao especfica da interao, (xii) [] do Emissor [], (xiii) [] daauto-imagem do emissor [], (xiv) [] da imagem que tal(is) interlocutor(es) se faz(em)dele, Receptor, (xv) [] da imagem que tal(is) interlocutor(es) se faz(em) do mundo e (xvi)[] da imagem que tal(is) interlocutor(es) se faz(em) da situao especfica de interao.

    Vemos que sua ideia de emissor/receptor mais profunda que a do

    estruturalismo e do funcionalismo, chegando a mencionar uma relao dialgica entre

    eles (p. 25), mas sem explicar em que sentido e como se daria essa relao. Por outro

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    28/121

    27

    lado, sua definio de traduo como uma segunda relao comunicativa, que se

    substitui primeira ou que, de alguma forma, a complementa (p. 10) primeira vista

    parece um processo de codificao-decodificao duplicado. Para Aubert, o ato

    tradutrio estaria sujeito substituio ou variao de um ou mais componentes do

    complexo comunicativo, mas tais componentes so basicamente os participantespropriamente ditos, o cdigo e/ou o referente, mensagem e/ou canal (p. 11). E sua

    ideia da equivalncia entre textos ainda tem influncias da concepo cientificista.

    At esse ponto, pode-se dizer que Aubert guarda semelhanas demais com os

    lingustico-cientificistas, o que levanta dvidas sobre coloc-lo entre contestadores. No

    entanto, sua viso do processo tradutrio relaes dinmicas entre mltiplas

    imagens leva-o a refletir sobre o papel da viso de mundo na produo de sentido e

    questionar os axiomas da fidelidade e do apagamento (invisibilidade), proporcionando

    sua verdadeira ruptura com a tradio. por conta dessa reflexo que vemos o

    embrio de uma perspectiva mais discursiva nas concluses de Aubert (1993, p. 80):

    [] o tradutor, longe de ser um mdium passivo para manifestao do Autor e do texto departida, ter de tomar decises nos mais diversos nveis: comunicativo, lingustico, tcnico., portanto e inevitavelmente, agente, elemento ativo,produtorde texto, de discurso.

    Enquanto Aubert mostra uma forte tendncia ao funcionalismo jakobsoniano,

    Arrojo claramente tem influncia de Roland Barthes. Porm, se precisamos fazer algum

    esforo para separar Aubert das concepes tradicionais, o mesmo no se d com

    Arrojo, que as critica ferozmente por se apoiarem numa viso de lngua como depsito

    de significados. Com o intuito de ilustrar como, levada ao extremo, essa ideia torna a

    traduo algo invivel, Arrojo toma o conto de Jorge Luis Borges Pierre Menard,

    autor del Quijote. O conto uma espcie de fortuna crtica do fictcio estudioso Menard,

    cuja enorme obra visvel, embora extensa, menos importante do que seu trabalho

    invisvel. Trata-se de uma reproduo do Quixote, uma reescrita to pura que se

    assemelha a uma leitura, uma forma invisvel de traduzir. Diz Borges (2007, p. 38):

    Ele no queria compor outro Quixote o que seria fcil , mas o Quixote. Intil acrescentarque nunca levou em conta uma transcrio mecnica do original; no se propunha a copi-lo. Sua admirvel ambio era produzir pginas que coincidissem palavra por palavra elinha por linha com as de Miguel de Cervantes.

    No conto, Menard acredita que necessrio se tornar o prprio autor, incluindo

    recuperar a f catlica, guerrear contra os mouros ou contra os turcos, esquecer a

    histria da Europa entre os anos de 1602 e de 1918, ser Miguel de Cervantes

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    29/121

    28

    (BORGES, 2007, p. 39). Na verdade, a ironia do conto que a traduo de Menard

    rigorosamente o mesmo texto que o de Cervantes uma repetio na ntegra das

    palavras, sintaxe, tudo. o mesmo texto. Ele busca recuperar o significado original de

    Cervantes, mas consegue apenas reproduzir suas palavras. Ento, diz Arrojo:

    Paradoxalmente, ao repetir a totalidade do texto de Cervantes, Menard ilustra aimpossibilidade de repetio total, exatamente porque as palavras do texto de Cervantesno conseguem delimitar ou petrificar seu significado original, independentemente de umcontexto ou de uma interpretao. [] Assim, ainda que um tradutor conseguisse chegar auma repetio total de um determinado texto, sua traduo no recuperaria nunca atotalidade do original; revelaria, inevitavelmente, uma le itura, uma interpretao desse textoque, por sua vez, ser, sempre, apenas lido e interpretado, e nunca totalmente decifrado oucontrolado (2000, p. 21-22).

    Esmiuando a obra, a autora explica que Borges construiu o filsofo Menard com

    uma viso da linguagem que anula o prprio propsito de traduzir23. Afinal, se a

    identidade de sentidos tal qual o quadro de enunciao primordial fosse possvel, em

    ltima instncia a busca por ela conduziria, necessariamente, reiterao incua

    (AUBERT, 1993, p. 32). Segundo Arrojo (2000, p. 19), o projeto de Menard reflete uma

    teoria da traduo semelhante s de Catford e Nida, j que parte de uma teoria da

    linguagem que autoriza a possibilidade de determinar e delimitar o significado de uma

    palavra, ou mesmo de um texto, fora do contexto em que lida ou ouvida, o que

    tambm se aplica aos outros autores da linha lingustico-cientificista apresentados aqui.

    Para a autora, Menard uma representao, ainda que exagerada, do tradutor

    projetado por Tytler: algum que deve repetir um texto de outra lngua, de outro autor e

    de outro momento sem anular a si mesmo e ao seu contexto. E h outro problema:

    Ainda que um tradutor conseguisse chegar a uma repetio total de um determinado texto,sua traduo no recuperaria nunca a totalidade do original; revelaria, inevitavelmente,uma leitura, uma interpretao desse texto que, por sua vez, ser sempre apenas lido einterpretado, e nunca totalmente decifrado ou controlado (ARROJO, 2000, p. 22).

    A concluso a que chega a autora, em contraste com as teorias essencialistas,

    que a traduo seria terica e praticamente impossvel se esperssemos dela uma

    23 J houve muitas discusses sobre a impossibilidade da traduo (ver SHUTTLEWORTH & COWIE, 2003, p. 179-180; BASSNETT, 1994, p. 32-37). No discutiremos esse assunto, mas segundo Ilari (2007), em alguns casos, acrena da impossibilidade decorre de uma viso radical do princpio estruturalista da arbitrariedade do signo(ausncia de qualquer conexo necessria entre a forma de uma palavra e seu significado, de acordo com Trask,2008, p. 36), segundo o qual cada lngua organiza seus signos atravs de uma complexa rede de relaes que noser reencontrada em nenhuma outra lngua (ILARI, 2007, p. 65), que a ideia bsica por trs do gnio da lngua.Ilari (2007, p. 66) acredita que alguns estruturalistas radicalizaram tal princpio, chegando por raciocnio lgico aoparadoxo da impossibilidade de traduzir: [S]e cada lngua recorta a seu modo a experincia, como explicar que aspessoas traduzem de uma lngua para outra? Essa prtica, que todos conhecemos e que real, no fica excluda emprincpio?. Segundo Trask (2008, p. 36), a presena dessa arbitrariedade macia que torna impossvel o tradutoruniversal sonhado pelos filmes de fico cientfica. Entretanto, o problema central desse raciocnio (a traduo impossvel) que ele se fundamenta na viso de que a traduo uma transposio de signos isolados.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    30/121

    29

    transferncia de significados estveis (ARROJO, 2000, p. 42) entre duas lnguas,

    porque o prprio significado de uma palavra, ou de um texto, na lngua de partida,

    somente poder ser determinado provisoriamente, atravs de uma leitura (2000, p. 23) .

    fcil ver que o foco na recepo a base terica de Arrojo. A partir disso, ela

    desenvolve seus dois conceitos principais. Primeiro, o do texto como palimpsesto, quealude prtica antiga de se raspar a tinta dos pergaminhos para utiliz-los novamente,

    uma metfora para sua ideia de que o texto nunca pode ser original: ele se apaga,

    numa cultura e numa poca, para dar lugar a outra escritura (ou interpretao, ou

    leitura, ou traduo) do mesmo texto (p. 23). Segundo, a traduo como leitura;

    assim, ela deixa de ser uma atividade que protege os significados originais de um

    autor e assume sua condio de produtora de significados; mesmo porque proteg-los

    seria impossvel (p. 24). Isso porque, no entendimento da autora, lersignifica aprender

    a produzir significados, a partir de determinado texto, que sejam aceitveis para a

    comunidade cultural da qual participa o leitor (2000, p. 76). Um ltimo ponto de

    interesse que Arrojo afirma que o texto, literrio ou no, s pode ser abordado atravs

    de uma leitura ou interpretao e que nenhum leitor ou tradutor pode evitar que seu

    contato com os textos (e com a prpria realidade) seja mediado por suas

    circunstncias, suas concepes, seu contexto histrico-social (2000, p. 38). Falando

    sobre a obra de Arrojo, Mittmann (2003, p. 29) faz um comentrio pertinente: por

    essa vinculao inevitvel histria, portanto, que se forma a responsabilidade autoraldo tradutor, que se manifesta nas tomadas de posio, tanto na escolha do texto a ser

    traduzido como a cada escolha entre opes durante a traduo. Assumir essa tomada

    de posio, que inevitvel (conforme veremos na teoria dialgica), a chave para

    uma traduo menos hipcrita e menos ingnua, sem a crena do acerto assptico

    (ARROJO apud MITTMANN, 2003, p. 29).

    Um caminho diverso desse foi o dos estudos culturais. O holands Theo

    Hermans um dos autores que, nos anos 1980, elaboraram uma concepo de

    traduo dentro da perspectiva cultural entre os pioneiros, esto James Holmes

    (Estados Unidos), Gideon Toury, Itamar Even-Zohar (Israel); Andr Lefevere, Jos

    Lambert (Blgica); e Susan Bassnett (Inglaterra). Segundo Hermans (2004, p. 13), cada

    um trouxe sua especialidade e seus interesses: Even-Zohar com a hiptese do

    polissistema, Toury com a nfase no empirismo, Lambert com a pesquisa em histria

    da traduo, Lefevere com a filosofia da cincia e Holmes com uma viso sinttica

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    31/121

    30

    abarcando teoria e prtica tradutrias. Influenciados pelos formalistas russos e,

    posteriormente, pelo Crculo de Praga (Shklovskij, Tynianov, Jakobson, etc.), esses

    estudiosos eram partidrios da ideia de que a literatura um dinmico sistema de

    sistemas (polissistema) em que escolas/tendncias conservadoras e inovadoras se

    interseccionam e competem, alternando-se em posies centrais e perifricas(TAIVALKOSKI-SHILOV, 2003, p. 1-2; SNELL-HORNBY, 2001, p. 23); eles tambm

    acreditavam que, do ponto de vista da literatura, toda traduo implica um grau de

    manipulao do texto-fonte para um dado propsito24 (HERMANS, 2004, p. 9), da a

    alcunha de Escola da Manipulao. O polissistema foi uma teoria muito difundida nos

    estudos culturais tambm. A hiptese da manipulao foi levada adiante principalmente

    por Lefevere.

    Com uma abordagem emprica, no-utilitria, descritiva e orientada para o texto-

    alvo, os partidrios dos estudos descritivos se opunham prescrio de normas e

    diretrizes para a prtica ou avaliao da traduo (HERMANS, 2004, p. 7). Sendo

    assim, seu ponto de partida exatamente oposto ao representado pela escola

    orientada pela lingustica: no equivalncia pretendida, mas manipulao assumida

    (SNELL-HORNBY, 2001, p. 22)25. Segundo Hermans (2004, p. 15), alguns dos

    conceitos-guia e insights do paradigma descritivo, como tambm conhecido,

    acabaram por se difundir nos estudos da traduo em geral. Apesar disso, na dcada

    de 1990, o prprio Hermans reconhece que, com a morte de Holmes e Lefevere e comalguns dos trabalhos de Even-Zohar e Toury tendo perdido o foco, o paradigma perdeu

    fora, embora tenha continuado atravs da pulverizao de seus conceitos dentro das

    novas abordagens. Com isso, as anomalias e contradies do paradigma foram

    expostas, o que motivou Hermans a fazer uma crtica interna e repensar o modelo

    (2004, p. 15).

    justamente por conta dessa autocrtica que nosso interesse so os rumos que

    Hermans tomou, e no os outros estudiosos do grupo. Hermans (1996a, p. 1) voltou-se

    para o outro na traduo, isto , as ambivalncias e paradoxos, a hibridez e

    pluralidade da traduo, sua alteridade e estranheza, em contraste com a percepo da

    traduo como rplica ou reproduo, algo que refere, de forma simples e no

    24All translation implies a degree of manipulation of the source text for a certain purpose. Originalmente em TheManipulation of Literature, de 1985, editado por Hermans, obra que difundiu o novo paradigma.25 Hence their starting-point is the exact opposite of that represented by the linguistically oriented school []: notintended equivalence, but admitted manipulation.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    32/121

    31

    problemtica, a um original. Para ele (1996a, p. 3), os textos traduzidos (como outros

    textos, s que mais) so sempre, inerentemente, plurais, instveis, descentralizados,

    hbridos; a voz do outro, a voz do tradutor, est sempre l26. Tendo em vista que essa

    parte da obra de Hermans integra o aparato terico que adotamos, explicaremos sua

    viso mais detalhadamente no prximo captulo.Tambm influenciado pela Escola da Manipulao e pelos estudos culturais em

    geral, encontramos Lawrence Venuti. Considerado um dos expoentes da gerao de

    estudiosos que apareceu dos anos 1970 em diante, a hiptese de Venuti de que a

    traduo uma prtica cultural que est profundamente implicada na manuteno ou

    na ruptura das relaes de dominao e de hierarquia entre lnguas e entre culturas;

    para ele, a traduo fluente tem sido escandalosamente utilizada para consolidar essas

    relaes de dominao entre culturas no processo de colocar aquilo que traduzido a

    servio da cultura-alvo (VENUTI, 2002, p. 15).

    Tendo em vista que suas consideraes muitas vezes se voltam para as

    consequncias do uso da traduo na relao entre culturas, o que nos interessa so

    principalmente suas discusses sobre a autoria e a invisibilidade no exerccio da

    traduo. Discutindo os limites e conceitos de autoria e, consequentemente, as noes

    de direitos autorais (do ponto de vista mercadolgico, legal e conceitual), Venuti conclui

    que os direitos autorais contemporneos desprezam as relaes que a traduo

    mantm com o texto estrangeiro (para ele, mimtica e interpretativa, regida por cnonese mtodos culturais e histricos) e com os materiais culturais domsticos (mimtica e

    comunicativa, atravs do direcionamento desses materiais a um pblico especfico).

    Essas relaes implicariam uma autoria coletiva, fruto de um grupo social com valores

    caractersticos, em oposio a definies individualistas de autoria baseadas no labor

    (lockeana) ou na personalidade (romntica). Sobre isso, ele conclui:

    Portanto, um texto literrio27 nunca pode simplesmente expressar o significado pretendidopelo autor num estilo pessoal. O texto, ao contrrio, coloca em funcionamento foras

    coletivas nas quais o autor pode, de fato, ter um investimento psicolgico, mas que, por suaprpria natureza, despersonalizam e desestabilizam o significado (VENUTI, 2002, p. 25).

    26 My point is that translated texts like other texts, only more so are always, inherently, plural, unstable, de-centred, hybrid. The othervoice, the translators voice, is always there.27 Como dissemos na introduo, a maioria dos estudiosos da traduo desenvolveu suas teorias com base noestudo do texto literrio. Snell-Hornby (2001, p. 25) faz uma crtica nesse aspecto: [] all theorists, whether linguistsor literary scholars, formulate theories for their own area of translation; little attempt is made to bridge the gapbetween literary and other translation. [todos os tericos, quer linguistas ou estudiosos da literatura, formulamteorias para sua prpria rea de traduo; h poucas tentativas de criar uma ponte entre a traduo literria e asoutras]. Nossa meta aqui ser mostrar que algumas das concluses seminais sobre textos literrios que esto nabase da teoria desses autores se aplicam tambm ao texto no literrio.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    33/121

    32

    Segundo Venuti (2002, p. 99), o cerne da questo estaria no fato de o conceito

    ocidental de autoria ser fundamentalmente romntico, em que o trabalho do autor

    visto como uma autorrepresentao original e transparente, no mediada por

    determinantes transindividuais (lingusticas, culturais e sociais). Sendo assim,

    prossegue (2002, p. 101), a traduo no vista como um texto independente,interpondo diferenas lingusticas e literrias especficas da cultura-alvo, acrescentadas

    ao texto estrangeiro para torn-lo inteligvel nessa cultura e as quais o autor estrangeiro

    no previu nem escolheu. Por isso, ele conclui (2002, p. 14) que nenhum tradutor tem

    controle do alcance de sua traduo nem pode prever as consequncias, os usos que

    dela se fizerem, os interesses a que venha servir e os valores que venha a transmitir.

    Embora critique essa concepo individualista de autoria, Venuti , ao mesmo

    tempo, um tanto obscuro e extremista ao afirmar que a autoria coletiva: para ele, seria

    uma colaborao com um grupo social especfico, na qual o autor leva em

    considerao os valores culturais caractersticos daquele grupo (2002, p. 116). Essa

    viso diametralmente oposta ao gnio criativo romntico, quase esvaziada de

    subjetividade, precisaria ser mais bem fundamentada para servir como argumento para

    a alegao de que a traduo deveria ter o mesmo status lingustico da obra que

    traduz. Uma ginstica retrica dessas propores talvez no seja necessria quando a

    traduo vista pela tica do dialogismo, isto , como um enunciado um enunciado

    que retoma outros , um elo na corrente verbal humana. No seria o caso de ver atraduo como autoria, mas ver a autoria na traduo. Segundo Mittmann (2003, p. 30),

    na traduo, a autoria se manifesta pela interveno ativa do tradutor na

    transformao do texto original em texto traduzido atravs de escolhas. Na nossa

    viso, essas escolhas so orientadas pelas relaes dialgicas do tradutor com oj-dito

    (no apenas o texto de partida, mas todos os discursos que o sujeito que traduz

    conhece sobre os elementos presentes nesse texto-fonte) e com a resposta ativa da

    sua audincia (no apenas seus leitores projetados, mas tudo que eles podem vir a

    questionar, julgar, objetar) (ver Captulo 2).

    Na tica de Venuti (1997, p. 18), a traduo a substituio forosa da diferena

    lingustica e cultural do texto estrangeiro por um texto que seja inteligvel ao leitor da

    lngua-alvo28; ou, em outras palavras, um processo pelo qual a cadeia de significantes

    28Translation is the forcible replacement of the linguistic and cultural difference of the foreign text with a text that willbe intelligible to the target-language reader.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    34/121

    33

    que constitui o texto da lngua-fonte substituda por uma cadeia de significantes na

    lngua-alvo, que o tradutor produz por fora de uma interpretao29 (1997, p. 17). Com

    essas definies, a responsabilidade do que vai ser enunciado recai sobre o tradutor.

    Por isso, Venuti defende que preciso uma interferncia direta da parte do tradutor

    para que a traduo no seja um instrumento de domnio, mas um espao denegociao das diferenas lingusticas e culturais, isto , das diversas vozes

    envolvidas. Nessa concepo, o tradutor algum que introduz sua viso de mundo no

    texto traduzido, assumindo uma postura de autor de seu discurso.

    A despeito da larga aceitao das ideias de Venuti, Anthony Pym no o isenta de

    crticas: sua inclinao panfletria e academicista, sua reviso histrica por demais

    seletiva e seu chamado por uma interveno ativa dos tradutores baseado em

    tendncias excessivamente engajadas em polticas minoritrias se provaram

    prejudiciais sua obra e foram contundentemente criticados (PYM, 1995). Sendo

    assim, os mritos de Venuti so as questes que levanta sobre o papel e a posio do

    tradutor como sujeito que vivencia situaes no mundo real e o questionamento da

    invisibilidade. Vale notar que sua concepo de linguagem difere daquela do

    cientificismo e est prxima da viso dialgica30. Isso fica claro na sua definio de

    significado (VENUTI, 1997, p. 17-18):

    Por ser um efeito de relaes e diferenas entre significantes ao longo de uma correntepotencialmente infinita (polissmica, intertextual, sujeita a infinitas conexes), o significado sempre diferencial e deferido, nunca presente como uma unidade. [] uma relaocontingente e plural, no uma essncia unificada imutvel, e portanto no pode ser julgadade acordo com conceitos de base matemtica como equivalncia semntica oucorrespondncia ponto a ponto31.

    Nas dcadas de 1980 e 1990, respectivamente, dois canadenses abriram uma

    nova frente para o estudo da traduo: Brian Mossop e Barbara Folkart, em que nos

    29Translation is a process by which the chain of signifiers that constitutes the source-language text is replaced by achain of signifiers in the target language which the translator provides on the strength of an interpretation.30 Venuti no faz referncia a obras do Crculo de Bakhtin, mas apresenta uma proximidade com o dialogismo naparte lingustica. Achamos um provvel elo em Jacques Derrida, a quem Venuti remete no trecho acima. De acordocom Gentzler (2009, p. 186), no fim da dcada de 1960, Derrida fez parte do grupo francs Tel Quel(nome derivadodo jornal que publicavam), o qual integravam tambm Julia Kristeva e Tzvetan Todorov. A primeira, conhecidaestudiosa de Bakhtin, j afirmou que a influncia bakhtiniana a impulsionou para alm do estruturalismo (KRISTEVA,1985). Todorov, que mais tarde publicaria Mikhal Bakhtine: le principe dialogique, foi um dos responsveis peladifuso dos escritos do Crculo na Frana. Desse modo, embora alguns aleguem que Derrida desconhecia Bakhtin, provvel que algumas das ideias tenham chegado at ele por pelos autores citados.31 Because meaning is an effect of relations and differences among signifiers along a potentially endless chain(polysemous, intertextual, subject to infinite linkages), it is always differential and deferred, never present as anoriginal unity. [] Meaning is a plural and contingent relation, not an unchanging unified essence, and therefore atranslation cannot be judged according to mathematics-based concepts of semantic equivalence or one-to-onecorrespondence.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    35/121

    34

    basearemos neste trabalho. Mossop se dedicou primeiro a compreender o sujeito da

    traduo e depois partiu dos estudos de Voloshinov para definir traduo como discurso

    reportado. Folkart tomou de Mossop essa definio e buscou traos da presena do

    tradutor (sujeito que ocupa um lugar espao-temporal). No Captulo 2, explicaremos de

    forma mais detalhada as teorias desses autores que esto na base do nosso estudo.A ltima autora cujo trabalho cabe comentar no mbito deste estudo Solange

    Mittmann, j no sculo XXI. A abordagem de Mittmann se revela inovadora por

    combinar de modo bem-sucedido a Anlise do Discurso Francesa e a traduo.

    Apoiada em Michel Pcheux, a autora introduz a noo de sujeito ideolgico

    indivduo que se reconhece como sujeito, exercendo os rituais do reconhecimento

    ideolgico, mas desconhece o mecanismo desse reconhecimento (MITTMANN, 2003,

    p. 37). Com base em Eni Orlandi, ela incorpora o conceito da discursividade, segundo o

    qual a ideologia constitutiva do discurso e intervm na sua textualidade (2003, p.

    38). No entanto, o que importa nossa pesquisa so suas consideraes tericas para

    o estudo tradutrio32. Em primeiro lugar, Mittmann (2003, p. 56) reafirma que o tradutor

    no resgata uma mensagem do texto original e a recodifica no texto da traduo, como

    quer a concepo logocntrica. Pelo contrrio (MITTMANN, 2003, p. 57):

    Durante a leitura do texto original, o tradutor no decodifica informaes, mas produzsentidos. A partir da, o tradutor produz um novo discurso, sobre a base das sistematicidadeslingusticas da lngua da traduo. Este discurso se materializar num novo texto, que o

    texto da traduo. O leitor da traduo, por sua vez, ao ler o texto no estar efetuando umadecodificao, ou um resgate de uma mensagem ali posta pelo autor com as palavras dotradutor, mas estar tambm produzindo sentidos.

    Mittmann (2003, p. 56) critica duramente essa viso tradicional para ela,

    baseada na imagem do texto como um ba capaz de carregar o pensamento do autor.

    A autora (2003, p. 57) diz que a viso do texto como imbricado com o discurso nos leva

    a considerar o texto da traduo no como algo isolado, fechado em si mesmo, mas

    relacionado s condies de produo, o que inclui o texto original, os textos de

    dicionrios, outros textos a que o tradutor recorre durante o processo tradutrio, que

    so materializaes de discursos. A noo de mensagem tambm discutida: para

    Mittmann, precisa ser contestada porque pressupe uma codificao e uma

    transmisso de informao.

    32 Mittman (2003) faz um interessante estudo do processo tradutrio com um corpus formado pelas notas do tradutorem Cem Anos de Solido, de Garca Marquez.

  • 7/27/2019 O TRADUTOR INFIEL - A VOZ DA REENUNCIAO

    36/121

    35

    Alm dos autores e campos de pesquisa que apresentamos, Bohunovsky (2001,

    p. 53) aponta ainda como tendncias contemporneas a Desconstruo, o Ps-

    colonialismo, a Psicanlise, o Ps-estruturalismo e os Estudos de Gnero. Dentre as

    diversas formas contemporneas de enxergar a traduo que discutimos rapidamente,

    as ideias de Mossop, Folkart e Hermans so a abordagem que consideramos maisfrutfera por sua associao com uma teoria dialgica da linguagem (ver Captulo 2).

    Para fechar esta parte, importante dizer que as perspectivas contemporneas

    que apresentamos at aqui tm pouco alcance fora da academia e pouca influncia

    sobre a prtica da traduo no cotidiano. Apesar das crticas contemporneas, a

    concepo tradicional qual seja, a da traduo como decodificao-transposio do

    sentido tal e qual criado originalmente pelo autor como requisito para uma traduo

    fiel, aquela em que o tradutor se retira para os bastidores, cedendo-lhe o palco

    ainda amplamente dominante na sociedade e at mesmo entre os tradutores33. por

    isso que direcionaremos nossas crticas a essa viso essencialista tradicional, e no

    aos autores contemporneos includos na perspectiva contestadora.

    Tendo exposto os principais autores com suas respectivas teorias de traduo,

    passaremos agora a discutir, ainda que no exaustivamente, aspectos fundamentais

    fidelidade e invisibilidade para a traduo tal como vista hoje.

    1.2 A noo de fidelidade

    Temos reforado at aqui que o conceito de traduo um construto scio-

    histrico, fundado nos discursos sobre ela. Segundo Folkart (1991, p. 366),

    Assim como o discurso social, do qual no por outro lado seno uma manifestaoparticular, o discurso da traduo uma constelao de ideias, atitudes, clichs,

    julgamentos de valor que circulam por conta da traduo, tomadas de posio cientficas oulugares-comuns adotados sem exame crtico e repassados de praticantes a tericos e[novamente] a praticantes. Dentro do discurso da traduo, se criou todo um nexo delugares-comuns em torno da fidelidade, noo pr-cientfica com vieses ideolgico,

    axiolgico, at poltic