O TEXTO E O DISCURSO: A CONSTRUÇÃO DE...

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77 Leitura e Produção de Textos 4.1 Contextualizando Depois de aprendermos a importância da linguagem utilizada pelo sujeito na comunicação, chegou o momento de perceber as nuances dos elementos constitutivos do texto, como objeto material da produção de sentido, e de outros elementos, como o contexto, que dá suporte ao texto na produção de sua significação. Ainda, vamos ver como os elementos autor/falante e receptor/ouvinte participam da efetiva construção do sentido, da significação, do significado de uma produção comunicativa. É chegada a hora, então, de perceber que estamos envolvidos em inúmeros fatores socioculturais, para que possamos exercer nossa capacidade de sujeito social: interagir. Também sentimos, a partir deste momento, necessidade de compreender como os elementos que nos constituem podem constituir nossas produções comunicativas e ser presentificados. Entre pressupostos e subentendidos, vamos nos constituindo e dando ênfase a aspectos de nossa produção comunicativa, seja no papel de autor, seja no papel de receptor. Isso nós fazemos com elementos que nos são intrínsecos, ou seja, nós exercemos, como em nossa mente bipartida após as descobertas freudianas, funções, ora conscientemente ora inconscientemente. Assim, neste capítulo, vamos entender o porquê de, em determinados momentos, elaborarmos um texto ambíguo por razões específicas e, em outros, construirmos inconscientemente a ambiguidade, que faz com que nosso interlocutor questione o que quisemos, efetivamente, dizer com o que dissemos. O TEXTO E O DISCURSO: A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS CAPÍTULO 4 4

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77Leitura e Produção de Textos

4.1 Contextualizando

Depois de aprendermos a importância da linguagem utilizada pelo sujeito

na comunicação, chegou o momento de perceber as nuances dos elementos

constitutivos do texto, como objeto material da produção de sentido, e de

outros elementos, como o contexto, que dá suporte ao texto na produção

de sua significação. Ainda, vamos ver como os elementos autor/falante e

receptor/ouvinte participam da efetiva construção do sentido, da significação,

do significado de uma produção comunicativa.

É chegada a hora, então, de perceber que estamos envolvidos em

inúmeros fatores socioculturais, para que possamos exercer nossa capacidade

de sujeito social: interagir.

Também sentimos, a partir deste momento, necessidade de compreender

como os elementos que nos constituem podem constituir nossas produções

comunicativas e ser presentificados. Entre pressupostos e subentendidos, vamos

nos constituindo e dando ênfase a aspectos de nossa produção comunicativa,

seja no papel de autor, seja no papel de receptor. Isso nós fazemos com

elementos que nos são intrínsecos, ou seja, nós exercemos, como em nossa

mente bipartida após as descobertas freudianas, funções, ora conscientemente

ora inconscientemente.

Assim, neste capítulo, vamos entender o porquê de, em determinados

momentos, elaborarmos um texto ambíguo por razões específicas e, em outros,

construirmos inconscientemente a ambiguidade, que faz com que nosso

interlocutor questione o que quisemos, efetivamente, dizer com o que dissemos.

O TEXTO E O DISCURSO: A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS

CAPÍTULO 44

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Capítulo 4

78 Leitura e Produção de Textos

Pois bem, esse é nosso cenário neste capítulo. Esse é o cenário que compõe

mais um de nossos momentos de interação, assim, eu e você produzimos

sentido, em um processo dialógico.

Ao final de nosso trabalho, você estará apto a:

• entender os elementos constitutivos do texto e do discurso;

• perceber a importância dos interagentes na produção de sentidos;

• reconhecer que os sujeitos, na produção do discurso, são revestidos

de papéis sociais;

• compreender que nem todos os significados produzidos pelos textos

são intencionais; e,

• atentar para a importância dos elementos da construção de sentido.

4.2 Conhecendo a teoria

Um dos conhecimentos mais importantes que precisamos adquirir para

podermos começar a discutir o que são discurso e texto é que o texto é a

materialização do discurso, ou seja, é aquilo que é posto na realidade concreta, de

forma que possa ser lido, ou ouvido, ou visto por outra pessoa. O texto, portanto,

não é o pensamento, mas sua expressão: é aquilo que você vê, ouve ou lê.

Com essa perspectiva em mente, surge, então, o questionamento de o

que é o discurso, já que o texto é sua materialização, e deve constituir um

conjunto significativo para quem o toma para interpretar. Assim, é importante

saber alguns aspectos constitutivos do texto, por um lado, e do discurso, por

outro, pois “as bases linguísticas [do texto] facilitam o estabelecimento de um

sentido configuracional e a determinação de um propósito argumentativo”,

porém, “o julgamento definitivo de [sua] coerência resulta da articulação do

texto com o contexto sociopragmático da interação, ou seja, com a dimensão

discursiva englobante” (CHARAUDEAU, MAINGUENEAU, 2004, p. 467-468).

Podemos, então, vislumbrar que as relações do texto com seu contexto

e com os propósitos da comunicação constituem um processo, na busca da

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79Leitura e Produção de Textos

construção de significados, seja por parte do autor, seja por parte do leitor, aqui

entendidos como produtores que partilham de conhecimentos que possibilitam

a comunicação efetiva. Mas o discurso não é, como pode parecer em uma

análise superficial, a relação do texto com seu contexto apenas. Destaca-se,

nesse ínterim, que os estudos atuais a respeito do texto o entendem como

indissociável de seu contexto de produção, ou seja, uma produção textual é

uma produção de sentidos e, com isso:

O texto será entendido como uma unidade lingüística concreta (perceptível pela visão ou audição), que é tomada pelos usuários da língua (falante, escritor/ouvinte, leitor), em uma situação de interação comunicativa específica, como uma unidade de sentido e como preenchendo uma função comunicativa reconhecível e reconhecida, independentemente da sua extensão (TRAVAGLIA, 1997, p. 67).

As definições de texto, como podemos vislumbrar, levam-nos a entender

que quaisquer produções com sentido podem ser consideradas texto. Nesse

sentido, é importante deixar claro que essas definições, por se tratar de um

amplo campo de estudos, são diversas, mas não são dicotômicas: a produção do

sentido é o que constitui uma forma de comunicação como texto. Para finalizar

a questão de uma definição (que jamais poderia ser única), lembramos que:

“O texto é considerado por alguns especialistas como uma unidade semântica

onde os vários elementos são materializados através de categorias lexicais,

sintáticas, semânticas, estruturais” (KLEIMAN, 1995, p.45).

Resta-nos, então, compreender exatamente o que pode ser entendido como

discurso, já que o texto é sua materialização. Comecemos por esclarecer que o

discurso pode ser entendido como o texto, seu contexto – que seria a premissa

para a existência efetiva de um texto –, acrescido de outro conjunto de elementos:

os interagentes e suas respectivas influências na produção de sentido.

Ao se deparar com o sinal de trânsito vermelho, por exemplo, temos aí um texto. Determine quais são os outros elementos que constituem o significado desse texto, cuja mensagem é uma ordem: PARE.

DESAFIO

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80 Leitura e Produção de Textos

São os produtores de sentido, falante/ouvinte e escritor/leitor, que

efetivamente constituem comunicação por intermédio desses textos. Esses

usuários não constroem significação sozinhos. Há sempre uma produção

dialógica, em que estão imbricadas ambas as partes do discurso, e essa

produção dialógica constitui a base da significação da comunicação e forma o

que chamamos de processo discursivo.

Em nosso desafio anterior, o que constitui a significação do texto são o texto

propriamente dito – perceba que não se trata de um texto escrito, mas de um texto

não verbal: a cor vermelha –, em um contexto específico: o trânsito. Também há o

produtor, as leis que determinam o comportamento no trânsito e, por fim, o leitor,

o motorista, que conhece as regras e empresta significado à luz vermelha do farol.

LEMBRETELEMBRETE

Neste estudo, temos utilizado os termos significação, significado e sentido como equivalentes, sem nos determos em suas diferenças teóricas.

É por essa razão que “quando conhecemos o processo discursivo podemos

dispensar o material de análise inicial, pois estaremos de posse do funcionamento

discursivo que pode ser generalizado para outros conjuntos de material, outros

textos” (ORLANDI, 2006, 17). Para melhor entendermos, vamos verificar alguns

aspectos da Figura 1 a seguir:

Figura 1 – Capa da Revista Veja Edição 2174, de 21/07/2010

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81Leitura e Produção de Textos

Um dos aspectos importantes para se compreender a imagem é sabermos

que “Veja” é uma revista nacional, de tiragem semanal, que trata dos assuntos

do país, como um jornal, e que tem muitos leitores. E se não soubéssemos disso,

apenas a imagem nos daria a informação de que se trata de uma revista, por

causa do formato, que nos remete ao nosso conhecimento e nos faz identificar a

“estética” de uma produção textual que não é nem jornal, nem livro. Podemos,

facilmente perceber isso.

Em seguida, passamos a verificar a relação estabelecida entre a imagem

de uma criança nua e o texto maior, “Mas nem uma palmadinha?”. Já aqui

estamos ativando o nosso conhecimento para produzir significado. A relação

entre a palavra palmadinha e a criança da imagem nos leva a entender que o

texto pretende aludir às punições físicas sofridas pelas crianças.

Assim entendemos o que é discurso. Apenas com a visão do texto, mesmo

com a composição completa, a imagem que acompanha a parte escrita, não se

pode recuperar esse aspecto, pois o leitor precisa ter conhecimento de mundo

para fazer a relação e entender boa parte de o que o texto pretende expor.

Além disso, se vamos além, temos o texto menor, abaixo do mencionado

acima, “Vai ser lei, mas a educação e a felicidade deles depende do pulso dos

pais.” , que nos conduz a outros aspectos que não estão, exatamente postos

no texto, mas que são imprescindíveis para poder compreendê-lo. É preciso

ter consciência do projeto de Lei n. 2654/2003, da deputada Maria do Rosário,

cujo intento é acrescentar artigos à Lei n. 8069, de 13/07/1990, O Estatuto da

Criança e do Adolescente, e da Lei n.10.406, de 10/01/2002, o Novo código Civil,

para acrescentar, dentre outros aspectos, o artigo 18A, que tem como texto “A

criança e o adolescente têm direito a não serem submetidos a qualquer forma

de punição corporal, mediante a adoção de castigos moderados ou imoderados,

sob a alegação de quaisquer propósitos, no lar, na escola, em instituição de

atendimento público ou privado ou em locais públicos”.

Certo é que não precisaríamos saber exatamente o que o projeto de lei

diz, como vimos agora, mas saber de sua existência ajudaria muito na produção

de sentido.

Entendemos, também, que a proposta do texto da capa da revista é

aguçar a curiosidade dos leitores, fazendo-os comprar e ler a edição. Com isso,

percebemos que toda a mensagem, a construção do sentido do texto, dá-se por

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82 Leitura e Produção de Textos

intermédio de inúmeros aspectos que contribuem para a transmissão da ideia

que só se consubstancia em sentido quando o leitor movimenta todos esses

conhecimentos para produzir um entendimento do o que o produtor do texto

pretendia (ou que o próprio texto permitia) passar.

É por essa razão que podemos entender que o discurso se estabelece no

interior de uma atividade social, daí ele ser constitutivamente interativo e dialógico.

As pessoas estão cotidianamente envolvidas em uma série de ações conjuntas, em

razão de necessidades e interesses mútuos. No curso dessas ações, realizam troca de

sentidos, os quais interpretam e orientam suas experiências. Assim, o discurso constrói-

se nas práticas sociais e é, ao mesmo tempo, o fio condutor de seus significados.

Tome-se como exemplo a ida ao cinema para assistir a um filme. No trajeto,

o(a) interessado(a) realiza um conjunto de atividades sociais necessárias para

chegar a seu destino. Todas elas envolvem interações discursivas: se for de

ônibus, precisará identificar aquele que o(a) levará ao lugar desejado; durante

a viagem, poderá ler alguma coisa para passar o tempo, conversar com um

(des)conhecido ou, simplesmente, por alguma curiosidade, ver as diversas

propagandas comerciais nos outdoors. Se for de carro, inevitavelmente se

deparará com placas e sinais de trânsito, os quais servem de orientação de

como se locomover na cidade. No cinema, terá de adquirir o bilhete que lhe

permitirá acesso à sala de exibição e, finalmente, o contato com o filme e a

construção dos significados que esse encontro lhe possibilitará.

Percebemos, com isso, que o discurso se constitui na interatividade

dialógica e por meio dela. Isso significa que, em sua produção, o discurso

não se estabelece unilateralmente nem de forma monológica. É importante

reiterar o caráter interativo e dialógico do discurso, não apenas porque ele

requer, necessariamente, a coparticipação atuante de sujeitos de linguagem

(os sujeitos responsáveis pela encenação do discurso, isto é, os interlocutores

que assumem (ou não) o que é dito na interação), mas também por instituir a

intersecção com outros discursos antecedentes e sucessores.

Como exemplo disso, podemos citar este trabalho que estamos, eu e

você, realizando. Se você observar bem, verá que nele estamos envolvidos

em uma situação coprodutiva de discursos. Isso se dá por alguns motivos:

nesta produção discursiva, contamos com sua cooperação no estabelecimento

dos significados que, conjuntamente, construímos; além disso, os conteúdos

colocados neste estudo são uma apropriação parcial de outros discursos

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Capítulo 4

83Leitura e Produção de Textos

socialmente partilhados (por exemplo, as fontes bibliográficas nas quais

fundamentamos os conteúdos aqui apresentados) e, ao mesmo tempo,

estamos preparando o caminho para o surgimento de novos discursos.

Cabe alertar, todavia, que a dialogicidade entre os discursos nem sempre

se dá de modo consensual. Ela pode também se configurar de maneira tensa e

confrontativa, na qual se contrapõem diferentes visões de mundo.

O discurso envolve sujeitos investidos de papéis e posições sociais. Isso

significa que, ao interagir discursivamente, os parceiros desempenham papéis

socialmente definidos. Por exemplo, o discurso entre pai e filho, entre empresa

e cliente(s), entre colegas de classe, ou ainda entre desconhecidos, numa fila de

banco etc. Em todos eles, os participantes coatuam dentro de limites culturalmente

estabelecidos, de acordo com as relações de poder existentes entre eles, porque:

[...] o discurso é moldado por relações de poder e ideologias e os efeitos construtivos que o discurso exerce sobre as entidades sociais, as relações sociais e os sistemas de conhecimento e crença, nenhum dos quais é normalmente aparente para os participantes do discurso (FAIRCLOUGH, 2001, p.31-32).

Nesse sentido, essas relações revelam igualdade ou desigualdade social entre

os sujeitos, bem como aproximação ou distanciamento. Outro fator importante

diz respeito às posições discursivas assumidas pelos interlocutores. Esclarecendo

isso melhor: na produção do discurso, os enunciadores encenam visões de mundo

particulares e, também, das instituições sociais que eles representam. Assim, eles

orientam seu discurso para determinada perspectiva ideológica.

Vamos supor uma interação entre pai e filho: o sujeito que exerce o papel

social de pai pode assumir a posição do discurso tradicional autoritário ou se

posicionar discursivamente alinhado com a visão progressista mais liberal. Isso pode

se dar quanto à interação patrão-empregado, que pode ser marcada pelo discurso

capitalista ameaçador ou pelo discurso também capitalista, mas conquistador.

O discurso tem historicidade e é marcado por ela. Entenda-se por

historicidade não apenas o fato de o discurso ser um acontecimento histórico,

no sentido de transcorrer em um dado momento cronologicamente situado

na história de vida dos interlocutores, mas, sobretudo, por pertencer a

determinado contexto sociocultural historicamente identificável. Nesse

sentido, o discurso revela traços específicos da forma de organização, da

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Capítulo 4

84 Leitura e Produção de Textos

produção cultural, das atividades sociais e das diferentes visões de mundo da

comunidade em que é produzido.

Para ilustrar isso, basta pensar no discurso da globalização, que ronda

e assombra as relações sociais no atual mercado de trabalho. As ideias sobre

economia, nacionalidade, mão de obra, dentre outras, veiculadas por esse

discurso, são uma característica marcante do novo modo de produção material

e desta era dominada pela informática e pela Internet, os quais alteraram

significativamente a visão de mundo da sociedade contemporânea. Tal visão

era praticamente impensável no início do século XX.

Essas características anteriores atribuídas ao discurso nos levam a uma

outra delas decorrente: a de que o discurso obedece a determinadas normas

de conduta sociocultural. Isso quer dizer que, na constituição do discurso,

segue-se uma espécie de “ritual”, ancorado nas especificidades das práticas

sociais, que determina não apenas o que deve ou não ser comunicado, mas

também o modo como deve ser expresso.

Para exemplificar, lembre-se de como se aborda um desconhecido na rua

para lhe pedir alguma informação. Em geral, as regras do bom convívio social

ensinam que, numa situação assim, em que o provável informante, além de ser

um estranho, está em posição superior em relação ao solicitante, deve-se agir

com polidez, utilizando-se expressões como “Por favor, o(a) senhor(a) poderia me

dizer... ?”. Por outro lado, o interlocutor (informante) deverá limitar-se a fornecer

a informação o mais direta e objetivamente possível, mantendo o distanciamento

afetivo-social em relação ao outro. Isso é assim em virtude de haver um acordo

comunitário, ideologicamente estabelecido, que regula a interação social em um

contexto dessa natureza. Esse comportamento também se dá, respectivamente,

em relação a outras esferas das ações intercomunicativas do cotidiano social.

Com isso, podemos conceber a interseção do elemento material do

discurso, o texto, com o próprio discurso e sua realização no seio da sociedade

que o entende, a partir da complexidade das relações estabelecidas para se

chegar a uma possível significação. Assim,

[...] um texto faz sentido não por sua relação com o contexto, ou em decorrência de conhecimentos que o leitor tenha estocado ou que rememora e coloca em funcionamento ao ler/ouvir [...] Ou seja, não há propriamente texto, concebido como uma unidade; o que há são linearizações concretas (materiais) de discursos (POSSENTI, 2004, p.365).

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Capítulo 4

85Leitura e Produção de Textos

Já entendemos que o discurso é uma entidade complexa, da qual o

texto faz parte. Precisamos, então, compreender um pouco melhor esse

integrante do discurso, para que possamos dar andamento a nosso processo

de aprendizagem. A primeira coisa que devemos saber especificamente sobre

o texto é que ele é composto por dois elementos básicos, que lhe emprestarão

o caráter de texto: a coesão e a coerência.

A coesão diz respeito aos elementos materiais da construção de um texto,

especialmente do texto escrito. Devemos, então, entender o termo como os

elementos constitutivos das frases, orações, dos períodos, parágrafos e das

partes maiores de um texto. Os elementos coesivos garantem a linearidade

da sequência do texto. Dentre eles, estão os termos gramaticais, como as

conjunções, as preposições, os elementos dêiticos etc.

A coerência, por sua vez, diz respeito à estruturação lógica e semântica que

possibilita que o leitor/ouvinte compreenda o texto e lhe dê significado, portanto,

é o resultado das articulações das ideias que compõem o que se pretende dizer.

LEMBRETELEMBRETE

No capítulo 6, entraremos em maiores detalhes quanto aos elementos de coerência e coesão, ao tratarmos dos fatores de textualidade. Por ora, basta-nos saber que o texto, elemento constitutivo do discurso, vale-se de vários recursos para construir significados.

Como veremos mais acuradamente os elementos de coesão e coerência

em outro momento de nosso trabalho em conjunto, destacamos que os

textos são produzidos e admitem interpretações denotativas e conotativas.

As primeiras, conotativas, dizem respeito ao sentido literal de o que se diz, as

segundas, denotativas, são as interpretações que podem ser depreendidas do

texto e pelo texto, mas que não são a exata significação de o que efetivamente

se diz, ou seja, são o que os interagentes (o produtor ou o leitor/ouvinte)

pretendem compreender ou são capazes de compreender a partir do texto.

Cientes disso, vejamos os outros elementos que se destacam na produção

de sentido na interação comunicativa:

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Capítulo 4

86 Leitura e Produção de Textos

a) A linguagem figurada

O sentido figurativo ocorre quando uma palavra ou uma expressão perde

seu sentido denotativo, literal, e é utilizada fora de seu plano convencional de

significação, ou seja, com um significado diferente do habitual, de forma que seu

sentido é transposto, para se referir a outra realidade conceitual. Em outras palavras,

ela assume sentido conotativo, metafórico, não-literal (FIORIN e SAVIOLI, 1998).

Estamos considerando aqui apenas os usos figurativos especiais, isto é, quando palavras ou expressões são utilizadas de modo inovador e incomum, com a finalidade de produzir determinados efeitos de sentido.

SAIBA QUE

Por exemplo, provavelmente, você já conhece a expressão “cair do

cavalo”, que pode ser utilizada em sentido literal, para falar de “alguém que

se encontra montado num cavalo e, por algum motivo, despenca no chão”.

Por outro lado, em nossa cultura, essa mesma expressão também possui uma

acepção figurativa, que se refere à “frustração de uma expectativa”.

PRATICANDOPRATICANDO

Compare agora os sentidos atribuídos a “coração”, na amostra textual que se segue:Sabe o que alimenta um coração?um sorrisoum elogioum abraço[...]Alimentar bem o coração é adotar hábitos saudáveis no seu dia-a-dia, como praticar exercícios, evitar o stress e, principalmente, ter uma dieta balanceada. [...]Nestlé Omega Plus. Leites e iogurtes para o seu coração bater feliz. (grifos nossos)

Fonte: REVISTA VEJA, s.d. (reprod.)

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Capítulo 4

87Leitura e Produção de Textos

Mesmo que sua interpretação seja diferente, veja que, na primeira linha,

“coração” é tomado como o centro das emoções, está, portanto, em sentido

figurado (aliás, esse sentido já é tradicionalmente conhecido em nossa cultura).

Na segunda menção, essa palavra tem conceito denotativo, uma vez que está

relacionada aos cuidados que devemos ter para preservar a saúde cardíaca. Já

na terceira citação, esses significados se superpõem, podendo-se atribuir-lhe

tanto uma noção literal como metafórica.

O valor desse recurso reside no fato de se poder utilizá-lo em uma

situação em que a expressão literal de sentido equivalente não surtiria o

mesmo efeito. Dessa forma, a linguagem figurada atende a uma necessidade

comunicativa, uma vez que seu uso produz um resultado interacional que não

seria tão satisfatório por outro meio.

Assim como o sentido figurado revela a propriedade que a linguagem

tem de adquirir outra significação em um contexto específico, existem palavras

ou expressões às quais se pode atribuir mais de uma interpretação em um

mesmo contexto. Veja, então, o caso do duplo sentido (ou ambiguidade), que

passamos a explicitar a seguir.

b) O duplo sentido (ou ambiguidade)

Você certamente já ouviu alguém dizer que tal palavra ou expressão

tem duplo sentido, ou seja, é ambígua. Também já deve ter ficado em dúvida

quanto ao real sentido de determinado enunciado, pelo fato de ele permitir

mais de uma interpretação. O duplo sentido, portanto, tem a ver com a

propriedade que a linguagem possui de, por meio de uma mesma forma,

exprimir diferentes significados em uma dada situação comunicativa.

Observe os seguintes enunciados:

(1) Do Yázigi todo mundo sai falando bem. (grifo nosso)Inglês e Espanhol [...]

Fonte: GAZETA. 2001.

(2) Ele recebeu uma foto da namorada.

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Capítulo 4

88 Leitura e Produção de Textos

Veja que, no primeiro texto, pode-se interpretar que, por se tratar de

uma escola de línguas, as pessoas saem do Yázigi dominando o(s) idioma(s)

que lá estudaram. Fica, portanto, implícita a boa qualidade do ensino dessa

escola, e daí vem o outro sentido que se pode atribuir ao texto: a boa formação

dos alunos leva-os a sair divulgando positivamente a imagem da escola.

PRATICANDOPRATICANDO

Agora, contamos com você para apresentar a dupla interpretação do segundo enunciado. Vamos lá?

Mas será que a ambiguidade se dá por um processo consciente do

falante/produtor? Muitas vezes, sim, mas há momentos em que estamos

conversando com alguém e, no processo, produzimos um texto cuja

significação o ouvinte/leitor questiona. Nós somos obrigados a esclarecê-la a

ele. Por isso, a ambiguidade, que serve como recurso estilístico para produzir

uma comunicação mais elaborada, pode também ser um entrave para ela.

Assim, teremos dois tipos de ambiguidade: a intencional e a involuntária.

• O Duplo Sentido Intencional (ou Ambiguidade Intencional)

Esse caso ocorre quando uma palavra ou uma expressão é utilizada

voluntariamente de modo ambíguo, resultante de um planejamento textual,

para provocar determinado efeito de sentido. Esse recurso é comum, por

exemplo, em textos literários e publicitários, em que o locutor deseja jogar com

diferentes sentidos, contando com a capacidade de percepção do interlocutor

e esperando despertar-lhe alguma reação emotiva (FIORIN e SAVIOLI, 1998).

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Capítulo 4

89Leitura e Produção de Textos

Figura 2 – Exemplo de ambiguidade intencionalFonte: <www.fi lologia.org.br>.

Nesse caso, entenda que se trata de uma estratégia estilística a que o

produtor do texto recorreu, e que evidencia sua habilidade de manipular

inteligentemente a linguagem para atingir o resultado desejado.

PRATICANDOPRATICANDO

Considere o seguinte texto:

NOKIA 3320

O mundo todo só fala nele. (grifo nosso).

Fonte: REVISTA VEJA, 2001. p.19.

Por certo, você percebeu a ambiguidade que se dá no uso de “fala nele”, não é? Então, explicite as possíveis interpretações.

• O Duplo Sentido Involuntário (ou Ambiguidade Involuntária)

Outro aspecto que caracteriza o duplo sentido das palavras é quando

uma sentença é mal elaborada, e causa incerteza quanto ao que o locutor

realmente quer dizer. Em outras palavras, o modo confuso como o texto foi

produzido resulta em falta de clareza e imprecisão de sentido.

Em casos assim, ao contrário de o que se viu no item anterior, o produtor do

enunciado não pretende provocar duplo sentido, e a situação revela deficiência

em codificar as informações adequadamente, o que deixa margem para

diferentes interpretações. Em consequência disso, o texto não produz o efeito

de sentido esperado, uma vez que o interlocutor não consegue reconhecer a

verdadeira intenção discursiva do locutor (CEREJA e MAGALHÃES, 2001).

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Capítulo 4

90 Leitura e Produção de Textos

Observe o seguinte exemplo:

O rapaz que cuida do bezerro foi informar ao fazendeiro que a mãe dele morreu.

Afinal, quem morreu? A mãe do rapaz ou a mãe do fazendeiro? Não

podemos saber, porque o elemento dêitico “dele” pode se referir ao rapaz,

cuja mãe morreu, nessa interpretação, ou ao fazendeiro, cuja mãe morreu. No

entanto, ainda há outra interpretação, o bezerro tem, certamente, uma mãe e,

novamente, podemos interpretar que o rapaz foi ao fazendeiro avisar que a vaca,

mãe do bezerro, morreu. Percebe como a ambiguidade pode ser não intencional?

O produtor do texto, certamente por saber de quem estava falando, pressupôs

que o leitor entenderia, mas se equivocou na construção da frase.

PRATICANDOPRATICANDO

Observe os exemplos a seguir e perceba a ambiguidade presente em cada um deles:

• O assessor do presidente informou que ele viajará daqui a uma semana.

• Foi observado o acidente da ponte.

• Mataram o filho do empresário que foi sequestrado.

c) As Informações Implícitas

Do mesmo modo como a linguagem figurada e a ambiguidade evidenciam

o fato de as formas linguísticas poderem expressar mais de um sentido, muitos

dos enunciados que produzimos na comunicação dizem muito mais do que

aquilo que está na aparência imediata das palavras. Boa parte de o que é

afirmado explicitamente, às vezes, constitui apenas “a ponta do iceberg”, e

pode esconder muitos outros significados e intenções discursivas. Essas são

as informações implícitas, as quais dependem da capacidade inferencial do

interlocutor, ou seja, de suas condições de “ler nas entrelinhas”, a fim de captar

plenamente os sentidos comunicados (FIORIN e SAVIOLI, 1997; FIORIN, 2003).

Os implícitos que você verá a seguir são os pressupostos e os

subentendidos.

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Capítulo 4

91Leitura e Produção de Textos

• Pressuposto

Trata-se de uma ou mais informações não-veiculadas de maneira explícita,

mas que decorrem logicamente do sentido de certas palavras ou expressões

contidas no enunciado. Isso significa que esse enunciado comunica, de modo

indireto, mais do que o que demonstra o nível superficial de suas palavras, isto

é, além daquilo que diz abertamente, traz outro(s) sentido(s) subjacentes ao

significado de algum termo.

Você entenderá isso com mais clareza, observando o exemplo logo a seguir:

Novo Focus[...]O que já era um Focus ficou ainda melhorCom o motor mais potente da categoria. (grifos nossos).[...]

Fonte: REVISTA VEJA, 2005. p.21-23.

Perceba que a expressão “ficou ainda melhor”, além da informação

em si, também diz implicitamente que “o Focus já era bom”. Por meio do

superlativo “o... mais”, podemos inferir que “os outros veículos da categoria

possuem motor com potência inferior” à do Focus.

• Subentendido

Resulta de quando o locutor produz um enunciado para, por meio

dele, realizar outro ato de fala, cujo efeito de sentido não é diretamente

explicitado. Por meio dessa estratégia, o falante “mascara” sua intenção

comunicativa, deixando-a por conta da inferência do interlocutor. Assim, o

falante/escritor não assume a informação implícita, transfere para o ouvinte/

leitor a responsabilidade de interpretar o que realmente ele quis dizer.

Você perceberá isso no seguinte trecho, extraído da propaganda sobre o

veículo Focus, já apresentada no item anterior:

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Capítulo 4

92 Leitura e Produção de Textos

Você nunca dirigiu um Focus?Onde você esteve esse tempo todo?

Fonte: REVISTA VEJA, 2005. p.21-23.

Você consegue perceber o que o enunciador (os termos enunciador,

locutor, falante e escritor serão utilizados como equivalentes) deixou

subentendido nessas perguntas aparentemente simples? Pois é. Na verdade,

o que interessa aí não é saber se o interlocutor já dirigiu um Focus, muito

menos obter informação sobre por onde ele andou. Como se trata de um

anúncio comercial sobre esse automóvel, então, o que de fato está implícito

é a afirmação de que o indivíduo que não dirige/possui um Focus está

ultrapassado, não tem acompanhado a evolução tecnológica. Fica, assim, a

sugestão indireta para o interlocutor adquirir esse veículo, para, desse modo,

inserir-se no mundo moderno e avançado.

Como você pode ver, diferentemente do pressuposto, que se deduz a

partir de determinadas pistas linguísticas expressas na superfície do texto, o

subentendido não vem marcado nas palavras do enunciado. Em função disso,

exige do interlocutor maior capacidade de percepção, isto é, de inferência, a

fim de que ele interprete a verdadeira intenção discursiva do locutor.

PRATICANDOPRATICANDO

Crie exemplos que demonstrem as diferenças entre pressuposto e subentendido.

d) Sentido Ancorado na Situação Comunicativa

Um enunciado pode apresentar o mesmo conteúdo proposicional, e ter seu

sentido variável determinado pelo contexto comunicativo (TRAVAGLIA, 2003).

Suponha que você está lendo, por exemplo, um enunciado como o que

segue:

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Capítulo 4

93Leitura e Produção de Textos

A porta está aberta.

Você vai perceber, pelas opções dispostas a seguir, que, dependendo da

situação interativa, ele pode ter efeitos de sentido distintos.

Veja:

• em meio a uma discussão, pode significar uma ordem indireta para

que o interlocutor saia;

• para uma pessoa que bate à porta, soa como um convite para entrar;

• pode ser uma advertência de perigo, sugerindo que a porta deve ser

fechada;

• se a ventania está perturbando o ambiente, pode parecer um pedido

indireto para que o interlocutor feche a porta;

• pode estar sendo usado metaforicamente, significando uma

oportunidade que deve ser aproveitada;

• para um funcionário que está deixando a empresa, significa uma

promessa de que ele será recebido de volta caso queira retornar;

• pode ser uma afirmação literal após constatar que determinada porta

se encontra aberta, pressupondo que estivesse fechada.

Portanto, como você pôde perceber, a partir do conteúdo visto, o sentido de

uma palavra, expressão ou sentença não está predeterminado nela, pois é resultante

da negociação entre os interlocutores no contexto de interação verbal. Por esse

motivo, devemos estar atentos à forma como utilizamos os recursos linguísticos, a

fim de podermos tirar o melhor proveito de suas possibilidades de sentido.

Pudemos perceber, também, que o processo de significação só se

consubstancia com a junção dos elementos textuais presentes no texto, porque

o autor o possibilitou e, portanto, ele, autor, faz também parte desse sentido,

bem como a capacidade do leitor, que empresta significados diversos a partir

do conhecimento que possui para poder significar.

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Capítulo 4

94 Leitura e Produção de Textos

4.3 Aplicando a teoria na prática

Pois bem... no capítulo anterior, você conseguiu convencer seus colegas

de trabalho de que o recém-contratado não falava errado, apenas usava uma

variação diferente da que se costumava ouvir naquele ambiente. Dessa vez,

seu chefe, que chegou há alguns dias da feira de informática, disse ao novo

funcionário: “Fulano, ligue para o departamento pessoal e pergunte se a

passagem já foi aprovada”.

Em seguida, saiu. Você percebeu que seu colega ficou assustado, sem

saber o que fazer exatamente. Nessa situação, o que você faria?

Você já sabe que fazemos essa resolução sempre juntos. Então, vamos

lá... Se ele ficou assustado e sem saber o que fazer, a culpa não é sua, não é?

Afinal, ele não sabe de que passagem se fala, ele é novo na empresa. O chefe,

portanto, produtor do texto, não lhe ofereceu os elementos necessários para

a compreensão e, por isso, a mensagem não se consolidou.

O novo funcionário ouviu o texto materializado, mas não tinha subsídios

para estabelecer-lhe o sentido, primeiro, porque a palavra “passagem” é

ambígua. Pode ser a passagem de que falava o chefe, um bilhete de viagem

ou uma porta que se queria abrir no departamento. Ele sabia que era uma

ordem e, na incapacidade de realizá-la, se ressentiu. Nesse sentido, sabemos,

não é?, que “as bases linguísticas [do texto] facilitam o estabelecimento de um

sentido configuracional e a determinação de um propósito argumentativo”,

mas não consolidam a significação. Para que o novo funcionário o entendesse,

seria necessária a “articulação do texto com o contexto sociopragmático da

interação, ou seja, com a dimensão discursiva englobante” (CHARAUDEAU,

MAINGUENEAU, 2004, p.467-468).

Bem... como nós sabemos disso, vamos, então, tranquilizá-lo e dar-lhe os

elementos textuais e contextuais que lhe faltam para entender completamente

a ordem. Como somos muito colaborativos, vamos até ele e, para completar,

explicamos que o chefe irá a uma feira de informática em São Paulo e que

a gente já fez o memorando solicitando a passagem, reserva de hotel etc.

Apenas com isso, a ideia de abrir uma porta no departamento se esvai, porque

o contexto já explica que se trata de um bilhete de viagem. Em seguida,

esclarecemos que esse procedimento é normal, que precisamos solicitar ao

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Capítulo 4

95Leitura e Produção de Textos

departamento de pessoal a liberação das passagens, do hotel etc. para o chefe,

que eles precisam cotar as passagens, o departamento tal deve fazer isso, e o

departamento tal aquilo. Demos ao novo funcionário informações sobre o

funcionamento da empresa, ou seja, acrescentamos-lhe o conhecimento de

mundo necessário.

Vamos esclarecer a ele, também, que o chefe partiu do pressuposto de

que ele sabia do que se tratava e, portanto, a informação estava subentendida.

Daí fica tudo mais fácil, não é?

Agora, pronto! Ele tem os elementos contextuais, já sabe da complexidade

da produção do discurso e angariou subsídios para a completa compreensão da

ordem que recebera. Basta, então, ligar e perguntar. Quando o chefe chegar,

seu colega terá a resposta na ponta da língua.

4.4 Para saber mais

FIORIN, J. L.; SAVIOLI, F. P. Lições de texto: leitura e redação. 2.ed. São Paulo:

Ática, 1997.

Obra que trata especificamente de temas relacionados à leitura e à

produção de textos, indispensável para os que desejam desenvolver essas

habilidades.

BRONCKART, J. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um

interacionismo sócio-discursivo. Trad. A. R. Machado e P. Cunha. São Paulo:

EDUC, 1999.

O texto aborda questões relativas ao discurso e ao texto, com ênfase nos

mecanismos do processamento textual. Veja também estudos sobre o texto,

inclusive com exemplos e comentários, em:

BENTES, A. C. Linguística textual. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (Orgs.).

Introdução à linguística 1: domínios e fronteiras. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2001.

p.245-87.

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Capítulo 4

96 Leitura e Produção de Textos

4.5 Relembrando

Neste capítulo, você aprendeu que:

• o texto é uma unidade linguística concreta, percebida pela visão ou

audição, tomada pelos usuários da língua (falante, escritor/ouvinte,

leitor), em uma situação de interação comunicativa específica;

• o discurso é uma atividade de comunicação que produz sentido

desenvolvido por interlocutores por intermédio de textos e que se

vale de outros elementos que também fazem parte da construção de

sentido do texto.

• a linguagem figurada é uma expressão utilizada fora de seu plano

convencional.

• o duplo sentido ou ambiguidade pode ser de dois tipos:

a) intencional: quando uma palavra, uma expressão ou um texto é

intencionalmente utilizado com mais de um sentido;

b) involuntário: quando um enunciado não produz o efeito de sentido

desejado por faltar-lhe clareza e precisão.

• as informações implícitas presentes no texto são divididas em:

a) pressuposto: ideia(s) não veiculada(s) de maneira explícita;

b) subentendido: quando o locutor insinua alguma coisa sem dizê-la

abertamente, deixando a interpretação por conta do interlocutor.

• sentido ancorado na situação comunicativa: um enunciado pode

apresentar o mesmo conteúdo proposicional e ter seu sentido variável,

determinado pelo contexto comunicativo.

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Capítulo 4

97Leitura e Produção de Textos

4.6 Testando os seus conhecimentos

1) Leia o Texto 1 e, em seguida, responda às questões propostas.

TEXTO 1

O Meu Guri (Chico Buarque)

Quando, seu moço, nasceu meu rebentoNão era o momento dele rebentarJá foi nascendo com cara de fomeE eu não tinha nem nome pra lhe darComo fui levando, não sei lhe explicar 05Fui assim levando ele a me levarE na sua meninice ele um dia me disseQue chegava láOlha aíOlha aí 10Olha aí, ai o meu guri, olha aíOlha aí, é o meu guriE ele chegaChega suado e veloz do batenteE traz sempre um presente pra me encabular 15Tanta corrente de ouro, seu moçoQue haja pescoço pra enfiarMe trouxe uma bolsa já com tudo dentroChave, caderneta, terço e patuáUm lenço e uma penca de documentos 20Pra finalmente eu me identificar, olha aíOlha aí, ai o meu guri, olha aíOlha aí, é o meu guriE ele chegaChega no morro com o carregamentoPulseira, cimento, relógio, pneu, gravador 25Rezo até ele chegar cá no altoEssa onda de assaltos tá um horrorEu consolo ele, ele me consolaBoto ele no colo pra ele me ninarDe repente acordo, olho pro lado 30E o danado já foi trabalhar, olha aíOlha aí, ai o meu guri, olha aíOlha aí, é o meu guriE ele chega

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Capítulo 4

98 Leitura e Produção de Textos

Chega estampado, manchete, retrato 35Com venda nos olhos, legenda e as iniciaisEu não entendo essa gente, seu moço?Fazendo alvoroço demaisO guri no mato, acho que tá rindoAcho que tá lindo de papo pro ar 40Desde o começo, eu não disse, seu moçoEle disse que chegava láOlha aí, olha aíOlha aí, ai o meu guri, olha aíOlha aí, é o meu guri 45

Fonte: Disponível em: <http://analisedeletras.com.br/chico-buarque/o-meu-guri/>. Acesso em: jul. 2010.

1) O verbo “chegar” foi empregado com o mesmo sentido nas linhas 8 e 14,

respectivamente?

2) Esclareça o que se pode inferir (ou seja, quais são as informações implícitas)

nos seguintes trechos:

a) “Quando, seu moço, nasceu meu rebento

Não era o momento dele rebentar”.

b) “Chega no morro com o carregamento

Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador”

3) Quem é o sujeito locutor no texto? Fundamente sua resposta apontando

algumas pistas dadas no texto.

4) Qual questão da realidade brasileira é indiretamente tratada no texto?

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Capítulo 4

99Leitura e Produção de Textos

Onde encontrar

CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T. C. Texto e interação. São Paulo: Atual, 2001.

CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. (Org.). Dicionário de análise do discurso.

São Paulo: Contexto, 2004.

FIORIN, J. L. A linguagem em uso. In: _____. (Org.). Introdução à lingüística I:

objetos teóricos. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2003. p.166-186.

FIORIN, J. L.; SAVIOLI, F. P. Para entender o texto: leitura e redação. 6.ed. São

Paulo: Ática, 1998.

KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 4.ed. Campinas:

Pontes, 1995.

KOCH, I. G. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2005.

KOCH, I. G. V. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 1984.

–––––. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 1989.

–––––. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

–––––. Introdução à lingüística textual: trajetória e grandes temas. São Paulo:

Martins Fontes, 2004. Coleção texto e linguagem.

ORLANDI, E.; RODRIGUES, S. (Org.). Introdução às ciências da linguagem III:

discurso e textualidade. Campinas: Pontes, 2006. v.III.

POSSENTI, S. Análise do discurso: um caso de múltiplas rupturas. In: MUSSALIM, F.

e BENTES, A. C. (Org.). Introdução à lingüística: fundamentos epistemológicos.

São Paulo: Editora Cortez, 2004, v. 3, p. 353-392.

TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de 1º. e

2º. graus. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2003.