O Tecido Da Cena

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139 O tecido da cena Elvina Maria Caetano Pereira* Em sua reflexão sobre o teatro, expressa principalmente nos escritos que compõem O teatro e seu duplo, Artaud contribuiu para acender uma discussão sustentada ao longo do século XX sobre uma distinção exaustivamente explorada: aquela que separa o texto do palco. Por- que colocar em questão os aspectos constitutivos da linguagem teatral – vista não mais sob uma perspectiva literária perspectiva literária 1 1 , mas a partir de sua materialidade cênica – significou, muitas vezes, promover o divórcio entre o corpo e o verbo. Para Artaud, a decadência do teatro ocidental se deveu, em larga medida, ao lugar de honra que, nele, era ocupado pelo discurso ver- bal e por todas as relações implícitas na supremacia do uso racional e articulado da linguagem verbal como, por exemplo, o psicologismo, o empirismo e o individualismo típicos do teatro burguês. Segundo ele, o texto funciona como uma espécie de “amarra” na qual se prende a linguagem teatral, “linguagem [que] parte muito mais da necessidade da fala que da fala já formada; [que] refaz poeticamente o trajeto que levou à criação da linguagem” (ARTAUD, 1987: 92). Para Todorov, essa criação, em Artaud, deve ser entendida em um sentido bem mais am- plo do que o de enunciação (a qual, como salientado por ele, pressu- põe a existência de uma língua), pois, aqui, trata-se da constituição da própria linguagem: ou seja, o teatro, para Artaud, não dispõe de um sis- tema de signos preestabelecido e, nesse sentido,“falar” uma linguagem simbólica significa inventar a linguagem (TODOROV, 2003: 281): [...] o que já foi dito não mais deve ser dito; uma expressão não vale se repetida, não vive duas vezes; [...] uma forma usada não serve mais e apenas convida a que se procure outra forma. [...] O teatro é o único lugar do mundo onde um gesto feito não pode ser retomado uma segunda vez (ARTAUD, 1987: 98). A visão artaudiana explicita a especificidade do discurso teatral: o teatro não se define pela colocação em cena (mise-en-scène) de um texto escrito, mas por sua materialidade cênica. É para interrogar- mos a relação entre dramaturgia e cena – ponto central da pesquisa teatral que desenvolvemos tanto no campo da prática artística quan- to no âmbito dos estudos acadêmicos acadêmicos 2 2 – que percorreremos alguns conceitos de importantes teóricos e encenadores para quem o texto teatral, longe de ser pensado como matéria escrita, é assumido como discurso produzido na e pela cena. Em nossa Dissertação de Mestrado Os processos enunciativos do discurso cênico: o Método Grotowski sob a perspectiva da Teoria dos Atos de Fala e da Teoria Semiolingüística – buscamos discernir, a partir da análise de diferentes processos de construção cênica, justamente o estatuto discursivo do texto teatral. É sabido que o discurso teatral diferencia-se do discurso lite- rário por seu alto poder performativo – ou seja, por seu poder de * Departamento de Artes – UFOP 1 Desde Aristóteles, a análise do teatro esteve ligada à construção de uma poética, ou seja, a história do teatro é tradicionalmente vista como a história da literatura dramática. Especialmente a partir do século XVII, foi possível observar o surgimento de uma tradição teatral de sacralização do texto, que teve ampla repercussão sobre a teoria e prática da encenação, pensada, nesse contexto, como simples emanação da obra do dramaturgo, origem e fim de todo o sentido da cena. (ROUBINE, 1998: 46). 2 A autora investiga a construção dramatúrgica por meio de processos polifônicos de construção cênica na Maldita – Cia. de Investigação Teatral, na qual atua como dramaturga, e também na Universidade Federal de Ouro Preto, na qual desenvolveu os projetos de iniciação científica Dramaturgia em processo e a escrita da cena: as marcas da polifonia no texto contemporâneo e Histórias no crepúsculo da memória: “texturas” teatrais de causos e lembranças de velhos, ambos versando sobre a questão. Artefilosofia, Ouro Preto, n.1, p.139-147, jul. 2006

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Elvina Maria Caetano Pereira

Transcript of O Tecido Da Cena

  • 139O tecido da cenaElvina Maria Caetano Pereira*

    Em sua refl exo sobre o teatro, expressa principalmente nos escritos que compem O teatro e seu duplo, Artaud contribuiu para acender uma discusso sustentada ao longo do sculo XX sobre uma distino exaustivamente explorada: aquela que separa o texto do palco. Por-que colocar em questo os aspectos constitutivos da linguagem teatral vista no mais sob uma perspectiva literria perspectiva literria

    11, mas a partir de sua

    materialidade cnica signifi cou, muitas vezes, promover o divrcio entre o corpo e o verbo.

    Para Artaud, a decadncia do teatro ocidental se deveu, em larga medida, ao lugar de honra que, nele, era ocupado pelo discurso ver-bal e por todas as relaes implcitas na supremacia do uso racional e articulado da linguagem verbal como, por exemplo, o psicologismo, o empirismo e o individualismo tpicos do teatro burgus. Segundo ele, o texto funciona como uma espcie de amarra na qual se prende a linguagem teatral, linguagem [que] parte muito mais da necessidade da fala que da fala j formada; [que] refaz poeticamente o trajeto que levou criao da linguagem (ARTAUD, 1987: 92). Para Todorov, essa criao, em Artaud, deve ser entendida em um sentido bem mais am-plo do que o de enunciao (a qual, como salientado por ele, pressu-pe a existncia de uma lngua), pois, aqui, trata-se da constituio da prpria linguagem: ou seja, o teatro, para Artaud, no dispe de um sis-tema de signos preestabelecido e, nesse sentido, falar uma linguagem simblica signifi ca inventar a linguagem (TODOROV, 2003: 281):

    [...] o que j foi dito no mais deve ser dito; uma expresso no vale se repetida, no vive duas vezes; [...] uma forma usada no serve mais e apenas convida a que se procure outra forma. [...] O teatro o nico lugar do mundo onde um gesto feito no pode ser retomado uma segunda vez (ARTAUD, 1987: 98).

    A viso artaudiana explicita a especifi cidade do discurso teatral: o teatro no se defi ne pela colocao em cena (mise-en-scne) de um texto escrito, mas por sua materialidade cnica. para interrogar-mos a relao entre dramaturgia e cena ponto central da pesquisa teatral que desenvolvemos tanto no campo da prtica artstica quan-to no mbito dos estudos acadmicos acadmicos22 que percorreremos alguns conceitos de importantes tericos e encenadores para quem o texto teatral, longe de ser pensado como matria escrita, assumido como discurso produzido na e pela cena. Em nossa Dissertao de Mestrado Os processos enunciativos do discurso cnico: o Mtodo Grotowski sob a perspectiva da Teoria dos Atos de Fala e da Teoria Semiolingstica buscamos discernir, a partir da anlise de diferentes processos de construo cnica, justamente o estatuto discursivo do texto teatral.

    sabido que o discurso teatral diferencia-se do discurso lite-rrio por seu alto poder performativo ou seja, por seu poder de

    * Departamento de Artes UFOP

    1 Desde Aristteles, a anlise do teatro esteve ligada construo de uma potica, ou seja, a histria do teatro tradicionalmente vista como a histria da literatura dramtica. Especialmente a partir do sculo XVII, foi possvel observar o surgimento de uma tradio teatral de sacralizao do texto, que teve ampla repercusso sobre a teoria e prtica da encenao, pensada, nesse contexto, como simples emanao da obra do dramaturgo, origem e fi m de todo o sentido da cena. (ROUBINE, 1998: 46).

    2 A autora investiga a construo dramatrgica por meio de processos polifnicos de construo cnica na Maldita Cia. de Investigao Teatral, na qual atua como dramaturga, e tambm na Universidade Federal de Ouro Preto, na qual desenvolveu os projetos de iniciao cientfi ca Dramaturgia em processo e a escrita da cena: as marcas da polifonia no texto contemporneo e Histrias no crepsculo da memria: texturas teatrais de causos e lembranas de velhos, ambos versando sobre a questo.

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  • 140realizar simbolicamente uma ao e que se caracteriza, basicamente, pela ao intencionada que exerce sobre o espectador (PAVIS, 1999). nesse sentido que Artaud prope um uso da linguagem verbal cal-cado no poder que as palavras tm de, concretamente, atingir a alma e o corpo do espectador. Para ele, essa performatividade da palavra no est ligada ao seu signifi cado, mas sua modulao, ritmo e vibrao, ou seja, ao seu sentido concreto e espacial:

    [...] se relacionarmos as palavras com os movimentos fsicos que lhes deram origem, se o aspecto lgico e discursivo da palavra desaparecer sob seu aspecto fsico e afetivo, isto , se as palavras ao invs de serem consideradas apenas pelo que dizem gramaticalmente falando forem ouvidas sob seu ngulo sonoro, sejam percebidas como movimentos, e se esses movimentos forem assimilados a outros movimentos diretos e simples tal como existem em todas as circunstn-cias da vida e como no existem em quantidade sufi ciente para os atores em cena, se isso se der a linguagem da litera-tura se recompor, se tornar viva. (ARTAUD, 1987: 152).

    Como Artaud, tambm Barba e Grotvski vo interrogar o fe-nmeno teatral a partir do esfacelamento das noes de ao, texto e dramaturgia. O conceito clssico de dramaturgia, embora a defi na como composio de aes (e ao pressuponha personagens que ajam), restringe o mbito dessa composio ao de uma construo potica, de cunho literrio. Aristteles legitimou tal posio ao declarar, em sua Po-tica (texto que inaugura o estudo da dramaturgia), que a tragdia deva manifestar seus efeitos por si, independente de sua realizao cnica.

    Quanto ao espetculo cnico, de certo que a [parte] mais emocionante, mas tambm a menos artstica e menos pr-pria da poesia. Na verdade, mesmo sem representao e sem atores, pode a tragdia manifestar seus efeitos; alm disso, a realizao de um bom espetculo mais depende do cengrafo que do poeta. (ARISTTELES, 1984: 247).

    De maneira contrria a essa posio, Barba afi rma que todas as re-laes, todas as interaes entre as personagens ou entre as personagens e as luzes, os sons e os espaos, so aes. Tudo o que trabalha diretamente com a ateno do espectador em sua compreenso, suas emoes, sua cinestesia, uma ao (BARBA & SAVARESE, 1995: 69). Ao ampliar o conceito de ao, Barba, necessariamente, amplia o sentido no s de dramaturgia, mas tambm de texto, uma vez que, para ele, as aes s so operantes quando esto em trabalho, entrelaadas, quando se tornam textura, tecido: a palavra texto, antes de se referir a um texto escrito ou falado, impresso ou manuscrito, signifi ca tecendo junto. Nesse sentido, no h representao que no tenha texto. (1995: 69).

    Assim como ele, Grotvski salienta que h uma dramaturgia do textotexto33 (dramaturgia autnoma do espetculo, nos dizeres de Barba) e uma de todos os componentes do palco. Para ele, pela ao ou comportamento real que se abandona o terreno das palavras e das defi nies para se obter a apropriao progressiva de uma linguagem material, feita de comportamentos, distncias e relaes, vida psquica e fatos, confl itos e que constituem a especifi cidade semntica do tea-tro. (GROTVSKI, 1992: 92).

    3 Empregado aqui no sentido clssico: a literatura dramtica.

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  • 141Durante um mesmo espetculo, os atores s vezes traba-lham dos lados da rea de atuao, outras vezes no meio; as-sim determinados espectadores experimentam certas aes em aproximaes (primeiros planos) quando os atores esto a alguns centmetros deles enquanto outros espec-tadores vem o quadro total por um ngulo muito maior. (BARBA & SAVARESE, 1995: 71).

    Tal deslocamento do sentido de ao contribuiu para o desen-volvimento de um novo conceito de dramaturgia, cuja origem e fi m se localizam na idia de evento teatral, ou seja, no encontro entre es-pectador e ator. Ao deslocar a noo de texto para a cena, considerada, inclusive, em funo de sua relao imediata, Grotvski, Barba, Artaud, mas tambm Brecht, abriram caminho para uma discusso fundamen-tal do teatro contemporneo: o conceito de dramaturgia da cena.

    A partir de Brecht, conforme sublinha Nicolete (2002:12), o termo dramaturgia passa a abarcar toda a estrutura no s formal, mas tambm ideolgica de uma pea, ou seja, o texto, o que se pretende com ele e a maneira como ele levado cenale levado cena44. Nessa perspectiva, no s o palco comea a narrar, como tambm uma vez que se con-ta com o seu despertar crtico o espectador entra em atividade. J vimos que o teatro se caracteriza pela ao que exerce sobre o espec-tador. Em razo da complexidade do estatuto enunciativo do discurso teatral que ocorre em vrios nveis e compreende, principalmente, uma situao interna (relao interlocutria entre os personagens) e uma situao externa (relao entre as instncias reais: ator ou ainda, instncia produtora do discurso cnico da qual o ator veculo e espectador) essa ao encontra-se, muitas vezes, mascarada.

    As fi nalidades dessa ao (ou relao), evidentemente, variam em funo da forma de manifestao teatral realizada. No caso do teatro o tradicionaltradicional55,, este, por se utilizar, sobretudo, da interpretao de gran-des obras da literatura dramtica, traduz em alto grau as intenes do autor, seguindo risca as convenes teatrais estabelecidas: a mimesis, o efeito catrtico e a iluso cnica. Nesse tipo de encenao, podemos pensar em termos de estratgias de seduo e comoo do espectador: aqui, ele v as suas emoes manipuladas pelas estratgias cnicas ou, segundo Brecht, ele, precisamente, no as v:

    Entremos numa das habituais salas de espetculos e obser-vemos o efeito que o teatro exerce sobre os espectadores. Olhando ao redor, vemos fi guras inanimadas, que se encon-tram num estado singular [...] Quase no convivem entre si; como uma reunio em que todos dormissem profunda-mente e fossem, simultaneamente, vtimas de sonhos agi-tados [...] Tm os olhos, evidentemente, abertos, mas no vem, no fi tam e tampouco ouvem, escutam. [...] Ver e ouvir so atos que causam, por vezes, prazer; essas pessoas, porm, parecem-nos bem longe de qualquer atividade, pa-recem-nos, antes, objetos passivos de um processo qualquer que se est desenrolando. (BRECHT, 1978: 110).

    O espectador seduzido, enredado, envolvido pela iluso c- c-nicanica66. Muitas vezes, a fi nalidade desse tipo de encenao consiste em

    4 NICOLETE, 2002, p.12.

    5 Estamos nomeando teatro tradicional linha esttica que se caracteriza pela expresso clssica como conceito de encenao, ou seja, a cena como uma emanao do texto dramtico.

    6 Segundo Bornheim (1992:253), h duas posturas bsicas para defi nir o pblico. Uma, que torna o pblico passivo, entregue a um comportamento aparentado ao da hipnose e que manipula os seus sentimentos e as suas idias; o tema complica-se com uma outra questo maior, a chamada cultura de massa. J a outra postura busca tornar o espectador ativo, fazer com que ele tome conscincia da realidade em que vive.

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  • 142convencer o espectador a aceitar determinada moral (a que veicula) ou, apenas, em divertir o espectador, servindo como seu instrumento de alienao. Para Brecht, no teatro tradicional ao qual dava o nome de teatro burgus teatro burgus77 a representao submetia os temas e acon-tecimentos a um processo de alheamento indispensvel sua com-preenso. Em tudo o que evidente, hbito renunciar-se, muito simplesmente, ao ato de compreender. (BRECHT, 1978: 47). Nesse sentido que o conceito de dramaturgia da cena pode ser pensado a partir de uma relao de contraposio a essa ao hipntica como o encontro que o evento prope ao espectador.

    [...] um teatro asctico no qual os atores e os espectadores so tudo o que existe. Todos os outros elementos [...] so construdos atravs do corpo do ator. [...] j que o nosso teatro consiste somente de atores e espectadores, fazemos exigncias especiais a ambas as partes. Embora no possa-mos educar os espectadores [...] podemos educar o ator. (GROTVSKI, 1992:28).

    Tal afi rmao manifesta a importncia que a instrumentao tanto tcnica como tica do atorcomo tica do ator88 adquiriu no sculo XX. A necessi-dade de fortalecer o trabalho do ator implicou no desenvolvimento de um conceito que, de maneira paradoxal, foi extremamente importante para o estabelecimento da encenao no sculo XX: o conceito de ao fsica que, pesquisado inicialmente por Stanislvski, teve ulterio-res contribuies de Meierhold, Grotvski e Barba, entre outros.

    Bonfi tto salienta que, a partir da observao do teatro oriental no interior do qual o envolvimento dos atores com o aspecto tico acabou por conduzi-los a um nvel de conhecimento tcnico e ex-pressivo incomparvel em relao ao Ocidenteel em relao ao Ocidente99 , foi possvel para esses encenadores perceberem a relao intrnseca que havia entre o fortalecimento do material atoralmaterial atoral1010 e a construo de uma dramatur-matur-gia da cenagia da cena1111. Mas no s: podemos afi rmar que, embora os caminhos metodolgicos engendrados a partir dessa base sejam diversos e distin-tos, todos tm em comum uma dilatao do conceito aristotlico de ao dramtica, que passa a ter sua relao ampliada para alm do nvel da personagem, englobando os diversos nveis da encenao.

    Essa linguagem... tira sua efi ccia de sua criao espont-nea em cena [...] Os espetculos sero feitos diretamente no palco... o que no quer dizer que esses espetculos no sero rigorosamente compostos e estabelecidos de for-ma defi nitiva antes de serem encenados. (ARTAUD apud TODOROV, 2003: 282-283).

    Mencionamos a relao imediata com o espectador. E justa-mente nesse aspecto que amparamos o ponto central dessa discusso: em que medida o encontro entre atores e espectadores pode ser consi-derado responsvel tanto por essa atividade do espectador quanto pela dramaturgia produzida na cena? E mais: em que medida o espectador pode ser considerado um criador da cena? Como pontua Abreuna? Como pontua Abreu1212, a criao teatral norteada pela concepo de que o fenmeno teatral s existe enquanto relao espetculo/pblico.

    7 Para Grotvski o teatro rico fruto de uma cleptomania artstica, buscando um alto teor de artifcios que possam aumentar a iluso cnica. Para Peter Brook, esse um teatro mortal, condenado morte.

    8 (...) o aspecto tico, aqui, torna-se objeto de refl exo medida que assume um papel fundamental no processo de trabalho do ator, enquanto construtor das percepes adequadas a cada processo artstico. (BONFITTO, 2002:16).

    9 BONFITTO, 2002: 15.

    10 Tal aspecto [o tico] torna-se um material medida que, como se ver durante o sculo XX com Stanislvski, Copeau, Brecht, Grotvski, Peter Brook... ele contribui de maneira determinante para a construo dos processos perceptivos necessrios concretizao do que se est investigando em cada processo artstico, e que, por sua vez, constituir a identidade da obra. (BONFITTO, 2002: 19).

    11 Na verdade, se olharmos para outros momentos da histria do teatro nos quais formas teatrais essencialmente performticas se instalaram tais como a commedia dellarte e a fbula atelana, s para mencionar duas formas ocidentais , veremos tal relao se evidenciar.

    12 Dramaturgo de O livro de J, segundo espetculo da Trilogia Bblica, do Teatro da Vertigem.

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  • 143Arte teatral, dentro desse conceito, no apenas expresso do artista (qualquer que seja ela), mas uma complexa rela-o entre a expresso do artista e o pblico. A essa concep-o parecem estranhas tanto as defi nies do teatro como a arte do ator quanto texto dramatrgico ou geometria cnica. claro que o eixo principal de um espetculo pode ser o dramaturgo, o diretor, o ator, o cengrafo ou outro criador, mas nenhum deles, isoladamente, defi ne a totali-dade do fenmeno teatral, que permanece por sua prpria histria e maneira de ser uma arte coletiva feita para ser partilhada por um outro coletivo, o pblico.m outro coletivo, o pblico.1313

    A dramaturgia da cena, erigida inicialmente a partir da compo-sio do ator e do pensamento centralizador do diretor, ganha, a partir desse conceito, o carter de uma construo coletiva: ou seja, de um discurso produzido na relao entre cena e espectador, ou, em outras palavras, de uma prtica de enunciao e suas articulaes discursivass discursivas1414.

    Convm observar dois aspectos do que acabamos de afi rmar: (1) ao falarmos de instncia enunciativa, queremos explicitar a especifi -cidade teatral, ou seja, nos referirmos articulao de determinados elementos, materiais e relaes concretizveis em cena e pela cena; (2) temos como postulado bsico que tal articulao seja pensada como uma prtica discursiva coletiva, instaurada no campo das relaes so-ciais. Evidentemente, no estamos ignorando a legitimidade de cria-es teatrais que sejam produzidas solitariamente, nem afi rmando uma obviedade presente nos eventos teatrais, ou seja, de que a maior parte dos processos criativos em teatro, mesmo quando se trata da coloca-o em cena de um texto escrito anteriormente, tenha uma base de produo coletiva. O que propomos como premissa de nossa investi-gao um determinado modo de articulao dos elementos cnicos, o qual pressupe um pensar o fazer absolutamente socializado, uma produo de sentido que seja compartilhada por todos os criadores: o processo de criao colaborativa.

    Gnese dos espetculos bblicos de um dos mais importan-tes grupos do cenrio contemporneo brasileiro, o Teatro da Vertigem (Paraso Perdido, O Livro de J, Apocalipse 1,11), tal dinmica pode ser defi nida como uma metodologia de criao em que todos os integrantes, a partir de suas funes artsticas especfi cas, tm igual espao propositivo, sem qualquer espcie de hierarquias, produzindo uma obra cuja autoria compartilhada por todosilhada por todos1515.

    O processo de criao colaborativa, como fonte geradora de uma dramaturgia prpria no interior dos grupos teatrais, tem buscado construir procedimentos que possibilitem representao nascer na relao direta entre as diversas funes responsveis pela criao, no embate da sala de ensaioa sala de ensaio1616.

    Teorias, vises estticas, impresses, sentimentos, infor-maes, todos esses elementos que so trazidos por ato-res, diretores, dramaturgos, cengrafos, fi gurinistas e outros criadores, para a arena do processo de criao tinham agora referenciais concretos: o espetculo e o pblico [...]. Dado que o objetivo em vista algo concreto - a construo do espetculo - bvio que o primeiro elemento norteador deve ser tambm algo concreto: a cena.

    13 ABREU, Luis Alberto de. Processo colaborativo: relato e refl exes sobre uma experincia de criao. No publicado.

    14 Segundo Charaudeau (1995), como o discurso no se reduz manifestao verbal da linguagem, mas compreende os cdigos da manifestao linguageira (na qual se desenvolve a mise-en-scne da signifi cao) e pode utilizar-se de vrios cdigos semiolgicos tais como o icnico, o gestual etc. , a mise-en-scne discursiva depende, ento, das propriedades (ou caractersticas) de todos esses cdigos.

    15 ARAJO, 2002, p.101.

    16 Ibidem.

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  • 144A trajetria do processo colaborativo, como de resto em qualquer processo criativo, vai do abstrato ao concreto e do subjetivo ao objetivo, da intuio e do material informe presente no criador at o material objetivo e comunicvel [...]. importante essa trajetria em busca do concreto e do objetivo para que o processo no se dilua no perigo-so prazer da discusso intelectual ou na confrontao de impresses e sensaes imprecisas. Todo material criativo (idias, imagens, sensaes, conceitos) deve ter expresso na cena. A cena, como unidade concreta do espetculo, ganha importncia fundamental no processo colaborativo.rocesso colaborativo.1717

    Tambm a esse lugar social, estabelecido em termos de prticas discursivas, que estamos nomeando teatro, lugar de onde, tradicio-nalmente, se v. Se o ator como veculo e executante das propostas de todos os colaboradores (inclusive dele mesmo) tem seu olhar intrnseco cena, necessrio buscar, no interior mesmo da criao, a construo de um olhar obsceno.

    O autor-espectador o escritor forado a sair de seu ga-binete, de sua clausura, de sua solido imaculada. Para criar ele necessita olhar o outro, entender a criao do outro, dialogar com o outro, aceitar as regras do outro e fazer com que o outro aceite as suas. O autor-espectador tem de olhar para si e para o mundo ao mesmo tempo, e sua cria-o a prpria medida deste se colocar no mundo. Ele no pode se anular, aceitando totalmente as questes do outro em detrimento das suas, como tambm no pode impor a qualquer custo suas idias, sem ouvir o outro. Em ambos os casos o processo se empobrece, pois perde a dimen-so do dilogo, da interao, necessrios para sua evoluo. (REWALD, 1998: 50).

    Se o dramaturgo mas tambm o diretor a localizao privilegiada desse olhar obsceno, porque dele tambm a posio externa cena que possibilita o exerccio de uma projeo escal-dante de tudo que pode ser extrado, como conseqncias objetivas, de um gesto, uma palavra, um som, uma msica e da combinao entre eles. Essa projeo ativa s pode ser feita em cena e suas con-seqncias encontradas diante da cena e na cena.da cena e na cena.1818 ele o primeiro espectador crtico das tramas, texturas produzidas. Mas do pblico tambm esse olhar obsceno, construtor de sentidos. Segundo Abreu, o pblico que traz o pulso da contemporaneidade ao artista: ele serve de fi o condutor para o universo de sua prpria cultura, no in-terior da qual o artista est localizado.t localizado.1919 Essa relao com os elemen-tos culturais contemporneos fl agrante no espetculo Apocalipse 1,11. O espetculo, construdo a partir da leitura do livro bblico, um exerccio que nos confronta com os elementos desgastados da cultura de massa e da cultura crist.

    Besta (comovida) Eu queria dedicar essa missa-show ao meu grande amor. Dedico este show pro homem que mais me usa e que adora ser usado por mim! Aqueles que todos falam mais ningum sabe quem . Ao bom de cama, bom

    17 ABREU, Luis Alberto de. Processo colaborativo: relato e refl exes sobre uma experincia de criao. No publicado.

    18 ARTAUD, 1987: 96.

    19 A cultura, o tempo e o espao histrico tornam-se lastro do fazer artstico, o que contribui para evitar o mero formalismo, comum em processos artsticos afastados do contexto cultural (Abreu, op. cit.).

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  • 145de rola, bom de cu... ao bom de tudo! O meu amante, meu marido, meu caso, meu tudo... pois ele tudo. Ao homem da minha vida: Jesus! I love you, querido! Pra voc essa dedicatria apaixonada!

    (A Besta canta Conga [by Gretchen] enquanto executa um bailado trash, veado e demonacoeado e demonaco).).2020

    Happening, instalao, encenao: rompendo os limites da re-presentao cnica e do fi ccional, Apocalipse instala o espectador di-retamente no interior da cena, como testemunha e como partcipe. Tambm na boate New Jerusalm, ele presencia uma cena de sexo explcito a poucos metros do seu corpo: o espectador, ao mesmo tem-po, compe o ambiente da boate, tornando-se espectador/espelho de si mesmo e do outro; e, ao mesmo tempo, compondo o simulacro do espectador/voyeur de uma boate de sexo explcito, reage ao vivo e a cores brutal realidade do ato.

    Tambm discutindo referncias de nossa cultura crist, Casa das Misericrdias, espetculo concebido pela Malditancebido pela Maldita2121 em processo cola-borativo, busca problematizar o lugar do espectador. Visitante do espa-o em abandono (demarcando o lugar de passagem entre a loucura e a normalidade, o espao o territrio onde, numa situao-limite, se dar o confronto entre uma interna do manicmio judicirio e um guarda, responsvel por cuidar dela), o espectador o interlocutor privilegiado dos personagens Joo de Deus e Laurinda, mas tambm dos atores que, maneira pica, revelam a alma e o corpo dos per-sonagens e convidado, durante todo o tempo da representao, a tomar partido.

    No sistema narrativo [...] o pblico o interlocutor pri-vilegiado, a relao olho no olho entre personagens no palco transfere-se para olho do olho entre ator/narrador/personagem e pblico. A ponte obstruda pela quarta pare-de novamente aberta. O sistema narrativo tambm lana mo da maior contribuio que o pblico pode trazer ao espetculo: uma imaginao ativa. Atravs da narrativa o pblico tambm construtor das imagens do espetculo e o espetculo teatral, ao invs de ser um sistema predomi-nantemente sensvel, torna-se tambm um sistema forte-mente imaginativo. (ABREU, 2000: 124).

    Argumentos so colocados para o espectador, ele tocado, roa-do, tem seus sentidos aguados pelos cheiros, pelas aproximaes cor-preas dos atores. Dessa perspectiva, a afi rmao de que, no processo colaborativo, o termmetro para a criao a proposta concretizada, a cena, se elucida.

    GUARDA (para espectador) V como ela fala com Joo de Deus? (para Laurinda) Eu t aqui pra lhe fazer o bem e voc me trata assim?

    LAURINDA Filho da puta!

    20 BONASSI, 2002:206.

    21 O espetculo foi um dos frutos gerados pelo Projeto Cena 3x4, o qual visa pesquisar os princpios da criao colaborativa. O projeto, idealizado pela maldita companhia de investigao teatral, vem sendo realizado, desde 2003, em parceria com o Galpo Cine Horto, em Belo Horizonte.

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  • 146GUARDA Olha a lngua, Laurinda. Eu no disse ago-ra h pouco que ela era uma perdida, uma meretriz, uma riz, uma assassina de criana? Foi por isso que sua famlia te largou assassina de criana? Foi por isso que sua famlia te largou aqui.aqui.2222

    De seu espao restrito o banco de madeira no qual se insta-lou e do qual no pode sair , o espectador tem vises parciais, frag-mentadas, dos eventos apresentados. De suas localizaes espaciais, das localizaes dos atores. Em relao ao que cinestesicamente percebi-do/construdo por ele. Assim, ele constri sua escritura, rede, textura, texto. Muitas vezes a proximidade fsica com determinado ator, ou a viso mais privilegiada de um, vai construir, inclusive, novas teias de sentido: ver atravs desse olhar.

    No era e no pretenso desse artigo esgotar todas as ques-tes suscitadas pelas possibilidades de investigao teatral a partir do conceito de dramaturgia da cena. Parece-me que o campo de discus-so vasto. Nossa inteno era, talvez, justamente a contrria, ou seja, desfi armosesfi armos2323 esse conceito a fi m de aprofundarmos a investigao em torno de um sistema polifnico no que diz respeito tanto a um possvel caminho metodolgico o processo de criao colaborativa quanto aos sentidos produzidos a partir desse momento efmero, fi m de toda atividade teatral, desse trabalho de aes realizado no calor mesmo do encontro entre espectador e espetculo. Dessa teia de senti-dos impossvel de ser realizada no gabinete, desse tecido performativo: o tecido da cena.

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    22 Passagem de Casa das Misericrdias, texto de autoria compartilhada e com dramaturgia da autora do presente artigo.

    23 Barthes, em A morte do autor, redefi ne o conceito de texto e o coloca no como algo a ser descoberto, mas a ser deslindado, desfi ado como se desfi a uma meia, tirando um fi o em meio a uma trama justamente por sua natureza inconclusa. (Cf. in: BARTHES, 1990).

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