O setor de serviços e as negociações internacionais

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O SETOR DE SERVIÇOS E AS NEGOCIAÇÕES INTERNACIONAIS

- JULHO 2003 -

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Í N D I C E I. - INTRODUÇÃO II. - BREVES COMENTÁRIOS ACERCA DO GATS (i) Características gerais (ii) Diferenças em relação ao GATT III. - AS NEGOCIAÇÕES ENVOLVENDO O COMÉRCIO DE SERVIÇOS IV. - EVOLUÇÃO DAS NEGOCIAÇÕES NA OMC, ALCA E MERCOSUL V. - QUESTÕES POLÊMICAS QUE DEVERÃO SER OBJETO DE ATENÇÃO

ESPECIAL VI. - CONSIDERAÇÕES FINAIS VII. - BIBLIOGRAFIA Adendos: (i) serviços financeiros (ii) construção civil (iii) audiovisual (iv) turismo (v) comércio eletrônico (vi) telecomunicações (vii) distribuição

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PINHEIRO NETO ADVOGADOS* I. - INTRODUÇÃO Este trabalho tem como objetivo examinar os principais fundamentos do General Agreement on Trade in Services (GATS), os compromissos específicos assumidos pelo governo brasileiro no setor de serviços, as perspectivas de negociações nas próximas rodadas da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e os interesses brasileiros a serem preservados. O setor de serviços é um dos que mais têm crescido nos últimos anos em âmbito mundial, tanto nos países desenvolvidos como nos em desenvolvimento. Estudo elaborado pelo Banco Mundial informa que:

“In 1999, the services share in total value added ranged from 43 per cent in low-income economies, to 55 per cent in middle-income economies, and up to 70 per cent and above in high-income countries like the United States, Canada or Switzerland. This is significantly more than a decade or two before; in all three groups, the services share is some 5 to 10 percentage points higher today than in the early 1980s. (…) In turn, these developments have contributed more rapid expansion of services than merchandise trade. Between 1990 and 1998, world trade in commercial services grew at some 7 per cent per annum (in current US dollars), which is about one percentage point above the rate for merchandise trade. As a result, the services share in world trade rose from 18.5 to 20 per cent over the same period. While this may be considered low, two factors are worth noting: first, trade figures for merchandise are boosted by high and rising shares of processing trade and re-exports and, second, available trade data for services fail to capture important transmission modes and, thus, greatly understate economic reality”1

No Brasil, as estatísticas também indicam um crescimento significativo do setor, especialmente após as privatizações, como será demonstrado no item III deste trabalho. * H É L I O N I C O L E T T I , M A U R O B E R E N H O L C , M A R I A C E C Í L I A A N D R A D E , M A R C E L O D E

A Z E V E D O G R A N A T O e C L A U D I O D Í A Z G Ó M E Z de PINHEIRO NETO ADVOGADOS. 1 WTO Basic Principles. Services, p. 19.2.

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Evidente, portanto, que dada sua importância, o setor de serviços não poderia ser excluído das negociações em curso para a abertura de mercados, tanto no âmbito da OMC, como da ALCA e do acordo de livre comércio com a União Européia. Desde a criação do General Agreement on Tarifs and Trade (GATT) em 1947, a celebração do GATS na Rodada do Uruguai em 1994 é considerada um dos maiores avanços nas negociações multilaterais de abertura de comércio. Este acordo, como se verá, estabelece princípios e regras gerais, prazos para adaptação, compromissos gerais e específicos, tendo como objetivo assegurar a progressiva liberalização do comércio em serviços através de rodadas sucessivas de negociações multilaterais, de modo a preservar o interesse de todos os participantes e suas respectivas políticas públicas nacionais, na busca de um equilíbrio geral de direitos e obrigações para todos os membros. Existe também uma grande preocupação com os países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos. Isso porque, o setor de serviços demanda uma intensa força de trabalho, que produz efeitos diretos na oferta de empregos. Setores como o turismo, financeiro, saúde e educação dependem intrinsecamente de mão-de-obra, e diferentemente de setores industriais, a mecanização ou automatização é menos provável. Não é por outra razão que o GATS traz como um dos objetivos facilitar a participação crescente dos países em desenvolvimento em tal setor e a expansão de suas exportações de serviços mediante, particularmente, o fortalecimento de sua capacidade doméstica, eficiência e competitividade2. Desse modo, as negociações no setor de serviços têm importância relevante para os interesses brasileiros, e devem ser conduzidas não apenas como moeda de troca em relação a outros setores que estão sendo negociados, como por exemplo agricultura, mas, e especialmente, objetivando criar novas oportunidades de emprego para a população brasileira e o aprimoramento das instituições nacionais, além de incentivar a possibilidade de exportação em outros setores nos quais a expertise nacional se destaca. O presente trabalho encontra-se estruturado em seis partes. Na primeira parte, serão apresentados comentários gerais acerca do GATS. Nas segunda e terceira partes trataremos dos dados gerais

2 WTO Basic Principles, p. 19.2, p. 19.7, “nearly four-fifths of WTO Members are developing countries. Though their share of international trade,

and in particular of trade in services, is still relatively small they have a major role in services trade, both as exporters and importers of services. The GATS recognizes their special needs in two ways. First, it is accepted that the pace of liberalization by any country may reflect its level of development and national policy objectives. Developing countries are therefore not expected to liberalize as quickly or as extensively as developed countries. Secondly, Article IV is designed to promote the increasing of participation of developing countries in services trade. Specific commitments should be undertaken in such a way as to help developing countries to strengthen their domestic services capacity, and to provide access in sectors and modes of supply which are of export interest to them”.

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sobre as negociações envolvendo o comércio de serviços e de sua evolução na OMC, ALCA e MERCOSUL. Na quarta e quinta partes abordaremos as questões polêmicas envolvendo as negociações no setor de serviços e algumas considerações finais. Por fim, em forma de adendos,3 serão apresentados comentários específicos sobre os diversos setores nos quais existe um interesse brasileiro mais proeminente. II. - BREVE COMENTÁRIOS ACERCA DO GATS (i) Características gerais Apesar das dificuldades para conceituar serviços no âmbito do comércio internacional em razão da diversidade de interesses dos países negociadores, o GATS buscou uma definição mais ampla possível, de modo a englobar não apenas a conceituação tradicional aplicável ao mercado de bens, qual seja, o movimento de bens e serviços transfronteiriços, mas também transações que envolvam o movimento dos fatores de produção (capital e trabalho) ou usuários. O GATS acertou em não apresentar uma lista exaustiva de atividades englobadas no conceito de serviços. Dessa forma, optou-se pelo termo “prestação de serviços”, que envolve não apenas a prestação transfronteiriça do serviço, mas também o trânsito entre os países de pessoas, naturais ou jurídicas, bem como de bens e capital, sendo de extrema importância a sua adequada regulamentação. O GATS define como prestação de serviços a produção, distribuição, comercialização, venda e entrega de um serviço4, e apresenta as seguintes formas de classificação: Modo 1. - Transfronteiriço (“Cross-border Supply”): prestação de um serviço do território de

um Estado para o território do outro. Análogo à operação que envolve o comércio de bens.

Modo 2. - Consumo no Exterior (“Consumption Abroad”): o consumidor se desloca para outro

Estado, onde o serviço lhe é prestado. Modo 3. - Presença Comercial (“Supply Through Commercial Presence”): pessoa jurídica

estrangeira se estabelece em determinado Estado para prestar serviços. 3 Os adendos referentes aos setores de serviços financeiros, construção civil, audiovisual e turismo foram preparados por Pinheiro Neto Advogados.

Os adendos referentes aos setores de comércio eletrônico, telecomunicações e distribuição foram contribuições dos escritórios Santos e Furriela Advogados, Carvalho de Freitas e Ferreira Advogados Associados e Veirano e Advogados Associados, respectivamente.

4 V. artigo XXVIII, alínea “b” do GATS.

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Modo 4. - Movimento Temporário de Pessoas Físicas (“Supply Through the Presence of Natural Persons”): deslocamento de pessoa física para determinado Estado para prestar serviços, seja em nome próprio, seja na condição de funcionário de pessoa jurídica estrangeira prestadora de serviço. Podemos dizer que é a “presença comercial” de pessoas físicas.

Para efeitos de negociação na OMC, os serviços são classificados em 12 grandes áreas5: 1. - Empresariais; 2. - Comunicação; 3. - Construção e Engenharia; 4. - Distribuição; 5. - Educacionais; 6. - Meio-ambiente; 7. - Financeiros; 8. - Saúde; 9. - Turismo e Viagens; 10. - Recreação, Culturais e Esportivos; 11. - Transportes; e 12. - Outros. Como mencionado, apesar de não defini-los precisamente, o GATS abrange todos os serviços sujeitos à comercialização, e é aplicado a qualquer medida adotada por um Membro da OMC que afete o comércio de serviços (artigo I, nº 1). O termo medida é definido como qualquer tipo de legislação que venha a ser adotada por qualquer esfera governamental de um Membro (no caso do Brasil, federal, estadual ou municipal) ou por instituições não-governamentais em exercício de competências a elas delegadas por qualquer esfera governamental. No artigo I do GATS, mais precisamente em seu parágrafo 3º, alínea “c”, há expressa exceção feita ao serviço exercido por autoridade governamental que não seja executado em condições comerciais ou de concorrência com outros prestadores de serviços. Dessa definição, podemos interpretar que o GATS pretende excetuar os serviços públicos prestados em caráter de monopólio ou mediante concessão, cuja prestação é prerrogativa dos Estados

5 V. Documento WTO/MTN.GNS/W/120 de 10.7.1991.

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Membros. Não obstante, é importante ressaltar que mesmo nestas hipóteses, o GATS estabelece a obrigação que os Membros têm de assegurar que o comportamento destes prestadores de serviços será sempre consistente com o princípio da nação mais favorecida e com seus compromissos específicos6. O GATS pode ser dividido em duas partes: a primeira, que engloba seus artigos e anexos, e a segunda, os compromissos específicos de cada Membro. Isso significa dizer que a primeira parte é obrigatória para todos os seus signatários, e a segunda apenas para o Membro em questão. As obrigações incondicionais estão estabelecidas nos artigos II até XV e englobam, dentre outros, os princípios da nação mais favorecida, transparência7, regulamentação nacional8, monopólios, participação crescente dos países em desenvolvimento, integração econômica, transferências de fundos relacionados à prestação de serviços9 e medidas de salvaguarda quando existem problemas específicos em relação à balança de pagamentos de um Membro. Os compromissos específicos estão estabelecidos nos artigos XVI até XVIII e englobam os princípios de acesso aos mercados e tratamento nacional, admitindo ambos a indicação de prazos e condições de liberação no setor, devidamente especificados nas listas que constam como Anexos ao GATS. (ii) Diferenças em relação ao GATT As estruturas de funcionamento do GATS e do GATT são idênticas, exigindo ambos a liberalização plena do comércio, fundados no princípio da não-discriminação transfronteiriça. Todavia, enquanto que a liberalização do comércio de serviços pressupõe uma variedade de temas que podem ter como efeito a criação de obstáculos à aplicação dos princípios de acesso a mercados e da não-discriminação, a liberalização do comércio de bens, em princípio, estaria mais focada em redução de tarifas10.

6 V. artigo VIII do GATS. 7 Para o devido funcionamento deste acordo, é imprescindível que o princípio da transparência seja devidamente observado. Nos termos do artigo

III, parágrafoº 3º do GATS, cada Estado-Membro tem a obrigação de informar, anualmente, ao Conselho do Comércio de Serviços, o estabelecimento de novas leis, regulamentos ou diretrizes administrativas (ou modificações) que afetem significativamente o comércio de serviços que englobem os compromissos específicos assumidos.

8 Nos termos do artigo VI do GATS, nos setores em que um Estado-Membro tenha assumido compromissos específicos, ele deverá assegurar que todas as medidas de aplicação geral que afetem o comércio de serviços sejam administradas de maneira razoável, objetiva e imparcial.

9 Quando um governo assume o compromisso de abrir um determinado serviço para um concorrente estrangeiro, não devem ser feitas restrições para transferência de fundos, uma vez o serviço prestado. A única exceção, admitida no artigo X do GATS, é na hipótese de que aquele país esteja atravessando uma crise em sua balança de pagamentos, e mesmo assim esta seria uma medida temporária.

10 V. comentário de James Hodge. Liberalization of Trade in Services in Developing Countries, p. 221.

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Por outro lado, os dispositivos pertinentes ao acesso a mercados e tratamento nacional são interpretados de uma maneira mais ampla do que no GATT, pois admitem maior flexibilidade, como comentam Tony Warren e Christopher Findlay:

“Part III implies that market access and national treatment are broader in scope than corresponding market access and national treatment provisions in GATT. To begin with, the GATS provision on national treatment does not draw a distinction between frontier and internal constraints but embraces all policies that might discriminate between domestic and foreign suppliers. In contrast, national treatment in GATT extends to matters of internal taxation and regulation only. In effect, the GATS article on national treatment encompasses both national treatment and market access as normally defined. More important, the GATS article on market access extends beyond traditional concerns of access for foreign services suppliers to all policies that restrict access to a market. This is a major extension of multilateral trade disciplines into the realm of domestic policy, particularly competition policy”.11

Diferentemente do GATT e do Trade-Related Aspects of Intelectual Property Rights (TRIPS), o princípio da nação mais favorecida inserido no GATS admite exceções. Estas exceções permitem que os Membros adiram a acordos de integração regional, facilitem intercâmbios de serviços produzidos e consumidos localmente12 em regiões fronteiriças contíguas, e ainda a aplicação de medidas de reconhecimento mútuo. Algumas das críticas feitas em relação ao GATT também se aplicam ao GATS, especialmente no que diz respeito à aplicação do princípio da não-discriminação. Isso porque as nações mais desenvolvidas, como por exemplo os Estados Unidos, têm o seu setor de serviços extremamente desenvolvido. Uma abertura não-discriminatória desse setor, como propõe o GATS, poderia levar a um aumento do desequilíbrio no grau de desenvolvimento dos países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos13. Por outro lado, autores como James Hodge comentam que esse temor não é consistente, uma vez que muitos países em desenvolvimento têm vantagens comparativas em diversos setores de serviços, e poderiam concorrer em igualdade de condições com os países desenvolvidos:

“Developing countries have already shown that they do have some comparative advantage in services and are able to export a broad range of services effectively. The most significant export is tourism, which accounts for a large proportion of total export revenues among poorer countries. Other natural resource-based exports include water and electric power. Labor-intensive sectors such as construction have clear comparative advantages for

11 Cf. Tony Warren e Christopher Findlay. Measuring Impediments to Trade in Services, p.59. 12 V. artigo II, parágrafo 3º do GATS. 13 V. comentários de Carol Proner. Comércio de Serviços, p. 81.

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developing countries. (…) Developing countries are, however, also active in sectors that are more intensive users of human capital or physical capital. The best-known example is software services exports by India, which is now a multibillion dollar industry”14

Por fim, a liberalização do comércio de serviços deve ser acompanhada por uma adequada regulação de cada setor que se pretende abrir, entendendo-se como adequada não a regulação excessiva com objetivos protecionistas, mas o desenvolvimento e o amadurecimento institucional visando a inserção de políticas, como a defesa da concorrência e o direito regulatório, como forma de garantir que o acesso a mercados e o princípio da não-discriminação sejam observados15. III. - AS NEGOCIAÇÕES ENVOLVENDO O COMÉRCIO DE SERVIÇOS A relevância das negociações sobre a liberalização de serviços travadas no âmbito da OMC, e também objeto de outras negociações multilaterais, no contexto da ALCA, e de um acordo de livre comércio com a União Européia e do próprio MERCOSUL, pode ser avaliada a partir do exame de dados, que demonstram que o setor, embora represente quase 80% do PIB nos países desenvolvidos e cerca de 70% do PIB brasileiro, responde por menos de 25% do comércio internacional16. Tal circunstância denota o quão incipiente é o estágio em que se encontra o comércio internacional de serviços17, e o quanto é importante a adoção de medidas multilaterais e uniformes que se reflitam no incremento desse comércio a patamares superiores aos atuais. Como ação condicionante, é sempre mencionada a necessidade de os países criarem um sistema regulatório harmonizado, que permita, ao mesmo tempo, (i) o acesso a mercados, com a coexistência harmônica e leal entre firmas estrangeiras e nacionais e (ii) as ações soberanas dos Governos acerca do ingresso e funcionamento de empresas estrangeiras em seus limites territoriais. Em outras palavras, devem ser definidas regras básicas, aplicáveis a todas as nações, que claramente disponham sobre a prestação de serviços por empresas estrangeiras, delimitando hipóteses e

14 Cf. James Hodge. Liberalization of Trade in Services in Developing Countries, pp. 223/224. 15 Segundo James Hodge, op. cit., p. 230, “the institutional foundations for liberalization can include understanding the current trade stance,

establishing the governmental process for trade negotiations, and creating the institutions to manage liberalization (…) Instead of merely referring to a tariff schedule, as with goods, policy makers need to examine each piece of regulation in each sector to establish whether it in any way denies market access or discriminates against foreign firms”.

16 V. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Comércio de Serviços: Informações Gerais, Exportação e como notificar barreiras, 2002, in (http://www.mdic.gov.br/comext/Deint/Barreiras/CartilhaServiços.PDF).

17 No estudo elaborado pela WTO Secretariat, pp.1/2 é informado que “while also rising over time, the services share in foreign trade has been smaller than its share in production and employment. International trade flows continue to consist predominantly of goods, corroborating the conventional perception of services being less transportable and tradeable than goods”

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requisitos que lhes permitam o desenvolvimento desta atividade, sem ameaçar a existência das empresas nacionais. A consecução de tais objetivos trará consigo inúmeras vantagens, entre as quais podem ser destacadas: (a) desenvolvimento econômico: setores como telecomunicações, informática, transportes, entre

outros, são de vital importância à dinamização de uma série de atividades comerciais, tais como a importação e a exportação. O pleno desenvolvimento daqueles setores, portanto, redundará no incremento de diversas outras atividades, ligadas especialmente ao comércio de bens18;

(b) desenvolvimento tecnológico: em determinadas áreas, o contato com a expertise de empresas

estrangeiras certamente contribuirá na aquisição ou transferência de know-how por parte de empresas nacionais, o que deverá aumentar a sua competitividade;

(c) aumento da oferta, com a diminuição dos custos respectivos: o aumento da qualidade e –

notadamente - da oferta dos serviços deverá implicar a diminuição de seus custos respectivos; e

(d) transparência: a existência de regras claras e transparentes para o comércio de serviços não

só favorece seu desenvolvimento como o transforma em um mercado seguro e previsível, atraindo investimentos.

No Brasil, a representatividade do setor de serviços na economia brasileira pode ser medida por dados que indicam que, dos dez maiores lucros empresariais no Brasil em 2000, oito foram de empresas do setor de serviços (sete do setor financeiro e uma de telecomunicações) 19. Além disso, o setor de serviços abrange áreas estratégicas da economia nacional como telecomunicações, informática, consultoria, transportes e turismo, atraindo significativos investimentos estrangeiros diretos (IEDs). Calcula-se que 60% do fluxo global de IED é direcionado ao setor de serviços, que, no Brasil, representou 85% do investimento total em 1998; 74% em 1999

18 De acordo com o estudo elaborado pela WTO Secretariat, p. 1, “On efficiency grounds, manufacturing companies have tended increasingly to

outsource services such as design, financing or transport, which they previously provided in-house, and purchase them from specialized suppliers. Reflecting their infrastructural nature, many modern services sectors, including telecommunications, financial services and transport, not only provide final consumer products, but basic production inputs for a wide variety of user industries”.

19 V. Comércio de Serviços: Informações Gerais, Exportação e como notificar barreira.s.

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e 69,9% em 200020. Em que pese a ausência de estatísticas precisas acerca do comércio de serviços21, o Governo brasileiro já identificou aumentos expressivos na exportação de serviços pelo País, como nos serviços de engenharia, construção e software. As exportações de serviços transfronteiriços, por exemplo, saltaram de US$ 3.7 bilhões em 1990 para US$ 8.7 bilhões em 200022. No ano de 1999, o setor de serviços absorveu aproximadamente 57,2% dos empregos gerados na economia nacional, número que apresentou um acréscimo de 9,7% em 2000, com a criação (em termos absolutos) de 532.529 novos postos de trabalho23. Verifica-se, portanto, o caráter estratégico das negociações de serviços para o Brasil, que além de ter como efeito a possível entrada de empresas/prestadores de serviços estrangeiros em áreas objeto de regulamentação específica, por outro lado, poderá condicionar a possibilidade de abertura de alguns setores deste segmento para a satisfação de alguns de seus principais pleitos, ligados, por exemplo, à área agrícola. Ou seja, como estratégia de negociação, a aceitação de pedidos de liberalização – no setor de serviços - formulados por outros países poderá ser condicionada à abertura de setores nos quais o Brasil tem maior interesse. Esta dualidade de objetivos deve ser objeto de cuidadosa análise pelo governo brasileiro e pelos setores envolvidos nas negociações. Outro aspecto a ser levado em consideração é que, diferentemente do que ocorre no comércio de bens, as barreiras ao comércio de serviços são aplicadas diretamente ao consumidor ou ao provedor do serviço. Tais barreiras, em geral, são encontradas sob forma de regulamentações, legislações domésticas ou mesmo a partir de procedimentos restritivos adotados pelas autoridades governamentais, frutos, por exemplo, de pressões de setores da economia nacional. Segundo Horta, Souza e Waddington24, são quatro os tipos de restrições sobre o comércio internacional de serviços: (i) as que restringem a realização de atividades produtivas por parte de fornecedores

estrangeiros;

20 V. Comércio de Serviços: Informações Gerais, Exportação e como notificar barreiras. 21 Como comenta o estudo elaborado pela WTO Secretariat, a metodologia de cálculo da participação de serviços no mercado internacional baseada

na Balança de Pagamentos do Fundo Monetário Internacional (FMI) é insatisfatória pois: “first, they do not cover services incorporated in goods, such as design or technical expertise. Second, data on cross-boarder flows do not capturate a critically important mode of services trade, namely production and sales through affiliates abroad, such as hotel and fast food chains, tour operations, consultants, banks and insurance companies, credit card operations, etc. Using a wider definition including such supplies, services prove far more “tradeable” than conventional accounting may suggest”.

22 V. Felipe Hees. As Negociações Internacionais relativas ao Comércio de Serviço, Ministério das Relações Exteriores, 2002. 23 Cfr. Comércio de Serviços: Informações Gerais, Exportação e como notificar. 24 Maria Helena Horta, Carlos Frederico de Souza e Sérgio da Cruz Waddington. Desempenho do setor de serviços brasileiros no mercado

internacional. Rio de Janeiro: IPEA, 1998, in http://www.ipea.gov.br, p. 8.

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(ii) as que restringem a movimentação dos fatores de produção; (iii) a existência de monopólios estatais; e (iv) as regulamentações domésticas de caráter técnico. Todas estas restrições podem ser resumidas em dois tipos de impedimento à realização do comércio de serviços em âmbito internacional: restrições ao acesso a mercados e derrogações do princípio do tratamento nacional previstos no GATS, e que deverão ser observados com extrema cautela, como é caso do Brasil, pelos países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos. IV. - EVOLUÇÃO DAS NEGOCIAÇÕES NA OMC, ALCA E MERCOSUL O Brasil é signatário do GATS, da OMC e do Protocolo de Montevidéu (MERCOSUL). Também negocia o tema no âmbito da ALCA e com a União Européia. Na OMC, diversas propostas já foram apresentadas, incluindo propostas do MERCOSUL em áreas como distribuição, informática e turismo, além de propostas apresentadas separadamente pelo Brasil sobre serviços de audiovisual e de construção civil25. O Brasil já apresentou pedidos de acesso a diversos países, entre eles, Estados Unidos, China, Japão, Canadá, Índia, Coréia, Austrália e também à União Européia, em setores prioritários para a economia nacional, visando incrementar o potencial exportador do País26. Nos termos da Declaração de Doha, as ofertas iniciais de cada um dos Países deveriam ter sido apresentadas até 31 de março de 2003, tendo o Brasil e a Argentina atrasado a sua apresentação27. Conforme consta na imprensa brasileira, a oferta inicial do Brasil conteria concessões apenas em serviços de limpeza, veterinários, fotográficos, de organização de convenções e serviços de empacotamento. Essa oferta, considerada por muitos como “minimalista” por não conter nenhum dos setores mais sensíveis, poderia ser considerada como uma estratégia dos negociadores brasileiros, mas também reflete a insatisfação do Brasil com a falta de progresso nas negociações em outras áreas consideradas prioritárias, como por exemplo a agricultura.

25 V. Comércio de Serviços: Informações Gerais, Exportação e como notificar barreiras. 26 V. Comércio de Serviços: Informações Gerais, Exportação e como notificar barreiras. 27 Vale mencionar que os outros parceiros do Brasil no MERCOSUL, quais sejam, Uruguai e Paraguai, apresentaram as suas propostas no prazo

previamente estabelecido.

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No âmbito do MERCOSUL, três rodadas de negociações já foram concluídas. Na primeira28, o Brasil assumiu novos compromissos em serviços de telecomunicações; na segunda, em serviços profissionais (tais como serviços jurídicos, de contabilidade, de arquitetura e odontológicos)29; na terceira30, foram negociados os setores de serviços a empresas, de distribuição, educação, turismo e viagens. Como exemplos de compromissos assumidos e limitações impostas pelo Brasil nas ocasiões acima, podemos citar: (i) no setor de serviços de telecomunicações, o Brasil incluiu em sua lista de compromissos de

liberalização sub-setores como serviços telefônicos, telex, celular (analógico/digital), serviços de comunicação de dados por comutação de pacotes e por comutação de circuitos, entre outros; e

(ii) no setor de serviços jurídicos, o Brasil apresentou limitações de acesso a mercados, tais

como a necessidade de que tais serviços sejam prestados por uma pessoa física, com a concessão de licença apenas para escritórios estabelecidos no Brasil.

Na reunião do Grupo Mercado Comum (GMC) ocorrida em abril de 2002, foi aprovado o lançamento da quarta Rodada de Negociações, para concluir o cronograma de liberalização dos setores em negociação. Esta Rodada deveria ter se encerrado ainda em 2002, mas esse prazo não foi cumprido. Em conseqüência, na L Reunião Ordinária GMC realizada em abril de 2003, determinou-se que os resultados fossem analisados até novembro de 2003. De qualquer modo, no que diz respeito a MERCOSUL e comércio de serviços, as declarações do Governo brasileiro indicam o propósito de se avançar nas negociações, deixando de adotar as negociações de abertura “fatiada” dos diversos segmentos de serviços. A intenção com relação ao MERCOSUL, conforme circulado na mídia, é de liberalizar segmentos inteiros de serviços, exceto áreas mais sensíveis, como os serviços financeiros. Há de se ressaltar, porém, que, da mesma forma que vem ocorrendo com outros normativos do MERCOSUL, o processo de ratificação interna pelos seus membros dos compromissos relacionados ao setor de serviços vem enfrentando um processo extremamente moroso, não tendo sido o Protocolo de Montevidéu ratificado por nenhum Membro até o momento.

28 Conselho do Mercado Comum, Dec.n.º 1/00, 29 Protocolo de Montevidéu sobre Comércio de Serviços no MERCOSUL – II Rodada Negociadora – Lista de Compromissos Específicos do Brasil

– Revisão Liberalizante para Consulta. 30 Resolução GMC 76/00.

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Na ALCA, as negociações sobre serviços têm sido objeto de grandes discussões, principalmente quanto à utilização da sistemática de listas positivas (onde apenas são incluídos os setores passíveis de negociação por parte de um determinado país) ou negativas (onde somente os setores excepcionados encontram-se, em alguma medida, à margem da liberalização). Na reunião do Comitê de Negociações Comerciais (CNC) ocorrida em maio de 200231, foram definidas as datas para a negociação de acesso a mercados: para as ofertas iniciais dos países, o último dia 15 de fevereiro de 2003; para os pedidos de melhoria das ofertas, 15 de junho de 2003. A conclusão das negociações está prevista para dezembro de 2004 e a entrada em vigor do Acordo está prevista para o início de 2006. Como estratégia de fortalecimento dos seus interesses, foi acordado entre os países-membros do MERCOSUL que as suas ofertas em relação a serviços, compras governamentais e investimentos seriam apresentadas conjuntamente. Não obstante, Uruguai e Paraguai apresentaram suas ofertas do setor de serviços em 15.2.2003, sob o argumento de que, pela não existência de normativa comum no bloco, seria indiferente o momento de apresentação da proposta de cada um. De acordo com o que vem sendo publicado na imprensa32, os negociadores norte-americanos vêm cobrando uma postura mais pró-ativa do Brasil e da Argentina no que se refere à conformação da ALCA. Não obstante, as declarações dos Governos de ambos os países destacam a prioridade no fortalecimento do MERCOSUL antes de avançar nas negociações da ALCA. O impasse nas negociações está atualmente refletido na proposta feita pelo Brasil, na condição de representante do MERCOSUL, de dividir as negociações com os Estados Unidos em três diferentes âmbitos, quais sejam, no da própria ALCA, da OMC e da chamada negociação 4+1, ou seja, a negociação dos países do MERCOSUL com os Estados Unidos. A intenção dos países membros do MERCOSUL seria a de levar as negociações referentes a investimentos, compras governamentais, propriedade intelectual e outros temas polêmicos para a OMC, já que os Estados Unidos pretendem conseguir maiores benefícios comerciais se lidarem com esses temas na ALCA em comparação com a evolução dos mesmos na OMC. A pretendida negociação 4+1 abrangeria então a abertura de mercados para o comércio de produtos, ficando a ALCA somente com os temas que fossem consenso para todo o continente.

31 Que será presidido pelos Estados Unidos e pelo Brasil até o final das negociações. 32 Informações acerca das negociações a respeito da ALCA e com a União Européia estão baseadas em informações veiculadas pela imprensa, nomeadamente pelos jornais O Estado de São Paulo, de 16.7.03, Valor Econômico, de 18.7.03, e Gazeta Mercantil, de 21.7.03.

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Essa proposta surgiu como uma espécie de resposta à oferta norte-americana de bens - composta por listas diferenciadas para os países centro-americanos do CARICON, os países andinos e o MERCOSUL, sendo os integrantes deste último bloco os menos favorecidos com a referida oferta -, e, principalmente, como resposta à proposta dos Estados Unidos de levar a discussão do setor agrícola para as regras da OMC, dentro das quais ficaria muito mais difícil a obtenção de benefícios para o MERCOSUL. Todavia, a proposta brasileira foi rechaçada pelos países negociadores na última reunião ocorrida em julho de 2003, em El Salvador. As negociações com a União Européia são realizadas através do Comitê de Negociações MERCOSUL-União Européia, onde já se acordou que o respectivo Capítulo de Serviços deverá estar em conformidade com os princípios do GATS, tendo como ponto de partida das negociações as ofertas já consolidadas na OMC. O texto normativo desse Acordo ainda está sendo discutido; o MERCOSUL e a União Européia já apresentaram as respectivas propostas de texto33. Apesar de ter ocorrido uma Rodada de Negociações em Bruxelas na segunda quinzena de março, a apresentação das ofertas iniciais de serviços, compras governamentais e investimentos estava inicialmente prevista para ocorrer apenas em 30.4.2003. Este prazo foi adiado para 20.5.2003, tendo sido apresentados por ambos os blocos ofertas nas áreas de investimentos e serviços. A proposta brasileira restringiu-se a fazer concessões na prestação de serviços somente por meio do Modo 3 (presença comercial). Essa oferta também foi considerada mínima para a União Européia, excluindo serviços considerados de extremo interesse para Bruxelas, como os financeiros, de comunicações, infra-estrutura e ambientais. A proposta brasileira, restrita à presença comercial, dividiu-se em: (i) setores em que há necessidade de associação do europeu com brasileiro, desde que este fique com o controle da associação; e (ii) setores livres para prestação de serviços pelos europeus. No primeiro quesito foram incluídos os serviços de arquitetura, engenharia, agricultura, caça e reflorestamento. No segundo, limpeza de prédios, serviços fotográficos, de embalagem, de convenções, serviços de tradução, veterinários, de informática, de comissão de agentes, de comércio por atacado e varejo, e franchising. Nos termos da proposta brasileira, os europeus podem prestar serviços de pesca, desde que não

33 V. Comércio de Serviços: Informações Gerais, Exportação e como notificar barreiras.

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sejam proprietários dos barcos; assim como podem prestar serviços de turismo (restaurante e hotel), com a ressalva de que na Amazônia e no Nordeste, o governo reserva o direito de dar incentivos fiscais somente para brasileiros. Também de acordo com o veiculado na imprensa, o Brasil incluiu na proposta o seu direito de suspender qualquer concessão feita, o que torna possível concluir que essas concessões ainda estão atreladas ao êxito das negociações em outros setores, a exemplo do agrícola. V. - QUESTÕES POLÊMICAS Embora estejam presentes as dificuldades inerentes às negociações multilaterais em curso, com ênfase em questões envolvendo setores específicos da economia, é necessário destacar que, em relação ao comércio de serviços, outras barreiras de cunho essencialmente técnico merecem atenção: (i) inicialmente, vale referir-se à própria definição do comércio de serviços (trazida de forma

genérica no corpo GATS) e seus modos de prestação. Nesse particular, pode-se tomar como exemplo o fato de que na ALCA, os Estados Unidos - pautados na estrutura do NAFTA - entendem pela inclusão no Capítulo de Serviços de apenas três modos de prestação, onde o tipo “presença comercial” deve ser excluído, ingressando então no Capítulo de Investimentos;

(ii) outro ponto é a criação de instrumentos que efetivem a pretendida liberalização do comércio

de serviços, à luz da ausência de tarifas de importação ou figuras análogas para regular a participação estrangeira no mercado34. Embora a resposta à questão acima esteja na necessidade de mudança e harmonização das leis e regulamentos em cada um dos países membros, é provável que haja dificuldades na mediação entre a prerrogativa regulatória dos países e as medidas necessárias à liberalização. Um exemplo de dificuldade na resolução da apresentada dicotomia pode ser constatado nos testes de necessidade econômica (TNEs), aplicados pelos países da União Européia para autorizar o estabelecimento de qualquer prestador de serviço de outro país (mesmo os integrantes da própria UE) em seus territórios, sob o argumento de que têm o objetivo de manter o equilíbrio em mercados específicos. Os setores de maior interesse por parte do MERCOSUL (distribuição, construção, informática, entre outros) estão sujeitos a esse controle, constituindo-se os TNE, portanto, na maior

34 Aliás, o problema de falta ou deficiência de informações no setor de serviços é outra questão que merece uma atenção especial durante as

negociações. Tony Warren e Christopher Findlay. Measuring Impediments to Trade in Services, pp. 61/62 comentam que “During the Uruguay Round this may not have been too significant a problem, as negotiations seemed to have focused on developing the necessary architecture, and the specific commitments made by members appear overwhelmingly to have been examples of binding the status quo. As the next round of services negotiations approaches, however, the lack of information on service will undermine the potential for negotiated liberalization”.

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barreira de acesso ao mercado europeu de serviços. (iii) o mesmo se afirma quanto à pretendida uniformização das regras aplicáveis à defesa da

concorrência. Releva notar que a criação de normas que impeçam a instituição de barreiras comerciais internas pelos países membros traz uma série de controvérsias nos atuais foros negociadores, porque são as regras internas de cada um desses países seu maior instrumento protecionista. Ademais, muitas vezes os instrumentos de defesa comercial, normalmente ligados à imposição de quotas e tarifas, seriam de difícil aplicação no caso da prestação de serviços, pois em alguns casos estes nem mesmo cruzam a fronteira do país onde se encontra seu tomador; e

(iv) finalmente, há a necessidade de adequação de todas as disposições acima às circunstâncias

especiais das nações em desenvolvimento. Tema esse extremamente delicado, que é objeto de discussão tanto na OMC - no âmbito da aplicação do tratamento especial e diferenciado aos países em desenvolvimento –, como também na ALCA, diante da proposta do Governo brasileiro para a criação de um mecanismo de proteção aos setores “nascentes”, também denominado de “cláusula da indústria nascente”. No contexto de um acordo para benefício recíproco, envolvendo nações com graus de desenvolvimento distintos, seria defensável a inserção desse tipo de cláusula visando a proteção de setores ainda em formação, ou cujo perfil produtivo ainda não esteja definido, mesmo após a entrada em vigor dos acordos comerciais. Entretanto, não há dúvida de que a negociação pertinente à inclusão de um tratamento especial e diferenciado deverá retardar a conclusão das negociações, conforme os países em desenvolvimento a condicionem à implementação do aludido tratamento.

VI. - CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista o acima exposto, podemos tecer os seguintes comentários: (i) é evidente a grande relevância que o comércio de serviços tem nos mais variados âmbitos

(nacionais, regionais, etc.), além do potencial de crescimento do setor em termos de participação no PIB mundial e outros índices econômicos. Trata-se de importante fator de geração de empregos e incremento das economias nacionais;

(ii) apesar da comprovada relevância do comércio de serviços em âmbito internacional e de a

Rodada de Doha ter sido considerada um sucesso, na prática, as negociações para liberalização do comércio de serviços nos atuais foros negociadores ainda estão muito aquém

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da perspectiva de liberalização que se pretendeu em Doha35. No caso da OMC, destaca-se o fato - já apontado acima - de que as negociações vêm sendo realizadas bilateralmente entre os países, sendo praticamente certo o atraso na entrega de suas ofertas iniciais. No caso da ALCA, as ofertas iniciais apresentadas pelos Estados Unidos e pelo MERCOSUL, além de incompletas (por não abrangerem o setor de serviços, por exemplo), não agradaram nenhuma das partes, além do próprio Acordo inserir-se em um contexto político que, ao menos no Brasil, é controverso. No caso do MERCOSUL, entre outros fatores, são as sucessivas crises institucionais e econômicas de seus países membros que comprometem o avanço de processos de liberalização;

(iii) diante dessas negociações, resta evidente que a reforma da legislação interna dos países

membros, para disciplinar (ou mesmo possibilitar) a participação estrangeira em seu mercado, não pode ser feita de maneira imediata e instantânea. Há alguns setores em determinados países que não estão preparados para aderirem ao processo de liberalização internacional de comércio, sendo que a abertura imediata, sem nenhuma salvaguarda ao seu desenvolvimento, poderia afetar o país drasticamente. Assim, a reforma e posterior liberalização, para casos específicos, deve ser gradual, de modo a adequar a participação dos países em desenvolvimento e favorecer o próprio setor objeto desta medida;

(iv) para que se consiga uma efetiva liberalização do comércio de serviços em âmbito

internacional, é necessário fazer uma reforma e adoção de legislação similar pelos países membros, de modo que suas barreiras protecionistas possam ser banidas ou regulamentadas de modo a não beneficiar determinados países em detrimento de outros;

(v) no comércio de serviços, os países mais desenvolvidos são os maiores interessados na

liberalização do setor, pois como reflexo da grande capacidade de investimentos que possuem, abrigam empresas com elevado grau de especialização e desenvolvimento tecnológico. Daí porque o Brasil, na condição de país emergente, que em caráter progressivo vem destinando recursos ao desenvolvimento dos setores secundário e terciário de sua economia, deve ter presença atuante na formulação das regras que nortearão o acesso ao mercado internacional de serviços, buscando igualdade de condições com os países mais desenvolvidos (o que o próprio GATS, em seu artigo IV, cuidou de salientar); e

35 Rudolf Adlung. Services Trade Liberalization form Developed and Developing Country Perspectives, pp.127/128 comenta que: “In addition, the

liberalization of goods trade will amplify liberalization pressures in services. The closer their markets move toward uniform prices for identical products, the less scope will remain for manufacturers (farmers, miners, and the like) to carry the burden of service protection or, in other words, suffer negative rates of assistance. In the same vein, the opening of some infrastructural services, such as banking and telecommunications, sets a precedent for liberalizating other sectors, such as air transport, which are governed by similar policy objectives and constraints”.

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(vi) as observações acima, consideradas à luz de deficiências na regulamentação de alguns

segmentos de serviços nacionais, tornam especialmente relevante a participação da iniciativa privada na formulação da política de negociação do governo brasileiro (o que, até o momento, pouco se observou). Isso, tanto para o fim de delimitar os setores com efetiva aptidão para ingressar no mercado internacional e competir em igualdade de condições com empresas estrangeiras (e em relação aos quais o governo deveria forçar sua pronta liberalização), como para auxiliar na identificação dos segmentos que, por sua vez, não resistiriam à competição externa (devendo, portanto, ser ao menos devidamente protegidos dos pleitos de liberalização formulados por terceiros países).

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VII. - BIBLIOGRAFIA: ADLUNG, Rudolf. Services Trade Liberalization from Developed and Developing Countries

Perspective. GATS – New Directions in services trade liberalization, 2000, pp. FONSECA, Benedito. Exportação: êxitos, frustrações e esperanças. Revista de Comércio

Exterior, nº43, Setembro-Outubro 2002, pp. 35-49. HEES, Felipe. As Negociações Internacionais relativas ao Comércio de Serviços, Ministério das

Relações Exteriores, 2002. HORTA, M. H. Souza, SOUZA, C.F., WADDINGTON, S.C. Desempenho do setor de serviços

brasileiros no mercado internacional. Rio de Janeiro: IPEA, 1998, in http://www.ipea.gov.br

HODGES, James. Liberalization of Trade in Services in Developing Countries. Development,

Trade and the WTO – a Handbook, The World Bank, Washington, 2002, pp. 221-234. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR.

Comércio de Serviços: Informações Gerais, Exportação e como Notificar Barreiras, 2002 in http://www.mdic.gov.br/comext/Deint/Barreiras/CartilhaServiços.PDF.

PRONER, Carol. Comércio de Serviços. O Brasil e a OMC, 2ª Edição, Curitiba, 2002, pp. 65-87. UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UnB). Estudo sobre as Perspectivas de Exportação de

Serviços: Características do Setor de Construção Civil no Brasil e Participação Internacional, 2003.

WARREN, Tony, FINDLAY, Christopher. Measuring Impediments to Trade in Services. GATS –

New Directions in services trade liberalization, 2000, pp. WTO Principles, Chapter 19 WTO Secretariat. Guide to the GATS – An Overview of Issues for Further Liberalization of

Trade in Services, Kluwer Law International, 2000.

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ADENDOS

(i) SERVIÇOS FINANCEIROS

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GATS O conceito de serviços financeiros e as negociações em curso abrangem dois blocos: o primeiro referente a seguros e serviços relacionados, e o segundo correspondente a serviços bancários e demais serviços financeiros (dentre outros, operações cambiais, consultoria e administração de ativos). Estas negociações prevêem uma progressiva liberalização no setor, reconhecendo-se a necessidade do exame de eventuais medidas destinadas à proteção de investidores, depositantes, titulares de apólices e/ou à garantia da estabilidade do sistema financeiro. Desse modo, os países membros podem delimitar a forma mediante a qual o setor financeiro será negociado no GATS, a partir de listas de compromissos. Cada Membro da OMC apresentou os seus compromissos específicos, compondo o Anexo sobre Serviços Financeiros do GATS. Este Anexo traz a lista dos serviços financeiros abrangidos pelo GATS e agrega algumas outras disposições ao Acordo, entre as quais a já aludida possibilidade de um Membro adotar medidas para proteção de investidores e depositantes. Durante a Rodada do Uruguai, o Brasil listou suas restrições e discriminações relativas a tratamento nacional, acesso a mercados e exceções à cláusula de nação mais favorecida. Nas negociações de acesso a mercados, por exemplo, o Brasil comprometeu-se a disciplinar a entrada de capital estrangeiro no setor após a regulamentação do artigo 192 da Constituição Federal, que trata da regulação do Sistema Financeiro Nacional. Além disso, a oferta brasileira referente a bancos e outras instituições financeiras indicou que as empresas estrangeiras estariam autorizadas a estabelecer novas filiais e subsidiárias se o fizessem por meio da privatização das instituições financeiras públicas ou se fossem autorizadas, caso a caso, pelo Poder Executivo36, o que de fato vem ocorrendo. Vale mencionar que a regulamentação do citado artigo 192 recentemente voltou à pauta de discussões no Brasil com a publicação da Emenda Constitucional n.º 40 (“EC 40/03”). Nos termos da EC 40/03, todos os parágrafos e incisos que integravam a antiga redação do artigo 192 da Constituição Federal foram suprimidos, mantendo-se vigentes apenas os termos do caput daquele

36 Informações prestadas pelo Ministério das Relações Exteriores, referidas no Projeto de Decreto Legislativo n.º 391/00, da Comissão de

Constituição e Justiça e de Redação (Aprova o texto do Quinto Protocolo ao Acordo Geral para Comércio de Serviços da OMC). Atualmente, referido projeto está sob análise da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional.

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dispositivo, onde se determina que o Sistema Financeiro Nacional - aí incluída a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integrem - será regulamentado por leis complementares. A nova redação dada a referido artigo contorna o que era considerado um grande obstáculo para a regulamentação do Sistema Financeiro Nacional, qual seja, a exigência de que uma única lei complementar tratasse da regulamentação das instituições financeiras, estabelecimentos de seguro e cooperativas de crédito. Com a EC 40/03, espera-se que o processo negociador seja simplificado, existindo inclusive a possibilidade de que venha ser negociada uma lei complementar específica - e mais flexível do que as regras atuais - para regulamentar a abertura do setor para instituições financeiras estrangeiras. Portanto, o tratamento da participação do capital estrangeiro em instituições financeiras deverá ser objeto de novo debate. Até que vigore a nova regulamentação permanecerá em vigor o artigo 52 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que veda: (i) a instalação no País de novas agências de instituições financeiras domiciliadas no exterior; e (ii) o aumento do percentual de participação de pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no exterior no capital de instituições financeiras com sede no País, ressalvadas as hipóteses de acordos internacionais, reciprocidade e interesse do Governo brasileiro. O desenvolvimento das negociações deste segmento de serviços no âmbito da OMC é lento, apesar das propostas iniciais terem sido entregues em março de 2003 por alguns países. Outro aspecto importante a destacar é o fato de que o setor financeiro, embora se ressinta de mudanças estruturais em decorrência da intensificação de concorrência em âmbito global e de inovações tecnológicas, por ser considerado uma das bases da economia de um país, continua a ser excessivamente regulado e protegido. As razões para essa regulamentação37 decorrem de preocupações relacionadas com a saúde financeira e monetária do país (redução do risco sistêmico) e, portanto, de interesse nacional. Vencer estes obstáculos, objetivando maior liberalização do setor em âmbito mundial, tem sido um dos grandes esforços da comunidade internacional, através da atuação de organismos como a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), que têm buscado instituir padrões regulatórios e códigos de boas práticas e afastar regras que possam ser traduzidas como impedimento ao acesso a mercados e ao estabelecimento de uma concorrência efetiva.

37 Segundo o estudo elaborada pela WTO Secretariat, p. 341, seriam quatro tipos de intervenção governamental que poderiam ter impacto no setor

de serviços financeiros: (i) políticas macroeconômicas; (ii) regulação prudencial; (iii) regulação não-prudencial instituída para buscar objetivos de política pública; e (iv) restrições comerciais no que diz respeito a acesso a mercados ou aplicação do princípio do tratamento nacional.

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Não obstante, as negociações vêm sendo realizadas bilateralmente entre os países, em que pese o fato de aplicar-se às tratativas o princípio do single undertaking (“nada está definido enquanto tudo não estiver acordado”). À luz de tudo isso, cria-se a expectativa de que as ofertas iniciais dos Estados-Membros deverão representar um passo ainda curto em direção à pretendida liberalização da área. Com a manutenção deste cenário, é possível antever um futuro incerto para a próxima Reunião Ministerial que ocorrerá no México (Cancun), em setembro de 2003, haja visto que nela, em vez de definir posições previamente debatidas entre os países-membros acerca da liberalização do comércio de serviços (fruto das efetivas negociações anteriores envolvendo os respectivos pedidos de acesso a mercado e ofertas de cada Estado-Membro), seus representantes deverão ainda aprofundar suas ofertas, em um processo que, por sua complexidade e tempo envolvido, poderá frustrar expectativas mais otimistas em relação à sua conclusão dentro do prazo acordado. ALCA Os serviços financeiros também têm sido discutidos no âmbito da ALCA. O término das reuniões das delegações dos países em Puebla (no México), que ocorreu entre 8 e 11 de abril, não foi suficiente para definir algumas questões polêmicas, como o tratamento do investimento estrangeiro direto. A esse respeito, ainda se questiona se a regulamentação internacional do setor não poderá trazer obstáculos a países como o Brasil (onde o próprio artigo 192 da Constituição Federal, que trata do tema e que foi recentemente emendado, ainda não foi regulamentado), haja vista que, em um mercado onde não há barreiras tarifárias, é a regulamentação do setor e a transparência que possibilitam melhor negociação multilateral e ao mesmo tempo permitem a cada um dos países disciplinar a matéria da maneira mais adequada aos seus interesses. Um avanço das negociações na ALCA também viria reforçar a necessidade de regulamentação do setor de serviços financeiros, para aproximá-lo dos padrões internacionais, ao mesmo tempo em que se revela conveniente ao Brasil a manutenção das “listas positivas” já adotadas no GATS, onde os setores sujeitos à liberalização são expressamente citados. Afinal, como já aludido acima, tal medida evitaria surpresas ao Brasil, advindas do eventual surgimento ou desenvolvimento de “novos mercados” na área de serviços financeiros, os quais, se não abrangidos na lista negativa, estariam abertos desde então à participação internacional.

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(ii) CONSTRUÇÃO CIVIL O setor nacional de serviços de engenharia – aí incluídos os ramos de consultoria, projetos e construção civil - tem apresentado um bom desempenho no mercado internacional, a despeito de fenômenos como a crescente internacionalização das empresas e a forte competição existente no mercado internacional. Embora a participação do setor de construção civil na economia mundial não seja objeto de estatísticas oficiais, estima-se que o faturamento daquele setor girou, no ano de 1998, em torno de US$ 2,6 a 3 trilhões. Também em 1998, o comércio internacional de obras de construção civil atingiu cerca de U$S 116,4 bilhões, sendo que o comércio total de obras de construção e serviços de consultoria a ela associados alcançou a cifra de US$ 132,5 bilhões38. Nesse contexto, deve-se observar que as exportações da construção civil somente não correspondem a um percentual maior em sua relação com o PIB mundial e o faturamento global gerado em virtude de certas especificidades, tais como a necessidade de presença comercial (aspecto que dificulta a prestação transfronteiriça) e o fato de que o desenvolvimento do setor depende, em grande medida, das compras governamentais. Apesar de ainda não se dispor de dados efetivos acerca da competitividade das empresas brasileiras de construção civil, é real a possibilidade de que estas efetivamente disputem parte do mercado de compras governamentais, à luz de importantes predicados como (i) sua alta capitalização; (ii) seu baixo endividamento; e (iii) excelente tecnologia. Em trabalho realizado pela Universidade de Brasília (UnB), foi recomendada a adesão do Brasil ao Acordo de Compras Governamentais existente no âmbito da OMC, do qual o país não é signatário justamente por entendê-lo como uma ameaça à capacidade do setor público de usar seu poder de compra como instrumento de política industrial. Desde os anos 90, o setor de serviços de construção civil brasileiro apresenta sinais de crescimento, chegando a corresponder a 10% do PIB nacional, apesar de, quando utilizado o dólar como parâmetro, apresentar tendência de contração por força da desvalorização da moeda nacional em 1999. Em termos de investimento, estudos apontam que tal setor é um dos poucos em que o número

38 Universidade de Brasília (UnB). Estudo sobre as Perspectivas de Exportação de Serviços : Características do Setor de Construção Civil no Brasil

e Participação Internacional, 2003.

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de empresas estrangeiras é insignificante se comparado com o número de firmas nacionais39. Outro indicativo provém do fato de que o ramo da construção civil na América Latina é dominado pelo Brasil, que responde por 69% das 100 maiores empresas ali situadas40. Some-se a isso o baixo endividamento médio do setor, em torno de 30,3%, contra 110,8% da economia como um todo41. Vale ainda referir à diversidade de áreas de atuação como uma característica do setor da engenharia nacional, que já realizou obras expressivas em mais de 50 países do mundo42. Nesse contexto, torna-se especialmente relevante o fato de que cerca de 86% dos contratos de projetos de engenharia e obras das empresas brasileiras são feitos com países em desenvolvimento, em especial naqueles situados nas Américas do Sul e Central. Partindo de uma análise regional e agregando a ela critérios como PIB e análise de conjuntura, pesquisadores da UnB relacionaram os 25 países que representam os principais mercados para as obras de construção civil e serviços de engenharia brasileiros. São eles:

AMÉRICAS ÁFRICA ORIENTE MÉDIO ÁSIA UNIÃO

EUROPÉIA

CENTRO E LESTE

EUROPEU

Cuba África do Sul Arábia Saudita Afeganistão Alemanha Polônia Colômbia Angola Kuwait Japão Portugal Rússia Venezuela Moçambique Irã China Ucrânia

Panamá Egito Índia Romênia México Coréia

Turquia Indonésia

Fonte: Estudo sobre as Perspectivas de Exportação de Serviços: Características do Setor de Construção Civil no Brasil e Participação Internacional.

Os dados acima apontam a relevância das negociações da ALCA no contexto das negociações multilaterais em curso envolvendo este setor. Assim, diante da necessidade da realização de obras - especialmente - de infra-estrutura nos países americanos em desenvolvimento e do potencial do setor em questão, pode-se referir, como instrumentos a facilitar o acesso a esses mercados (bem como àqueles ainda inexplorados pelas empresas nacionais): (a) o incremento das políticas nacionais de exportação dos serviços de construção civil (com sua

39 Cfr. Estudo sobre as Perspectivas de Exportação de Serviços: Características do Setor de Construção Civil no Brasil e Participação Internacional. 40 Cfr. Estudo sobre as Perspectivas de Exportação de Serviços: Características do Setor de Construção Civil no Brasil e Participação Internacional. 41 Cfr. Estudo sobre as Perspectivas de Exportação de Serviços: Características do Setor de Construção Civil no Brasil e Participação Internacional. 42 Cfr. Estudo sobre as Perspectivas de Exportação de Serviços: Características do Setor de Construção Civil no Brasil e Participação Internacional.

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desburocratização, incentivo tributário e financiamento por parte de órgãos ligados ao governo);

(b) o esforço, nos atuais foros negociadores, para eliminar barreiras não tarifárias à exportação

de quaisquer serviços ligados à construção civil, que variam entre alegações de segurança nacional, padrões técnicos, culturais e de meio ambiente; e

(c) a possível adesão do Brasil ao Acordo de Compras Governamentais na OMC. Atingidas estas metas, os dados acima demonstram que o setor tem plenas condições, tanto econômicas quanto estruturais, para progredir sozinho na conquista de novos mercados.

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(iii) SERVIÇOS AUDIOVISUAIS O segmento de serviços audiovisuais poderá ser bem explorado pelos empreendedores brasileiros. Dentro desse segmento é possível vislumbrar dois grandes ramos, quais sejam, o de telenovelas e o de filmes. O ramo de telenovelas é de longa data um nicho muito fértil para os produtores brasileiros, tendo em vista a tradicional exportação de telenovelas brasileiras para a Ibero-América como um todo. O segmento de filmes é um pouco mais recente no que diz respeito à sua exportação. Foi em 1999 que nasceu o primeiro Programa de Financiamento às Exportações (PROEX) de filmes no Brasil. A venda de filmes ao exterior foi classificada como exportação de serviços, apesar de, à primeira vista, o filme devidamente acabado ter características mais próximas às de um bem. A “comercialização de filmes” abrange não apenas o produto final, mas também a venda externa de direitos de reprodução e distribuição de criação artística, englobando técnicas de filmagem, utilização de equipamentos e mão-de-obra especializada, estando enquadrada, portanto, na definição de “prestação de serviços” prevista no artigo XXVIII do GATS. A mesma caracterização pode ser utilizada para os programas de televisão. No segmento de televisão, a Rede Globo é a líder em exportações, sendo que a primeira delas foi comercializada em 1973. Contabilizam-se, desde então, 313 diferentes programas exportados para mais de 130 países, sem qualquer apoio governamental. Atualmente, os programas são exibidos em aproximadamente 65 países, para um público superior a 150 milhões de expectadores. Os principais mercados são Portugal, Itália, Estados Unidos, Venezuela, Espanha, Rússia, Grécia, Peru, Chile e França43. Entre 1999 e o primeiro semestre de 2001, a exportação de telenovelas a esses mercados gerou aproximadamente US$ 324 milhões, entre royalties, copyrights, patentes e licenças, além de ser um setor potencialmente gerador de empregos. Da análise desses mercados podemos depreender a enorme importância das negociações em seus variados âmbitos, seja o da ALCA, União Européia ou OMC. No mesmo período, como resultado das exportações de telenovelas, foi gerado US$ 1,5 bilhão adicional com receitas de propagandas, o que representa por volta de 1/3 da totalidade do mercado brasileiro de publicidade.44 Não obstante, o segmento de serviços audiovisuais apresenta algumas peculiaridades e deve ser 43 V. Benedito Fonseca Moreira. Exportação: êxitos, frustrações e esperanças, Revista Comércio Exterior, edição especial n° 43 (set/ out 2002), São

Paulo, p. 44. 44 Palestra apresentada pelo Coordenador Nacional Adjunto do Comércio de Serviços, Sr. Felipe Hees em 18 de dezembro de 2002, Ministério das

Relações Exteriores.

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negociado com cautela, pois representa diretamente a cultura dos países envolvidos. Eventual má negociação pode causar danos culturais irreparáveis a determinados países, que podem decorrer da abertura do mercado sem nenhuma proteção à indústria cinematográfica e de telenovelas nacional, não garantindo, assim, suas condições de competitividade com as grandes indústrias do segmento de audiovisual presentes no cenário internacional. Ademais, o resultado pode ser o enfraquecimento da tradição e da cultura nacional, seja pela falta de estrutura, bases para a produção e recursos financeiros, seja pelo provável incremento na importação de produções estrangeiras. Incentivos fiscais, recursos financeiros e uma eficiente rede de distribuição e divulgação constituem uma forte alavanca para a competitividade da produção nacional em relação às empresas de outros países. Paralelamente, convém adotar um estruturado arcabouço jurídico que regule o setor, inclusive para dispor sobre, por exemplo, investimentos em produções de cultura nacional ou que visem à sua preservação45. Dentro do segmento de serviços audiovisuais, a distribuição e a exibição são considerados os pontos mais delicados para as negociações, posto que um bom desempenho desses serviços específicos é o que garante o compartilhamento dos produtos audiovisuais entre os mais diversos consumidores, sem quaisquer tipos de exclusões de cunho econômico ou político. Assim, enquanto as negociações nestes sub-setores não estiverem delineadas, é recomendável aguardar a sua conclusão antes de iniciar a negociação de outros serviços específicos do segmento de audiovisuais. Durante o Florianópolis Audiovisual MERCOSUL (realizado em maio de 2002), representantes de entidades do segmento audiovisual e personalidades das indústrias cinematográfica e audiovisual do MERCOSUL recomendaram: (i) a adoção de uma normativa definitiva que permita a livre circulação de pessoas, bens e serviços técnicos e artísticos destinados à produção audiovisual dentro do MERCOSUL; e (ii) a defesa nas negociações internacionais de medidas de exceção em termos de diversidade cultural de nossa indústria audiovisual. Com relação à legislação interna, apesar de não ser comum a todos os países do MERCOSUL, vale mencionar a Emenda Constitucional n.º 36, de 28 de maio de 2002, que conferiu nova redação ao

45 Esta necessidade de regulamentação mais reforçada é admitida inclusive pela própria OMC. No estudo elaborado pela WTO Secretariat, p. 133,

informa-se que “Audivisual services typically reflect the social and cultural characteristics of nations and their peoples, and are consequently regard as being of great social and political importance. For these reasons, government regulations and public support programmes play a major role. The regulations on audivisual services concern not only social and cultural issues, but also the promotion of domestic industry and foreign content restrictions”.

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artigo 222 da Constituição Federal, permitindo a participação do capital estrangeiro nas empresas jornalísticas, de radiodifusão sonora e de sons e imagens. Esta emenda acabou por afetar parte do setor de audiovisuais, abrindo a possibilidade do capital estrangeiro investir em até 30% do capital total e votante desse tipo de empresa e, portanto, pode ser considerada uma forma de regulamentação da prestação de serviços do Modo 3. Por fim, vale ressaltar que o segmento de audiovisual, apesar de lamentavelmente subestimado no País, constitui um excelente veículo para fomentar não apenas outros segmentos de serviços, como por exemplo a publicidade, mas também a exportação de bens e a melhoria da imagem do País no exterior.

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(iv) TURISMO O segmento de turismo no Brasil, apesar de já movimentar importante volume de recursos financeiros, ainda não é satisfatoriamente aproveitado, face ao enorme potencial turístico que o País ainda tem para ser explorado. Representa aproximadamente 25% da biodiversidade mundial, com 8 mil quilômetros de costa marítima e florestas tropicais, o que estimula cada vez mais a prática do ecoturismo. Há no Brasil também potencial para a exploração do turismo cultural e histórico em várias localidades. Com tanto potencial a ser explorado, o turismo passou a ser para o Brasil um importante instrumento de crescimento da economia, de obtenção de recursos em moeda estrangeira e de criação de novos empregos46. Assim, com um mercado tão promissor e sem entraves na legislação interna para o investimento externo direto, o Brasil deve buscar investir cada vez mais em adequada infra-estrutura para atender a crescente demanda de turismo, o que inclui investimento em aeroportos, estradas, portos, telecomunicações, saneamento básico, segurança e uma política coerente para o setor aéreo, dentre outras47. A venda dos serviços brasileiros de turismo, realizados segundo o Modo 2 de definição do GATS (consumo no exterior), deve ser estimulada ao máximo. De acordo com o Instituto Brasileiro de Turismo - EMBRATUR, o segmento de turismo foi responsável por 7% do PIB brasileiro em 2000, tendo faturado US$ 33 bilhões. O setor gerou 140 mil empregos diretos e 420 mil empregos indiretos em 200248. Segundo a legislação brasileira49, o poder público deve atuar através de apoio técnico e financeiro, sendo que à iniciativa privada cabe a prestação dos serviços turísticos. Quando a legislação brasileira se refere à iniciativa privada, não faz qualquer distinção entre capital nacional e capital estrangeiro, tanto é que os investimentos estrangeiros diretos no turismo no Brasil alcançam uma média anual de US$ 6,04 bilhões e crescem a uma taxa de 5% ao ano50. No continente, os países que mais enviaram turistas ao Brasil em 2001 foram Argentina (1,4 milhão), Uruguai (305 mil), e Paraguai (285 mil). Em termos mundiais, os Estados Unidos foram o 46 Segundo a WTO Secretariat, p. 563, “Tourism, broadly defined, is regarded as the world’s largest industry and one of the fastest growing,

accounting for over one-third of the value of total worldwide services trade. Highly labour-intensive, it is a major source of employment generation, especially in remote and rural areas”.

47 WTO Secretariat, p. 571, em relação aos países em desenvolvimento, comenta que os maiores problemas a serem enfrentados para o desenvolvimento do turismo internacional são os altos preços das tarifas áreas, ou em outras palavras, as políticas protecionistas do setor aéreo.

48 V. Secção destinada aos investimentos no setor de turismo no Brasil, in http://www.embratur.gov.br/economia/introdução.asp. 49 V. Decreto nº 448, de 14.2.1992. 50 V. Secção destinada aos investimentos no setor de turismo no Brasil, in http://www.embratur.gov.br/economia/introdução.asp.

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segundo país em número de turistas enviados ao Brasil (594 mil) e a Alemanha o terceiro (320 mil)51. Assim, para o setor de turismo, o acordo da ALCA, em uma primeira análise, é prioritário em relação ao que está sendo discutido com a União Européia. Isso em razão dos dados acima mencionados, do idioma e da proximidade geográfica com os demais países latino-americanos. Por outro lado, por ainda não estar o segmento bem desenvolvido ou explorado em relação à União Européia, é possível interpretar que a negociação com este bloco é que deveria ser prioritária. De qualquer modo, é fato que o País ainda carece de recursos provenientes do turismo e, para tanto, deveria tomar decisões relevantes para alcançar o incremento do setor: investimentos em infra-estrutura, segurança, divulgação e melhoria da imagem do País, treinamento de pessoal especializado, eficiente rede de transportes terrestres, efetiva preservação dos bens naturais, preservação e restauração dos bens históricos e culturais, entre outros. O Brasil não tem restrições a investimento estrangeiro em turismo ou entretenimento, à exceção da legislação que veda os jogos de azar e cassinos. Ressalte-se, no entanto, que há restrições no tocante à participação estrangeira em empresas aéreas e de navegação de cabotagem. De qualquer modo, empresas de capital estrangeiro podem estabelecer-se no País, prestando seus serviços por meio do Modo 3 (presença comercial), sem deixar de obedecer as disposições legais e a regulamentação interna, especialmente as relacionadas às áreas ambiental e imobiliária52.

51 V. Benedito Fonseca Moreira. Exportação: êxitos, frustrações e esperanças, Revista Comércio Exterior, edição especial n° 43 (set/ out 2002), São

Paulo, p. 47. 52 Vale mencionar o trabalho feito pela World Travel and Tourism denominado Agenda 21 for the Travel and Tourism Industry: “the plan covers

such issues as waste utilization, energy and non-renewable resource conservation, water management, local community involvement customer awareness and staff education and training. Also included are mechanisms for the development of consultative arrangements between government, industry, local communities and environmental interests”(WTO Secretariat, p. 572).

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