O Tempo Não Volta Para Trás - PÚBLICO

7/26/2019 O Tempo No Volta Para Trs - PBLICO

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O tempo no volta

para trsPor Jorge Mourinha 11/12/2015 - 08:01

S haver um resultado aceitvel para O

Despertar da Fora: bater todos os recordes de

bilheteira. Isso satisfar os accionistas da Disney,

mas nada dir quanto ao impacto humano,

emocional do filme. Esse, tal como foi vivido em

1977, impossvel de reproduzir.


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O mundo talvez no precise de mais um ensaio sobreA

Guerra das Estrelas, a desenhar o papel central que a

saga criada por George Lucas em 1977 teve no

desenvolvimento da moderna cultura popular

audiovisual. Mas levantar essa questo implica que se

pergunte, no mesmo movimento, se o mundo precisava

realmente de mais um filme da sagaStar Wars.

Evidentemente, a questo no se pode

colocar de modo to utilitrio. Mas no

momento em que a estreia a 17 de

Dezembro doEpisdio VII da srie, O

Despertar da Fora, se prepara para

monopolizar os media ao longo das

prximas semanas, h que reconhecer que

isso se deve tambm ao peso da criao de

Lucas no imaginrio universal da cultura

pop moderna. verdade que o imprio

Lucasfilm se construiu sobre a dimenso

puramente mercantil da saga: foram os

brinquedos e o merchandising da Guerra

das Estrelas a fazer a fortuna de Lucas. E

se hoje existe uma tendncia inevitvel

para reduzir tudo a uma mera questo de

retorno sobre o investimento, no se deve

nunca esquecer como essa popularidade

tem uma razo de ser emocional,artstica, cultural. Sem o filme que lhe deu

origem, nos idos de 1977, seria toda uma

outra histria do cinema e, por arrasto,

da cultura popular, americana e no s, de

que estaramos a falar. Uma histria que, de modo

profundamente moderno, se alimentava de toda uma

linhagem do cinema popular do pr- e ps-SegundaGuerra Mundial.

O universo Star Wars

ganhou aos poucosuma vida prpria.Democratizou-se comas contribuies de fs

que encontraram nasimplicidade do seucombate moral entre obem e o mal a resposta

a um mundo modernoem crise


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Repare-se: quandoA Guerra das Estrelas estreou em

1977, a publicidade portuguesa chamava-lhe o grande

western do espao. E no era descabido. Estas

aventuras num Oeste selvagem sideral (as montanhas

de Tatooine ecoavam, ou no, as paisagens do

Monument Valley?) decorriam directamente da

impossibilidade de Lucas filmar as aventuras deFlash

Gordon. As referncias narrativas vinham todas dos

velhos serials de aco e aventura e fantasia (tal como,

anos depois, osSalteadores da Arca Perdida que Lucas

produziu para Steven Spielberg realizar), e eram

comuns tanto a quem fez os filmes como a quem os viu:

uma amlgama de visionrios futuristas deslumbrados

pelas possibilidades dos computadores e estetas

influenciados pelos filmes vistos nos teatros de bairro

ou na televiso. (E quem nasceu com a Guerra das

Estrelas como matriz, sem forosamente conhecer as

inspiraes originais, nunca poderia sentir o mesmo

efeito de reinveno e reconhecimento.)

O que Lucas fizera comA Guerra das Estrelas, depoisde Spielberg ter dado o primeiro passo em 1975 com

Tubaro, fora ejectar do cinema da Nova Hollywood a

tendncia autoral influenciada pelaNouvelle Vague,

Ingmar Bergman, Akira Kurosawa ou Federico Fellini,

substituda pelos serials da Monogram e da Universal,

pelos filmes de gnero e de srie B. Afinal, a trilogia

central (A Guerra das Estrelas, 1977, escrito e dirigido

por Lucas O Imprio Contra-Ataca, 1980, escrito por

Leigh Brackett e Lawrence Kasdan e dirigido por Irvin

Kershner O Regresso de Jedi, 1983, escrito por Kasdan

e dirigido por Richard Marquand) implicava, no papel,

a existncia de mais seis filmes. Trs situados antes dos

acontecimentos do primeiro filme, trs situados depois,

construindo todo um mosaico narrativo.


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medida que os anos corriam e essa expanso parecia

desaparecer no horizonte, o universo da luta entre o

bem e o mal na forma da Aliana Rebelde e do Imprio

Galctico desmultiplicou-se em mil possibilidades

paralelas - novelizaes, BD, jogos, sries de animao,

fico de fs O universoStar Wars (e a dimenso de

space opera de fico-cientfica justifica plenamente

aqui o uso da palavra universo) ganhou aos poucos

uma vida prpria. Democratizou-se com as

contribuies de fs que encontraram na simplicidade

do seu combate moral entre o bem e o mal a resposta a

um mundo moderno em crise. A criao do pai foi, de

algum modo, tomada pelos filhos em ocupao quase

selvagem - o universo que sara da cabea de Lucas fora

colonizado e deixara de ser seu.

O primeiro sinal de que essa relao evolura

naturalmente para outro rumo diferente esteve nas

reaces s edies especiais que Lucas supervisionou

para o 20 aniversrio: agora que a tecnologia tinha

avanado o suficiente para permitir aquilo que as

limitaes (prticas ou financeiras) no haviam

possibilitado originalmente, as alteraes cosmticas

(correces ou aperfeioamento dos efeitos visuais e

(//imagens6.publico.pt/imagens.aspx/1013516?tp=UH&db=IMAGENS)

A dimenso humana estava sempre inscrita numa estrutura que era herdada de um passado pr-efeitos visuais,

onde nada era perfeito mas era muito mais credvel tridimensionalidade perdida
http://imagens6.publico.pt/imagens.aspx/1013516?tp=UH&db=IMAGENS


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introduo de material adicional) levantaram protestos

dos fs mais puristas. Era como se Lucas estivesse a

reescrever a histria - mesmo que, em rigor, a histria

fosse sua para reescrever.

O anncio da entrada em produo das trs

prequelas, levando redesignao dos filmesoriginais comoEpisdios IV, VeVI, e a estreia em 1999

doEpisdio I,A Ameaa Fantasma, foram

acompanhados por um fervor quase religioso (no por

acaso, Lucas tornara-se de algum modo

verdadeiramento num demiurgo quase divino, e a

personagem de Anakin Skywalker, o escolhido para

devolver o equilbrio Fora, era aparentemente frutode uma imaculada concepo).

O longo interregno de 16 anos que separou O Regresso

de Jedi deA Ameaa Fantasma abria, inevitavelmente,

a porta desiluso, independentemente do resultado

final. Lucas guardou para si o controle criativo absoluto

das trs sequelas (A Ameaa Fantasma, 1999, O Ataque

dos Clones, 2002, eA Vingana dos Sith, 2005,

realizando e escrevendo sozinho, com colaboraes de

Jonathan Hales no argumento do segundo) mas no

voltara a realizar desde 1977, e isso percebia-se,

sobretudo emA Ameaa Fantasma na rigidez de

movimentos, na preocupao com o pormenor em


Leia e Han so um dos garantes de comdia e a ncora romntica dos

primeiros filmes


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detrimento do conjunto. O maniquesmo

refrescantemente moda antiga dos filmes originais, o

prazer simples da aco e da aventura eram agora

substituidos por uma sequncia de jogos de sombra e

intrigas polticas, limitando-se a dispor as peas no

tabuleiro para que as duas trilogias encaixassem.

Lucas no percebeu como os anos decorridos entre as

duas trilogias haviam mudado o mundo e os padres de

referncia do pblico. Ningum punha em causa que

estivesse a fazer os filmes que queria fazer

(originalmente ou no) a questo era apenas que

esperara demasiado para os fazer. Como espera do

comboio na paragem do autocarro, imagem dos seuscolegas de gerao que acharam que a Nova Hollywood

ia durar para sempre, Lucas no percebeu que os

tempos haviam mudado. E em parte por sua culpa o

impacto queA Guerra das Estrelas e Os Salteadores da

Arca Perdidativeram na reinveno do cinema popular

de outras pocas, somado massificao das estreias

globais com grande nmero de cpias, abriu umdilvio no qual a sua saga acabou por ser arrastada.

Entre 1977 e 1983, o filme-evento era uma coisa rara einesperada, algo que s acontecia a intervalos

irregulares. Mas medida que Hollywood comeou a

pensar mais nos retornos no investimento e na



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necessidade de satisfazer accionistas do que nas

histrias que contava, a porta de marketing aberta por

Lucas e Spielberg tornou-se no padro de referncia.

A palavra saga perdeu as dimenses originais picas

ou hericas para comear a ser aplicada a qualquer tipo

de narrativa serial espalhada por vrios filmes, quer a

posteriori (Arma Mortfera,Die Hard), quer cabea(Crepsculo ou Os Jogos da Fome). A ideia de um

universo coerente desmultiplicado em infinitas

direces, queA Guerra das Estrelas no inventou mas

que transps para o cinema moderno com sucesso,

tornou-se no novo paradigma. Basta ver como

praticamente toda a produo para grande cr dos

estdios de BD Marvel (firma no por acaso entretanto

comprada pela Disney) decorre dentro de um universo

paralelo especfico (entretanto alargado televiso) e

descrito de raiz como "Marvel Cinematic Universe".

Nada que no acontecesse j na BD, mas que parece ter

tomado de assalto Hollywood ao ponto de se tornar

numa monocultura que arrisca afogar tudo sua volta.

Pior: quandoA Ameaa Fantasma estreou, o state of

the art que Lucas havia criado com os seus estdios de

efeitos visuais e ps-produo j havia sido

completamente ultrapassado. O fotorrealismo dos

efeitos digitais estava finalmente no ponto com que

Lucas sempre sonhara desde que fundara os estdios

Industrial Light & Magic, mas no interregno entre as

duas trilogias, James Cameron, os irmos Wachowski

ou a Pixar abriram novas pistas. A nica coisa que

Lucas podia oferecer em contra-partida a ideia de um

cinema inteiramente digital onde os actores evoluam

em cenrios virtuais construdos em ps-produo, e

que seria levada a novos pncaros por Robert Rodriguez

comSin City ou Zack Snyder com300 esbarrava na

ausncia do factor humano que tanto inspirara a

trilogia original.


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Havia uma sensao de interaco fsica

entre actor e cenrio nos filmes originais

uma tridimensionalidade perdida quando,

em O Ataque dos Clones, Yoda deixa de

ser um boneco construdo pelo atelier de

Jim Henson e manipulada pelo

marionetista Frank Oz para se tornarnuma criao puramente digital, capaz

dos feitos fsicos que desafiam as leis da

gravidade. Tudo na trilogia original tem

peso, volume muito das prequelas

demasiado perfeito, mesmo quando a

patine do tempo artificialmente

construda. Essa dimenso humana estava

sempre inscrita numa estrutura que era

herdada de um passado pr-efeitos

visuais, onde nada era perfeito mas era

muito mais credvel.

A saga que esteve frente do seu tempo na recriao

dos cdigos clssicos para uma nova gerao deespectadores acabou, de repente, por parecer ela

prpria um anacronismo. O que originalmente

reinventava um cinema de bairro para uma gerao

high-tech tornava-se, agora, no prprio cinema de

bairro que vinha substituir, embora com outro rigor e

requinte de produo. E nesse processo,Star Wars

tornou-se vtima de si mesmo e do paradigma que criou.

Quando Lucas tentou reassumir a sua propriedade

moral e intelectual, a revolta era inevitvel preciso

dizer, em sua defesa, que dificilmente poderia deixar a

sua marca no processo sem assumir por inteiro o

controlo. Mas, ao vender a Lucasfilm Disney em 2012,

e com ela as possibilidades de renascimento da srie,

Lucas estava tambm a ceder o seu direito a decidir o

A saga que esteve frente do seu tempo na

recriao dos cdigosclssicos para umanova gerao deespectadores acabou

por parecer ela prpriaum anacronismo


9/10

rumo a seguir. Assumiu que j no podia ser o guardio

do Frankenstein que criara, numa prova de lucidez

imposta pelo mundo real.

Mas isso implica tambm a pergunta: ser que esse

Frankenstein pode ganhar vida prpria? Mesmo

sabendo que J. J. Abrams, o criador deLost, escolhidopara ressuscitar a saga depois de ter dado novos

impulsos a Misso Impossvel eStar Trek, se

especializou em criar mistrio, manter segredos,

intrigar o espectador com uma sbia dosagem de

revelaes, Star Wars j deixou de ser a saga, para

passar a ser mais uma saga. Numa Hollywood

dominada pelo Marvel Cinematic Universe, onde osfilmes so tudo menos autnomos, simples peas

intermutveis num tabuleiro puramente materialista, o

que pode esta passagem de testemunho (mesmo que

reimplicando gente envolvida na trilogia original como

Lawrence Kasdan) trazer de novo - quer srie, quer a

Hollywood? Num momento em que j no possvel

recriar nem refazer o que tornouStar Wars numfenmeno, agora que o filme-evento se tornou no motor

principal dos grandes estdios de Hollywood, e que o

efeito-surpresa e o elemento-novidade so impossveis

de recuperar?

S haver um resultado aceitvel para O Despertar da

Fora: nada menos que bater todos os recordespossveis e imaginveis de bilheteira de sempre. Mas

isso puro rudo, puro folclore que satisfar os

accionistas da Disney e os apostadores do box-office,

mas nada dir quanto ao impacto humano, emocional

do filme no espectador. Esse impacto, tal como foi

vivido em 1977 aquando da estreia deA Guerra das

Estrelas, impossvel de reproduzir. To impossvelcomo impedir os devotos de buscar reencontrar,

reproduzir, prolongar esse momento.A Fora nunca


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deixou de estar com eles e so eles que a dominam

agora. Talvez O Despertar da Fora seja o ttulo certo

para o momento certo. Talvez no. Saberemos a 17.

COMENTRIOS

11/12/2015 16:01

Frederico Batista

Lisbon, Portugal - Lisbon, Portugal

Grande, grande texto!
http://-/?-

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