O SUJEITO COLETIVO MULTIFACÉTICO DA POLÍTICA … · pressupostos estes acusados de terem...
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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013
Universidade do Estado da Bahia – Campus ISalvador - BA
O SUJEITO COLETIVO MULTIFACÉTICO DA POLÍTICA
FEMINISTA: AS MULHERES COMO MULHERES, COM SEUS
CORPOS E O QUE ELES SIMBOLIZAM
Maísa Maria Vale 1
Resumo
As últimas décadas do século XX, como já sinalizado pelo feminismo, em suas diversas formas, foram marcadas como a época dos questionamentos e rompimentos dos cânones estabelecidos pela ciência moderna, pressupostos estes acusados de terem promovido a exclusão de inúmeros sujeitos das ciências e da política. Este artigo busca problematizar a abrangência da categoria mulher/es, como sujeito dos estudos feministas, considerando que nestes espaços de disputa política, outras formas de opressão são determinates e não apenas gênero. O resultado destes cruzamentos pode conter, em determinados momentos, maior flexibilidade e força para impulsionar a luta das mulheres nos processos de mobilizações e unidades em torno de uma política feministaque melhor contribua para a tão desejada transformação social.
Palavras-chave: feminismos; identidade; mulheres; cidadania
Já faz algum tempo que a teoria política feministas reconheceu como imperativo
o trabalho de buscar, definir, redefinir e criticar a complexa realidade que estabelece a
nossa maneira de pensar. As últimas décadas do século XX, como já sinalizado pelo
feminismo, em suas diversas formas, foram marcadas como a época dos
questionamentos e rompimentos dos cânones estabelecidos pela ciência moderna,
pressupostos estes acusados de terem promovido muitas exclusões no âmbito das
ciências. O deslocamento proporcionado por essas novas perspectivas contribuiu para a
elaboração de releituras as teorizações, dentre essas as que questionam as noções do
sujeito universal, identidades essenciais, sobretudo a de gênero e sexual, em razão de
estas refletirem na elaboração utilizada sobre o sujeito mulher.
1 Mestranda do Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Mulheres, Gênero e Feminismo –Universidade Federal da Bahia (PPG/NEIM - UFBA). E-mail:[email protected].
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Este artigo é um recorte da pesquisa que desenvolvo no Programa de Mestrado
Gênero, Mulheres e Feminismo – PPGNEIM/UFBA, sobre a participação política das
mulheres nas campanhas eleitorais nos anos de 2008 e 2012, para a Câmara de
Vereadores de Salvador. Nesta pesquisa faço um recorte, especificamente com trinta
mulheres, para tentar identificar: de que forma estas candidatas vivenciaram suas
experiências políticas? Deu-se de forma diferenciada uma das outras? E se vivenciavam
de forma diferenciada, seria em razão de peculiaridades relacionadas ao seu perfil
traçado a partir de suas identidades e ao capital social acumulado que determinam os
interesses de cada uma frente a este processo? Ou porque as diferenças fundadas nestas
inúmeras identidades, imbricadas, dificultavam tal participação no campo político?
Como gênero, raça, sexo e outros marcadores sociais operam nas trajetórias sócio-
políticas e nas escolhas pela autorepresentação política? De que estratégias, que
recursos estas mulheres se utilizaram para fazer frente no âmbito destas disputas?
Os argumentos utilizados neste artigo para tratar a questão do essencialismo e
demais identidades pensadas a partir deste prisma - “mulheres”, sexual, gênero, negra,
etc - apoiam-se em autoras/es como Sueli Carneiro (2003), Stuart Hall (1997), Guacira
Louro (1999), Chantal Mouffe (1993); na Teoria Feministas e nos Estudos Culturais,
através do manejo das seguintes categorias analíticas: identidades; mulheres;
feminismos e cidadania, respectivamente.
Nesse sentido, me utilizei dos dados já coletados para esta pesquisa, que se
encontra em andamento e de algumas inquietações que emergiram na seleção da
amostra, considerando a já estabelecida e até convencional definição prévia do sujeito
da pesquisa, para problematizar a abrangência da categoria mulher/es, como sujeito dos
estudos feministas, dentre outras categorias essencialistas. Esta prática está diretamente
relacionada a uma herança da teoria moderna, de que nós ainda hoje fazemos uso,
apesar de inúmeras ressalvas feitas por autoras/es, como Boaventura Santos (2008),
Judith Butler (2003), Chantal Mouffe (1993), sobre a obrigatoriedade de se ter, já de
imediato, identificado, delineado e definido previamente, quem é o sujeito da pesquisa.
As críticas instituídas por pesquisadores/as feministas pós-estruturalistas à teoria
moderna revelaram para o mundo das ciências que o tão proclamado sujeito da ciência
na verdade se trata do masculino, branco, heterossexual, ocidental e proprietário.
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Também a visibilidade do corpo, tanto no sentido de como ele é apresentado
socialmente quanto pelas teorias contemporâneas das humanidades que o tomam como
objeto de análise, tem sido relevante para aprofundar as críticas sobre o essencialismo,
os binarismos, as dicotomias fundantes do pensamento moderno, em particular,
natureza-cultura, e as relações de poder. O destaque dado à desnaturalização do corpo
não reside tanto no fato de sua oposição à natureza, mas nos argumentos utilizados para
justificar os limites da vida e das relações entre homens e mulheres, tomando por
fundamento a natureza de seus corpos. Martha Narvaz e Silvia Koller (2007:651)
utilizando-se da fala de Keller (1985) e Harding, (1986) vai afirmar que:
As epistemologias feministas entendem que o conhecimento é sempre situado, posicionando-se contra a objetividade e a neutralidade, características da ciência positivista androcêntrica e resgatando o papel da emoção, do corpo e da experiência na produção do conhecimento científíco (NARVAZ, 2007:651)2
Considero esta perspectiva extremamente relevante para uma pesquisa sobre a
participação de mulheres negras no cenário político e que se pretende feminista; “na
medida em que problematiza as bases da política - “universalidade”, “igualdade”, “o
sujeito dos direitos” - construídas mediante exclusões raciais e de gênero. (Butler,
1998). Michel Foulcalt também nos lembra, em sua obra Genealogia e Poder (1979),
que fazer história não é ser cúmplice dos próprios modos do pensamento. Não é
legitimar a razão, ocidental (a ideia de superioridade do saber científico sobre os outros
saberes de outros povos).
Essa inquietação me direcionou a reflexões acerca das criticas lançadas por
diversos/as autoras/es aos pressupostos básicos da teoria moderna - universalismo,
essencialismo, binarismo, dicotomias. Destaco as construções produzidas desde os anos
oitenta pelo feminismo norte-americano, sobretudo, o feminismo negro e pós-
estrturalista, que se coloca, na contemporaneidade, como o espaço de elaboração de
uma linha de análise sobre as tecnologias disciplinares e normativas que, em conjunção
com os dispositivos de gênero e outros saberes, geraram uma visão formatada do sujeito
mulher, produz e regula os corpos femininos. Essa sistemática tem se proliferado em
diversas produções teóricas no ocidente, até os dias atuais.
2 NARVAZ, Martha Giudece e KOLLER, Silva Helena. Metodologias Feministas e Estudos de Gênero: articulando pesquisa, clínica e política, Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 3, p. 647-654, sete/dez, 2007.
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A noção do sujeito social como universal, livre, autônomo e racional sempre
esteve presente nas ciências sociais e política. Há um esforço destas ciências de
estabelecer de antemão que qualquer teoria da política requer um sujeito, sem o qual se
entende que a política é impensável. Necessita desde o início presumir seu sujeito, da
referencialidade da linguagem, que confirmará a autoridade do sujeito falante. Para
Margareth Rago:
“É dificil falar de uma epistemologia feminista, sem tocar na discussão sobre os perigos da reafirmação do sujeito “mulher” e de todas as cargas constitutivas dessa identidade no imaginário social. Afinal, [...] É na luta pela visibilidade da “questão feminina”, pela conquista e ampliação dos seus direitos específicos, pelo fortalecimento da identidade da mulher, que nasce um contradiscurso feminista e que se constitui um campo feminista do conhecimento. É a partir de uma luta política que nasce uma linguagem feminista. (RAGO, 1998)3
Tudo isso foi usado maciçamente, porém hoje é objeto de leitura crítica por parte
de muitas autoras que, se por um lado vêm promovendo um deslocamento, uma
evolução na forma de se lidar com o sujeito da ciência, como multifacético, portador de
identidades múltiplas, por outro lado têm trazido para a teoria feminista e estudos de
gênero uma série de desconfortos, vez que este debate coloca em evidência o fato de
que a noção trazida sobre o sujeito do feminismo esteve, também, historicamente
marcado por particularidades e se pretendia universal. Por conseguinte, as críticas
dirigidas por esses/as pesquisadores/as ao essencialismo, não desconstrói apenas o
sujeito masculino da ciência universal, mas também o sujeito “mulher” e “mulheres”,
por se tratarem de identidades que, conforme Judith Butler (2003), não só deflagram os
interesses e objetivos de unidade para as lutas de emancipação, mas que também
constituem o próprio sujeito do feminismo.
As teorias essencialistas que fundamentaram as políticas de identidade do feminismo original na criação da categoria “mulheres” têm sido contestadas pelas feministas contemporâneas, destacando-se aqui os trabalhos de Harding (1993), Butler (1986, 2000, 2003) e Scott (1995), aspecto no qual convergem com o pensamento de Foucault. (NARVAZ e NARDI, 2007:52)4
3 RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. 1998. Disponível emhttp://www.nutead.uepg.br/gde/downloads/epistemologia_feminista.pdf. Acesso em 15 ago. 2009.
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Um dos princípios caros das concepções fundadas nos binarismos de acordo com
a historiadora feminista Joan Scott (1988e, 1992) refere-se aos significados produzidos
diferencial e hierarquicamente por meio de oposições binárias5 e esquemas dicotômicos6
de pensamento, que se declaram neutros e constituem as relações de poder.
O outro aspecto do debate é que, quando nós feministas lançamos esta crítica ao
sujeito universal atingimos, em cheio, o sujeito essencialista do feminismo “mulher” –
que, atualmente, por força destas criticas, avançou para mulheres, por se entender que
no cenário cotidiano das lutas políticas de transformação social não há apenas um tipo
de mulher, mas diversas oriundas de agrupamentos sociais distintos (negras, lésbicas,
evangélicas, idosas, trabalhadoras, etc.), reivindicando inúmeras bandeiras, sugerindo
que as identidades são sempre múltiplas e não singulares. Apesar de o singular ter
prioridade, meu objetivo primário é abrir possibilidades futuras ao invés de estagnar em
omissões passadas.
O fato é que várias foram as teóricas que criticaram essa forma de fazer ciência.
A filósofa Donna Haraway (1986), por exemplo, tomando por base a metáfora do
ciborgue, impressa como um constructo, evidencia a ambiguidade das fronteiras das
diferenças, colocando em xeque a pretensa “naturalidade” com que se definem as
coisas, a forma freqüente de recorrer a natureza em busca de explicações para as coisas
e os fenômenos. O imaginário ciborgue modificou os horizontes daquilo que um corpo
pode ser e aponta para o artificial como o estaleiro em que se modifica e constrói o
corpo a partir da cultura. Para esta autora as fronteiras entre natureza e cultura estão a
ser derrubadas.
A filósofa e militante feminista Judith Butler (1990) endossa, afirmando que “a
natureza acaba por ser sempre cultura”, dando a entender que também a natureza é uma
construção cultural. Nesse sentido, os sujeitos já não são tão evidentes como
normalmente costumamos pensar. Nem as identidades são uma decorrência direta das
"evidências" dos corpos, conforme afirma Louro (2000). Sendo assim, não há porque se
5 Uma definição positiva que se baseia na negação ou repressão de algo representado como sua antítese, por exemplo, homem/mulher, masculino/feminino, identidade/diferença, público/privado, corpo/espírito, produção/reprodução.6 Preceito dividido em dois e geralmente de caráter contrários ou integrantes.
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trabalhar com as identidades dando ênfase às formas como estas se apresentam e se
articulam nas ações cotidianas?
Tudo isso, pra mim, se apresenta como sendo de grande relevância, na medida
em que, o meu trabalho de pesquisa se encontra todo ele pautado nesta direção de
avaliar o sujeito multifacético da teoria feminista em todas as dimensões em que este se
apresenta na arena das disputas políticas locais. Isso pressupõe o movimento de
questionar estes conceitos, desestabilizar o espectro destas categorias e,
consequentemente, este poder autorizador de quem pode e quem não pode ser
enquadrado como mulher, negra, lésbica, etc. e, por conseguinte, adentrar na ciência,
como sujeito de pesquisa científica.
Esta forma “despretensiosa” de se trabalhar – levando para o campo um sujeito
já formatado – foi um dos fatores que ocasionou, inclusive, a exclusão das experiências
de mulheres, negros, homossexuais, colonizados, etc. das ciências e dos processos
históricos. A crítica trazida pelas teóricas feministas têm responsabilizado esses
pressupostos modernos por terem legitimado, ao longo dos anos, hierarquias,
subordinações e exclusões, que hoje lutamos para reverter. Esse é um aspecto do debate.
Neste sentido, este artigo pretende também fazer uma reflexão acerca de como
estamos trazendo para as análises a questão das identidades, em razão de que a
regulação social dos sujeitos, dos corpos e da sexualidade, tem implicado no
enquadramento dos sujeitos – não apenas pela teoria mas, sobretudo, em sua ação
política, nas novas lutas trazidas pelos movimentos sociais – por meio de caixinhas,
fazendo com que estes se apresentem nos processos já identificados, enquadrados e
classificados, lembrando a lógica da ciência moderna de identificar, dividir, classificar,
conhecer, explicar e denominar os sujeitos e as coisas a partir do que se convencionou
para cada agrupamento.
Afinal, aprendemos com Foucault (2005a) que o poder – que está em toda parte
– divide, classifica, qualifica, ordena e exclui os sujeitos. Sob esta lente o corpo é
também espaço de hierarquia e poder, e não foi por acaso que o poder penetrou nos
corpos (biopoder) nas sociedades modernas, disciplinando-os, buscando a docilidade
necessária (FOUCAULT, 1989), para a expansão e êxito da democracia liberal e da
produção capitalista.
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Para fins de uma abordagem analítica das campanhas para vereador/as do
município de Salvador, nos anos de 2008 e 2012, extraímos do universo de 342
inscritas, trinta candidatas, para assegurar uma amostra representativa da diversidade e
dos antagonismos presentes na dinâmica social, adotando como critério de escolha a
condição identitária desses sujeitos, por entender que, no cenário de disputas mais
micro, como é o caso das eleições municipais, estas se apresentam de forma mais
evidentes. Foi quando me deparei com o primeiro problema teórico-metodológico da
minha pesquisa. Quem poderia ser considerada mulher para fins desta pesquisa, se
muitas feministas contemporâneas rechaçam a noção de mulher enquanto uma
identidade essencializada?
Na tentativa de oferecer uma visão mais específica do problema que
identificamos neste cenário de disputas políticas reporto-me as experiências de três
mulheres extraídas desta amostra: as candidatas Leo Kret Souza Santos (PR), Edileuza
Vida Bruno (PT) e Eronildes Vasconcelos Carvalho (PRB). Sujeitos que, apesar de se
auto-identificarem como mulheres e negras, têm em diversos momentos está
autodefinição questionada em razão de estas identidades, quando entrecruzadas com
outras posições – sexo e religião, por exemplo - resultarem em outra condição também
potencializadora de exclusões e desempoderamento. A definição biológica e cultural
associadas à mulher negra, em entrecruzada com determinada orientação sexual e/ou
religiosidade, contraria o arcabouço conceitual instituído do que se convencionou
denominar o ser mulher e o ser negra. A nova posição identitária contradiz com a
acomodação das pessoas, dificultando o seu enquadramento no sistema de divisão da
sociedade - em esferas ‘publico/privado’- uma divisão que tomamos como dada, como
natural, mas que também tem uma história; na verdade muitas histórias. (Jeffrey Weeks,
2001).
Nesta perspectiva, portanto, cuidar das especificidades, “[...] a partir de uma
interpretação que nos permita entender como é construído o sujeito através de diferentes
discursos e posiciones (MOUFFE, 1993) é levar em conta a multiplicidade de mulheres,
com seus corpos e suas identidades na relação, atuantes no processo de disputas
políticas, com maior possibilidade de evidenciar os antagonismos e contradições, bem
como o grau de desempoderamento ao qual estão submetidas, trazendo para a cena,
novas identidades como resultado deste “processo de afirmação e diferenciação”
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(LOURO, 1999), o nascimento do que Hall (1997) qualifica como uma “política de
identidades”.
Vejamos, então, alguns casos envolvendo estas três candidatas a vereadora da
cidade de Salvador que, mesmo se declarando mulher e negra, vivenciam a opressão,
típica deste “não lugar”, com maior ou menor intensidade, dependendo das
circunstâncias. Estes exemplos nos ajudaram a refletir melhor sobre a temática deste
debate:
CASO 1: Leo Kret do Brasil “Se é pra melhorar, bota Léo Kret lá”:7
Recordo-me que ao expor o meu objeto de estudo em algumas instâncias
acadêmicas, a reação das/os colegas se deu quase que unânime, quanto à relevância da
presença da vereadora Leo Kret Souza Santos nessa amostra. Esta indagação se tornou
reincidente, não se estabelecendo um consenso nesses debates sobre a sua incorporação
à pesquisa, em razão da falta de consenso sobre se de fato se tratava de um homem ou
de uma mulher, apesar de, em suas idas e vindas, no meio artístico e político a
vereadora publicamente, se dizer mulher. Em seu artigo, A nova vereadora da cidade, o
professor da UFBA Leandro Colling (2009) cita a entrevista da vereadora Leo Kret do
Brasil, eleita com o quarto maior número de votos entre todos/as os/as candidatos/as
para a Câmara Municipal de Salvador (12.861 votos) ao site Terra Magazine (13 de
fevereiro de 2009) onde ela faz a seguinte revelação:
“Mas, na realidade, nós somos transgêneros. Temos identidade feminina. E se a gente vai pegar as definições coletadas pelo coletivo de travestis transexuais, vai perceber que a definição de "travesti" é se transformar em alguns momentos. E a minha identidade feminina é diária. Eu durmo e acordo uma mulher. Ainda não operada, ainda não transgenitalizada. Mas eu acordo uma mulher. Se formos usar uma definição mais específica, eu seria uma transexual.”8
As questões levantadas sobre a identidade de gênero da vereadora Leo Kret do
Brasil não apenas aconteceu nos espaços onde apresentei este tema, mas trata-se 7 Alecsandro de Souza Santos - Leo Kret do Brasil nasceu em 09 de dezembro de 1983, em Salvador, Bahia. Em 18 de novembro de 2009, ganhou na Justiça o direito de usar o nome Leo Kret do Brasil. A primeira infância foi vivida em Areia Branca, no município de Lauro de Freitas/Bahia. Há 16 anos, os pais vieram morar na capital, no bairro de Pernambués, com os outros cinco irmãos da ex-vereadora.http://www.cms.ba.gov.br/vereadores_site.aspx?id=30. Acessado em 06/10/2012.8 Entrevista realizada por Leandro Colling, em 13/02/2009
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também de um questionamento reincidente, principalmente nos meios de comunicação,
quanto ao desejo de saber se, de fato, esta pessoa que se diz mulher, transita com um
corpo de mulher, é efetivamente uma mulher. A questão que subjaz este debate são os
efeitos provocados por determinados discursos estabelecidos pelo pensamento, neste
sentido ontológico, que tornam visíveis, por estarem dentro da “normalidade”, certos
tipos de corpos em detrimento de outros. O trabalho de Foucault contribui para pensar
essas regulações direcionadas ao sexo não como algo casual, desinteressada:
Para Foucault, ser sexuado é estar submetido a um conjunto de regulações sociais, é ter a lei que norteia essas regulações situadas como princípio formador do sexo, do gênero, dos prazeres e dos desejos, e como princípio hermenêutico de auto-interpretação. A categoria do sexo é, assim, inevitavelmente reguladora, e toda análise que a tome acriticamente como um pressuposto amplia e legitima ainda mais essa estratégia de regulação como regime de poder/conhecimento. (BUTLER, 2006, p.130)
Dessa forma, como poderia eu, enquanto pesquisadora de um estudo que
qualifico como feminista, de antemão decidir tomar acriticamente este protagonismo,
citá-lo apenas em uma nota de rodapé, ignorá-lo ou descartá-lo por completo da
pesquisa, juntamente com os seus antagonismos e incongruências? Ao fazê-lo, poderia
continuar dizendo que tratei das relações de gênero, sabendo que foi essa forma
“despretensiosa” de se selecionar os sujeitos que ocasionou a exclusão das ciências e
dos processos históricos as experiências de mulheres, negros, homossexuais,
colonizados, etc.?
Foi através dos argumentos que justificam o limite da vida e das relações entre
homens e mulheres, tendo por base a natureza de seus corpos, que hierarquias,
subordinações e exclusões se estabeleceram e se perpetuaram até os dias atuais. É
através desses pressupostos que são instituídos critérios de aceitabilidade para um
determinado tipo de corpo, excluindo aqueles que se encontram à margem de tal
construção, os denominados “corpos abjetos” (BUTLER, 2008), pois pertencem às
áreas não penetradas pela ontologia.
Wittig fará referência ao fato de que a ambiguidade da palavra “feminista”
resume toda a situação.
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Que significa “feminista”? Feminismo é formado pelas palavras “fêmea”, mulher, e significa: alguém que luta pelas mulheres. Para muitas de nós, significa uma luta pelas mulheres e por sua defesa - pelo mito, portanto, e seu fortalecimento. Mas porque foi escolhida a palavra ‘feminista' se é tão ambígua? Escolhemos chamar-nos feministas há dez anos, não para apoiar ou fortalecer o mito do que é ser mulher, não para nos identificarmos com a definição do nosso opressor, mas para afirmar que nosso movimento contava com uma história e para destacar esse laço político com o velho movimento feminista. (WITTIG, 1980)9
Gênero se constitui com e/ou em corpos sexuados, ou seja, não é negada a
biologia, mas a construção histórica produzida sobre as características biológicas, a
construção social de cada sexo.
Para se produzir e garantir a normatização das condutas, é imprescindível uma
soma de esforços, afinal, aprendemos com Foucault (2005a) que o poder, a partir da
vigilância permanente e intensiva dos comportamentos, se exerce de forma microfísica
por toda a sociedade, de todos os lados, de forma sutil e altamente eficiente nos
propósitos de regulação das condutas. Estando em todos os lugares, esse poder se
multiplica, ao mesmo tempo em que se une em sua tarefa de controlar as ações. A
regulação da sexualidade, a instituição da heteronormatividade e a exclusão das outras
sexualidades diferentes da “normal” heterossexualidade são postas em funcionamento
tanto na esfera pública quanto na esfera privada.
CASO 2: Vida Bruno “No peito e na raça”10
De forma diferenciada, cada uma destas atrizes sociais, cada uma a sua maneira,
são atravessadas por diferentes dilemas, divisões e antagonismos que produzem uma
variedade de diferentes "posições de sujeito", quer seja em relação ao gênero,
sexualidade, religião, militância, etc., que interessa ao movimento feminista, não apenas
porque deflagra os interesses e objetivos de unidade e mobilização, “mas porque
também se constituem como o próprio sujeito do projeto feminista” (BUTLER, 2003).
9 WITTIG, Monique. Ninguém nasce mulher. 1980. Acessível em: http://mulheresrebeldes.blogspot.com/2009/04/ninguem-nasce-mulher.html
10 A historiadora Edileuza Bruno Vida – Vida Bruno, nasceu em 24 de dezembro de 1976, em Salvador, Bahia. Caçula de dez filhos. Seus pais vieram do interior da Bahia, em 1972 morar em Pau da Lima. Aos 13 anos de idade foi ser presidente da UMES – União Municipal e Metropolitana dos Estudantes Secundaristas. É ex dirigentes da ABES – Associação Brasileira dos Estudantes Secundaristas. Militante da organização LGBT, é Lésbica desde que se conheçe como gente, ou seja, desde os sete anos de idade.Entrevista realizada pela autora em 23/03/2013.
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Desse modo, a experiência desta candidata a vereadora Vida Bruno, é trazida
para esta análise em virtude de que, nesta sua opção, de rejeitar a sexualidade dita
"normal", ela é vista como parte integrante de uma resistência coletiva à submissão aos
homens como classe empoderada nessa organização social sexista, que não se associa a
uma ideologia que treina culturalmente a mulher para firmar uma aliança com o homem.
Nesta condição, ela rejeita este "modelo" de sexualidade apresentado como "normal",
que lhe exige a maternidade como prova óbvia do "feminino", que encontra o
"masculino" para se "complementar", onde o viril só tem complemento no feminino, na
maternidade, na vida em "família".
Eu sou negra, lésbica, não tenho filhos, hoje sou solteira, mas no período das eleições estava casada com uma mulher. [...] Fui uma das fundadoras do MLPL – Movimento Libertário de Pau da Lima, que era um movimento que estudava Bakunin, Emma Goldman e outras expressões da anarquia, do movimento anarquista, com a perspectiva de analisar e tentar pensar uma sociedade sem lideres, pensar em uma sociedade em que o coletivismo, a coletividade construísse os seus alicerces e todas as pessoas tivessem a mesma importância [...] Então, eu sempre pensei a sociedade dessa forma. E continuo pensando.11
A lésbica, neste caso, estaria rejeitando, questionando e transgredindo as
estruturas sociais vigentes, uma vez que, neste modelo de sociedade, somente dois sexos
são reconhecidos. Nesta condição de lésbica, pelo amor de outra mulher, repensa sua
sexualidade e modifica seu "estatuto de mulher" perante os demais. A lésbica, como nos
remete o pensamento da feminista francesa Monique Wittig (1970), “não é uma mulher,
nem economicamente, nem politicamente, nem ideologicamente”. A lésbica é alguém
que escapa às definições prescritas à categoria mulher pela supremacia masculina, ou
seja, o que caracteriza ser mulher, segundo esta autora, é o fato de pertencer a uma
categoria que se torna propriedade coletiva dos homens.
Citando Catherine MacKinnon, Adrienne Rich (1980) também argumenta que
forçar a heterosexualidade, seu comportamento (relativo a gênero e sexualidade) e as
sanções econômicas que sempre esperam aqueles que transgridem a essas expectativas
são também uma forma de integrar mulheres no mercado capitalista. Rich utiliza-se do
11 Entrevista realizada pela autora em 23/03/2013.
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ensaio The Origin of Family, de Kathleen Gough, para citar algumas características do
poder masculino em sociedades arcaicas e contemporâneas, que eu faço referência a
quatro delas, acrescentando mais uma entre parênteses: violência sexual, prostituição,
pena de morte ao adultério feminino, mantê-las fora de acesso a largas áreas do
conhecimento social e (mantê-las fora da política formal). “A heterosexualidade das
mulheres pode não ser uma “preferência’, mas algo que teve que ser imposto, manejado,
organizado, propagandizado e mantido”. (RICH, 1980)
[...] como a maioria dos custos de uma campanha eleitoral, pelo menos as coisas básicas tem os materiais de campanha que são compartilhados com a majoritária encontrei dificuldades homéricas pra conseguir esse material especificamente e isso eu lhe digo com muita... “por ser militante LGBT”. Por ser lésbica. O acesso a esses materiais foi realmente diferente de outras pessoas que evocavam outras bandeiras e eu percebi isso. Eu fui uma das últimas pessoas a receber o material de campanha. [...] Meu material de campanha era todo direcionado para a luta LGBT.12
Fato relevante destacado por Rich na análise desenvolvida por Gough é que ela
só percebe em suas análises dos métodos utilizados pelo poder masculino a
desigualdade sexual produzida por estes, não atentando para o fato de que estes
reforçam também, especificamente, a heterossexualidade compulsória.
Como bem enfatiza Butler (200:166), o “sexo”, no pensamento de Wittig, “são
abstrações impostas à força ao campo social, as quais produzem uma realidade de
segunda ordem ou ‘retificada’”. O sexo é um objeto que foi violentamente modelado e
tanto a história, quanto o mecanismo dessa violência, não aparecem mais.
Consequentemente, “sexo” é institucionalizado como natural e não se apresenta de
forma diferente na história, nas ciências e no cenário de disputas políticas.
CASO 3- Eronildes Vasconcellos Carvalho “Tia Eron, o coração de Salvador!13
Por muito tempo, a teoria feminista, ao falar em “mulher” genericamente - sem
considerar as suas especificidades - reduziu a complexidade dos problemas que afligem
12 Entrevista realizada pela autora em 23/03/2013. 13 Natural de Salvador, onde nasceu em 2 de junho de 1972, Eronildes Vasconcellos Carvalho, mais conhecida como Tia Eron, está no seu quarto mandato como vereadora do Legislativo da capital baiana, tendo sido eleita inicialmente pelo Partido Democratas (DEM).http://www.cms.ba.gov.br/vereadores_site.aspx?id=2. Acessado em 21/03/2013.
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estes sujeitos. A autora Carole Paterman (1993), por exemplo, mesmo apresentando
importantes contribuições para desconstruir a concepção patriarcal de cidadania e da
vida privada e pública, defendia que “o fato de as mulheres serem mulheres é mais
importante do que as diferenças entre elas”. Trazer esse sujeito multifacético para a
pesquisa feminista, considerar esta diversidade em suas experiências e protagonismos,
[...] significa considerar que dominações e subordinações não se somam de forma linear e ascendente, que elas se combinam de formas especiais e particulares e que precisam ser tratadas e questionadas em suas especificidades. (LOURO, 1999)14
No cenário de disputas políticas pela consolidação do processo democrático em
Salvador, é possível constatar a presença de uma variedade de mulheres cujas
desigualdades de gênero, raça, sexualidade, classe, idade, encontram-se entrelaçadas.
Inúmeras também são as organizações de mulheres onde é possível constatar a presença
de múltiplas desigualdades entre as mulheres que as compõem. Cada uma destas
relações específicas não pode ser reduzida a nenhuma das outras, já que cada uma delas
determina diferentes subjetividades e interesses, construindo e aceitando diferentes
discursos, entendidos aqui, também, como práticas sociais. Trazer a categoria
“mulheres”, a partir da perspectiva de construção do sujeito, é incorporá-la como algo
que ocorre através de diferentes discursos e posições, o que é certamente mais adequado
que uma interpretação reducionista da identidade dessas mulheres a uma posição
limitada à de raça, etnia, religião, idade, orientação sexual, classe, etc.
No caso da vereadora Tia Eron, a discriminação ultrapassa os limites da cor.
Mulher, negra, evangélica e de direita - iniciou sua experiência política filiada ao DEM
– Partido Democrata, associado na Bahia ao ex-senador Antonio Carlos Magalhães.
Entretanto, foi a primeira mulher negra a tornar-se vereadora por três legislaturas
consecutivas, na história da capital baiana. Em entrevista a Revista Raça Brasil, ela tece
os seguintes comentários quando questionada a cerca destes antagonismos e da
discriminação que, no caso dela, ultrapassa os limites da cor:
Sem dúvida nenhuma e tem várias questões: a de ser mulher, depois a de ser negra e, por último, a fé, porque sou evangélica. Nesse aspecto existem
14 LOURO, Guacira. L. (org.) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
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questionamentos de como eu me visto e me adapto nesses lugares onde a questão racial é discutida. A tendência é sempre sofrer este tipo de violação, que é um direito que eu tenho. Mas não tem jeito, a gente vai ter que passar por este vale.15
Em uma cidade como Salvador, onde há uma maior concentração de templos de
religiões de matrizes africanas, principalmente o candomblé, Tia Eron é membro ativo
de uma das maiores instituições de religião pentecostal da cidade, a IURD - Igreja
Universal do Reino de Deus, cujos atritos com religiões de matrizes africanas são
bastante freqüentes. Como evangélica da IURD, afirma que a sua relação com as
lideranças e os adeptos das religiões de matrizes africanas de Salvador é:
Bastante pacífica, até porque não olho a convicção de fé desses líderes religiosos. Desde espírita, candomblecista, umbanda, quimbanda, eu não olho. Eu olho para o ser humano. E foi com esse olhar que a gente começou a fazer o trabalho dentro do terreiro.16
Vasconcellos assumiu o seu primeiro mandato no ano de 2001, com uma
votação expressiva, 12.910 votos, sendo a mais bem votada do PFL, uma das três
vereadoras eleitas para ocupar uma cadeira na Câmara Municipal de Salvador. Foi
alçada como candidata à vereança em meio à repercussão do trabalho social que
desenvolvia junto à Igreja Universal, de acolhimento e educação de crianças carentes.
Suas atividades educativas, deram início nestas instituições, mas posteriormente foram
se expandindo para além dos muros da Igreja. “Me fiz professora”; justifica, Tia Eron, o
fato de não ter formação em Pedagogia.
Fundamentado em textos bíblicos, em especial Efésios 5: 22 – 31, e I Coríntios
7, a IURD traz o discurso que coloca a mulher cristã como obediente ao marido,
enquanto o cabeça da mulher, legitimando, assim, situações de subalternidade da mulher
na sociedade. O líder máximo da IURD publicou, na década de 90, duas obras que
sistematizam estes discursos: O perfil do homem de Deus, distribuído pela Gráfica
Universal em 1994, e O perfil da mulher de Deus, publicado em 1997. Nestas se
encontram orientações feitas pelo bispo Edir Macedo para aqueles homens que desejam
15 Entrevista realizada por Maurício Pestana, Revista Raça Brasil.http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/152/artigo211105-1.asp. Acessado em 12/10/2012
16 Entrevista realizada por Maurício Pestana, Revista Raça Brasil.
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ter o comportamento de um “escolhido por Deus” e, também, onde ele busca capacitá-
las a seguirem adequadamente o caminho necessário para serem uma “co-responsável”
pelo sucesso do marido, assim como uma série de considerações acerca dos
procedimentos femininos mais adequados.
O que faz desta trajetória de Eronildes Vasconcelos por demais interessante é o
fato de que a vereadora, mesmo tendo a sua entrada na vida pública marcada
nitidamente pela influência da IURD, identificada com este discurso legitimador da
condição de subalternidade e obediência das mulheres ao marido, ao assumir o mandato
em 2001, deu entrada ao pedido de criação da Comissão de Direitos da Mulher e,
posteriormente, ocupou a presidência da Comissão de Combate à Discriminação Contra
a Mulher, instituindo, como uma das ações de enfrentamento à violência contra as
mulheres, a “Casa de Apoio da Mulher”, dando moradia a vítimas de violência
doméstica, lhes garantindo a integridade física e psicológica.
Como resultado das inúmeras discussões realizadas pela Comissão Especial de
Combate à Discriminação Contra a Mulher que, ao longo de 2002 promoveu vários
encontros com estudiosos do tema e militantes da causa feminina, Eronildes
Vasconcelos solicitou, neste mesmo ano, ao então prefeito Antônio Imbassahy a criação
de um programa de atendimento diferenciado na rede hospitalar do município para
mulheres vítimas de todas as formas de violência. A sua justificativa foi baseada em
dados sobre a condição da mulher na sociedade soteropolitana:
A violência contra a mulher no município de Salvador não pode ser mais vista como algo normal, pois as estatísticas mostradas pela Delegacia de Proteção à mulher e as inúmeras diuturnas denúncias que chegam na forma de denúncia através de várias organizações da sociedade civil organizada, sinalizam que este é um dos mais graves problemas sociais quotidianos da atualidade. Daí porque existe uma necessidade premente de um atendimento imediato, qualificado com capacitação e sensibilidade dos profissionais da área de saúde, a fim de identificar os ferimentos decorrentes de violência física prestando assistência adequada a cada caso.17
O fato de Eronildes Vasconcelos ter se aliado a políticos/as de diversas matizes,
em prol da “causa feminina”, evidencia que diferenças partidárias podem, em alguns
17 DOM, Diário do Legislativo, 27/03/2002, p. 4. Informação extraída da dissertação de mestrado de Adriana Martins dos Santos (2009)
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momentos, desaparecer em favor de “pontos nodais” (MOUFFE, 1993), capazes de
suspender, ainda que temporariamente, a condição de disputas.
Em sua dissertação de mestrado A Construção do Reino - A Igreja Universal e
as Instituições Políticas Soteropolitanas - 1980-2002, Adriana Martins dos Santos,
arrola informações acerca da reunião promovida pela Comissão Especial de Combate à
Discriminação Contra a Mulher, dia 27/08/2002, no auditório da Câmara Municipal de
Salvador, que contou com a presença de representantes de várias entidades de defesa
dos direitos da mulher, juntamente com as vereadoras Eronildes Vasconcelos, a Tia
Eron (PFL), e Valquíria Barbosa (PT do B),
A reunião foi presidida pela advogada Gleyde Gurgel, presidente da Comissão Municipal da Mulher. A doutora em Ciências Políticas Analice Alcântara, presidente do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Mulher (NEIM), fez a palestra “Políticas Feministas e Globalização – O olhar das candidatas ao Parlamento”.
As candidatas estaduais Olívia Santana, Lídice da Mata e Moema Gamacho, e federal Alice Portugal foram as principais debatedoras. O bispo da Igreja Universal do Reino Deus (IURD) Márcio Marinho também esteve presente ao debate. Ele é candidato à Câmara de Deputados. Ao final, Tia Eron, presidente da comissão, afirmou que o evento demonstrou que as mulheres estão cada vez mais se capacitando para o debate e a prática política. 18
Como bem sinaliza a feminista Chantal Mouffe:
“A ausência de uma identidade essencial e de uma unidade prévia, no entanto, não impede a construção de múltiplas formas de unidade e de ação comum. Como resultado de criação de pontos nodais, podem existir fixações parciais e podem ser estabelecidas formas precárias de identificação ao redor da categoria ‘mulheres’, que proporcionem a base para uma identidade feminista e uma luta feminista”. (MOUFFE, 1993)19
Como conciliar no exercício do mandato, a defesa da mulher vítima de violência
doméstica com uma posição doutrinária marcada por uma lógica de submissão feminina
ao “cabeça da casa” e à defesa incondicional da família? O perfil de Eronildes
18 DOM, Diário do Legislativo, 30/08/2002, p. 1. Informação extraída da dissertação de mestrado de Adriana Martins dos Santos (2009)
19 MOUFFE, Chantal. O Regresso do político. Trad. Ana Cecília Simões. Lisboa: Gradiva, 1993.
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Vasconcelos poderia ser apresentado como um exemplo de como um potencial de
liderança de uma mulher negra foi canalizado para a política, envolta em tantas
contradições. Ainda assim, Vasconcelos segue sendo uma forte alternativa para a
política neopentecostal na cidade de Salvador. Adriana Santos (2009:144) enfatiza que:
“a ligação dela às instituições da IURD sugeriria que sua atividade como vereadora fosse pautada pela completa dependência ao grupo e uma tímida atuação, mas a observação dos primeiros dois anos de seu mandato foi de encontro a esta expectativa. Embora fosse completamente desconhecida antes das eleições, a expressiva votação alcançada por ela lhe deu destaque no cenário político além da vaga na Câmara Municipal mais antiga do país. (SANTOS, 2009:144)
Tabela 2- Evolução dos votos de Eronildes Vasconcellos para a Câmara Municipal de Salvador de 2000 a 2012
Ano Eleição
2000 2004 2008 2012
Qtde votos 12.910 17.094 12.552 15.590
Colocação no pleito
3ª colocada 2ª colocada 5ª colocada 3ª colocada
Fonte: Tabela elaborada a partir de dados coletados junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 04/11/2008, Consulta feita junto aos arquivos da Câmara de Vereadores de Salvador e site http://www.eleicoes2012.info/candidatos-vereador-salvador-ba/, acessado em 14/10/2012.
Sustento que não existem soluções simples para questões, debatidas tão
calorosamente por teóricas feministas, quanto a cidadania das mulheres envolta em
tantos pressupostos modernos, edificados no modelo liberal e patriarcal. Formulações
fundadas sob conceitos de igualdade, diferença, racismo, sexismo, sobretudo gênero e
raça, como variáveis teóricas identitárias que, como bem afirma Sueli Carneiro em seu
artigo escrito há mais de uma década, sob o título Enegrecer o Feminismo - A situação
da mulher negra na América Latina, referindo-se à fala de Linda Alcoff e Elizabeth
Potter, não “pode ser separada de outros eixos de opressão”, de esfera pública e privada,
acima de tudo, não “é possível em uma única análise”.
Inúmeras feministas têm argumentado que esta forma de se conceber o político é
masculina, fundadas em uma ordem patriarcal de gênero, por conseguinte, as
preocupações femininas não podem ser colocadas lado a lado a tal marco. Todo falso
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dilema da igualdade versus a diferença é derrubado a partir do momento em que já não
temos uma entidade homogênea “mulher” confrontada com outra entidade homogênea
“homem”, senão uma multiplicidade de relações sociais nas quais a diferença sexual
está construída sempre de muitos diversos modos e onde a luta contra a subordinação
tem que colocar-se de formas específicas e diferenciadas. (MOUFFE, 1993).
Assim sendo, pesquisadoras vão sinalizar que precisamos de teorias que nos
permitam pensar as relações em termos de pluralidades e diversidades, em lugar de
unidades e universaldades. Isso implica abandonar esta forma de pensar o sujeito
mulher, envolto em uma identidade essencial e o pensá-lo enquanto plural, heterogêneo
e contingente, abrindo espaço para realização de projetos outros de democracia plural e
radical. Butler sintetiza suas contribuições afirmando que:
[...] recusar-se a exigir a noção do sujeito desde o início da pesquisa, não é o mesmo que negar ou dispensar essa noção totalmente: ao contrário, é perguntar pelo seu processo de construção e pelo significado político e pelas conseqüências de tomar o sujeito como um requisito ou pressuposição da teoria. Considera isso especialmente importante para as preocupações feministas na medida em que as bases da política - “universalidade”, “igualdade”, “o sujeito dos direitos” - foram construídas mediante exclusões raciais e de gênero e por uma fusão da política com a vida pública que torna o privado um espaço de reprodução, domínios da “feminilidade”, do pré-político. (BUTLER, 1998)20
A realidade presenciada no contexto abordado neste artigo tem a ver com
algumas singularidades encontradas no nosso sistema social e político, o qual se utiliza
de fatores de ordem patriarcal, liberal, os quais contribuíram e ainda contribuem para
agravar o quadro de exclusão, não apenas das mulheres, mas de tantos outros sujeitos, a
exemplo dos negros, lésbicas, travestis, etc) do cenário de disputas por equidade de
gênero.
Não podem ser ignoradas não só porque todas elas estão de uma forma ou de
outra, cortadas umas pelas outras, inclusive pelo gênero, como também porque algumas
outras subjetividades resultantes deste cruzamento podem conter, em determinados
20 BUTLER, Judith. "Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do pós-modernismo". Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998. Tradução de Pedro Maia Soares para versão do artigo "Contingent Foundations: Feminism and the Question of Postmodernism", no Greater Philadelphia Philosophy Consortium, em setembro de 1990.
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momentos, maior flexibilidade e força para impulsionar processos de questionamentos,
mobilizações e unidade em torno de alguns aspectos de subordinação.
Referências
BUTLER, Judith. "Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do pós-modernismo". Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998. Tradução de Pedro Maia Soares para versão do artigo "Contingent Foundations: Feminism and the Question of Postmodernism", no Greater Philadelphia Philosophy Consortium, em setembro de 1990.
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em: Educação & Realidade, vol. 15, nº 2, jul./dez. 1990. Tradução da versão francesa (Les Cahiers du Grif, nº 37/38. Paris: Editions Tierce, 1988.) por Guacira Lopes Louro.
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