O sentido do tempo e a construção da identidade nas ... · nosso intento de estabelecer um...

21
1 O sentido do tempo e a construção da identidade nas narrativas da Folia de Reis. Paulo Sergio Cantanheide Ferreira UEG-UFG No presente trabalho, por meio da análise de um manuscrito deixado por um mestre de folia da Cidade de Goiás, pretendemos identificar como as noções de tempo histórico e narrativa se articulam na constituição da identidade do personagem supracitado, bem como se fazem presentes na constituição identitária de grande parte dos adeptos da Folia de Reis. Para isso, dialogaremos com Rüsen (2001), para quem esses elementos conceituais necessariamente não estão restritos ao conhecimento histórico científico, mas são atributos de todos, uma vez que, para este autor, a consciência histórica implica as operações mentais que fazemos para articular o tempo e dotá-lo de sentido. Palavras chave: Folia de Reis. Tempo. Narrativa. Identidade Introdução A partir da década de 1930, as mudanças ocorridas no âmbito do conhecimento histórico provocou uma tensão entre os historiadores em relação à discussão sobre o que seria a definição da verdade da história. Esse tensionamento desafiou a teoria da história a reconhecer aspectos históricos em realidades que antes não eram consideradas pelo conhecimento histórico científico, tais como: as personagens do meio popular, os pequenos grupos sociais, os sistemas de crenças, as culturas locais e regionais dentre outros elementos das atividades humanas. Quando o fazer historiográfico deixou de estar restrita ao âmbito social e político e adentrou a esfera cultural, o pensamento histórico se tornou uma possibilidade ao alcance de todos, definindo o conhecimento histórico científico como uma forma especifica de conhecer dentro da vasta concepção de consciência histórica. É nessa perspectiva que nos propomos a analisar, nesse trabalho, um manuscrito deixado por um mestre de Folia de Reis, Joaquim Meupamuceno de Almeida, que viveu na cidade de Goiás até o ano de 2009. Este manuscrito contém vários versos das cantorias de Folia de Reis realizada pelo folião. Visto que o mestre não sabia ler, ele guardava os versos na memória, então, preocupada em passar o conteúdo das cantorias para os netos de Joaquim, sua filha, Cleusa Dias da Silva, teve o cuidado de copiar, manualmente em um caderno, entre os anos de 1984 e 1986, todos os versos que Joaquim ainda guardava na memória.

Transcript of O sentido do tempo e a construção da identidade nas ... · nosso intento de estabelecer um...

1

O sentido do tempo e a construção da identidade nas narrativas da Folia de Reis.

Paulo Sergio Cantanheide Ferreira UEG-UFG

No presente trabalho, por meio da análise de um manuscrito deixado por um mestre de

folia da Cidade de Goiás, pretendemos identificar como as noções de tempo histórico e

narrativa se articulam na constituição da identidade do personagem supracitado, bem

como se fazem presentes na constituição identitária de grande parte dos adeptos da Folia

de Reis. Para isso, dialogaremos com Rüsen (2001), para quem esses elementos

conceituais necessariamente não estão restritos ao conhecimento histórico científico,

mas são atributos de todos, uma vez que, para este autor, a consciência histórica implica

as operações mentais que fazemos para articular o tempo e dotá-lo de sentido.

Palavras chave: Folia de Reis. Tempo. Narrativa. Identidade

Introdução

A partir da década de 1930, as mudanças ocorridas no âmbito do conhecimento

histórico provocou uma tensão entre os historiadores em relação à discussão sobre o que

seria a definição da verdade da história. Esse tensionamento desafiou a teoria da história

a reconhecer aspectos históricos em realidades que antes não eram consideradas pelo

conhecimento histórico científico, tais como: as personagens do meio popular, os

pequenos grupos sociais, os sistemas de crenças, as culturas locais e regionais dentre

outros elementos das atividades humanas.

Quando o fazer historiográfico deixou de estar restrita ao âmbito social e político

e adentrou a esfera cultural, o pensamento histórico se tornou uma possibilidade ao

alcance de todos, definindo o conhecimento histórico científico como uma forma

especifica de conhecer dentro da vasta concepção de consciência histórica.

É nessa perspectiva que nos propomos a analisar, nesse trabalho, um manuscrito

deixado por um mestre de Folia de Reis, Joaquim Meupamuceno de Almeida, que viveu

na cidade de Goiás até o ano de 2009. Este manuscrito contém vários versos das

cantorias de Folia de Reis realizada pelo folião. Visto que o mestre não sabia ler, ele

guardava os versos na memória, então, preocupada em passar o conteúdo das cantorias

para os netos de Joaquim, sua filha, Cleusa Dias da Silva, teve o cuidado de copiar,

manualmente em um caderno, entre os anos de 1984 e 1986, todos os versos que

Joaquim ainda guardava na memória.

2

Ao ter acesso ao manuscrito percebemos que os versos das cantorias, nele

apresentados, não se resumem em meros cantos de Folia de Reis, mas constituem

verdadeiras narrativas que revelam em suas entrelinhas, experiências dotadas de

sentidos, concepções de tempo, consciência histórica e identidade. Para realização do

nosso intento de estabelecer um diálogo entre a teoria da história e a referida

experiência revelada no manuscrito em análise, recorreremos ao aporte teórico de Rüsen

(2001), que apresenta o pensamento e a consciência histórica como faculdades presentes

em todos os seres humanos por meio das narrativas construídas em decorrencia da ação

no espaço e no tempo.

Inicialmente, contaremos com as contribuições de Sartre (1970) e Ortega y

Gasset (1982), para apresentar um breve relato da crítica à epistemologia positivista

defensora da exatidão científica, presente no pensamento ocidental desde o século XVI.

Esse exercício crítico nos possibilitará legitimar o aporte teórico escolhido para esse

trabalho.

Em seguida, faremos uma breve apresentação das características da Folia de

Reis na cidade de Goiás, para então, por meio da análise dos versos, estabelecer o

diálogo entre as tradições e experiências dessa prática religiosa com os conceitos de

narrativa e tempo em Rüsen (2001). Em nosso último tópico, tentaremos identificar a

relação entre narrativa e identidade no documento analisado.

Os fundamentos da crítica à exatidão

A tradição cartesiana que se cristalizou no pensamento ocidental, sobretudo, por

meio da corrente epistemológica positivista das ciências da natureza, que concebe a

ciência como a atividade que procura encontrar soluções para problemas que surgem

como fenômenos ignorados pelos seres humanos, atinge também o âmbito das ciências

humanas ao tratar questões, oriundas das relações entre os seres humanos, com os

mesmos métodos aplicados para solucionar os problemas relacionados às ciências da

natureza. Mesmo depois de pensadores ocidentais como Dilty e Weber terem superado a

tendência Durkeimiana de submeter as ciências humanas aos métodos de análises das

ciências da natureza, Milner e Miller (2006), por meio da análise do sistema de

avaliação dos trabalhadores da saúde mental do Estado francês, mostram como as

3

relações sociais e políticas nas sociedades contemporâneas ainda estão condicionadas

pelo binômio problema-solução.

Em seu texto O existencialismo e um humanismo, Sartre deixa bastante claro que

o ser humano, enquanto existente, precede qualquer possibilidade de ser dotado de uma

essência humana e a principal característica da existência humana é a necessidade de

tomar decisões. Ao apresentar o dilema moral de um dos seus ex-alunos que tinha

decidir entre ficar cuidando da mãe ou alistar-se nas forças armadas francesas, Sartre

tenta mostrar ao seu leitor que as decisões que os seres humanos são levados a tomar ao

longo da existência não estão predeterminadas como comumente se acredita e que o

principal motivo da angustia existencial humana é o fato de ter que decidir.

Segundo o autor, por mais que o rapaz pudesse encontrar diferentes respostas, já

prontas, em diferentes conselheiros, “nenhuma moral geral poderia lhe indicar o

caminho a seguir” e que ao vir lhe procurar o rapaz já sabia da resposta que ele lhe

daria: “você é livre; escolha, isto é invente” (SARTRE, 1970 p. 9)

A reflexão filosófica do autor nos leva a perceber que, na dinâmica da

existência humana, existem problemas sem solução, os quais, necessariamente, induzem

as pessoas a criar, inventar, construir e produzir situações novas dotadas de sentido para

sua existência. Isso nos possibilita entender que a existência de uma realidade universal,

previamente estruturada, é antes produto de nossas convenções históricas do que da real

existência de uma estrutura universal existente fora de nós.

Para Sartre (1970), o fato de ter que decidir provoca angústia, desamparo e até

desespero. Nesse sentido, Ortega y Gasset (1982) avalia que,

“essa decisão torna-se impossível se o homem não possui

algumas convicções sobre o que são as coisas em seu redor, [...]

Daí que o homem tenha que está sempre em alguma crença e

que a estrutura de sua vida depende primordialmente das

crenças em que ele esteja e que as mudanças mais decisivas na

humanidade sejam as mudanças de crenças, a intensificação ou

enfraquecimento das mesmas” (p.27).

O autor, anteriormente citado, infere que a principal crença na qual o homem da

cultura ocidental se apegou, a partir do século XVI, foi na existência de uma estrutura

racional universal que coincide com intelecto humano, possibilitando este ultimo

4

encontrar respostas para os problemas do mundo por meio de uma racionalidade

matemática (ORTEGA Y GASSET 1982).

A crença na racionalidade começa a apresentar sinais de fragilidade a partir do

século XX, e juntamente com ela é colocado em xeque o caráter exato das conclusões

científicas, o que provoca uma mudança radical na epistemologia das ciências humanas

e entre elas a Historiografia.

A Folia de reis em Goiás

Atualmente existem cerca de sete grupos de folia de reis na cidade de Goiás. Os

grupos se identificam através das bandeiras branca, azul e Vermelha. Os foliões usam

alguma insígnia (laço de fita, lenço ou broche), com a cor da bandeira que é definida de

acordo com as indumentárias do Santo que a bandeira homenageia. O objetivo principal

da Folia é levar o folião a reviver a peregrinação que os três Reis Magos fizeram para

visitar o Menino Jesus na gruta em Belém.

Tradicionalmente, o grupo de folia é composto por 12 pessoas em referência ao

número de apóstolos, porém, devido o volume de trabalho e o número de pessoas que

desejam participar da festa, os grupos acabam sendo compostos por mais de vinte

pessoas. O Giro, percurso realizado pelo grupo da folia, costuma ter início na noite do

dia 25 de dezembro e vai até o dia 05 de janeiro. No dia 06 de janeiro, acontece a

grande festa de encerramento da folia. Há também a chamada folia temporã, que ocorre

fora do período oficial da saída da Folia. Normalmente esta é solicitada, junto aos

foliões, por alguma pessoa que pretende realizar algum evento ou festa religiosa.

Os grupos de folia obedecem a seguinte composição:

Encarregado – É aquele que organiza a folia do início até a chegada ao local do último

ato. Define, juntamente com o Festeiro, a sequência das casas que irá definir o Giro da

Folia. Ele deve estar em sintonia com os donos das casas para definir o que será

apresentado em cada visita. O encarregado traz consigo um apito que lhe permite

chamar atenção dos foliões para o inicio e o fim de cada ato da Folia.

Mestre – É aquele que levanta a bandeira, inicia os cantos, cuida dos instrumentos e

auxilia os tocadores.

Rezadeiras - Encarregadas de iniciar as rezas nos vários momentos da Folia.

5

Bagageiro – Responsável pelo recolhimento e transporte das ofertas e doações

arrecadadas ao longo do giro da folia.

Festeiro – Responsável pela realização da festa de encerramento da Folia.

Catireiros – Tiram as palmas e realizam a apresentação da Catira, quando solicitada

pelo encarregado.

Os atos da Folia são momentos intercalados de rezas e cantorias. A bateria é

composta pelos seguintes instrumentos: caixa, pandeiro, duas violas, sanfona, violão,

cavaquinho, reco-reco e o apito para o encarregado.

Atualmente, a grande preocupação da maioria dos foliões é com o repasse da tradição

para as crianças e jovens, pois muitos foliões já faleceram e a maioria dos que

desenvolvem a atividade hoje, estão com idade bastante avançada.

A tradição, a experiência e a atribuição de sentido ao tempo.

A consciência histórica, compreendida como “a realidade a partir da qual se

pode entender o que a história é” (RÜSEN, 2001 p.56), exige que partamos do princípio

que a as ações humanas no mundo são voltadas para a produção de sentidos. Uma vez

que as ações se desenvolvem no tempo elas conferem sentido para o próprio tempo. De

forma que o tempo em si, em seu estado absolutamente natural, é inumano pelo fato de

não produzir sentido. A transposição do tempo natural para o tempo humano é uma

estratégia de constituição de sentido. Os principais frutos das ações humanas no tempo

são as construções de narrativas e identidades, estas que são meios utilizados para

constituir sentido às experiências existenciais realizadas no tempo. Enquanto as

narrativas orientam as ações no tempo, a identidade é um conjunto de atributos que se

adquire ou se muda na relação com os outros.

Para Rüsen (2001), o ser humano se reconhece em uma narrativa que constitui

sua identidade. Portanto, se considerarmos que nas diferentes experiências religiosas os

mitos de fundação constituem narrativas que orientam suas práticas ritualísticas e

contribuem para a definição da identidade de seus adeptos, podemos avaliar que esse

diálogo entre história e religião nos oferece o suporte teórico para identificar, nas

narrativas da Folia de Reis, apresentadas no documento em análise, elementos

constituidores de consciência histórica e produtores de identidades.

6

Diante disso, cabe-nos investigar como a prática religiosa da Folia de Reis

constrói um tempo dotado de sentido e em que medida suas narrativas definem o perfil

identitário do folião.

A Folia de Reis, enquanto prática religiosa, consiste em refazer o caminho

percorrido pelos três Reis Magos para visitar Jesus na gruta em Belém, porém, a

construção da narrativa que define esse fato, envolve vários episódios ocorridos antes,

durante e depois do nascimento de Jesus. Encontramos nas narrativas apresentadas

pelos foliões elementos presentes nas narrativas bíblicas como a fuga de Maria e José

para o Egito, a perseguição de Herodes e o próprio nascimento de Jesus na gruta em

Belém, conforme podemos observar nos versos seguintes:

[...] Perseguido Por Herodes

Todo dia e toda hora

Junto com são José

No colo de Nossa Senhora

Entraram por terra estranha

sem recurso e amigo

Maria que ia ser mãe

Se achava sem abrigo [...]

O lugar do nascimento

Uma gruta em Belém

Este Deus que lá nasceu

Foi para o nosso bem

São apresentados ainda elementos da tradição da Igreja Católica como as

orações do Credo e da Salve Rainha e várias outras rezas:

Senhor Deus Misericórdia

Nos pedimos perdão

Peço a todo folião

Pra rezar creio em Deus Pai

Entregamos esta folia

Rezemos a oração

Vamos rezar Salve Rainha

Também é da devoção

7

Encontramos também as contribuições da própria cultura popular por meio de

sua simbologia, suas análises dos fatos e de seus cálculos temporais, dando origem a um

tempo dotado de sentido:

[...] Para contar no giro no altar

Nossa senhora concebeu a 25 de março

Chegando o anjo Gabriel

Caminhando passo a passo

No verso anterior, a narrativa construída pelos foliões apresenta uma mescla

entre a tradição cristã ocidental, que tradicionalmente situou o nascimento de Jesus no

dia 25 de dezembro e a experiência de vida dos foliões, na qual, normalmente, a

gestação de um filho ocorre no período de nove messes. Nesse sentido, a instituição do

dia 25 de março, pala Folia de Reis, como o dia da concepção de Jesus, aparece como

uma significação temporal própria de um grupo religioso, cujo mito fundacional de sua

prática religiosa é o nascimento de Jesus no dia 25de dezembro.

Outro aspecto que merece destaque é a dupla significação temporal presente nas

narrativas da Folia de Reis. Primeiramente, percebemos a noção de uma temporalidade

linear que tem como marco o nascimento de Jesus, conforme podemos verificar no

verso abaixo:

[...] Já quais dois mil anos

Que os santos peregrinos

Para cumprir com as leis

E os engretes divino [...]

[...] Há 25 de dezembro

Meia noite 12 horas

Nasceu o divino mestre

Filho de nossa Senhora [...]

Além dessa temporalidade linear, demonstrada nos versos anteriormente citados,

percebemos uma temporalidade cíclica, literalmente vivenciada no Giro: nome atribuído

ao percurso realizado pela folia anualmente. Não menos importante e impactante na

vida dos foliões que a temporalidade linear, é a temporalidade cíclica, que tem um

caráter místico e sagrado, pois se refere a um mistério de fé que possibilita a renovação

8

anual de um acontecimento sagrado que se deu no passado. A própria narrativa foliã faz

questão de destacar esse ciclo por meios de seus versos:

[...] 25 de dezembro

Da meia noite pro dia

Nasceu o filho de Deus

Filho da Virgem Maria [...]

Nas horas da meia noite

Os galos deram sinal

Anunciando os pastores

Para vir nos adorar

Há 26 de dezembro

Saíram do Oriente

Para ver Jesus poderoso

Todos três muito contentes

27 de dezembro

Saíram com resplendor

No caminho eles encontraram

Com Herodes o traidor

Há 28 o rei Herodes

Enviou um mensageiro

Para trazer a notícia

De Jesus rei verdadeiro

29 de dezembro

Os três reis foram avisados

Daquele grande traidor

Que Herodes tinha mandado

No dia 30 de dezembro

Os três reis fez horação

Para jesus nos livrar

Daquela perseguição

Há 31 de dezembro

Seguiram com bom destino

Vamos, vamos a Belém

Visitar Jesus menino

Há primeiro de Janeiro

Estava com todos

9

Vamos, vamos a Belém

Visitar nosso senhor

No dia 2 de janeiro

Caminharam noite e dia

Porque eles tinham em sua frente

Uma estrela da guia

No dia 3 de janeiro

Estavam todos contentes

Pois tinham em sua frente

A estrela do Oriente

No dia 4 de janeiro

Romperam fora de hora

A procura do menino

Filho de Nossa Senhora

No dia 5 de janeiro

Passaram em Jerusalém

A procura do menino

Que foi nascido em Belém

No dia 6 de janeiro

Que puderam encontrar

O menino Deus nascido

A quem foram adorar

Os três reis quando chegaram

Com um respeito profundo

Adorou com todo amor

O nosso salvador do mundo

Os três reis quando chegaram

Abriram os seus tesouros

Ali eles ofereceram

Mirra, incenso e ouro.

A importância dos versos citados anteriormente para a nossa reflexão, está no

fato deles representarem um ciclo temporal, entre os dia 25 de dezembro e 6 de janeiro,

sagrado para a Folia de Reis. A narrativa deixa claro que a valoração dos fatos não está

dissociada dos dias e até das horas em que os mesmos aconteceram. O sentido dos

acontecimentos se refaz anualmente por meio da experiência do sagrado vivenciado no

período do Giro da folia.

10

As narrativas e a construção da Identidade

Um dos principais objetivos de Rüsen (2001) é mostrar que os fundamentos do

conhecimento histórico científico se encontram no cotidiano da vida real e concreta. É

naquilo que o autor chama de operações da vida cotidiana que se encontra a produção

do sentido do tempo e a definição da identidade. Esse processo acontece da seguinte

forma: concomitantemente às operações práticas do cotidiano, o ser humano realiza uma

operação mental responsável pela interpretação de suas próprias práticas no tempo. De

modo que, para a constituição da consciência histórica, “é determinante a operação

mental com a qual o homem articula, no processo de sua vida prática, a experiência no

tempo com as intenções no tempo e estas com aquelas” (Rüsen, 2001 p. 58)

Vemos, portanto, que na constituição do pensamento histórico ocorre uma dupla

consciência do tempo vivenciada na experiência e na intencionalidade. Para (Rüsen,

2001), essa interpretação da experiência no tempo possibilita a convivência com os

infortúnios e os sofrimentos presentes no mundo.

Voltando à prática religiosa da Folia de Reis, percebemos que na experiência

cíclica que ocorre entre um Giro e outro da Folia, acontece uma relação também cíclica

entre experiência e intencionalidade.

Toda experiência de vida realizada ao longo do ano é trazida para aquele tempo

sagrado do Giro, que é um tempo pleno de desejo, esperança e intencionalidade em vista

da experiência a ser realizada no ano vindouro ou mesmo no pós-morte.

Dessa forma, a entrega da Folia constitui uma ação que confere sentido à vida do

folião, pois se trata de uma missão que deve ser realizada anualmente por ocasião do

nascimento de Cristo. Ao cumprir a missão, os foliões acreditam receber outros

benefícios religiosos como a bênção de Deus, a misericórdia e o perdão dos pecados,

conforme podemos observar nos versos que seguem:

Senhor Deus misericórdia

Nos pedimos perdoar

Que temos essa folia

Para nos entregar

Senhor Deus misericórdia

Nos pedimos ó Senhor

Para entregar esta folia

11

Perdoai de mil amor

Senhor Deus misericórdia

Nos pedimos o Perdão

Para entregar a folia

Rezemos de coração [...]

Está entregue esta folia

Que no mundo já girou

Oferecida aos três reis santos

E a Jesus nosso Senhor

Senhor dono da casa

Filho da virgem Maria

Está cumprida a sua promessa

Está entregue sua folia

Jesus foi adorado

Na lapinha de Belém

Pai e Filho e Espírito Santo

Que nos da a gloria amem

Fim

Vemos nos três últimos versos uma teia de sentidos que engloba a saga dos três

Reis santos para visitar Jesus, a promessa realizada pelo dono da casa e a missão do

folião que acaba de ser cumprida. É importante ressaltar que as promessas que são

pagas com a acolhida da Folia, são motivadas por graças alcançadas em diferentes

âmbitos da vida, como: cura de enfermidades, solução de problemas familiares e

conjugais, conquistas de emprego e outros.

Essa relação do tempo sagrado do Giro da Folia com os variados aspectos da

vida cotidiana, possibilita-nos fazer uma aproximação entre a experiência da Folia de

Reis e o conceito de narrativa, desde que concebamos a narrativa como: o

“procedimento mental de o homem interpretar a si mesmo e seu mundo” (Rüsen, 2001

p. 149).

Como podemos observar na citação seguinte, esse movimento de auto

interpretação da experiência não só confere sentido ao tempo, como é constituinte da

identidade:

Na constituição de sentido sobre a experiência no tempo

mediante a narrativa histórica, se trata afinal de contas da

12

identidade daqueles que tem que produzir esse sentido da

narrativa a fim de orientar-se no tempo (Rüsen, 2001 p. 66).

O momento do Giro é sempre o momento de se pagar promessas, fazer

promessas, pedir graças, pedir perdão etc.. Todas essas ações produzem uma série de

narrativas que, aliadas à narrativa central do evento Folia de Reis, revelam a identidade

religiosa de um grupo que ultrapassa as fronteiras da cidade de Goiás.

Considerações Finais

As conclusões dessa reflexão nos possibilitaram perceber que os sistemas de

crenças em suas macros dimensões – exemplo da crença na exatidão da racionalidade e

da ciência, desenvolvido durante séculos no ocidente (ORTEGA Y GASSET 1982);

bem como os micros sistemas que podem ser representados, dentre outros casos, pela

expressão religiosa aqui estudada, têm em comum a construção de narrativas que

conferem sentido ao tempo e à própria existência humana.

Assim, o presente estudo, contribuiu para nos afastar um pouco mais da noção

de uma história total com pretensão de universalidade e nos aproximar de uma história

das ações e práticas socioculturais dotadas de sentido para sujeitos e grupos históricos.

Fica a pergunta se essa teia de sentidos que define a experiência humana no mundo,

possibilita algum tipo de abertura para proposições e projetos de ordem universal.

Diante disso, concluímos esse estudo expressando o desejo de, no futuro, nos

voltarmos para o conceito de constante antropológica em Hësen, a fim de averiguar as

condições de possibilidades, não da construção de uma história universal, porém, da

proposição de um horizonte reflexivo que oriente ações humanas de caráter universal.

Referencias Bibliográficas

13

MILLER, J.A; MILNER, J.C. Você quer mesmo ser avaliado: entrevistas sobre uma

maquina de imposturas. Barueri, SP: Manole, 2006.

ORTEGA Y GASSET, J. Historia como sistema: Mirabeau ou o Político. Brasília:

Editora Universidade de Brasília, 1982.

RÜSEN, J. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência

Histórica. Brasília: Editora UNB, 2001.

SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo. Paris: Les Éditions Nagel, 1970.

14

ANEXOS

15

16

17

18

19

20

21