O Sentido Da Pesquisa Na Formação Inicial de Professores

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    * Professora e pesquisadora do Programa de Mestrado em Educao da Universidade Catlicade Santos ([email protected]).

    O sentido da pesquisa na formaoinicial de professores: polticas eprticas do curso de pedagogia

    SANNY S. DA ROSA*

    RESUMOO artigo trata de um estudo em desenvolvimento sobre a pesquisa como contedo curriculardos cursos de formao de professores para a educao bsica no Brasil, em especial os

    de pedagogia, no contexto das polticas governamentais e das reformas educacionaisiniciadas na dcada de 1990. O trabalho aponta algumas caractersticas socioeconmicase culturais dos estudantes que almejam se tornar professores do ensino fundamental nopas e discute a introduo da pesquisa nos currculos de pedagogia, contrastando o modocomo ela apresentada nos documentos oficiais com as concepes sustentadas pelosautores de referncia deste tema. O texto apresenta dados qualitativos obtidos em discussesrealizadas num grupo focal com estudantes concluintes do curso de pedagogia a respeitoda experincia de envolvimento com a pesquisa no contexto de elaborao do Trabalhode Concluso de Curso. A autora conclui com algumas reflexes acerca da necessidade delevar em considerao tanto os aspectos subjetivos como as caractersticas socioculturais dosalunos na anlise a respeito da importncia (ou no) da pesquisa nos cursos de formao

    inicial de professores.Palavras-chave: Formao de professores, Pesquisadores, Pedagogia, Ensino superior.

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    RESUMEN

    El artculo presenta y discute un estudio en desarrollo sobre la investigacin como contenidocurricular de los cursos de formacin de maestros para la educacin bsica en Brasil, en especiallos de pedagoga, en el contexto de las polticas gubernamentales y de las reformas educativasiniciadas en la dcada de 1990. El trabajo seala algunas caractersticas socioeconmicas yculturales de los estudiantes que aspiran a convertirse en maestros de educacin bsica en elpas y discute la introduccin de la investigacin como contenido curricular de los cursos depedagoga. Se contrasta la manera en la cual la investigacin es presentada en los documentosoficiales con los conceptos discutidos por los autores de referencia en este tema. El texto presentadatos cualitativos obtenidos en las discusiones realizadas en un focal group con estudiantesque estn terminando el curso de pedagoga con respecto a la experiencia de participar eninvestigaciones para la elaboracin del trabajo de fin de curso. La autora finaliza con algunas

    reflexiones acerca de la necesidad de tener en cuenta tanto los aspectos subjetivos como lascaractersticas socioculturales de los estudiantes en el anlisis sobre la importancia (o no) de lainvestigacin como contenido de los cursos de formacin inicial de maestros.Palabras clave: Formacin de maestros, Investigadores, Curso de Pedagoga, Enseanza superior.

    ABSTRACTis article presents and discusses an ongoing study on research as an item of curriculum contentin teacher training courses for basic education in Brazil, in particular Pedagogy courses, in thecontext of governmental policies for teacher education and of Brazilian educational reforms

    which began in the 1990s. It points out some socioeconomic and cultural characteristics ofthe students who are aiming to become elementary school teachers in this country. e text

    also discusses the introduction of research as part of the Pedagogy curriculum, contrasting theway it is presented in offi cial documents with the main concepts supported by the academicauthors who have been investigating this topic. e article presents and discusses qualitativedata obtained in a focus group with Pedagogy undergraduate students about their involvementin activities linked to the preparation of their final paper (TCC). e author concludes withsome thoughts on the need to take into account both subjective and students socioculturalaspects analyzing whether research is important (or not) in teacher training courses.Keywords:Teacher training, Researchers, Pedagogy course, Higher education.

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    INTRODUO

    Este texto1apresenta e discute resultados de um estudo em desenvolvimento arespeito da pesquisa como contedo curricular dos cursos de formao de professo-res para a educao bsica no Brasil. Especificamente, trata do curso de Pedagogiaque, de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais em vigor, tem como obje-tivo primordial formar profissionais para a educao infantil (crianas de 0 a 5 anos)e para os anos iniciais do ensino fundamental (crianas de 6 a 10 anos). As reflexesaqui apresentadas expressam, em grande parte, inquietaes acumuladas ao longoda experincia de mais de 25 anos na docncia em cursos superiores de formaode professores, em particular os de Pedagogia. A ideia colocar em discusso aimportncia (ou no) de incluir no currculo a prtica de pesquisa como elementonecessrio para formar professores pesquisadores.

    Para dar incio a essa discusso ser necessrio apresentar informaes quepermitam o entendimento do cenrio em que se insere o problema de nossa in-vestigao. Esse o foco da primeira parte do texto que discorre sobre as polticasgovernamentais para a educao superior e a formao de docentes no contexto dasreformas educacionais brasileiras ocorridas a partir da dcada de 1990. Nesse item,procura-se oferecer ao leitor um panorama sobre quem so os alunos interessadosem se tornar professores de educao fundamental no Brasil, apresentando algumascaractersticas do perfil socioeconmico e cultural desses estudantes. A segunda

    parte do trabalho discute a introduo da pesquisa no contedo curricular do cursode Pedagogia, contrastando o modo como ela apresentada no texto legal com asconcepes defendidas por autores de referncia dessa temtica. A terceira e ltimaparte traz alguns dados qualitativos obtidos em discusses realizadas num grupofocal com alunos concluintes do curso acerca da experincia de envolvimento comas atividades de pesquisa vinculadas elaborao do Trabalho de Concluso deCurso (TCC).

    Na concluso, este artigo faz algumas reflexes sobre a necessidade de levar emconta a interrelao entre os aspectos subjetivos envolvidos na produo de trabalhosde pesquisa e as caractersticas socioculturais dos futuros professores de ensino fun-damental no Brasil. Aponta, ainda, algumas questes que permanecem em aberto

    1Este trabalho foi originalmente apresentado no XIV Congresso Mundial de EducaoComparada (World Congress of Comparative Education Societies), realizado em Istambul,Turquia, Universidade Bogazii, em junho de 2010, com o ttulo: e role of researching inteachers training undergraduate curriculum in Brazil: rethinking the meaning of quality inhigher education.

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    no debate sobre a real importncia de incluir, nos cursos de graduao de Pedago-

    gia, exigncias relativas formao de professores como profissionais pesquisadores.

    1 QUEM SO OS FUTUROS PROFESSORES DAS ESCOLAS PBLICASBRASILEIRAS DE ENSINO FUNDAMENTAL?Em primeiro lugar, importante destacar que a obrigatoriedade do diploma

    de graduao para o exerccio da docncia no ensino fundamental bastanterecente no Brasil e faz parte do conjunto de reformas educacionais promovidaspela Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de 1996. Tais reformas, porsua vez, so resultantes dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil

    no incio da dcada de 19902

    , orientados pela tica de racionalizao do campoeducativo em funo da lgica da esfera econmica. Dessa poltica, resultou umforte movimento de expanso do ensino superior que estimulou a abertura dessemercado ao setor privado. Entre 1995 e 2008, houve uma expanso da ordem de187% no nmero de matrculas (ou 3,32 milhes) no ensino superior, de acordocom dados sistematicamente divulgados pelo Ministrio da Educao. O Censoda Educao Superior de 2008 (Brasil, 2009) revela que das 2.252 instituies deensino superior existentes no Brasil 90,23% so privadas e responsveis por 74,9%do total de matrculas.

    primeira vista, esses nmeros parecem impressionantes e podem sugerir certo

    otimismo. Mas um exame mais atento e cuidadoso aponta para a existncia de umlongo caminho ainda a ser percorrido na direo de uma universidade para todos:a taxa de escolarizao dos jovens brasileiros na faixa etria dos 18 aos 24 anos deapenas 29,5%, de acordo com o levantamento da Pesquisa Nacional por Amostra-gem de Domiclios (PNAD) de 2008 (Brasil, 2008). Em outras palavras, os 70%restantes ou abandonaram a escola antes de completar a escolaridade bsica ou nocogitam prosseguir seus estudos em nvel superior. Em nmeros absolutos, esse con-tingente perfaz um total 16,1 milhes jovens excludos desse processo.

    O que as estatsticas permitem concluir que a corrida das instituies pri-vadas pela captao de candidatos interessados em uma vaga no ensino superior

    em todo o pas se d em torno de uma fatia ainda muito reduzida daqueles quelograram concluir o ensino mdio. Com esses nmeros em mente, compreende-se oalto ndice de vagas ociosas nas instituies de ensino superior: 47,61%, de acordo

    2Definidos na Declarao Mundial sobre Educao para Todos, aprovada pela ConfernciaMundial sobre Educao para Todos: Satisfao das Necessidades Bsicas de Aprendizagem,

    Jomtien, Tailndia - 5 a 9 de maro de 1990.

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    com os dados relativos a 2008. Esse fato refora anlises que vm sendo feitas por

    pesquisadores brasileiros que apontam o esgotamento do modelo de expanso daeducao superior adotado no pas, sobretudo dos pontos de vista da qualidade e daequidade. A pesquisadora Cristina Helena Carvalho (2006, p.11-12), por exemplo,observa que a vitria presidencial de um governo de origem popular parece noter promovido mudana significativa no rumo da poltica pblica,uma vez que odiscurso do atual governo em prol da justia social se v neutralizado por programasque estreitaram ainda mais asas relaes pblico/privadona ltima dcada. Para

    Jos Marcelino de Rezende Pinto (2004) esse modelo alm de ter produzido umaprivatizao e mercantilizao sem precedentes [tem acarretado] graves consequn-cias sobre a qualidade do ensino oferecido e sobre a equidade(p. 730).

    Os cursos de formao de professores, mais especificamente o de Pedagogia, seinscrevem nesse cenrio. Esse curso o que concentra o maior nmero de alunosem todo o pas, tambm de acordo com os dados do Censo de 2008: 5,4% do totalde matrculas. Em nmeros absolutos, esse ndice significa um total de 278.677estudantes, dos quais 67% estudam em instituies privadas, sendo a maior parte(70%) atendida no perodo noturno. Para compreendermos melhor essa realidade preciso conhecer as caractersticas socioeconmicas e culturais daqueles que buscamser professores da primeira etapa da educao bsica das escolas pblicas brasileiras.

    O levantamento feito em 2007 do perfil de 128 ingressantes no curso de Peda-

    gogia de uma instituio de ensino superior privada do municpio de So Paulo, emque esta pesquisa foi realizada, indica a mesma tendncia de estudos de abrangncianacional, como, por exemplo, o coordenado por Gatti e Barretto (2009): a maio-ria absoluta (95%) dos estudantes so mulheres, na faixa etria entre 22 e 40 anos(77%). Duas razes explicam esse perfil etrio: parte considervel dos ingressantes(30%) j atuava como docente h alguns anos e, em virtude de exigncias legais,buscavam o diploma de ensino superior; a outra razo, de ordem mais subjetiva, que, apesar dos baixos salrios, a profisso de professor representa, para os postu-lantes a uma vaga no curso de Pedagogia, uma via de ascenso social. Vale ressaltarum dado mencionado pelas autoras: do total dos empregos registrados em 2006

    (...) 8,4% deles destinavam-se a professores (...) sendo que (...) nada menos que 77%desses empregos 2.159.269 so de professores da educao bsica(p. 18).

    Se considerarmos que cerca de 80% desses postos de trabalho se concentram nosetor pblico, podemos inferir que a estabilidade de emprego outro forte atrati-vo para o ingresso no magistrio. Nosso levantamento revelou que quase todos osestudantes trabalhavam e pertenciam a estratos de renda mdia baixa: 25% decla-

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    raram renda familiar mdia mensal de at cinco salrios mnimos (ou U$ 882) e

    42% de 5 a 10 salrios mnimos (ou U$ 1.470). A escolarizao bsica da maioria(75%) deu-se em escolas pblicas, sendo que 59% dos respondentes estavam h pelomenos cinco anos sem estudar quando do ingresso no curso de Pedagogia. Outrodado que complementa o perfil socioeconmico e cultural dos alunos pesquisadosrefere-se escolaridade dos pais. Neste item, 63% informaram que os pais possuamo ensino fundamental incompleto; 16%, o ensino mdio completo e apenas 7,5%possuam o ensino superior. Merece destaque que 13,5% se encaixam na categorianenhuma escolaridade.

    Esses indicadores, como ponderam Gatti e Barretto (2009, p. 161), podem ser

    interpretados tanto como um processo de proletarizao dos trabalhadores em edu-cao quanto como um movimento de ascenso de certos segmentos a carreirasmais qualificadas. Independentemente da perspectiva de anlise adotada, o fatoincontestvel que os estudantes que chegam ao ensino superior de Pedagogia tra-zem consigo as marcas da fragilidade de sua formao anterior. As graves lacunasde aprendizagem na sua escolarizao bsica se expressam de forma mais evidentenas dificuldades associadas leitura, interpretao de textos e expresso escrita,o que certamente tem impacto, entre outros fatores, sobre a qualidade da formaooferecida e assimilada nos cursos de graduao. Marin e Giovanni (2007) estu-daram as condies que alunos concluintes de cursos de formao de professores

    exibem para atuar nos anos iniciais de escolaridade, analisando especificamente odomnio da recepo e produo do texto escrito de estudantes de um curso diurnoprivado do interior do Estado de So Paulo. Os resultados deste estudo revelamuma realidade corriqueira vivida na maioria das instituies de ensino superior dopas. Segundo as autoras,

    O capital cultural veiculado pela ao da escola (...) no lhes permitiu superar to-

    talmente o capital cultural familiar, ou seja, as esferas escolares que compuseram

    a trajetria escolar desses alunos no foram incisivas para a aquisio de dispo-

    sies durveis no uso da lngua, na leitura e na expresso escrita com correo.

    Concluindo que, no interior de sua formao, a trajetria lhes atribui um lugarde desigualdade, mantm a condio de no formao, indica possibilidades de subal-ternidade, incompatveis com o esperado para o exerccio da funo docente (p. 37).

    Porm, esse aluno trabalhador, que possui uma bagagem cultural empobre-cida pelas reduzidas oportunidades de acesso a experincias e contedos culturaise cientficos, aquele que almeja ser professor nas escolas pblicas de ensino funda-

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    mental, uma vez que os filhos de classe mdia e alta so cada vez menos atrados

    pela profisso. Assim, o desafio imediato dos cursos de formao de professores tentar minimizar os efeitos do crculo vicioso da baixa qualidade do ensino. Almde professores universitrios bem formados e politicamente comprometidos, essatarefa depende da formulao e execuo de projetos pedaggicos e curriculares quelevem em conta as caractersticas desses estudantes. o que trataremos no prximoitem, abordando mais especificamente a prtica de pesquisa no currculo de Pedago-gia como elemento que pode (ou no) promover a superao desse estado de coisas.

    2 A PRTICA DE PESQUISA NA FORMAO DE PROFESSORES: META

    OU MITO?Considerando apenas o texto legal (Parecer CNE/CP 5/2005) que deu origems atuais Diretrizes Curriculares Nacionais de Pedagogia, somos levados a concluirque estamos diante de um curso de alta complexidade destinado a formar profis-sionais cujas competncias pressupem slida base terica e sofisticada capacidadetcnica, compatvel, alis, com a responsabilidade social e estratgica que lhes conferida (Tardif, 2007). No entanto, tal expectativa se choca frontalmente, porexemplo, com o item da Resoluo CNE/CP n.1, de 15/05/2006, que define a du-rao do curso. A carga horria mnima exigida de 3.200 horas, das quais 300 sereferem ao cumprimento de estgio e 100 a atividades terico-prticas de aprofun-

    damento, cuja natureza vaga e genrica subtrai do futuro professor um tempo jbastante exguo para a sua formao.

    Se considerarmos, alm disso, que, de acordo com o mesmo documento(Brasil, 2006), as 2.800 horas restantes podem ser dedicadas s atividades formati-vas como assistncia a aulas, realizao de seminrios, participao na realizao depesquisas, consultas a bibliotecas e centros de documentao, visitas a instituieseducacionais e culturais, atividades prticas de diferente natureza, participao emgrupos cooperativos de estudos chega-se concluso de que o tempo destinado formao de professores de ensino fundamental insuficiente para suprir as co-nhecidas lacunas de formao de seus candidatos. Configura-se, desse modo, umalegislao bastante generosa com as instituies privadas de ensino superior, umavez que tal flexibilidade curricular permite acomodar a reduzida carga horria docurso em apenas trs anos de 200 dias letivos cada um.

    Cabe recordar que a grande maioria desses cursos ofertada no perodo noturnopor instituies que acomodam os estudantes em classes numerosas e em condiesnada favorveis a uma formao de qualidade. Enfatizando o contraste entre a

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    rea l id a de v i id a na s inst it u i es e o q e press p e a legisl a o ed c a ciona l Ga t t i e

    Ba rret to ( 0 0 9 , p 5 3 ) lem b ra m a s o ser v a e s de Br z e zin s i ( 9 9 9 , p 8 1 ) : de c om oo m u ndo o c ia l a t ri u i pa dr e s pa ra o m u ndo rea l (o m u ndo v i ido dos pro ssiona is d a e sc ol a b sic a , sem le v a r em c ont a s a s pa r t ic u l a rida de s e origina l ida de s(. . ) . ne ste c en rio q e m erec e a ten o a int rod o da pr t ic a de pesq isa c om ou m dos elem entos cu rric u l a res na form a o do peda gogo- profe ssor

    O crescim ento dos e st u dos so re a pe sq isa de profe ssore s d a ed c a o b sic ano Bra si l i nd ic a o i ntere ss e c re sc ente pe lo tem a . Ent re ta nto s o a i nd a i nc ipient es a spe sq isa s a re speito de com o essa propost a v em se d a ndo na form a o inicia l isto , nos c u rsos de gra d a o O leitor fa m i l ia ri z a do c om a l itera t u ra espec fi c a rel a -

    ciona da pe sq isa de form a o de profe ssores ident ifi c a , no te x to leg a l a fi rm a e sin spira da s em no e s b a st a nte di f u nd ida s no Bra sil c om o a s de pr t ic o refl ex i ode Dona ld Sc h n ( 9 9 2 ) o a de profe ssor pesq isa dor de K enet h Z eic h ner ( 9 9 8 )q e press p em rec on hec er os doc ente s c om o prot a gon ist a s de s a pro ss o e n oc om o m eros e x ec u tores de pl a nos cu rricu l a re s No ent a nto com o b em o ser v a mDia s e L ope s ( 0 0 9 ) , os tex tos o cia is inc or pora m d iferente s d iscu rsos prod z idosnos m eios a c a d m ic os e cient fi c os sendo negocia dos por diferentes gr u pos socia ispa r t icipa ntes da defi n i o da s pol t ic a s c u rricu l a re s

    E sses di ferente s di scu r sos prod z idos nos v a ria dos contex tos de defi n i o cu r ri

    cu la r s o recontex t u a l i z a dos por processos de h i rid i za o sendo const it u do em

    u m tex to c a ra cter i za do pela b r icol a gem , c om a fi n a lida de de ga r a nt ir s pol t ic a ss a legit i m ida de b em c om o a r t icu la r d em a nda s d esses m esm os g r u pos (p 8 2 )

    O pro lem a q e e sse proc e sso de rec ontex t u a l iz a o n o ra ro res lt a noe s v a z ia m ento do sent ido origina l dos conc eitos q e s post a m ente inspira m ostex tos o c ia is A ssim , no c a so e spec fi c o q e est a m os a na l isa ndo enq a nto pa raP re z Gom e z ( 9 9 2 , p 1 1 2 ) , por ex em plo a pr t ic a in est iga t i a u m proc esso noq a l o profes sor s b m erge no m u ndo com ple x o d a a u l a pa ra a com preender de form a cr t ic a e v it a l (. . ) , o q e pre ss p e o en ol v im ento e u m a rel a o de int im ida de

    c om c on hecim entos de na t u re z a te ric a , no docu m ento o cia l a no o de profe-sor pe sq isa dor pa rec e m u ito d ist a nte de ssa c onc ep o Ao se referir a o per fi l dolicencia do em Peda gogia o tex to q e de origem s diretrizes cu rricu la res na ciona is

    do cu rso pre v q e ele de v er e st a r a pto a : est u da r aplicarcriticamente a s di re t ri z esc u rric u l a re s e o t ra s determ ina e s lega is q e l he c a i a im pl a nt a r executar a v a l ia re enc a m in ha r o res lt a do de s a a v a l ia o a instncias competentes (Bra si l 2 0 0 6 ,g r if o no s so .

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    Ora, esse entendimento de prtica investigativa impe, pela prpria natureza

    da produo de conhecimento, uma relao de subordinao dos nveis mais apli-cados e prximos da prtica aos nveis mais abstratos de produo de conhecimento(...)(Prez Gmez, 1992, p. 97). Parece claro que predomina, no discurso oficial,a concepo de um docente executor das determinaes legais e submetido sinstncias competentesdo sistema educacional. A caracterstica de hibridismodo discurso, a que se referem Dias e Lopes, evidencia-se no acrscimo artificial deexpresses como aplicar criticamente as diretrizes (...) que apenas aliviam a verda-deira intencionalidade do texto oficial. O modo e as circunstncias em que a noode pesquisa foi incorporada s diretrizes curriculares tambm expem o cartersecundrio atribudo a essa atividade:

    Pesquisas podero se desenvolver no interior de componentes curriculares, de

    seminrios e outras prticas educativas. Essa exigncia se faz a partir do entendi-

    mento manifestado pela significativa maioria de propostas enviadas ao Conselho

    Nacional de Educao (...) de que o Licenciado em Pedagogia um professor que

    maneja com familiaridade procedimentos de pesquisa, que interpreta e faz uso

    de resultados de investigaes. (Brasil, 2006, grifo nosso)

    Assim, como alerta Pimenta (2005, p. 40), nas propostas do governo brasileiropara a formao de professores, percebe-se a incorporao dos discursos e a apro-

    priao de certos conceitos que, na maioria das vezes, permanecem como retrica. A nosso ver, o grande risco que tal retrica, transformada em senso comum, pas-sa a ser formadora de uma mentalidade que reproduz a lgica da racionalidadetcnica no campo da educao. Essa concepo pragmtica e instrumental dos co-nhecimentos, caracterstica da cultura contempornea, est presente na maioria dosdepoimentos de ex-alunos de Pedagogia (62%) por ns analisados em outro estudo(Cardieri; Rosa, 2009) que, ao serem indagados sobre o papel da pesquisa em suaformao, tendem a responder da seguinte maneira: Para a prtica no [contribuiu]muito [...] mas importante obter todos esses conhecimentos para voc poder secolocar em uma reunio, fazer uma entrevista, redao, etc. (Ribeiro, 2008).

    Depoimentos como esse nos convidam a indagar sobre o real papel da pesquisano processo de formao de professores nos cursos de Pedagogia. Sabemos, por meiode estudos j realizados, que so poucos os professores de educao bsica no Brasilque se dedicam pesquisa (Ldke; Cruz; Boing, 2009). E mais, que essas poucaspesquisas se vinculam, em sua maioria, a projetos individuais de ps-graduao. Deoutro lado, esses mesmos pesquisadores nos informam sobre o crescente interesse de

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    professores em participar de eventos cientficos universitrios trazendo, para o de-

    bate acadmico, o resultado de suas investigaes e experincias em escolas bsicas.Nosso conhecimento emprico da realidade dos estudantes de cursos Pedagogia deinstituies privadas nos autoriza a afirmar, porm, que no estamos falando dosmesmos atores.

    Assim, a discusso sobre a quemse destina o discurso do professor-pesquisadornos parece relevante especialmente se quisermos, de fato, enfrentar a questo a res-peito da incluso da pesquisa nos currculos de graduao em Pedagogia, se podee deve ser perseguida como uma meta para melhorar a qualidade da educao ouse permanecer como um mito, originalmente produzido no interior dos discursosacadmicos, artificialmente incorporados ao discurso oficial. por isso que, emnosso entendimento, se faz indispensvel saber de quemestamos falando, ou seja,conhecer mais de perto a trajetria de vida desse grande contingente de estudantesque, embora tenham alcanado os bancos universitrios, permanecem excludosda vida acadmica e cientfica. Isto porque, querendo ou no, so eles que consti-tuiro a prxima gerao de professores de ensino fundamental das escolas pblicasbrasileiras.

    3 A PESQUISA NO CONTEXTO CURRICULAR DO CURSO E NA HISTRIADE VIDA DOS ALUNOS DE PEDAGOGIA

    Antes de tudo, merecem destaque algumas caractersticas do projeto pedaggi-co do curso de Pedagogia da instituio pesquisada e analisado em outro trabalho(Cardieri; Rosa, 2009), a fim de contextualizarmos a experincia vivenciada pelosestudantes. Concebida como atividade integradora entre teoria e prtica, as ativida-des de pesquisa configuram-se como dimenso transversal do currculo, compostapor disciplinas e atividades de orientao e trabalho de campo. Alm da disciplinade Metodologia Cientfica, outras duas disciplinas Seminrios de Pesquisa I e II tm como objetivo a elaborao e orientao dos projetos de pesquisa. Esse pro-cesso, acompanhado pelo professor orientador, culmina com a apresentao e defesapblica do Trabalho de Concluso de Curso (TCC).

    Nesse desenho curricular, o estgio supervisionado constitui campo privile-giado de articulao entre teoria e prtica, uma vez que coincide, no tempo, coma exigncia de elaborao de um anteprojeto de pesquisa com base em questessuscitadas pelas observaes de campo. A marca da autoria e o cumprimento dasnormas e procedimentos cientficos so os principais critrios de avaliao em todasas etapas. Vale registrar que a participao dos estudantes em sesses pblicas de

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    defesa de TCC convertida em crditos curriculares, compondo parte das ativida-

    des complementares, tambm previstas nas diretrizes curriculares nacionais. Essesrituais acadmicos, normatizados no projeto pedaggico do curso, colaboram paraa criao de uma cultura acadmica que tende a envolver professores e alunos, diretaou indiretamente, nas atividades de pesquisa em diferentes momentos do processode formao desses futuros professores.

    nesse contexto curricular e didtico que os alunos desse curso especfico dePedagogia estabelecem seus primeiros contatos com as atividades de investigao.Conhecendo seu perfil sociocultural e as dificuldades por eles enfrentadas para darconta de tal empreendimento acadmico, interessava-nos particularmente conhecera percepo dos estudantes a respeito da experincia de pesquisa. Mas, alm disso,interessava-nos compreender as razes do verdadeiro envolvimento demonstradopor alguns alunos com o trabalho durante todo o processo de sua elaborao, isto ,desde a formulao do problema de pesquisa at a fase de redao final do TCC. Oempenho, dedicao e esforo revelado por alguns estudantes nos chamaram par-ticularmente a ateno, levando-nos a indagar sobre as razes pelas quais, mais doque uma tarefa acadmica, o trabalho parecia adquirir para eles um sentido maisprofundo, subjetivo e pessoal.

    Algumas indagaes se colocaram como desdobramento dessa constatao.Qual o lugar ocupado pelo conhecimento na sua constituio como sujeitos e como

    futuros profissionais de ensino? Que sentimentos e memrias estariam associadosaos seus processos de aprender? Como se deu, ao longo de suas trajetrias de vida,o seu envolvimento com a ideia de aprender? Que sentidos atribuam experinciade pesquisa vivenciada no curso de graduao? Tais questes, suscitadas pela obser-vao emprica no processo de orientao, nos conduziu colocao do problemadessa investigao em termos da relao com o saber. Essa noo foi formuladapela equipe de pesquisadores franceses da ESCOL3, criada por Bernard Charlot(2000; 2005) em 1987, com o objetivo de investigar o fenmeno do fracasso esco-lar de jovens de famlias das classes populares dos subrbios de Paris.

    Duas razes importantes presidiram a opo desses pesquisadores em abordar

    o problema sob esse enfoque. A primeira foi a recusa em assumir o fenmeno dofracasso escolar como objeto concreto, sob o argumento de que essa noo temsido midiaticamente construda. A segunda diz respeito a uma postura epistemo-lgica. Contestando o pressuposto sociolgico que insiste em analisar os fenme-

    3 Equipe de pesquisa Educao, Socializao e Coletividades Locais (Departamento dasCincias da Educao, Universidade Paris-VIII, Saint-Denis).

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    nos socia is a pena s c om b a se no entend im ento da s posi es socia is dos s j eitos

    Charlot (2005) defende que necessrio considerar tambm a histria do sujeito,a de sua construo e a de suas transformaes para compreender o porqu do fra-casso escolar (p. 40). Ou, em sentido inverso, as razes do bom desempenho dealguns alunos que, a despeito de sua posio social desprivilegiada, contrariam asexpectativas macrosociolgicas, como o caso que estamos analisando neste estudo.

    Assim, partilhamos da convico de Charlot de que para compreender esse fenme-no preciso enfrentar as contradies que emergem na realidade e incluir, comodimenso terica de anlise, a dimenso do desejo de saberem relao a um objeto.Desse modo, nossa hiptese foi a de que seria necessrio, inicialmente, identificar ossentidos ou o valor atribudo s prticas de aprender, construdos ao longo da hist-

    ria singular desses sujeitos em um tempo e espao determinados.

    Dessa forma, a tcnica utilizada para a coleta de dados foi a de discusso numgrupo focal, tendo como tema central a experincia da pesquisa realizada na gra-duao, no contexto do processo de escolarizao dos sujeitos at a universidade.Cabe esclarecer que os sujeitos desta pesquisa realizaram o trabalho de conclusode curso sob nossa orientao, ao longo do ano letivo de 2009, e que a coleta dedados ocorreu uma semana depois da defesa pblica do TCC. Foram convidadosa participar do grupo de discusso treze alunos, sete dos quais se apresentaramvoluntariamente. Para este trabalho, selecionamos trechos da narrativa de quatro

    depoentes que, a nosso ver, fornecem elementos significativos para compreendermoso sentido atribudo por eles experincia acadmica que estamos investigando. Porrazes ticas, os nomes dos depoentes so fictcios.

    Ana tem 43 anos, divorciada e me de dois adolescentes que esto no ensinomdio. a chefe da famlia, sustentada com o salrio de auxiliar de servios ge-rais de uma consultoria em recursos humanos. Os pais de Ana eram trabalhadoresrurais e, embora tenham sido alfabetizados, no concluram o ensino fundamental.Ela lembra que seu pai prometera garantir a escola s at a 8 srie, pois quem qui-sesse continuar a estudar tinha que correr atrs. Ana sempre estudou em escolas

    pblicas e, de acordo com o seu relato, foi por influncia de sua professora do 4 anoprimrio que passou a alimentar o sonho de se tornar professora. Incentivada pelosatuais patres, passou a considerar a possibilidade de fazer uma faculdade. Almejavaentrar na USP, mas, apesar de ter investido dois anos em curso preparatrio para ovestibular, no conseguiu passar nos exames. Com a bolsa do ProUni ProgramaUniversidade para Todos do governo federal conseguiu concluir o curso nessa uni-versidade privada, mas confessa que mesmo com o diploma no tem condies de

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    arriscar a perder o atual emprego. Espera passar em concurso pblico para realizar

    seu sonho de se tornar professora.

    A trajetria de Beatriz, 43 anos, tipicamente de classe mdia. Filha de imigrantesespanhis, comerciantes, com escolarizao completa, ingressou na escola com cincoanos de idade. Fazer o pr,reconhece, era coisa para poucos naquela poca. Nainfncia, costumava ser muito estudiosa e a bem na escola. A partir da adolescncia,porm, passou a no gostar de estudar. Foi reprovada no ensino mdio, mas no esta-va nem a. No almejava fazer faculdade, pois gostava de artes e, por isso, queria serdecoradora.S muitos anos depois, j casada, pensou em cursar Arquitetura. Como

    Ana, Beatriz tambm almejava entrar na USP, mas no conseguiu. Ingressou em uma

    faculdade privada de renome em So Paulo, mas no concluiu o curso. Frustrada coma vida de dona de casa e com dificuldades financeiras, resolveu voltar a estudar. Suadeciso de cursar Pedagogia foi criticada pela famlia, mas, segundo Beatriz, o cursoera mais fcil e perto de casa. No comeo no se interessava muito, mas com opassar do tempo, gostou e se envolveu. Agora que concluiu, sente vontade de fazer ps-graduao. Com 43 anos difcil, avalia, mas eu quero ser mais autnoma, atuarcomo pesquisadora. Descobri isso fazendo a pesquisa.

    A histria de Carolina, 36 anos, marcada por acontecimentos traumticos eviolentos, comuns a muitos brasileiros de baixa renda, pertencentes a famlias no

    escolarizadas. A me, negra, migrou do interior do Estado de Minas Gerais paraSo Paulo para trabalhar como domstica aos 10 anos de idade. Moral e fisicamenteabusada, primeiro pelo pai e, mais tarde, pelo marido, a me de Carolina desenvol-veu problemas psquicos graves e foi internada em hospital psiquitrico por longoperodo. Por isso, Carolina foi criada pela irm mais velha. Como muitos brasilei-ros, no conheceu o pai. Com a morte da irm que, segundo seu depoimento, aensinou a ler, escrever, tocar piano foi estudar em colgio interno, de orientaoreligiosa, no Rio de Janeiro, instituio que a abrigou at os 19 anos de idade. Foil que, por falta de qualquer outra opo de lazer e convvio social, se aproximoumuito dos livros. Carolina conta que no colgio tinha uma biblioteca, onde li qua-

    se tudo. Sempre li e escrevi muito bem, avalia. Quando concluiu o ensino mdio,voltou para So Paulo e, como suas colegas, tambm tentou entrar na USP, masno obteve sucesso. Com o salrio de arte-educadora de uma instituio pbli-ca, arcou com os custos da faculdade particular, pois, segundo ela, o diploma dePedagogia lhe abre novas perspectivas de desenvolvimento pessoal e profissional.Carolina tem planos de fazer ps-graduao em psicologia da educao e de abriruma ONG para cuidar das famlias de crianas carentes.

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    Pedro, 52 anos, casado, pai de duas jovens que esto na faculdade e trabalha

    como pintor da frota de automveis de uma emissora de televiso. Filho de peque-nos comerciantes com escolaridade primria completa, que migraram do interior deMinas Gerais em busca de melhores condies de vida em So Paulo, no final nosanos 1960, conta que entrou na escola j sabendo ler e escrever. Mas interrompeu osestudos porque no conseguiu passar no exame de admisso ao ginsio. Eu sempregostei de estudar, mas a educao estava longe de mim, reflete. Voltou a estudar de-pois de quarenta anos. Cursou supletivo (EJA) e concluiu o ensino mdio em 2002.Seus colegas de trabalho o incentivaram a fazer faculdade, porque sempre sonheiem ter um curso superior. Pedro queria estudar Psicologia, mas fez Pedagogiapor ser mais suave, coisa de criana. Mas no percurso eu mudei de ideia sobre

    o curso. Foi difcil, mas eu aprendi. Com o diploma, Pedro tem o projeto de abriruma escola, com apoio de uma instituio religiosa qual pertence. Enquanto isso,permanecer no emprego onde trabalha h mais de vinte anos.

    Com exceo de Beatriz, pertencente classe mdia e para quem a escola noparecia muito interessante, os alunos oriundos de famlias de baixa renda deixa-ram evidente o papel importante da escola como forma de superarem sua condiosociocultural de origem. Seja pelas marcas do que nela positivamente aprenderam,seja pela perspectiva de construo de futuro proporcionada pelo convvio no am-biente escolar ou, ainda, pelas oportunidades de que foram privados:

    Embora o ensino fosse muito fraco, tive uma professora na 4 srie (do ensinofundamental) que me deu noes de higiene, de como se comportar para ir

    ao banheiro, esse tipo de orientao que minha me nunca me deu porque ela

    nunca teve. Aquela professora era muito criativa, ela criava msica, teatro e eu

    pensava que um dia quando eu crescesse eu queria ser igual a ela. (Ana)

    Sempre fui uma pessoa muito inspirada, empolgado. Mas a educao estava

    longe de mim. No EJA encontrei um professor que me ensinou a gostar de lite-

    ratura, ento eu aprendi a gostar de ler. Eu vou voltar a ler. (Pedro)

    As mulheres que cuidavam da gente na escola no tinham relao afetiva com as

    crianas. A diretora, s vezes, visitava a instituio e incentivava a leitura. Sem-

    pre li e escrevi muito bem. Uma vez ganhei uma viagem como prmio em um

    concurso de redao. Mas no pude ir porque no tinha famlia. Ento, li todos

    os livros que havia na biblioteca. (Carolina)

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    Tais registros, deixados como marcas ou como lacunas na sua formao, tiveram

    consequncias em relao s possibilidades de acesso a uma educao superior con-siderada de qualidade. Como vimos, nenhum deles conseguiu vencer as barreirasde classe associadas oportunidade de conquistar uma vaga em uma das melho-res universidades do pas. Mas cursar uma faculdade e obter um diploma de cursosuperior, mais do que uma verdadeira ascenso social representava para eles a pos-sibilidade de realizar um sonho distante que, no Brasil, tem o peso simblico dedefinir a fronteira entre posies de subalternidade e as de algum prestgio social.

    Assim, embora demonstrassem clareza de que o diploma, por si s, no os retirarautomaticamente da condio econmica e social em que se encontram, sabem queele representa o passaporte que lhes permite ousar projetar o futuro.

    no contexto das condies concretas em que se desenrolou a trajetria deescolarizao desses estudantes que podemos compreender o sentido subjetivo e osignificado existencial da experincia de pesquisa que estamos investigando. Dife-rente de outras atividades acadmicas, pesquisar exige um envolvimento que requerassumir a posio de autoria e no a de mera reproduo de conhecimentos. For-mular uma questo de pesquisa, definir um referencial terico de anlise e um per-curso metodolgico para a coleta e anlise dos dados constitui, de fato, um trabalhointelectual complexo, considerado muito difcil para a maioria dos estudantes. Nos-sa experincia no acompanhamento de todo esse percurso tem nos indicado que esse

    esforo produz efeitos muito mais significativos e, talvez, mais duradouros do que omero produto final, consubstanciado no TCC. Isso porque no campo das subje-tividades que reside o seu verdadeiro efeito pedaggico, como ilustram os seguintesdepoimentos:

    Para mim foi muito difcil (...). Para fazer o TCC eu li muito, no conseguia

    entender os autores (...) no conseguia colocar minhas ideias no papel. Tive que

    pedir uma semana de licena na empresa para escrever. Eu no estava conse-

    guindo, mas eu queria continuar, eu j nem dormia mais. No fim, acho que eu

    consegui entender os autores e consegui escrever com minhas prprias palavras.

    Eu achava que no era capaz. (Ana)

    Fazer a pesquisa foi um desafio porque j fazia muito tempo que eu no estu-

    dava. Eu tinha muita dificuldade. Dentro das minhas limitaes fiz o possvel.

    Aprendi a ler textos difceis (...) lia e relia at entrar na minha cabea. Adorei

    tambm fazer a pesquisa documental, porque gostei de buscar informaes, de

    pesquisar. No acho que o mesmo que estudar. (Beatriz)

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    Eu gostei muito de fazer o TCC, mas tem uma hora que voc se sente muita sozi-

    nha,porque escrever muito difcil, deu vontade de sentar na calada e chorar...Parti de uma hiptese, mas da voc vai pesquisando e todas as suas certezas vo

    caindo por terra. (Carolina)

    Eu tive dificuldade para fazer a pesquisa, porque nas outras disciplinas eu cum-

    pria as tarefas. E de repente me encontro com o TCC e fiquei perdido. No tirei

    10, mas fiquei muito feliz porque fui eu que constru esse trabalho.Eu aprendi.

    (Pedro) (grifos nossos)

    A marca principal e recorrente em todos os depoimentos a do reconhecimen-to das dificuldades. No apenas aquelas relacionadas ao volume de leituras ou aoflego requerido para digeri-las, mas, sobretudo, ao esforo envolvido na tarefa detransform-las em discurso prprio. Em outras palavras, o que esses estudantes noscomunicam que a experincia de pesquisa no foi meramente cognitiva, mas vi-vida de modo fundamentalmente existencial. Evidencia-se, ento, a segunda marcadessa experincia: o sentimento de autossuperao e valorizao pessoal advindo doreconhecimento institucional obtido no ritual de passagem sua condio de pro-fissionais da educao representado pela defesa do trabalho de concluso de curso.

    Tendemos a atribuir o bom desempenho desses estudantes ao fato de que, paraeles, o que estava em jogo no era apenas o cumprimento de mais uma tarefa aca-dmica, mas a possibilidade de afirmarem-se como sujeitos capazes de realizar umtrabalho to complexo, de entender textos difceis e escrever com as suas prpriaspalavras.O envolvimento e o esforo investido no desafio adquiriram o sentidode afirmao de si mesmos como integrantes de um mundo do qual estiveram ex-cludos pelas restries impostas por sua condio social e cultural de origem. Talconquista, porm, no se deu sem a necessria mediao do outro. Pois, comoafirma Charlot (2005, p. 45) a relao com o saber a relao com o mundo, como outro e consigo mesmo de um sujeito confrontado com a necessidade de apren-

    der. A cumplicidade e envolvimento de diversos professores que acompanharame apostaram nessa possibilidade, no apenas foi reconhecida como lembrada nosagradecimentos do trabalho dos alunos, o que nos remete para a questo de quecertas condies institucionais so requeridas para que se viabilize a formulao edesenvolvimento de projetos pedaggicos e curriculares teoricamente coerentes earticulados. Sabemos, no entanto, que tais condies no correspondem realidadeda maioria das instituies de ensino superior do Pas, muito mais preocupadas que

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    esto na educao como um bom negcio. Mais do que respostas, este estudo abre

    inmeras outras questes e dilemas que permanecem em aberto acerca do real valor,significado e sentido de introduzir a prtica de pesquisa no currculo desse curso.

    Situada no contexto mais amplo das atuais polticas pblicas de formao deprofessores e dos cursos de Pedagogia no Brasil, permanece em aberto a questo desaber que efeitos concretos essa vivncia de pesquisa na graduao produz na vidaacadmica e profissional do futuro professor. Ainda que, em muitos casos, o produtodas investigaes de campo realizadas pelos estudantes de graduao traga elementosinteressantes sobre as temticas por eles investigadas4, sabemos que dadas as fragili-dades conceituais, metodolgicas e formais dessas produes, dificilmente elas so

    levadas em conta pela comunidade cientfica. Tais barreiras tendem a manter essesalunos-pesquisadores distantes da vidae do mundoacadmico, ainda que algunsmanifestem a inteno de cursarem uma ps-graduao. De outro lado, segue tam-bm a dvida sobre as efetivas repercusses de um esforo dessa envergadura nacarreira profissional e nas condies concretas de vida desses sujeitos. Ana e Pedrorepresentam uma parcela considervel dos estudantes de Pedagogia deste pas que,embora desempenhando funes de baixo prestgio social, no arriscariam perder seuemprego atual a no ser em troca de uma vaga no magistrio pblico que, a despeitodos baixos salrios, lhes traria maior segurana e estabilidade profissional. Finalmente,ainda uma terceira questo se nos apresenta: qual o real valor da pesquisa na formao

    inicial de professores se, em ltima anlise, como vimos, o que deles se espera comoprofissionais que sejam capazes de implantar e executar as determinaes legais eencaminhar o resultado de sua avaliao a instncias competentes?

    Em sntese, continua em aberto a questo do destino a ser dado a esforos depesquisa na formao inicial de professores que no se enquadram nem nos padresexigidos pela academia e nem nas reais expectativas em relao aos profissionaisda educao que, na prtica, dispensam a sua competncia como pesquisadorese crticos dos saberes que envolvem o ofcio docente. O fato que, a despeito dosinvestimentos polticos, cientficos e pedaggicos realizados pelos diferentes atores

    da educao brasileira, o crescimento da certificao educacional, promovido pelas4A anlise das principais temticas desenvolvidas nas pesquisas de TCC dos alunos de pedago-gia foi analisada, no artigo:Processo de pesquisa e formao de educadores: reflexes a partirdo curso de Pedagogia (Cardieri; Rosa, 2009). A anlise dos contedos dos trabalhos faz partede um projeto de pesquisa intitulado Formao de professores e pesquisa: relao com o sabernos cursos de graduao de pedagogia e licenciaturas em desenvolvimento no Programa dePs-Graduao em Educao da Universidade Catlica de Santos.

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    atuais polticas pblicas de educao superior, mantm inalterada, em nosso pas,

    a tradicional distribuio do saber, do poder e da riqueza. A experincia aqui ana-lisada, no entanto, parece ter deixado naqueles sujeitos o registro de uma vivnciade no subalternidade que talvez cumpra uma funo social importante, mesmoque estatisticamente irrelevante e no prevista nas propostas curriculares oficiais.Resta saber se resultados como esses justificam o investimento realizado, tanto pelosacadmicos quanto pelos formuladores de polticas pblicas, na defesa de uma ideiaque, confrontada com a realidade, subsiste apenas no plano da retrica.

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