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163 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Gómez-R de María Santa Olga O Sonhar e o Brincar, Simbolismo do Mundo Interno da Criança Os sonhos, por natureza pró- pria, despertam aspectos lúdicos. Seus simbolismos e significados não são inerentes, mas temos que atribuí-los ao sonhador, que com ou sem auxílio de seu intérprete, inte- ressa-se pela sua elaboração, dirigida ao auto-conhecimento. Freud (1900) escreveu há um século: “Os sonhos de forma mais simples serão, sem dúvida, os das crianças, cujos rendimentos psíqui- cos são, seguramente, menos com- plicados que os de pessoas adultas. Não apresentam qualquer enigma para resolver, mas possuem um va- lor inestimável para a demonstra- Maria Regina Junqueira Membro Associado e Analista de Crianças e Adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo Nilde J. Parada Franch Analista Didata e Analista de Crianças e Adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo Myrta Casas de Pereda Membro Titular da Associação Psicanalítica do Uruguai Olga Santa María de Gómez-Roch Doutora em Psicologia Clínica; Psicoterapeuta de Crianças e Adolescentes; Psicanalista Titular da Associação Psicanalítica Mexicana

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163 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Gómez-Roch

de

María

Santa

Olga

O Sonhar e o Brincar,

Simbolismo do Mundo Interno da

Criança

Os sonhos, por natureza pró-

pria, despertam aspectos lúdicos.

Seus simbolismos e significados

não são inerentes, mas temos que

atribuí-los ao sonhador, que com ou

sem auxílio de seu intérprete, inte-

ressa-se pela sua elaboração,

dirigida ao auto-conhecimento.

Freud (1900) escreveu há um

século: “Os sonhos de forma mais

simples serão, sem dúvida, os das

crianças, cujos rendimentos psíqui-

cos são, seguramente, menos com-

plicados que os de pessoas adultas.

Não apresentam qualquer enigma

para resolver, mas possuem um va-

lor inestimável para a demonstra-

Maria Regina

Junqueira Membro Associado e Analista de Crianças e Adolescentes da

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Nilde J. Parada

Franch Analista Didata e Analista de

Crianças e Adolescentes da Sociedade Brasileira de

Psicanálise de São Paulo

Myrta Casas de Pereda

Membro Titular da Associação Psicanalítica do Uruguai

Olga Santa María

de Gómez-Roch Doutora em Psicologia Clínica;

Psicoterapeuta de Crianças e Adolescentes; Psicanalista Titular da

Associação Psicanalítica Mexicana

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ção de que, em sua última essência, o sonho significa uma realização de

desejos”.

Anna Freud (1926) sustenta que a interpretação dos sonhos em crian-

ças mantém-se intacta, comparada à dos adultos. Considera que a transpa-

rência ou não do sonho estará de acordo com a resistência. Os sonhos das

crianças podem ser interpretados com maior facilidade, devido ao fato de

suas resistências serem menores, mas isto não significa que sempre sejam

simples. Enfatiza sua convicção de que as crianças gostam de trabalhar

com seus sonhos, nas sessões, e lhes dão um caráter lúdico que facilita a

compreensão da interpretação.

Mesmo que a maioria dos autores contemporâneos tenha concordado

com que a realização de desejos não satisfeitos no sonho infantil seja ape-

nas uma parte do tema, sabe-se que neles existem manifestações significa-

tivas de conteúdos de ansiedade, agressão, repetição de eventos traumáti-

cos, e que tanto o brincar como as ilusões e as fantasias estão intimamente

vinculadas aos sonhos, nas crianças. Garma (1971) coloca que os sonhos

das neuroses traumáticas não são exceções à regra, como sugeriu Freud,

originalmente, mas que todos os sonhos são de origem traumática. Mesmo

que este conceito seja controverso, o que está claro é que os sonhos de

repetição, que são muito freqüentes, nas crianças, em forma de pesadelos e

terrores noturnos, são constantes no seu denominador e são lembrados,

com clareza, até a fase adulta.

Para Palombo (1978), uma das funções do sonhar tem a ver com ali-

nhar a memória com a realidade atual. Distingue o deslocamento, que é um

processo de substituição, do de condensação, que seria um ato primário de

criatividade do aparelho psíquico. Este seria um ato que dá as bases estru-

turais da massiva pirâmide do pensamento conceitual. Freud (1911) assen-

tou as bases para esta idéia, quando disse que a melhor maneira de comple-

tar a interpretação de um sonho é deixá-lo de lado e dar atenção a outro,

subseqüente, que possa conter uma temática semelhante, mas de uma ma-

neira mais acessível. Propõe que o sonhar seja visto como um precursor de

etapas mais adiantadas de desenvolvimento psíquico, nas quais o afeto é

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experimentado, e a ação é inibida. O sonho teria, portanto, mais do que

uma função defensiva, uma essência novata com funções adaptativas; con-

seguí-lo, seria o auto-conhecimento.

Seguindo esta idéia, o ambiente de trabalho converte-se, portanto, em

um “espaço de brincadeira e criatividade”, mais do que “espaço de traba-

lho”, no qual o sonho é um material único de brincadeira. Aquilo que a

criança pode vivenciar neste “espaço de brincadeira”, no contexto

terapêutico, leva a novas perspectivas organizacionais da economia

libidinal, novos significados para seus esquemas representacionais, facili-

tando, assim, o processo analítico e acrescentando-lhe a vontade de

desfrutá-lo.

Jerônimo, menino de 8 anos, manifestou, na sua sessão: “meu sonho

esteve ótimo, mas, quando eu te contei, não saiu igual ao meu sonho, não

acredito que possas me entender; necessitaria passá-lo como em um vídeo,

porque não existem palavras para contá-lo”.

Para poder brincar seriamente com os sonhos, necessitamos conside-

rar as implicações lingüísticas e extralingüísticas, de como nós, terapeutas,

recebemos o sonho.

Para poder compreender como ocorre o desenvolvimento do símbolo

com a imagem mental, devemos, antes, considerar o símbolo inconsciente

que seria o que aparece nos sonhos e em alguma atividade lúdica de caráter

inconsciente, na criança, e que chamaremos de “simbolismo secundário”.

Sobre isto, Piaget (1951) descreve três grupos de símbolos lúdicos que são

observados, tanto nos sonhos, como na brincadeira das crianças: aqueles

relacionados ao corpo da criança, que seriam sucção, excreção, etc.; aque-

les pertencentes aos afetos relacionados aos pais, como amor, ciúmes,

agressão, abandono, etc.; e, finalmente, as angústias, centradas no nasci-

mento de bebês e rivalidade entre irmãos.

As imagens são a matéria-prima para a elaboração imaginativa, e esta

elaboração pode ser enriquecida no campo extralingüístico, que facilita o

brincar com as imagens do material sonhado. Temos, então, duas alternati-

vas básicas de pensamento: as imagens (é a chamada linguagem dos so-

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nhos) e as palavras (ou seja, o idioma propriamente dito). Que relação

pode existir entre estas duas linguagens? Sanville (1991) propõe que as

imagens são uma comunicação que vai do sujeito a seu próprio self, en-

quanto que as palavras fazem parte de um discurso que pertence, necessa-

riamente, ao campo bipessoal, mesmo que esteja resultando na auto-inter-

pretação de imagens. Considero que existe uma constante interação destas

duas modalidades, que ocorre com um enriquecimento espiral do incons-

ciente, o qual nos leva a considerações tanto teóricas como técnicas. Além

do anterior, sugiro que esse processo de expressão simbólica acontece de

idêntica e paralela maneira, tanto no sonhar, como no brincar.

Se aceitamos que a imagem é, em essência, individual, enquanto a

palavra é social, entendemos que o sonhador constrói seus sonhos, para o

que se vale das intermodalidades sensoriais (principalmente do visual, mas

não exclui, ocasionalmente, o gosto, o tato, o olfato e as sensações

cinestésicas). Portanto, a imagem não tem um significado per si, como

pretenderam algumas disciplinas, no sentido de rígidos equivalentes sim-

bólicos, como o resultar que, toda vez que se sonhe com a imagem de uma

cadeira, é segurança; um leão, agressão, etc. De fato, existe um primeiro

momento no qual Freud considera o sonho, como os hermeneutas, como

algo a decifrar. A partir do sonho do “homem dos lobos” (Freud, 1918),

que é um sonho relatado quando adulto, mas sonhado quando criança, ob-

serva-se uma guinada à importância do discurso. Vai além, fazendo notar

que seu paciente podia, já adulto, utilizar palavras que não houvesse en-

contrado na sua infância, dado que a criança não conta, nesse momento,

nem com o pensamento nem com o vocabulário para transmitir a quantida-

de de ansiedade que continha o conteúdo onírico. Sem dúvida, nesse mo-

mento, estão sobreinvestidas as impressões sensoriais, especialmente a vi-

são e a motricidade, e não as palavras nem o pensamento.

A imagem tem uma sobredeterminação, no sentido do ilimitado de

seu simbolismo, de tal maneira que a criança sonhadora poderá, com seu

sonho, assim como com sua brincadeira, viver seu drama pessoal da forma

mais individual e fantástica, no sentido de experimentar, refletir e/ou co-

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municar o impossível, o temido, o desejado, o idealizado, o tétrico; o quê,

o quando, o onde, o quem, o como e o porquê, refletindo sem

intencionalidade, sem temporalidade, nem seqüência organizada, o mais

inconsciente de seu mundo interno. Estas condensações, deslocamentos e

simbolismos refletem-se, simultaneamente, na brincadeira, quando um

personagem, marionete, desenho ou boneco transcende atos lógicos, inicia

sua ação sendo um personagem e termina com outra identidade. Ocorrem

transformações de identidade; inclusive, a mesma criança, protagonista da

sua própria brincadeira, pode secretamente exercitar diferentes papéis em

diferentes personagens, que vão desde o bondoso e querido, ao desampara-

do e angustiado, até o agressivo, enfurecido e cruel. Manifestará, sem qual-

quer impedimento, todas as ambivalências e contradições necessárias, de-

sobedecendo livremente a regras e parâmetros de censura e repressão. A

repressão poderá, ocasionalmente, aparecer no terreno do onírico, mais

adiante, em crianças na etapa da latência, referente a simbolismo

anatômico, como seria o urinar-se enquanto dorme. Mas, mesmo assim, se

falhasse esta repressão, todo o limite da realidade seria justificável no esta-

do do dormir, por ser um estado de inconsciência, assim como no brincar,

mesmo que em menor grau, dado que é de mentirinha. A responsabilidade,

a repressão e a censura ficam somente no campo do social consciente, no

sonhar não existe negativa, não existe o “não”.

Podemos, sem dúvida, considerar tanto o sonho como a brincadeira

um evento intrapsíquico privado, novato e livre, tanto no seu simbolismo,

como na sua expressão. No discurso que descreve o sonho ou a brincadei-

ra, a criança poderá, já no plano bipessoal, articulá-lo de tal maneira que

decidirá quais conteúdos compartilha e quais não, aparecendo, assim, a

censura. Na sua tentativa de organizá-lo e dar lógica, poderão ser perdidos

elementos relevantes e primitivos; assim mesmo, a idade que a criança

tiver determinará em qual etapa de pensamento se encontra, para perceber-

mos sua competência ou não, quanto à utilização dos aspectos lingüísticos

formais da linguagem, os que somente poderão ser resgatados com a técni-

ca interpretativa, a qual pode incluir o recurso lúdico como substituto

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extralingüístico na recuperação do conteúdo onírico.

Piaget (1951) diz que a criança não sonha, até que tenha linguagem.

Na minha opinião, isto é correto, somente se restringirmos o conceito de

sonho. Sabemos que existe um processo primário mediante o qual o bebê

vai construindo seu eu corporal, assimilando sensações proprioceptivas e

cinestésicas. Sabemos, graças a pesquisa em Neurofisiologia, que o bebê

passa 50% de seu sonho em estado REM, e dificilmente poderíamos saber

o que sonha. Do que não existe dúvida é que o sonho somente é comunica-

do pela criança ao aparecer a linguagem, mesmo que sejam observadas

manifestações de conduta tais como sorrisos, choro, balbuciação, sobres-

saltos, etc.. Langer (1942) refere que tendemos a nos referir sempre ao

visível para explicar o invisível. O que nós, analistas, fazemos, analisar,

cujo significado de origem é desmembrar, faz alusão àquilo que em algu-

ma época foi um ato sensório-motor.

As contribuições de Stern (1985), referentes ao pensamento do bebê,

nos ensinam que a percepção inicial é “amodal”, no sentido de que a crian-

ça experimenta o mundo como uma unidade. Os afetos são um componen-

te de cada ato perceptivo que se entrelaça com os sons, ruídos, cheiros,

visões e sensações tácteis, que configuram um padrão globalizado que re-

sulta na primeira forma de apreender o mundo que os rodeia. No segundo

ano de vida, a linguagem, ao se fazer presente, vem como conseqüência de

um processo onde o conglomerado de afetos, percepções, enfim, formas de

apreender o mundo, são separados. Portanto, a linguagem sempre frag-

menta ou secciona a experiência. Ao vincular experiências com palavras,

isolam-se da original percepção “amodal” que caracterizou a infância. O

anterior explicaria, em parte, porque o recontar de um sonho resulta já na

sua modificação, a encenação desse mesmo sonho na brincadeira, pode

dar-nos elementos valiosos de seu conteúdo original, no caso das crianças.

A intrusão, no que refere à insistência de trazer sonhos, não favorecerá a

sua originalidade. Lembremos, também, que o desejo expressado no sonho

é também tanto de reparação como de recriação, o significado não está

dado, mas se elabora no espaço transferencial lúdico e não exclusivamente

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em uma sessão, mas ao longo do processo. O sonho, assim como o jogo, é

construído em um espaço de uma única pessoa, e, portanto, o domínio está

naquele que brinca e naquele que sonha, assim como nas primeiras tentati-

vas de associações auto-interpretativas.

A analogia, na minha opinião, entre o sonhar e o brincar é evidente.

Uma das diferenças é que, no simbolismo do sonho, pode haver terrores

noturnos e sonhos traumáticos de angústia repetitivos, enquanto que, na

brincadeira, até o medo é desfrutado, visto que existe maior reparação,

elaboração secundária e ela resulta, por motivos evidentes, mais controlá-

vel e manipulável do que o sonho. O anterior nos une ao tema da censura,

a qual aparecerá, obviamente, quanto mais consciente for a expressão. Por-

tanto, o simbolismo onírico será, possivelmente, mais um autêntico disfar-

ce que o mascaramento conseguido no campo lúdico; entretanto, o segun-

do nos leva a ter uma compreensão mais completa do que a linguagem

permite do primeiro. Os materiais de jogo facilitam, sem dúvida, as repre-

sentações, dado que o sonho somente se vale de imagens visuais e sensoriais.

Jimena, de 6 anos, ilustra-nos, com um sonho, no qual ela dá resolu-

ção a seu conflito de lealdade a seus pais recém divorciados. Sonha que é

levada por sua avó, enquanto dorme, na sua casa, de tal maneira que Jimena

não tem que decidir, por si mesma, se passa mais tempo com seu pai ou

com sua mãe, mas que resolve o conflito, sendo levada contra sua vontade

(enquanto dorme e não tem consciência) para um terceiro lar que resulta

“neutro”.

Poderíamos concluir que existem:

1 – Sonhos de realização de desejos evidentes e transparentes, cujo

desenlace é seu cumprimento e não envolve um simbolismo secundário.

Exemplo deste sonho seria o de Maribel, menina de 5 anos, que participou

de um aniversário e chorou muito ao não conseguir pegar nenhuma bala do

balão surpresa. Nessa mesma noite, sonhou que era a sua festa e ela era a

única convidada. Estava sentada em seu jardim, comendo todas as balas do

seu balão surpresa. Ao entender os resíduos diurnos e a frustração de seu

desejo pelas balas não conseguidas, compreendemos facilmente seu sonho.

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2 – Sonhos em que, da mesma forma que no jogo que envolve um

simbolismo primário, alguns objetos são substituídos por outros. Este seria

o caso de representar a mãe e o pai nos bichos de pelúcia, ou personagens

caricaturescos favoritos da criança. Mãe Urso Pooh e pai ursinho levam

seu filho ursinho para um passeio, deixando para trás os demais ursinhos.

Sem dúvida, também estaria presente neste conteúdo, tanto onírico como

lúdico, a realização do desejo de receber uma atenção exclusiva por parte

de seus pais.

3 – Sonhos nos quais existe algum acontecimento angustiante, mas

que, felizmente, é resolvido no mesmo sonho ou brincadeira. Beto, de 7

anos, sonhou que pediria balas no dia de Halloween, nas casas onde havia

cachorros que latiam e mostravam seus dentes, raivosamente. Sua irmã

mais velha abraça-o, e, como um milagre, os cachorros param de latir. O

elemento de angústia de castração, sem dúvida, está presente nesse sonho,

como poderia estar em uma situação lúdica semelhante. O que também

pode ser observado neste sonho é a função do “guardião dos sonhos”, des-

crita por Freud.

4 – Os verdadeiros terrores noturnos, os quais colocam neste caso

uma diferença importante do ato lúdico, seriam o regresso e ataque de um

monstro, a queda em um buraco negro sem fim, uma perseguição que ter-

mina em aniquilamento, etc. Na brincadeira, a intervenção de elementos

do consciente contribui para que os temores sejam representados por sím-

bolos lúdicos que recorrem a uma fonte do prazer de brincar, proporcional

à angústia, modulando e neutralizando, assim, o pânico e os instintos agres-

sivos e de morte.

5 – Sonhos de auto castigo e castigo. Estes são muito freqüentes nas

etapas de formação do superego e têm uma relação direta com um supere-

go punitivo e sádico, característico desta etapa do desenvolvimento. A cri-

ança revive as ameaças, conseqüências e castigos que experimentou com

angústia, e, em algumas ocasiões, existem sonhos e/ou brincadeiras com

conteúdo fóbico.

6 – Sonhos e brincadeiras nas quais intervém, de maneira franca, o

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simbolismo secundário, e estão carregados de multisimbolismos; conse-

qüentemente, resultam complicados, pouco claros, muito elaborados em

personagens, tempos e lugares, apresentando, assim, uma maior dificulda-

de, tanto na sua compreensão, como na sua interpretação.

Quem de nós não lembra de um sonho infantil? Quantos pacientes não

relatam sonhos repetitivos ou de impacto que tiveram na sua infância e

tivessem desejado entendê-los e assimilá-los nesse momento? Como vi-

mos, o sonho e a brincadeira, analogamente, com suas diferenças óbvias,

pertencem ao mais privado e livre que pode conservar o ser humano e que

permite a assimilação espontânea da realidade para o eu, mediante o sim-

bolismo e as representações mentais. Elaborar o sonho além das palavras

é, também, a função da brincadeira. A participação dos instintos de vida e

morte, entendida em espiral simbólica, é um potencial existente no trata-

mento das crianças que deve ser valorizado com todo o peso potencial que

existe na repercussão psíquica de nossos pequenos pacientes.

Considero que o que realmente falta na literatura da análise infantil

contemporânea, com relação aos sonhos, é a discussão no que se refere às

diferenças de idades e etapas, o potencial e a relevância dos sonhos dentro

do processo analítico total e a utilização técnica destes.

Ajudar as crianças, levando para o terreno lúdico o onírico, significa

compreender seu mundo interno, facilitando-lhes, simultaneamente, seu

autoconhecimento.

Sinopse

Este trabalho apresenta como os sonhos, por natureza própria, despertam

aspectos lúdicos. Seus simbolismos e significados não são inerentes, mas temos

que atribuí-los ao sonhador, que, com ou sem ajuda de seu intérprete, se interessa-

rá pela sua elaboração, direcionada ao autoconhecimento. No contexto da análise

infantil, propõe-se ir além da mera realização de desejos. Dá-se importância ao

sonho como material de brincadeira dentro do contexto terapêutico, chegando a

novas perspectivas organizacionais da economia libidinal, a novos esquemas re-

presentacionais e à facilitação do processo analítico, com a conquista do prazer.

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Para compreender o anterior, são consideradas implicações lingüísticas e

extralingüísticas. Explicam-se as imagens como matéria-prima para a elaboração

no terreno extralingüístico, e a palavra, no lingüístico. Este processo de expressão

simbólica dá-se de idêntica e paralela maneira, tanto no sonhar, quanto no brin-

car.

A imagem tem uma sobredeterminação, no sentido do ilimitado de seu sim-

bolismo, de tal maneira que a criança que sonha poderá, com seu sonho, assim

como com sua brincadeira, viver seu drama pessoal, refletindo, sem

intencionalidade, sem temporalidade, nem seqüência organizada, o mais incons-

ciente de seu mundo interno. Concluímos com diferentes tipos de sonhos que as

crianças têm, além de duas vinhetas que exemplificam sua utilidade analítica. O

sonho, como a brincadeira, é construído em um espaço de uma única pessoa, e,

portanto, o domínio está naquele que brinca e naquele que sonha no que se refere

às primeiras tentativas de associações auto-interpretativas.

Summary

This work presents the way dreams, by their own nature, arose playful aspects.

Their symbolisms and significances (meanings) are not inherent. We must ascribe

them to the dreamer, who, with or without the aid of an interpreter, will become

interested in their elaboration directed to self-knowledge. In an infantile analysis

context we go beyond a simple desire accomplishment. The dream is important as

a playing material within the therapeutic context, getting to new organizational

perspectives of the libidinal economy, new representational schemas and the

analytic process facilitation, conquering the enjoyment. In order to understand

the former, there are considered linguistic and extra-linguistic implications. The

images are explained as being raw material for the elaboration in extra-linguistic

and the word in linguistic grounds. This symbolic expression process occurs

identically and parallel in dreams as well as in playing.

The image has an over-determination, in the sense of the illimitability of its

symbolism, in such a way that a child who dreams will be able to live its personal

drama through its dream, as well as through its play, and will reflect the most

unconscious part of its inner world without any intention, organized sequence and

independently of time. We will finish with different kinds of dreams that children

have and two animations, which exemplify their analytic usefulness. The dream,

as well as the children’s play, is built in a space of a single person and, therefore,

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the dominion is in those who play and dream in what refers to the first attempts of

auto-interpretative associations.

Resumen

El presente trabajo refiere como los sueños, por naturaleza propia, despiertan

aspectos lúdicos. Sus simbolismos y significados no son inherentes, sino tenemos

que atribuírselos al soñante, quien con, o sin ayuda de su interprete, se interesará

por su elaboración, dirigida al auto-conocimiento. En el contexto del análisis in-

fantil se propone ir más allá de la mera realización de deseos. Se le da importancia

al sueño como material de juego dentro del contexto terapéutico, llagando a nuevas

perspectivas organizacionales de la economía libidinal, nuevos esquemas

representacionales y la facilitación del proceso analítico, con la ganancia del goce.

Para comprender lo anterior, se toman en cuenta implicaciones linguísticas y

extralinguísticas. Se explican las imágenes como materia prima para la elaboración

en el terreno extralinguístico y la palabra en el linguístico. Este proceso de expresión

simbólica se dá de idéntica y paralela manera tanto en el soñar, como en el jugar.

La imágen tiene una sobredeterminación, en el sentido de lo ilimitado de su

simbolismo, de tal manera que el niño soñanate podrá con su sueño, asi como con

su juego, vivir su drama personal, reflejando sin intencionalidad, sin temporalidad,

ni secuencia organizada, lo mas inconsciente de su mundo interno. Concluímos

con diferentes tipos de sueños que se dan en los niños y dos viñetas que ejemplifican

su utilidad analítica. El sueño, como el juego es construído en un espacio de una

sola persona y por lo tanto el dominio, está en el jugante y en el soñanante en

cuanto a los primeros intentos de asociaciones auto-interpretativas.

Palavras-chave

Simbolismo; Sonho; Brincar.

Key-words

Symbolism; Dream; Play.

Palabras-llave

Simbolismo; Sueño, Jugar.

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psychoanalysis and developmental psychology. New York: Basic Books.

Tema livre apresentado no XXIII Congresso Latino-

Americano de Psicanálise, em setembro de 2000, Gramado, RS, Brasil

Tradução: Traduzca Revisão da tradução: Dra. Vera M. H. Pereira de Mello

Dra. Olga Santa María de Gómez-Roch Bosques de Duraznos 65 – 708 Bosques de las Lomas México D.F. 11700 – México Tels: (52) 55965839, (52) 52516824 Fax: (52) 55967786 E-mail: [email protected]

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