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O TERRORISMO DE ESTADO NO CHILE: REFLEXÕES A PARTIR DO MANUAL DE OPERACIONES SECRETAS DA DIRECCIÓN DE INTELIGENCIA NACIONAL (DINA) Renata dos Santos de Mattos Mestranda em História/ UFRGS [email protected] Resumo: Na década de 1970, apoiada na Doutrina de Segurança Nacional e no Terrorismo de Estado, a ditadura Pinochet estabeleceu a perseguição, prisão, tortura e o assassinato como mecanismos para eliminar opositores. Dessa forma, buscando centralizar o sistema de informação e inteligência que efetivaria as mencionadas ações, Pinochet e Manuel Contreras criaram a Dirección de Inteligencia Nacional (DINA). Constatando a necessidade de treinamento de agentes que atuassem conforme os preceitos da doutrina dentro dos marcos da clandestinidade, desenvolveu-se um Manual de Operaciones Secretas. Assim, a partir dessa fonte, pretende-se refletir sobre a institucionalização da repressão e o papel da DINA, analisando brevemente a formação de agentes, seu modus operandi, bem como seus objetivos dentro do regime. Palavras-chave: ditaduras Chile Terrorismo de Estado DINA - repressão O pré-golpe O início da década de 1970 no Chile foi marcado pela vitória eleitoral da Unidad Popular (UP). A soma de 36,2% dos votos criou um ambiente de euforia e simultaneamente, de apreensão na esquerda chilena. Apesar de a presidência estar nas mãos de um político socialista, que fora antes Senador e dirigente partidário de longa trajetória, com promessas revolucionárias, haveria de enfrentar os grupos dominantes, setores das camadas médias e o imperialismo estadunidense, reticentes às políticas sociais e às nacionalizações apontadas como fundamentais no programa da esquerda. Durante os três anos em que governou, os embates entre Allende e o Congresso foram constantes, a oposição não poupou críticas ao governo, tampouco permitiu que o presidente implementasse, com alguma estabilidade, as propostas do Programa de

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O TERRORISMO DE ESTADO NO CHILE: REFLEXÕES A PARTIR

DO MANUAL DE OPERACIONES SECRETAS DA DIRECCIÓN DE

INTELIGENCIA NACIONAL (DINA)

Renata dos Santos de Mattos

Mestranda em História/ UFRGS

[email protected]

Resumo: Na década de 1970, apoiada na Doutrina de Segurança Nacional e no

Terrorismo de Estado, a ditadura Pinochet estabeleceu a perseguição, prisão, tortura e o

assassinato como mecanismos para eliminar opositores. Dessa forma, buscando

centralizar o sistema de informação e inteligência que efetivaria as mencionadas ações,

Pinochet e Manuel Contreras criaram a Dirección de Inteligencia Nacional (DINA).

Constatando a necessidade de treinamento de agentes que atuassem conforme os

preceitos da doutrina dentro dos marcos da clandestinidade, desenvolveu-se um Manual

de Operaciones Secretas. Assim, a partir dessa fonte, pretende-se refletir sobre a

institucionalização da repressão e o papel da DINA, analisando brevemente a formação

de agentes, seu modus operandi, bem como seus objetivos dentro do regime.

Palavras-chave: ditaduras – Chile – Terrorismo de Estado – DINA - repressão

O pré-golpe

O início da década de 1970 no Chile foi marcado pela vitória eleitoral da Unidad

Popular (UP). A soma de 36,2% dos votos criou um ambiente de euforia e

simultaneamente, de apreensão na esquerda chilena. Apesar de a presidência estar nas

mãos de um político socialista, que fora antes Senador e dirigente partidário de longa

trajetória, com promessas revolucionárias, haveria de enfrentar os grupos dominantes,

setores das camadas médias e o imperialismo estadunidense, reticentes às políticas

sociais e às nacionalizações apontadas como fundamentais no programa da esquerda.

Durante os três anos em que governou, os embates entre Allende e o Congresso

foram constantes, a oposição não poupou críticas ao governo, tampouco permitiu que o

presidente implementasse, com alguma estabilidade, as propostas do Programa de

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governo da UP. No entanto, desafiando os desmandos estadunidenses e a oposição

interna, a experiência chilena buscou ir além de tudo aquilo que se vira na América

Latina até então. O governo socialista procurou romper com as estruturas do passado,

dando ao país, através de mecanismos legais, a chance de se fazer a revolução. Os

trabalhadores estavam assumindo postos de comando dentro das fábricas (cordones

industriales e comandos comunales), a classe baixa detinha o acesso aos direitos básicos

como saúde e alimentação e parte da população estava convicta do poder popular e, por

isso, ocupava as ruas manifestando apoio ao governo da UP.1 Mas, com efeito, o país

enfrentava uma grave cisão. Assim como nos demais países do Cone Sul que tiveram

sua democracia defraudada, a burguesia e os EUA não aceitaram a transição em curso

liderada por Allende e sua Via Chilena ao Socialismo, apesar das suas incontáveis

tentativas de acordos com os grupos oposicionistas.

Nos anos que precederam o golpe de Estado no Chile, a CIA, as grandes

corporações multinacionais, aliadas à burguesia chilena, aos meios de comunicação e

aos militares desencadearam uma série de ações que impediram Allende de governar.

Traçada a conspiração desde os anos 1960, os EUA desenvolveram o que Luiz Alberto

Moniz Bandeira (2008) chamou de “fórmula para o caos” e que resultaria, mais tarde,

no 11 de setembro de 1973. O bombardeio do Palácio de la Moneda marcou o início de

uma ditadura que não preservaria o Chile da aplicação do Terrorismo de Estado (TDE)

em todas as suas esferas. Atuava-se em nome da missão de “extirpar o marxismo”,

como proferiu o general Gustavo Leigh na primeira transmissão da Junta ao público; era

preciso apagar a ideologia que ansiava por uma transformação social e revolucionária.

E, para tanto, foi criado um sistema de inteligência capaz de perpetrar as maiores

atrocidades vistas na América Latina, a Dirección de Inteligencia Nacional (DINA).

Terrorismo de Estado

Ao se conjeturar acerca das ditaduras ou regimes de Terrorismo de Estado, se

está diante de uma reconfiguração do Estado, acentuando seu aspecto repressivo e

1 Um dos melhores estudos disponíveis sobre as lutas populares na conjuntura chilena de finais dos anos

1960 e os anos do governo da UP é o trabalho de CURY, Márcia. O protagonismo popular.

Experiências de classe e movimentos sociais na construção do socialismo chileno (1964-1973). Campinas, Editora da UNICAMP, 2017.

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tornando-o Estado de dominante coercitiva2 para sustentar os interesses das classes

dominantes por meio de seus instrumentos de poder, ou seja, polícia, Poder Judiciário,

parlamento, Exército. Assim, o Estado pode assumir formas históricas específicas de

autoritarismo empregando sistematicamente o terror.

Segundo aponta Padrós, “é pertinente destacar que as ditaduras de SN

(Segurança Nacional) procuraram esconder, com seu discurso patriótico, moralista e

tecnocrático que o TDE se constituiu numa estratégia contextualizada de luta de

classes” (PADRÓS, 2005, p.123). Assim, a Doutrina de Segurança Nacional (DSN)3

levada ao Chile pelas forças armadas, transformou em “inimigo interno” da nação todo

aquele indivíduo identificado com alguma classe ou luta específica, já que um dos

sustentáculos dessa doutrina era justamente a noção de unidade, de coesão política.

Tendo em vista tal percepção, não apenas o militante ligado à luta armada ou político do

partido oposicionista representavam ameaças, pois ao ampliar o conceito inimigo

garantia-se uma atmosfera de permanentemente suspeição. Para os militares latino-

americanos advogados dessa visão, segundo discorre Comblin,

O Estado é o único intérprete da vontade da nação. Os partidos representam

necessariamente interesses particulares. O Estado não pode depender dos

partidos; situa-se acima deles. Os atuais militares não podem compreender

absolutamente nada de um sistema de análise do poder político que relacione

esse poder a classes ou grupos. A missão do Estado é justamente manter-se

acima da confusão e de fazer calar as visões e interesses particulares todas as

vezes que o bem comum o exigir. (COMBLIN, 1978, p.73)

Dos mecanismos implementados pelo Estado, a "cultura do medo” geradora da

autocensura, resignação e imobilização dos indivíduos, cumpria a função pedagógica do

Terrorismo de Estado, a alienação ou colaboração com o regime. Aberta ou

clandestinamente, os aparatos repressivos criados pelos regimes autoritários

empreenderam múltiplas ações com refinadas técnicas para atemorizar a sociedade

2 Ver LÖWY, Michael e SADER, Eder, A militarização do Estado na América Latina. In: Pedro Calil

Padis (org.). América Latina. Cinquenta anos de industrialização. São Paulo: HUCITEC, 1979. 3 Elaborada pelos Estados Unidos da América no contexto da Guerra Fria, a Doutrina de Segurança

Nacional foi exportada para América Latina através das escolas militares localizadas no canal do Panamá

e nas escolas militares dos países que sofreram golpes de Estado nas décadas de 1960-70. Concentrada na

contenção do comunismo e, sobretudo, na ideia de manter os mercados aliados aos interesses

estadunidenses, essa doutrina permitiu que os EUA intervisse nos países latino-americanos, assegurando

o poder das classes dominantes (favoráveis aos sistema capitalista), financiando e apoiando ditaduras de

segurança nacional e impondo a violência como método de eliminação da subversão.

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como um todo e eliminar seus opositores de forma que pudessem justificá-las ou ocultá-

las.

A ideia de que "El tríptico que caracteriza la ideología del terrorismo de Estado

es: secreto, clandestinidad e impunidad" (REYNA;REYES, 1991) se evidencia com as

investigações realizadas pelas Comissões da Verdade instauradas nos países do Cone

Sul e a ausência de punição a muitos agentes estatais que comprovadamente violaram os

direitos humanos. Da mesma forma, é possível atestar, em breves análises como esta e

outros trabalhos acadêmicos de maior fôlego, que analisam a esfera repressiva das

ditaduras, que o elemento da clandestinidade é o que suporta além da impunidade, a

ausência de fontes documentais, haja vista a Dirección de Inteligência Nacional chilena

e as operações que desenvolveu desde 1973 até 1977, bem como, desenvolveram os

aparatos repressivos criados por países como o Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai.

O golpe civil militar no Chile

A movimentação golpista teve início, de fato, em 1972, apesar de as ações

encobertas estadunidenses ocorrerem no país antes mesmo da vitória da UP nas eleições

presidenciais4. De acordo com a narrativa do embaixador Nathaniel Davis (1990, p.184)

sobre os anos finais do governo de Allende, nesse período ocorreram inúmeras

tentativas de golpe envolvendo o grupo paramilitar Patria y Libertad, grandes

latifundiários e oficiais militares reformados e da ativa.

Previsto pelos oficiais conspiradores para o dia 14, o golpe derradeiro foi

adiantado em três dias por Pinochet para evitar que Allende tornasse pública no dia 11

de setembro sua resolução de convocar um referendo no qual seria votada a

permanência ou saída da UP do governo. O primeiro dos cenários, na visão do

presidente e do Partido Socialista significava a certeza de uma guerra civil que Allende

buscava evitar, embora independentemente do resultado, a vitória de uma classe sobre a

outra àquela altura indicasse o inevitável uso da violência como arma defender

quaisquer valores. No dia 8 de setembro, a CIA já possuía informações sobre o

4 Sobre o plano os EUA no Chile e o ITT-CIA ver MATTOS, Renata dos Santos. Make the economy

scream: o plano ITT-CIA e os impactos no governo de Salvador Allende (1970-1972). 2015, 74 f.

Trabalho de Conclusão de Curso. Departamento de História. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.

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planejamento do golpe. De acordo com o relatório desclassificado, a movimentação

golpista teria início a partir da ação da Marinha juntamente da Força Aérea, com a

ordem de rendição do presidente. Caso contrário, as forças armadas atacariam a sede do

poder político em Santiago.5

Assim como descreveu o relatório da inteligência estadunidense, em 11 de

setembro, às 6 horas da manhã a Marinha se sublevou. Tropas de Valparaíso se dirigiam

à Santiago e Allende, ainda crente na lealdade dos militares mais próximos, rumou ao

La Moneda. Simultaneamente, na costa, o tenente-coronel da marinha dos EUA, Patrick

J. Ryan reportava às centrais na zona do Canal do Panamá o prognóstico das ações

naquele dia. Marcado por mensagens de resistência do presidente ao povo chileno

através da única rádio em operação, por tentativas de negociação entre governo e forças

armadas, bem como por sons de bombas e aviões cortando o céu de Santiago, o dia do

golpe permanece um momento emblemático cristalizado na memória das chilenas e

chilenos, especialmente, entre aqueles sobreviventes das violações desencadeadas pela

ditadura instaurada posteriormente.

A proclamação militar, em cadeia radiofônica, anunciou o bombardeio ao

palácio do governo em resposta a negativa de Allende em deixar seu posto. Instantes

antes da sua morte, declarando seus sentimentos e esperança de superação daquele

“momento gris y amargo, donde la traición, pretende imponerse”6, Allende buscou

transmitir aos trabalhadores e trabalhadoras a ideia que o moveu ao longo de sua

trajetória política. Na perspectiva de Mario Amorós,

El golpe de estado del 11 de septiembre de 1973 significó una quiebra hasta

hoy irreparada en la historia de Chile. El derrocamiento del gobierno

constitucional, el bombardeo de la moneda y la muerte del Presidente

Salvador Allende marcaron para siempre al regimén de Pinochet y

anunciaron lo que sobrevendría desde aquel mismo dia y durante muchos

años: el absoluto desprecio por la dignidad de millones de seres humanos y la

vulneración de todas las libertades democráticas. Además, aquella

sublevación militar, respaldada por la derecha y la dirección del PDC, abrió

paso también a la refundación del país en términos políticos, culturales,

econômicos, sociales e incluso psicológicos. (AMORÓS, 2009, p.5)

5 FOIA. CIA Report. Claim that Navy to initiate Move to Overthrow the Government that Air Force will

support. 08/09/1973. Disponível em: < https://foia.state.gov/searchapp/DOCUMENTS/pcia/9c9b.PDF>

Acessado em: 02/05/2018 6 Últimas palavras de Salvador Allende. Disponível em: < http://www.blest.eu/biblio/terrazas/cap4.html>

Acessado em: 02/05/2018

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A refundação mencionada por Amorós marcou as primeiras declarações da Junta

Militar estabelecida e tornou-se o objetivo maior da ditadura, que através do

apagamento do passado, ansiava pelo alegado nascimento de uma “nova pátria”, com

diferentes valores. A ata de constituição da Junta demonstra mais do que a vontade dos

militares de “restaurar la chilenidad”, apresenta a aversão pelo governo anterior

compreendido como uma “intromisión de una ideologia dogmática y excludente,

inspirada en los princípios foráneos del marxismo-leninismo”.7 No mesmo dia, José

Toribio Merino, membro da Junta, afirmou não se tratar de um golpe, já que a

“consciência legalista” e o espírito cívico” das forças armadas os impediam de fazê-lo.

Segundo o novo comandante, a partir da tomada do poder somente “gobernarán los más

capaces y honestos”, “formados en una escuela de civismo, de respeto por la persona

humana”8, fatos que o próprio processo histórico retifica em contrário.

Em setembro e outubro de 1973, milhares de pessoas que militavam nos partidos

e organizações de esquerda e que haviam apoiado o projeto de Allende foram detidas e

torturadas em locais públicos transformados em centros de detenção. Exemplo disso são

os estádios do Chile e de Santiago e a Ilha Dawson, verdadeiros campos de

concentração após outorgadas as leis que ordenaram dirigentes políticos a se entregarem

às autoridades militares que instauraram a censura.9 Centenas de pessoas foram

assassinadas, em alguns casos por pelotões de fuzilamento. Um dos casos mais

significativos nesses primeiros dias de repressão desenfreada foi do cantor Victor Jara,

assassinado no Estádio de Santiago,r símbolo de resistência e apoio à UP. Todos esses

crimes ocorreram de forma impune e no total estado de guerra interna e impunidade

impostos pela Junta Militar ao país.

Sob a lógica da Junta instaurada a partir do golpe de 1973, a implantação da

DSN em sua totalidade e do Terrorismo de Estado, dependia do componente coercitivo,

indispensável para impor mudanças sem resistência e eliminar os focos da ideologia

7CHILE. Acta de Constituición dela Junta de Gobierno, 11/09/1973. Disponível em: <

http://www.archivochile.com/entrada.html> Acessado em: 03/05/2018 8CHILE. Proclama. 11/09/1973. Disponível em: < http://www.archivochile.com/entrada.html> Acessado

em: 03/05/2018 9CHILE. Bando nº 10 e bando nº15. 11/09//1973. Disponível em: <

http://www.archivochile.com/entrada.html> Acessado em: 03/05/2018

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comunista e de toda e qualquer ideologia de esquerda, de modo a suprimir lutas contra

os valores dominantes defendidos pelos autores do golpe e pelos EUA. Embora o setor

golpista tivesse se articulado desde os primeiros momentos do governo de Salvador

Allende para derrubá-lo, não demonstrava preparação para assumir a direção do país, ou

um contraprojeto para fazer frente aos programas desenvolvidos pela UP no passado.

Do mesmo modo, agiram sem coordenação na questão repressiva nos primeiros dias

pós-golpe, quando em diversos lugares do país as lideranças militares tomaram decisões

distintas, com maior ou menor intensidade de violência. Enquanto em Santiago, a

perseguição desenfreada caracterizou a ação policial, em outras cidades mais distantes

da capital não houve prisões ou tortura. Nesse sentido, a DINA, surge como um

elemento padronizador da violência estatal no Chile.

A Dirección de Inteligencia Nacional a partir do Manual de Operaciones

Secretas

Em novembro de 1973, Pinochet encarregou o coronel do exército Manuel

Contreras de executar o projeto de estruturação de um órgão de inteligência nacional

que, em poucos dias, já havia sido aprovado pela Junta Militar. A partir da criação desse

novo aparato repressivo, Pinochet tentava pôr fim às disputas entre os serviços de

inteligência das distintas esferas das forças armadas e carabineiros, pois, submetida

exclusivamente ao seu mando, a DINA realizaria todas as ações ordenadas diretamente

pelo ditador e, do mesmo modo, responderia unicamente ao seu superior. Ainda nesse

período, a DINA começou a assumir em suas propriedades, novas funções tais como

acumular, ordenar e processar as informações que chegavam pelos múltiplos canais,

realizar interrogatórios e fornecer cursos intensivos de contrassubversão.

Oficialmente criada em junho de 1974 a partir do Decreto- lei nº 521, a então

chamada Dirección de Inteligencia Nacional, principal instrumento de contenção dos

“inimigos internos” durante a ditadura, tornou-se pública. Conforme o decreto-lei

considerava-se a necessidade do “Supremo Governo” ter um organismo especializado

que lhe garantisse a entrega de informações devidamente processadas, adaptando suas

resoluções nos campos da Segurança Nacional e Desenvolvimento. Sob essa

justificativa, cria-se a DINA,

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[…] organismo militar de carácter técnico profesional, dependiente

directamente de la Junta de Gobierno y cuya misión será la de reunir

toda la información a nivel nacional, proveniente de los diferentes

campos de acción, con el propósito de producir la inteligencia que se

requiera para la formulación de políticas, planificación y para la

adopción de medidas que procuren el resguardo de la seguridad

nacional y el desarrollo del país.10

Embora o decreto apontasse para funções ligadas ao processamento de

informações somente, o papel da DINA extrapolava a própria lei que a instituiu. Os

últimos três artigos, ocultos ao público, foram divulgados apenas no Diário Oficial de

circulação restrita, definindo mais claramente, o caráter repressivo que o órgão

realmente passou a adotar. O artigo 10º, ao afirmar que “la Junta de Gobierno podrá

disponer que las diligencias de allanamiento y aprehensión, fueran necesarias, sean

cumplidas además por la Dirección de Inteligencia Nacional”, permitiu que além do

âmbito da inteligência e informação, o órgão recém instituído atuasse em todo o

espectro de ações da segurança nacional ou atividades de repressão.

Assim, a fim de empregar as diretrizes da DSN e consequentemente do TDE,

conforme as especificidades locais, e repassá-las aos agentes chilenos, a Dirección de

Inteligencia desenvolveu seu próprio manual de operações. Em setembro de 2013, 40

anos após o golpe de Estado, foi enviado pelo historiador Danny Monsalvez da

Universidade de Concepción ao site The Clinic11, um documento intitulado Manual de

Operaciones Secretas. A partir da leitura dessa significativa fonte, à qual Monsalvez

teve acesso, mantendo sigilo sobre sua origem, é possível compreender mais

profundamente no que consistiu o aparato repressivo chileno e os objetivos do serviço

secreto desenvolvido pelo diretor geral, coronel Manuel Contreras e o ditador Augusto

Pinochet. Além disso, o manual, datado de 1976, auxilia enquanto prova da

institucionalização do terror de Estado no Chile.

Constituída por brigadas e grupos de trabalho, a DINA possuía uma estrutura

mutável que contou com a já mencionada diretoria, um Estado Maior, Subdireção e a

10 CHILE. Decreto- lei nº 521, 11 de junho de 1974. Archivo Chile Disponível em:

<http://www.archivochile.com/Dictadura_militar/html/dic_militar_leyes_dm.html> Acessado em:

03/05/2018. 11Manual de Operaciones Secretas. Disponível em: < http://www.theclinic.cl/2013/09/11/operaciones-

secretas-el-manual-inedito-de-la-dina/> Acessado em: 20/03/2018.

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Direção de Operações, sendo essa última chefiada por Pedro Espinoza Bravo, conhecido

como “Don Rodrigo” e que antes de assumir tal posição, desempenhou o papel de chefe

do centro de detenção e torturas de Villa de Grimaldi12. Sob as ordens de Espinoza

estavam os departamentos de inteligência do Interior e Exterior e abaixo destas, as

Brigadas de Inteligencia Metropolitana (BIM), de Inteligência Regional (BIR) e de

Inteligência Cidadã (BIC). As Brigadas repressivas dividiam-se em três, Purén,

Caupolicán e Lautaro das quais faziam parte Raúl Iturriaga Neumann, Hermán Barriga

Muñoz, Ingrid Olderock, Marcelo Moren Brito e Miguel Krassnoff Martchenko, nomes

conhecidos entre os presos políticos da DINA em função dos papéis repressores

assumidos por eles. Segundo Priscila Antunes (2007, p.406), a DINA desenvolveu um

padrão típico de comportamento que incluía o uso de agentes descaracterizados,

recrutados no âmbito das Forças Armadas, mas agindo de forma institucionalizada por

fora da estrutura de mando oficial. Os grupos operativos Falcão 1 e 2, Águia,Vampiro e

Tucano além de militares, contavam com agentes civis.

Ligada à direção da DINA estava a Escola Nacional de Inteligencia (ENI), onde

agentes eram treinados e tinham suas técnicas de apreensão, interrogatório, tortura e

assassinato aprimoradas. Nesse local eram ministrados cursos como Relações

Internacionais, Criptografia, tiro, Inteligência e contra-inteligência, e Serviço secreto

como faz referência o próprio manual aqui analisado. (SALAZAR, 2011, p.112)

Embora não se tenha maiores informações sobre a estrutura da escola, ou registros que

confirmem os agentes que por ali passaram, essa fonte histórica esclarece sobre o

conteúdo das lições e consequentemente, sob que bases os civis e militares associados à

DINA foram treinados. De acordo com o Manual, a instituição tinha

por misión realizar todo tipo de operaciones de Inteligencia en el país y en el

extranjero mediante maniobras ocultas y clandestinas que no produzcan

comprometimiento al Estado o sus autoridades y que permita aprovechar sus

resultados en beneficio de los interses nacionales y de la propria

organización.13

E ainda operava

12 Atualmente, transformado em espaço de memória e educação para os direitos humanos Parque por la

Paz Villa Grimaldi. Disponível em: <http://villagrimaldi.cl/> Acessado em: 05/07/2018 13 Manual de Operaciones Secretas. op.cit. p.1

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clandestinamente en cualquer lugar y todo tipo de objetivos. El S.S. (serviço

secreto) debe aprovechar que la gente piensa que la ley no será vulnerada.

Esta credibilidad nos dá la ventaja de vulnerar la ley. Lo interesante es que al

actuar clandestinamente hay que saber hacerlo a objeto de mantener esta

credibilid. Ahora bien, la ley tambien ofrece una serie de garantias, las cuales

deben ser explotadas con habilidad y en nuestro provecho.14

Excedendo os limites constitucionais com o objetivo de enquadrar a população e

defender os interesses dominantes, aspecto característico do TDE, a DINA converteu-se

em um aparato coercitivo altamente treinado e com amplos poderes, o que lhe custou,

até mesmo disputas internas com outros setores estatais ligados ao aparato de

inteligência e repressão do país. Utilizando a tática da clandestinidade e

semiclandestinidade, a DINA buscou não apenas legitimar-se dentro da sociedade

enquanto órgão dito defensor dos princípios da segurança nacional e da ordem, como

também cometeu crimes em nome desses valores e protegeu as identidades de seus

agentes, sinalizando a vulnerabilidade das leis em períodos ditatoriais.

Ainda sobre isso, um dos princípios de inteligência apresentados na fonte e que

caracteriza as ações desenvolvidas pela DINA ao longo de sua existência é justamente o

segredo, a clandestinidade, a qual “se consigue mediante la restrición del conocimiento

de una materia al menor número de personas y con el mínimo de reproducción de los

documentos”15 e que explica as lacunas documentais permanentes até hoje no que se

refere aos crimes praticados pela DINA.

Baseado na ocultação, esse aparato repressivo atuou em diferentes regiões do

Chile, criando centros de detenção, onde interrogaram, torturaram e assassinaram presos

políticos, além de desaparecerem seus corpos. Embora a fonte não traga,

especificamente, questões sobre as graves violações com o uso da força física pelos seus

agentes contra os perseguidos políticos - comprovadas e documentadas pelos Informes

Rettig e Valech16- é possível deparar-se com um alto nível de detalhamento do esquema

de inteligência e contra-inteligência arquitetado desde 1973, além de trazer a questão do

interrogatório - técnica amplamente difundida a partir da Doutrina de Guerra

Revolucionária francesa e da DSN estadunidense- como instrumento válido no contexto

14 Idem, p.4 15 Idem, p. 3 16 Informe Rettig. Disponível em: Disponível em: <http://www.ddhh.gov.cl/ddhh_rettig.html> Acessado

em: 04/05/2018 e Informe Valech. Disponível em:

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chileno. Dos aspectos práticos, o interrogatório aparece como consequência da coleta de

dados contidos nas fichas, arquivos e históricos dos “suspeitos”, seguidos da vigilância

e da atuação de agentes.17 Assim,

Normalmente, el interrogatório de un sospecho por parte de la O/A

[Operación Activa] se efectua solo despues de haber pesado detenidamente

las ventajas y desvantajas de su arresto. Una vez que se há tomado la decisión

de arrestarlo, hay que interrogarlo de manera meditada, persistente y contínua

por interrogadores especializados, ló que casi siempre tendrá êxito. En

algunos países especialmente en los estados policíacos, los interrogadores no

dudan en emplear presiones físicas y mentales extremas incluídas las

amenazas contra la família del sospechoso.18

As pressões físicas e psicológicas referidas no manual com certa cautela, não

apenas fizeram parte do modus operandi da DINA, como, segundo Salazar (op.cit.,

p.204) agentes brasileiros do Serviço Nacional de Informações (SNI) dirigiram-se ao

Chile para auxiliar no refinamento das técnicas de interrogatório com uso de tortura.

Além disso, dentre os diversos temas tratados ao longo deste documento, pode se

sublinhar a caracterização do serviço secreto quando se aponta o êxito das operações

diretamente ligadas à capacidade e à lealdade dos agentes, que “sumados a la

instrucción, las cualidades personales, preparación y cultura”19 conferem ao organismo

coesão e sucesso. Assim, baseado no “deseo de realizar algo y el hecho de que este algo

no pueda realizarse abiertamente”, o serviço secreto desenvolveria ações encobertas,

ocultas ao público e até mesmo às demais forças pertencentes ao regime. Conforme

constam nas instruções da DINA ainda, seus agentes deveriam se referir a ela como um

“organismo que busca informação”, pois isso “la hace parecer publicamente como

inofensiva e inocente”.20

O Manual de Operaciones Secretas é minucioso, apresenta diversas ordens de

agentes, a forma como devem se portar a fim de camuflarem sua identidade e as

atividades desenvolvidas pelo órgão. O chamado “agente de controle”, por exemplo,

deveria recrutar informantes sem mostrar sua real identidade, fornecendo nome e

profissão falsos- princípios básicos da organização operativa da DINA e de outras

17 Nesse tópico, consta no Manual o exemplo de Angela Calomiris, informante do FBI infiltrada no

Partido Comunista na década de 1940. 18 Manual de Operaciones Secretas, op. cit., p. 87 19 Ibid., p.6 20 Manual de Operaciones Secretas, op.cit., p. 4

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polícias políticas em contextos autoritários- o que se convencionou chamar de “história

fictícia”.21 No entanto, o que mais se sobressai na fonte são os aspectos do Terrorismo

de Estado delineados nas recomendações para recrutamento, tais como a quebra da

solidariedade (PADRÓS, 2005, p.35) exemplificada na página 85 do manual quando

menciona a

Oposición activa:

[…] compreende a todos los indivíduos que cooperar

com los servicios de seguridad, incluídos ciudadanos

particulares y grupos o indivíduos com cargo semioficial

(por ejemplo, el portero de una casa que vigila a los

vecinos) En este sentido es siempre aconsejable

considerar a cualquier persona (aunque no intervenga de

momento en la operación) como un colaborador

potencial, voluntário de la O/A.22

Ademais, o já explanado alargamento do conceito de “inimigo interno” também

aparece no excerto abaixo, deixando clara a permanente suspeição imposta a todos os

indivíduos pelo Estado:

La observación e investigación por la polícia e el próprio

servicio de seguridad de personas, grupos, instalaciones,

comunicaciones, etc, que sean sospechosos como

consecuencia de una hipotesis planteada por el susodicho

servicio de seguridad. Desgraciadamente en estos

casos,todos los que tengan relación com los

sospechosos, caen la sospecha lo mismo si son culpables

que inocentes.23

Constantemente, durante a ditadura chilena e em outros países da América

Latina, a todo e qualquer indivíduo se atribuiu a dúvida e, sobretudo, a culpa pelos

focos de resistência existentes nesse sistema autoritário que se pretendia uno e

indivisível. Como se não bastassem as violações individuais sofridas pelos cidadãos

chilenos, restou ainda aos considerados “inimigos internos” e suas redes a violência

física seguida da eliminação. Elemento criado acima de tudo, para justificar a existência

de aparatos como a DINA e impor o medo naqueles que ousassem desafiar o regime, o

“inimigo interno”, o “suspeito” deu aos agentes repressores significado. A ideia de que

21 Ibid., p. 40-45 22 Ibid., p.85 23 Ibid, p.86

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militares e policiais das ditaduras de Segurança Nacional latino-americanas constituíam

verdadeiros “salvadores da pátria”, agentes que estavam agindo em prol da defesa

nacional, (PADRÓS, op.cit., p.100) se reproduziu por diversos meios, buscando reforçar

a importância do seu desempenho dentro da ditadura e ao mesmo tempo, manter sua

confiança nos ditadores e nas diretrizes militares. Nesse sentido, o caso do Chile não foi

diferente, pois além de veículos midiáticos como o jornal El Mercurio e militantes de

direita exaltarem a captura de oponentes políticos, o manual de operações secretas traz

esse aspecto da crença e da certeza de se estar agindo em nome de um bem maior

quando indica que

El líder hace sentir a sus I [informantes] las esperanzas que el

tiene por el futuro de su país, un futuro que bien vale los

numerosos sarificios que supone el cumplimiento de su misión

clandestina.24

Desse modo, tendo em vista esse e outros apontamentos realizados ao longo

desta breve reflexão sobre o TDE no Chile e seus desdobramentos, como a criação da

DINA e o treinamento de seus agentes repressores, destaca-se ao fim, a maneira como

Augusto Pinochet se valeu das diretrizes da doutrina estadunidense, da inteligência e

contra-inteligência na tentativa de remover no país todos os elementos ligados à

esquerda, ao marxismo e à UP, julgados como desagregadores desse novo Chile

refundado em bases autoritárias e liberais. O Manual de Operaciones Secretas, fonte

histórica ainda pouco desbravada, que interroga o passado traumático chileno, é apenas

uma pequena amostra da organização conhecida até mesmo como “o monstro”, dentro

das camadas do serviço de inteligência do Centro de Contrainteligencia de las Fuerzas

Armadas.25

Considerações finais

Ponderando os elementos expostos acerca da escalada autoritária e da

consequente aplicação do Terrorismo de Estado em todas as esferas da sociedade

chilena, é inevitável não elencar a DINA como um dos seus principais instrumentos.

24 Manual de Operaciones Secretas, op.cit., p.55 25Segundo consta no relatório secreto do Departamento de Defesa dos EUA. In: FOIA. DINA and

CECIFA internal conflicts and the treatment of deteinees. 05/02/1974.

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Arquitetada como aparato repressivo, esse órgão de inteligência e informação gestado

logo após o golpe de Estado recebeu em suas camadas alguns dos agentes treinados

pelas escolas militares nacionais e estadunidenses, que além de interessados em conter a

julgada subversão comunista, iniciaram um agressivo processo contrarrevolucionário.

Embora a Escola das Américas26, localizada no canal do Panamá, tenha

fornecido instrução para alguns dos mais conhecidos torturadores e coordenadores das

brigadas da DINA, era necessário recrutar um corpo de agentes e informantes mais

amplo que dessem conta da complexa estrutura que se formara. Assim, a própria

Dirección desenvolveu sua escola e posteriormente, o Manual de Operaciones Secretas.

Descoberta há apenas cinco anos, essa fonte histórica se mostra esclarecedora no que se

refere aos aspectos da inteligência e segurança no contexto de total anticomunismo e

terrorismo estatal no Chile, pois além de se tratar de um organismo ainda cercado por

mistérios, traz justamente suas características operativas pouco conhecidas do público.

Alguns dos excertos do manual demonstram a ideologia da instituição e os esforços de

suas lideranças em formar agentes capazes de infiltrarem-se no seio dos grupos

opositores à ditadura, capazes de aliciarem informantes, de interrogarem suspeitos, de

violarem as leis em benefício da DINA e consequentemente, do próprio ditador.

As atrocidades cometidas pela Dirección de Inteligencia Nacional,

diferentemente do que almejaram Pinochet e Contreras, não se mantiveram ocultas ou

clandestinas, pois a despeito da quebra da solidariedade dentro de alguns círculos

sociais e da desmobilização, frutos do TDE, outros tantos elos se formaram a partir da

resistência à ditadura, permitindo que os relatos de violações dos direitos humanos

obtivessem alcance mundial através de Comissões da Verdade, sítios de memória, etc.

Apesar de ainda existirem lacunas e silêncio sobre aspectos operacionais e os registros

das atividades da DINA, vale destacar que, gradualmente, estão sendo desvelados seus

crimes e seus agentes julgados e condenados graças à outra importante fonte, os

sobreviventes dos porões da ditadura.

26 Sobre isso ver GILL, Lesley. Escuela de las Americas. Santiago: Lom Ediciones, 2005.

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